A Princesa dos Cajueiros
Ópera cômica em 1 prólogo e dois atos Música de Francisco de Sá Noronha Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro Teatro Fênix Dramática em 6 de março de 1880 A JACINTO HELLER
oferece o Autor PERSONAGENS DO PRÓLOGO
EL-REI CAJU
DOUTOR ESCORREGA, médico do paço NHECO, mestre de cerimônias MARCOS, pescador VIRGÍNIA, uma mulher do povo.
UM PAJEM
UMA ENFERMEIRA
Conselheiros, ministros, fidalgos, cortesãos, damas do paço e amas de leite.
PERSONAGENS DOS DOIS ATOS
PRINCESA DOS CAJUEIROS
PAULO, pescador DUQUESA DA GUARDA-VELHA
PETRONILHA }
} mulheres do povo TERESA }
EL-REI CAJU
BARÃO DO BOM SUCESSO, médico do paço NHECO, mestre de cerimônias MARCOS, pescador O ADVOGADO DA DEFESA
O ADVOGADO DA ACUSAÇÃO
1º MINISTRO
2º MINISTRO
3º MINISTRO
4º MINISTRO
UM LACAIO
Professores, gondoleiros, fidalgos, damas, lacaios, etc.
A cena passa-se na Ilha (imaginária) dos Cajueiros, os dois últimos atos vinte anos depois do prólogo PRÓLOGO
Sala de gosto antigo e esquisito. Duas portas à direita e duas à esquerda. No fundo, um arco em toda a largura da sala. Depois do arco, uma grade, aberta no centro, para dar passagem para um bosque por uma escada que não se vê. À esquerda, um sofá.
Cena I
Cortesãos, depois o Doutor Escorrega, depois Um Pajem, depois El-Rei Caju e sua comitiva.
INTRODUÇÃO
CORO DE CORTESÃOS — Contentes, contentes nós vamos ficar!
Ferventes, ferventes, Sabemos amar A bela rainha Que o céu Nos deu, E que, coitadinha ‘Stá pra dar a luz Um filho que há de ser um príncipe de truz!
O DOUTOR (Aparecendo à porta dos aposentos da rainha, à meia voz.)
— Senhores, não façam tamanho barulho, Que nada de novo por ora não há...
CORO (À meia voz.) — Pois bem, não façamos tamanho barulho Que nada de novo por ora não há...
O DOUTOR — Senhores, estamos a quinze de julho;
Há já nove meses que... trá lá rá lá!
CORO — Trá lá rá lá!
Trá lá rá lá! Há já nove meses que... trá lá rá lá!
O DOUTOR (Descendo à cena.)
Coplas I
Eis o Doutor Escorrega, Do paço médico mor, Que os doentes se encarrega De mandar para melhor.
Eis o Doutor Escorrega!
No bem da humanidade dos dias seus emprega!
CORO — Eis o Doutor Escorrega No bem da humanidade os dias seus emprega!
II
O DOUTOR — Há quatro meses somente Da Academia sai:
Já matei radicalmente Cinco ou seis tipos daqui!
Eis o Doutor Escorrega!
No bem da humanidade dos dias seus emprega!
(Declamando.) Viram o médico do paço? Vejam agora o passo do médico! (Dança um burlesco sapateado durante o seguinte coro:)
CORO — Ah! Ah! Ah!
Quem mais burlesco, Quem mais grotesco Será? Será?
Passo indecente!
De rir à gente Vontade dá!
Ah! Ah! Ah!
(Findo o coro, entra o pajem a correr.)
PAJEM — Limpem fatos E sapatos, Que aí vem El-rei!
(Cada um dos cortesãos tira uma escova do bolso: limpam-se uns aos outros.)
CORTESÃOS — Zás! Trás! Zás!
Trás! Zás! Trás!
Fatos limpos e sapatos!
Que aí vem El-rei!
PAJEM — Vim prevenir-vos depressa, Mal que o avistei!
CORTESÃOS (A escovarem-se.)
— Pressa! pressa! pressa! pressa!
Que aí vem El-rei!
(Aparece ao fundo numerosa e luzida comitiva, que precede El-rei que vem acompanhado de coiteiros, trazendo petrechos de caça.)
MARCHA E CORO GERAL — Praça! Praça!
Praça! porque aqui está El-rei que vem da caça!
Toca trombeta: trá lá rá!
EL REI (À boca de cena.)
Coplas I
Eu sou o rei mais pândego.
Um rei sou de mão cheia!
Pareço um rei de mágica, Por ser original Por isso os meus bons súditos Não fazem cara feia...
Pra rei de ópera-cômica Não estou de todo mal!
Tur lu tu tu, Tur lu tu tu Ora aqui está El-rei Caju!
II
No meu país esplêndido É tudo monarquista!
Ninguém fala em república Ninguém diz mal de mim!
Se acaso algum sacrílego Quiser meter-me a crista, Irá para o patíbulo, Pois ... eu cá sou assim!
Tur lu tu tu, Tur lu tu tu Ora aqui está El-rei Caju!
CORO — Tur lu tu tu, Tur lu tu tu Ora aqui está El-rei Caju!
EL-REI (Aos cortesãos, que desde a sua entrada têm-se inclinado bastante.) - Levantar cabeças!
(Perfilam-se.) Doutor, dou-te a honra de dizer que venho da caça.
O DOUTOR - A caça é o rei dos prazeres e o prazer dos reis!
EL-REI - Foi uma caçada real!
O DOUTOR - O que matou?
EL-REI - Um veado.
O DOUTOR - Teve medo?
EL-REI - Não. Estou satisfeitíssimo com os meus coiteiros! (À comitiva.) Na próxima fornada, hei de fazer-vos barões, marqueses, conselheiros, coronéis da Guarda Nacional, etc. Sois ótimos caçadores!
(Inclinam-se.) Levantar cabeças! (Perfilam-se.) Que novas me dás do estado de Sua Majestade, a Rainha, ó Doutor?
O DOUTOR - O estado de vossa real esposa é o mais satisfatório possível. Há todas as probabilidades de um parto feliz. Conto que dentro de meia hora terá vindo à luz do dia o dono ou dona desta prenda! (Pega na coroa do rei.)
EL-REI (Zangado.) - O dono ou dona? (Naturalmente.) Dá cá a coroa, Doutor... (De mau humor, deitando a coroa.) Pois não tens certeza de que a criança é do sexo feminino? Há nove meses te ordenei que empregasses toda a tua ciência, a fim de que não seja varão, e sim varoa, a primícia do meu feliz matrimônio!
O DOUTOR - Supus que fosse gracejo...
EL-REI - Gracejo! Pois eu gracejo com os meus vassalos!
O DOUTOR - Relevai vos diga que a ciência, por isso mesmo que é a ciência, submete-se aos fenômenos comuns da natureza.
EL-REI - Fala claro.
O DOUTOR - Se o filho não tiver de ser uma filha, nem Vossa Majestade, nem eu, nem a ciência em peso...
EL-REI - Então para que se inventaram as invenções? Para que diabo cursaste dez largos anos a Universidade, donde saíste há quatro meses somente?...
O DOUTOR (Cantando sem música.) - Há quatro meses somente da Academia sai...
TODOS (Idem) — Já matou radicalmente Cinco ou seis tipos daqui !
EL-REI - Silêncio (Inclinam-se.) Levantar cabeças! — Pois nãos podes arranjar uma droga que tenha o desejado efeito?
O DOUTOR - Vossa Majestade pede...
EL-REI - Não peço: mando!
O DOUTOR - Manda um impossível! EL-REI - Quero, mando e posso!
O DOUTOR - Mas...
EL-REI - Mando, posso e quero!
O DOUTOR - Desta vez, Vossa Majestade pode querer, pode mandar, mas não pode poder!
EL-REI - Olha que sou teu rei!
O DOUTOR - E eu o mais respeitoso dos vossos súditos!
EL-REI - Obrigado.
O DOUTOR - Não há de quê... O nascimento, real senhor, é questão de mero acaso; nós nascemos homem, porque não nascemos mulheres...
EL-REI - Boa dúvida! — Não sei onde estou...
O DOUTOR - Estais em vossa casa...
EL-REI - Não sei onde estou, que não te esmurro...
O DOUTOR - Isso é mais fácil!
EL-REI - Senhores, atenção! Vou deitar decreto! Decreto verbal! (Inclinam-se todos. El-rei sobre ao sofá.) Sua Majestade El-rei Caju há por bem decretar ao médico de seu paço real, Doutor Escorrega, que, empregando os meios postos ao seu alcance por dez anos de Universidade, faça com que sua Majestade, a rainha, dê à luz uma criança do belo sexo. Se suceder que a criança pertença ao sexo barbado, morra por ele o referido Escorrega (Movimento do Doutor.) que assim o tenha entendido. Assinado: Eu! (Descendo.) Levantar cabeças!
O DOUTOR - Refleti, senhor...
EL-REI - Já refleti maduramente. — Ah! (Trepando ao sofá e batendo palmas.) Post-scriptum! Postscriptum! (Silêncio. Inclinam-se.) Se for macho, enforque-se o Doutor; se for fêmea, faço-o barão de qualquer coisa!
O DOUTOR - Senhor!
EL-REI - Assim o tenhas entendido! E bico! Levantar cabeças!
O DOUTOR - Com que então, desejais que o fruto do vosso amor...
EL-REI - O fruto não: deve ser a fruta!
O DOUTOR - O fruto é proibido: vá Vossa majestade descansado.
EL-REI - Bem. Assim é que gosto que me falem. Toca lá estes ossos. (Apertando-lhe a mão.) Vê lá:
um título ou cadafalso! (Aos cortesãos.) Rua! rua! Fazeis muita algazarra, e convém que minha augusta esposa esteja em completo sossego. — Doutor, uma princesa, ou...
(Repetição do estribilho.) — Tur lu tu tu Tur lu tu tu Verás quem é El-rei Caju!
(Aos cortesãos.) — Marche! — Vou ver a rainha. (Entra no quarto da rainha.)
CORO — Tur lu tu tu Tur lu tu tu Oh! que é ratão El-rei Caju!
(Os cortesãos saem pela esquerda alta. A comitiva do rei sai pelo fundo.)
Cena II
O Doutor [só]
[O DOUTOR] - Bonito. Ou uma princesa ou... tur lu tu tu! Estou metido em boa! Não há o que ver! o meu soberano é soberanamente tolo! Tão tolo, que aí pela ilha, quando alguém faz uma tolice, diz-se: - É uma cajuada! Persuadir-se o enxovedo que é a coisa mais natural do mundo a realização do seu originalíssimo desejo! O que hei de fazer? Isto de morrer enforcado aos trinta anos não lembra ao diabo! E o pior é que a rainha vai dar a luz a um menino! Se fosse menina, a mãe seria acometida de dores de dentes: não foi. Na Academia ensinaram-me que, quando uma senhora de esperanças, ao subir uma escada, deita sempre em primeiro lugar o pé direito, tem uma criança do sexo feminino... Ora, acontece que sua majestade deita sempre no primeiro degrau o pé esquerdo... Estou aqui, estou enforcado!
Cena III
O Doutor, Marcos MARCOS (Aparecendo ao fundo.) - Doutor...
O DOUTOR - Hein?
MARCOS - Uma palavrinha...
O DOUTOR - Ah! és tu, Marcos? O que queres? Como pudeste penetrar aqui?
MARCOS - Pelo jardim... Quero...
O DOUTOR - Escolheste mau lugar e má ocasião.
MARCOS - Mas é tão urgente...
O DOUTOR - Fala.
MARCOS - O outro dia morreu o Belisário... Nós, os outros pescadores, por espírito de classe, fizemos-lhe o enterro e oferecemos uma quantia à viúva, à boa Teresa, que a despendeu inteiramente com a moléstia do filhinho.
O DOUTOR - Um filhinho? De que idade? De que sexo?
MARCOS - Um menino de três meses (Decepção do Doutor.) que acaba de lhe morrer nas mãos!
O DOUTOR (Mais despeitado.) - Ora! Mas, afinal, o que queres?
MARCOS - Encarreguei-me de pedir a algumas pessoas que concorressem para o enterro da pobre criança; e como o Doutor é das que conheço... e se acha no caso... não hesitei em introduzir-me no jardim e...
O DOUTOR - Fizeste bem. Toma, e deixa-me. (Dá-lhe o dinheiro.)
MARCOS - Agradeço-lhe por mim e por aquela desgraçada! (Vai saindo pelo fundo.)
O DOUTOR - Oh, que idéia! Marcos! (Marcos volta) És ainda homem em quem a gente se possa fiar?
MARCOS - Conhece-me de criança.
O DOUTOR - Trata-se talvez da felicidade desta mulher.
MARCOS - De Teresa? Ainda bem, pois bem que o merece, coitada!
O DOUTOR (Dando-lhe mais dinheiro.) - Com o que já lá tens, deve dar para o enterro. Leva-lhe esse dinheiro e volta. (Conduzindo-o ao fundo e apontando para o bosque.) Logo que voltares, posta-te junto àquele cajueiro; em te eu chamando, vem cá. Não digas nada à mulher.
MARCOS - Está dito! Até logo. (Sai pelo fundo.)
Cena IV
O Doutor [só]
[O DOUTOR] - Trata-se agora de arranjar uma menina, e substituir por ela o príncipe, que será confiado à tal Teresa. É patifaria grossa, mas não o é mais fina mandar-me enforcar! Vamos arranjar uma princesa; não há tempo a perder. (Vai a sair; entra o pajem pela esquerda.)
Cena V
O Doutor, o Pajem PAJEM - Diversas amas-de-leite esperam ordem para entrar.
O DOUTOR - Que contratempo!
PAJEM - Inscreveram-se todas para o concurso anunciado.
O DOUTOR - E sou que lhes devo examinar a qualidade do leite, e escolher o melhor! Isto leva um tempo! Podia ficar para depois que sua Alteza nascesse! Enfim, mande entrar: esperarão na antecâmara.
PAJEM - Tomo a liberdade de observar que cada uma das amas-de-leite traz uma criança... e isto pode perturbar...
O DOUTOR (Vivamente.) - Traz cada uma uma criança? Mande entrar tudo! Mande entrar tudo! (A
um sinal do pajem que sai, entra pela esquerda um coro de amas-de-leite, cada uma com a sua criança nos braços.)
Cena VI
O Doutor, as amas-de-leite, depois Virgínia CORO DAS AMAS — As amas-de-leite, De leite, de leite, Vêm-se apresentar A ver qual se aceite, Ou qual se rejeite Pra dar de mamar.
O DOUTOR — Deleite, deleite, É ouvi-las cantar!
Quanta criança!
Quanta esperança!
Deixem-me ver se estes pequenos Gordos estão, pois, se não estão, Lógico é que não convém-nos As mães...
AS AMAS — Pois não! Pois não! Pois não!
O DOUTOR (Examinando as crianças uma por uma, à parte.)
— Este é rapaz - que o leve a breca!
Este é rapaz! - Rapaz! - Rapaz!
Este também! Também! que seca!
Idem, idem, idem, idem!
‘Stou danado, não duvidem!
De alguém morder sou capaz!
AS AMAS — ‘Stá danado, não duvidem:
De alguém morder, é bem capaz!
VIRGÍNIA (Entrando com uma criança nos braços.)
— Licença para dois!
AS AMAS — Ainda uma!
O DOUTOR — Quem sois?
VIRGÍNIA — Senhor, também desejo, Sem mais tirte, nem mais guarte Do concurso fazer parte AS AMAS — No concurso tomar parte.
O DOUTOR — Deve inscrever-se...
(Reconhecendo Virgínia, que levanta o véu e encara-o.)
Oh! céus! que vejo!
Virgínia!
VIRGÍNIA (Fazendo mesura.) — Para o servir.
O DOUTOR — Grande escândalo antevejo No que daqui vai sair...
(Às amas, apontando-lhes a porta da esquerda baixa.)
Senhoras, entrai!
A decisão em pouco vai!
AS AMAS — As amas-de-leite, De leite, de leite Lá vão esperar, A ver qual se ajeite, Se ajeite, se ajeite Pra dar de mamar (Saem pela esquerda baixa.)
Cena VII
O Doutor, Virgínia (Virgínia, durante o coro, tem acomodado no sofá, a criança que trazia.)
VIRGÍNIA - Finalmente! O DOUTOR - Tua presença assusta-me! Será possível que, afrontando tudo, penetrasses no paço real, para dar-me de viva voz novas edições de teus queixumes?
VIRGÍNIA (Em tom dramático.) - Pérfido! Há três anos eras um pobre estudante, que não tinhas onde cair morto. Onde cair morto! Que digo eu? Onde cair vivo!
O DOUTOR - Filha, olha que tenha mais que fazer. Adeus!
VIRGÍNIA (Agarrando-o pelo fato.) - Espera! vais livrar o pai da forca?
O DOUTOR - Vou me livrar a mim mesmo, o que é mais sério!
VIRGÍNIA - Nesse caso, fica. — Meu pais, honrado velho, vendo que tu nem casa tinhas para morar, e dormias ao relento como um cão sem dono, ofereceu-te uma alcova em nossa casa e um talher à nossa mesa.
Aceitaste a generosa oferta. Daí por diante, as tuas olheiras, que as levaras fundas como as de um condenado, começaram a desfazer-se. As cores rosadas da infância voltaram-te às faces, cuja palidez cadavérica dissiparam. É que às horas que te sobravam de orgias torpes, sucederam as noites bem dormidas no côncavo tépido de um colchão honesto.
O DOUTOR (À parte.) Esta rapariga tem muita leitura; foi o que a perdeu.
VIRGÍNIA - Ao cabo de três meses, disseste-me uma dia...
O DOUTOR - Disse-te...
VIRGÍNIA - Disseste-me: — Amo-te. E o teu amor, mentido num olhar estudado, encontrou uma porta escancarada onde deverá encontrar um baluarte inacessível: amei-te. O resto, tremo de repeti-lo... Meu pai observou-nos e murmurou: — Aqui há coisa... Chamou-me de parte...
O DOUTOR - E disse-te...
VIRGÍNIA - E disse-me: — Filha, os teus requebros e medeixas pelo Escorrega que, ente parêntesis, é um farroupilha, podem passar despercebidos a outros olhos que não sejam os de teu pai. Lembra-te de que já não tens mãe, e és o único penhor de minha felicidade nesta vida. Esquece-te dele e casa com teu primo Bernardino, para quem te destinei de pequena.
O DOUTOR - Estás a perder tempo; sei disso tão bem como tu .
VIRGÍNIA - Eu quisera que uma voz misteriosa te repetisse a todo momento essa história de lágrimas. — Quando sai do quarto do meu pai...
O DOUTOR - Eu disse-te...
VIRGÍNIA - Disseste-me: — Espera-me no jardim. (Com exagerado lirismo.) E foi lá, ao ciciar da brisa, ao brilho trêmulo da lua, que te repeti as palavras de meu pai...
O DOUTOR (À parte.) - Estou aqui, estou enforcado...
VIRGÍNIA - Nesse instante, parece que o demônio te inspirou estas palavras: — Amo-te! Virgínia!
Lutar contra a vontade de teu pai, será malhar em ferro frio! Fujamos! Arranjarei um emprego qualquer!
Casar-nos-emos! Uma dia voltaremos à casa de teu e pedir-lhe-emos a sua benção!
O DOUTOR - Que noite aquela!
VIRGÍNIA - Fugimos!... Não conseguiste... não procuraste o emprego e eu achei quem me desse roupa para lavar e engomar. Era daí que eu tirava a subsistência de nós ambos. Todos os dias eu te falava no nosso casamento, e esta palavra - Veremos - vinha morrer aos meus ouvidos como uma condenação. Um dia, poucos meses antes da tua formatura, saíste de casa e não apareceste mais; mas, ó desgraçado! o que não sabes é que me deixavas no seio o fruto da tua paixão maldita!
O DOUTOR - O que ouço!... Essa criança... (Corre para a criança.)
VIRGÍNIA (Interpondo-se.) - É tua filha!...
O DOUTOR - Minha filha!... (Querendo tomar a criança.) A que sexo pertence? É menina? Deixa-a ver!
VIRGÍNIA (Interpondo-se ainda.) - Ouve o resto: há um mês que veio ao mundo essa pobre criança...
O DOUTOR - Oh! não calculas o interesse...
VIRGÍNIA - Mentes tu!
O DOUTOR - E onde estavas tu?
VIRGÍNIA - Em casa da Rosa... uma pobre mulher, que se compadeceu do meu estado. — Dois dias depois do nascimento dessa pobre criaturinha, meu pai me apareceu em companhia do meu primo Bernardino...
O DOUTOR - E disse-te...
VIRGÍNIA - E disse-me: — Minha filha, eu sei o que são as mulheres e sei o que são os homens... O
Escorrega seduziu-te, e tu, com a fraqueza própria do teu sexo e da tua índole romanesca, escorregaste... Eu te perdôo... Aqui te trago o primo Bernardino, que já de muito te perdoou também. O DOUTOR - Bravo! Bravo! E o que te disse o primo Bernardino?
VIRGÍNIA - Disse-me: — Virgínia, o Escorrega, à vista desta criança, não hesitará em dar-te a mão de esposo.
O DOUTOR - Hein?
VIRGÍNIA - Nunca! respondi eu...
O DOUTOR - Ah! respondeste bem...
VIRGÍNIA - Prefiro o seu desprezo, meu primo; a sua maldição, meu pai; prefiro a minha desgraça... Foi nesse instante que o primo Bernardino, iluminado pela auréola sublime da piedade, balbuciou com a voz entrecortada pelos soluços: — Virgínia, eu sou o mesmo que dantes era! Põe-te fina e tens marido.
Amanhã vou mandar correr os banhos!...
O DOUTOR - Sublime! sublime!
VIRGÍNIA - Tu, que tens o coração de pau, não imaginas que cena! Meu pai chorava; eu chorava;
Bernardino desviava os olhos para lhe não trairmos o pranto... a criancinha chorava...
O DOUTOR (Rindo-se.) - Só eu é que não choro, porque já não tenho lágrimas...
VIRGÍNIA - Hoje, logo ao amanhecer, o primo Bernardino foi ter comigo...
O DOUTOR - E disse-te...
VIRGÍNIA - E disse-me:— Minha adorada noiva, já podes sair à rua; estás pronta para outra! Pega essa criança e vai levá-la ao pai. Há um bom pretexto para entrares no paço e falares ao Escorrega: o concurso para o lugar de ama-de-leite do príncipe ou princesa que está para nascer.
O DOUTOR - Dá-me! dá-me essa criança!...
VIRGÍNIA (Vai buscar a criança.) - Aqui a tens. (Vai entregá-la, como que se arrepende e abraça a filha.)
Romanza I
Que vás, ó penhor querido, A sorte o quer, cruel, fatal!
Vai, que me deixas partido O coração meu maternal...
Adeus, amores meus, Talvez para sempre adeus...
Adeus!...
II
Crescendo, tu não afagues Desejos bons de ver-me, oh! não!
Por tu mãe não indagues, Pois quem fui eu, não te dirão...
Adeus, amores meus, Talvez pra sempre adeus...
Adeus!...
(Entrega a criança ao Doutor que a examina.)
O DOUTOR - Uma menina!... Oh! céus! que felicidade!... Virgínia, Virgínia!... Deixe beijar-te os pés! (Ajoelha-se aos pés de Virgínia.)
Cena VIII
O Doutor, Virgínia, El-Rei Terceto EL-REI (Aparecendo à porta dos aposentos da rainha.)
— Bravo, Doutor!
Gostei!
O DOUTOR (À parte.) — Ora bolas, El-rei!...
(Ergue-se e deita a criancinha no sofá.)
VIRGÍNIA (À parte.) — El-rei!...
O DOUTOR — Vossa Majestade, malícia não deite Em ver-me ajoelhado desta moça aos pés: Ia examinar-lhe...
EL-REI — O quê?
VIRGÍNIA — O quê O DOUTOR — O leite...
VIRGÍNIA (À parte.) — Que diz ele?
EL-REI — Serve?
O DOUTOR — É a melhor das dez.
EL-REI (A Virgínia.) — Já que ser a ama da pequena vai, Escute o programa Que lhe traça o pai:
Três vezes são quantas De dia dará de mamar, E à noite são tantas Quantas a pequena chorar.
Ao ter a pequena Quatro meses já, Papas de maisena Preparar-lhe-á.
O DOUTOR — Papa de araruta Não lhe fará mal, Sendo bem enxuta, Tendo pouco sal.
EL-REI (À parte, depois e olhar muito para Virgínia.)
— Que mulher tão galantinha!
Ai, como olha para mim!
Quem me dera que a rainha Tivesse uns olhos assim!
Juntos EL-REI — Que mulher tão galantinha!
Ai, como olha para mim!
Quem me dera que a rainha Tivesse uns olhos assim!
VIRGÍNIA — Oh! que cara de fuinha!
Como ele olha para mim!
Saberei, por vida minha, Tudo, tintim por tintim.
O DOUTOR (À parte.) — Esta pobre criancinha Que dorme neste coxim, Veio salvar a vida minha, Teve compaixão de mim!
EL-REI (Ao Doutor.) — As outras amas já não são Precisas, não!
Manda-as embora, Sem mais demora!
VIRGÍNIA (Protestando.) — Então? Então?
O DOUTOR (Baixo.) — Amor, sossega:
De ti depende a salvação Do pai da filha do Escorrega!
EL-REI — Então, Doutor?
O DOUTOR — Lá vou, senhor!
(À porta da esquerda baixa.) Sem mais demora, Vinde para fora!
Sai Daí!...
EL-REI — Vão já se embora, Tumultuárias, Que necessárias Não são aqui!
Cena IX
O Doutor, Virgínia, El-Rei, as amas-de-leite (As amas saem a correr uma atrás da outra, passando por entre os três personagens que se acham em cena, e vão alinhar-se ao fundo.)
AS AMAS —Há muito mais tempo podiam ter dito:
A gente escusava de estar a esperar!
Juntos AS AMAS —Há muito mais tempo podiam ter dito:
A gente escusava de estar a esperar!
VIRGÍNIA — Que caso esquisito!
Que caso inaudito!
Ao príncipe novo vou dar de mamar!
O DOUTOR e EL-REI —
Meu Deus, quanta bulha! meus Deus! quanto grito!
Tão alto, senhoras, não devem falar!
EL-REI — Leva de rumor!
Isto para quem doente Se sente, É maçador!
VIRGÍNIA — Aqui anda algum mistério!
EL-REI — O Doutor pálido está!
O DOUTOR — El-rei parece-me sério!
OS TRÊS — Hei de ver o que será!...
(As amas-de-leite descem em linha, à boca de cena e cantam à meia voz.)
AS AMAS — As amas-de-leite Ao príncipe novo não dão de mamar...
Estavam preparadas com estes brinquedos...
(Tira cada uma a sua gaita de sopro.)
Que o príncipe novo devia estimar.
(Cada uma tira um acorde da gaita, e saem todas.)
Cena X
O Doutor, Virgínia, El-Rei EL-REI - Como sabes, Doutor, não sou homem de ciência. Mas deixa dizer-te: Sua Majestade, a rainha, parece-me que vai dar-me um rapaz!
O DOUTOR - Por quê, real Senhor?
EL-REI - Aquele volume...
O DOUTOR - Não quer dizer nada, senhor: o que pode acontecer é que Sua Majestade dê à luz uma pequena grande!
EL-REI - Pequena grande!
O DOUTOR - Vossa Majestade é um homem robusto... Sua Majestade, a rainha, é uma mulheraça...
EL-REI - Mulheraça?
O DOUTOR - A menina, quando de nascer, há de parecer que já tem para mais de um mês!
EL-REI - Olha que a minha ameaça está de pé! Não revogo o decreto! Se nascer uma princesa serás comendador...
O DOUTOR - Perdão, mas Vossa excelência havia me prometido um baronato. EL-REI - Vá pelo baronato. — E se for um príncipe, será queimado vivo.
VIRGÍNIA - Ai!
O DOUTOR - Vossa majestade havia dito que mandava enforcar.
EL-REI - Bem, bem: não havemos de brigar por isso. Escolherás a morte. Que morte preferes?
O DOUTOR - Prefiro morrer de velhice.
EL-REI - Escolhe outra, não faça cerimônias. — A falar em cerimônias, é bom prevenir o mestre delas. Desejo que a augusta cara metade tenha o seu bom sucesso com todas as formalidades prescritas. Vou dar uma volta pelo jardim. Adeus, ó Doutor. (À Virgínia.) Até logo ó... Como te chamas?
VIRGÍNIA - Virgínia, uma sua criada.
EL-REI - Minha ama... quero dizer: de minha filha. Ai, gentes! (À parte.) Que olhos (Alto.) Adeus, Virgíninha! (Ao Doutor, que se inclina.) Levantar cabeça! (Desce a escada do fundo, cantarolando.) Tur, tu, tu, tu (Desaparece.)
Cena XI
Virgínia, O Doutor VIRGÍNIA - Vamos! ergue a ponta do véu... Tu sabes que a curiosidade sempre foi o meu fraco...
Estás envolvido em alguma conspiração? E a minha filha, minha pobre filha, arriscada a ficar sem pai?! Olha que não é por ti, miserável; não é por ti que temo: é por ela, ouviste? É só por ela!
O DOUTOR - Reveste-te de todo o sangue frio e escuta.
VIRGÍNIA - Fala.
O DOUTOR - Sou um miserável, dizes tu. Pois bem: não receias que esse miserável não possa dar uma boa educação à tua filha?
VIRGÍNIA - Tanto receio, que só as exigência do primo Bernardino me obrigam a confiar-te em depósito sagrado.
O DOUTOR (Tomando-lhe o pulso.) - E o que dirias tu...
VIRGÍNIA - Olha que não tenho febre!
O DOUTOR - Não! Tomo-te o pulso para fazer mais efeito... E o que dirias tu, se, em vez de ser a pobre rapariga, filha do acaso e da ocasião, ela se tornasse a moça mais prendada e a mais rica de toda a ilha dos Cajueiros? (Inflamando-se.) Crescesse coberta de ouro e prata, de sedas e veludos, rodeadas de inúmeros vassalos, a disputar entre si a honra de lhe beijar os pés?!
VIRGÍNIA - Enlouqueceste! Fora mister que a minha filha houvesse nascido princesa!
O DOUTOR - O nascimento não quer dizer nada, aqui estou eu, que não nasci doutor.
VIRGÍNIA - Explica-te.
O DOUTOR - Em duas palavras: como sabes, sua Majestade El-rei Caju é estúpido como uma porta...
VIRGÍNIA - Como duas portas...
O DOUTOR - Como três, e não falemos mais nisso. — Imaginou que a Medicina pudesse fazer com que a criança que está para vir pertencesse ...
VIRGÍNIA - Já sei: ou é uma menina, ou morres...
O DOUTOR - Morro, não: matam-me. — O meu plano é este: tu és a ama escolhida para amamentar o real pimpolho; eu sou o médico parteiro. Combinamos, e na ocasião do parto, trocamos as bolas!
VIRGÍNIA - Que bolas?
O DOUTOR - As crianças.
VIRGÍNIA - Ah!
O DOUTOR - Que te parece?
VIRGÍNIA - Mas El-rei não tem que assistir ao parto?
O DOUTOR - El-rei é míope: grau cinco; não vê nada sem luneta; farei com que a perca.
VIRGÍNIA - Mas o primo Bernardino reclama-me.
O DOUTOR - Logo que houver nascido o menino...
VIRGÍNIA - Como sabes que é um menino?
O DOUTOR (Gravemente.) - Eu sou médico, senhora.
VIRGÍNIA - Bem sei.
O DOUTOR - Logo que houver nascido, darás parte de doente e serás substituída...
VIRGÍNIA - Mas... O DOUTOR - Tu vais casar-te; se nossa filha ficasse em meu poder, a sociedade obrigar-te-ia a esqueceres dela. Reflete bem: assim como assim, não seria melhor que a tua filha fosse antes a filha do Rei Caju? Em vez da pobre moça sem mãe, a poderosa Princesa dos Cajueiros?...
VIRGÍNIA - Mas.. é um esbulho!
O DOUTOR - Esbulho é enforcarem-me!
VIRGÍNIA - O que se há de fazer do príncipe real? Quando digo o príncipe real, quero dizer: o que na realidade é príncipe.
O DOUTOR - Queres ver? (Vai à grade do fundo e acena para o jardim.)
VIRGÍNIA - O que fazes?
O DOUTOR - Vais ver.
Cena XII
O Doutor, Marcos, Virgínia MARCOS (Ao fundo.) - Cá estou. (Dirigindo-se ao Doutor.) Teresa ignora... (Cala-se, vendo Virgínia.)
O DOUTOR - Podes falar... esta senhora não é demais.
MARCOS - Teresa ignora de onde lhe veio o dinheiro... Eu disse-lhe que era produto de uma subscrição.
O DOUTOR - Bem (Tirando um lápis e uma folha da carteiras.) Espera (Escreve. Música na orquestra.) “Teresa. Faze de conta que esse menino é o filho que perdeste; circunstâncias de força maior me obrigam a ocultar-lhe o nascimento. Dá-lhe o nome que quiseres: Paulo, Sancho ou Martinho. Mando-te uma bolsa: é para as primeiras despesas. Todos os meses ser-te-á remetida uma quantia com que possam, tu e teu filho adotivo, viver ao abrigo de toda e qualquer necessidade. Educa-o bem.” (Declamando ) É quanto basta.
(Escrevendo.) Misture e mande. (Riscando.) Ora esta! julguei que estivesse fazendo uma receita. (Ergue-se;
cessa a música.) Toma este bilhete, ó Marcos. (Leva Marcos até a grade do fundo; desce alguns degraus da escada com ele e aponta para a direita.) Vai colocar-te junto à segunda janelinha azul que se vê daqui e espera. Tenho de entregar-te uma criança, que depositarás com este bilhete e esta bolsa na porta de Teresa.
MARCOS - Um enjeitado!
O DOUTOR - Cuidado! Trata-se de um grande segredo. O teu silêncio será largamente remunerado.
MARCOS - É quanto manda?
O DOUTOR - Todos os meses virás ter comigo; dar-te-ei uma quantia que farás chegar misteriosamente ás mãos de Teresa.
MARCOS - Sim, senhor.
O DOUTOR - De forma alguma deve ela saber a origem...
MARCOS - Fique sossegado. (Querendo descer.) É quanto manda?
O DOUTOR - É. (Marcos desce um degrau.) Ah! (Detém-se.) Sabes quem vem ali? (Aponta para baixo.)
MARCOS - El-rei...
O DOUTOR - Aproxima-te dele sem que te pressinta e arrebata-lhe a luneta! (Movimento de Marcos.) Não te assustes: sem luneta El-rei não vê coisa alguma: é míope: grau cinco.
MARCOS - Nesse caso, é facílimo. (Desce um degrau e para, para perguntar.) Assegura-me que posso fazer tudo isto sem correr perigo?
O DOUTOR (Que já tem voltado à cena.) - Asseguro. (À meia voz.) Trata-se de salvar a honra de uma donzela de honor.
MARCOS - Bem, (À parte, referindo-se à Virgínia.) Deve ser aquela: tem cara de resguardo.
(Desaparece,)
Cena XIII
O Doutor, Virgínia, a enfermeira ENFERMEIRA (Saindo dos aposentos da rainha.) - Senhor Doutor! Senhor Doutor!
O DOUTOR - Já?!
ENFERMEIRA - Já. O DOUTOR - Bem, Vá prevenir o mestre de cerimônias. Os seus serviços são desnecessários ali. (A
enfermeira sai.)
VIRGÍNIA - São horas?
O DOUTOR - São. Vamos, entra. Vou apresentar-te à rainha; traze a menina... Vou pô-la à mão...
(Virgínia pega a criança e entra para o quarto da rainha.) Decididamente sou um homem feliz! Sem arredar pé desta sala, arranjei tudo! (Acompanha Virgínia.)
Cena XIV
Nheco, cortesãos, damas do paço, depois O Doutor, depois El-Rei (Entram pela esquerda, segundo plano, precedidos por Nheco.)
CORO — Cautos, cautos, E precautos, Vamos todos esperar Que a rainha, Coitadinha!
Dê a luz a criancinha Que um dia há de governar.
NHECO — Eu cá de cerimônias mestre da corte sou!
Do São Fulgêncio ao São Silvestre Suado estou!
Entra semestre e sai semestre.
E eu sempre a pé!
Mestre encontrar que não palestre Difícil é!
Quando eu morrer, estátua eqüestre Terei, olé!
O DOUTOR (Aparecendo) — Nheco, nesses aposentos A ninguém conceda ingresso!
NHECO — Isso está já por momentos?
O DOUTOR — Vai-se dar o bom sucesso...
CORO — Bom sucesso!
Vai-se dar o bom sucesso!
NHECO — Já lá está de leite a ama?
O DOUTOR — Já lá está!
NHECO — Tudo que manda o programa?
O DOUTOR — Lá está já!
NHECO —E a madama?
O DOUTOR — Que madama?
NHECO — A parteira, meu amigo!
O DOUTOR — Este seu criado é.
NHECO — Isso agora é brincadeira!
Doutor, quer mangar comigo?!
O DOUTOR — Do riscado entendo, olé!
CORO — Olaré!
Olaré!
Do riscado entende, olé?
O DOUTOR — Onde está El-rei Caju?
NHECO — É verdade: El-rei Caju?
CORO — Onde está tu, El-rei Caju?
EL-REI (Vindo do fundo, a tatear, sem luneta.)
— Cá estou! cá estou! Por Belzebu!
Estava eu lá - parece incrível! A passear pelo jardim, Quando uma sombra horrenda, horrível, Cai do ar por cima de mim!
Era um fantasma Deste tamanho!...
Oh! se te apanho, Faço-te assim...
CORO — Era um fantasma É caso estranho, Que a todos pasma!
EL-REI — Quero apanhá-lo, Vou segurá-lo, Mas o ratão Pisa-me um calo!
Eis que resvalo...
Bumba! no chão...
Perco a luneta E o sangue-frio!
Parece peta!
Que corrupio!
Caio aqui, caio acolá!
Acho-me cego!
Negro qual prego Tudo em meu redor está!...
Era um fantasma Deste tamanho!...
Oh! se te apanho, Faço-te assim...
CORO — Era um fantasma É caso estranho, Que a todos pasma!
O DOUTOR - Real senhor, não há um momento a perder!
EL-REI - Quem vai ao meu quarto buscar outra luneta! (Sai um cortesão à direita, segundo plano.)
O DOUTOR - Senhor, senhor! Vede o que prescreve a Constituição!
EL-REI (Zangado.) - Ora! a Constituição!
O DOUTOR - Venha, venha, real senhor! (Fá-lo entrar à força para os aposentos da rainha e entra também. Fecha a porta por dentro.)
NHECO (Aos cortesãos.) - Que vida trabalhosa a minha! Hão de crer que, desde que estou ao real serviço de sua Majestade, ainda não tive tempo e tomar um banho!
TODOS - Oh!
NHECO - É o que lhes digo... Ainda agora ia descendo para o banheiro, quando a enfermeira veio prevenir-me... Vamos a isto.
(O cortesão que tinha ido buscar a luneta do quarto do Rei, volta com ela.)
Cena XV
Nheco, fidalgos, fidalgas, os ministros, depois os conselheiros de estado, depois a bailadeira da paço, depois El-Rei Final NHECO — Agora é já, sem mais tardar, A porta selar.
(Um pajem tem trazido lacre, luzes e carimbos em uma bandeja de ouro. Dois cortesãos lacram e selam as portas do aposento da rainha.)
NHECO — Agora é já, sem mais tardar, Lacrar, selar Selar, lacrar!...
Nesta sala esperar deve Segundo a Constituição Prescreve, Todo o Conselho de Estado, E o ministério - pois não!
Fardado.
CORO — Eis o Conselho de Estado Respeitável, respeitado!
(Entrada de meia dúzia de conselheiros muito velhos, a dançar de mãos dadas uns aos outros.)
Tur lu tu tu, Tur lu tu tu!
Tem bom Conselho El-rei Caju!
Eis que chega o ministério, Muito sério, muito sério...
(Entrada de meia dúzia de ministros com suas respectivas pastas, a marchar uns atrás do outros.)
Tur lu tu tu Tur lu tu tu!...
Ministros são d’El-rei Caju!...
CORO — Cautos, cautos, E precautos, Vamos todos esperar Que a rainha, Coitadinha!
Dê a luz a criancinha Que um dia há de governar.
NHECO — Agora exijo Que dance um passo Em sinal de regozijo A bailadeira do paço!
(Entra uma bailadeira.)
Passo de dança. (Findo o passo de dança, abre-se violentamente a porta lacrada, e entre El-rei Caju, trazendo nos braços uma criança, envolvida num rico manto bordado a ouro.)
EL-REI — A luneta! a luneta!
Quero ver a principeta!...
(Colocam-lhe a luneta no nariz.)
Que linda está!
CORO — Que linda está A CRIANÇA (Chorando.) — Ah! Ah! Ah!...
EL-REI — Que linda é!
CORO — Que linda é!
A CRIANÇA — Eh! Eh! eh! eh!
EL-REI — Mais nunca vi!
CORO — Mais nunca vi!
A CRIANÇA — Ih! ih! ih! ih!
EL-REI — Linda ela só!
CORO — Linda ela só!
A CRIANÇA — Oh! oh! oh! oh!
EL-REI — Que linda és tu!
TODOS (Imitando a criança.) — Uh! uh! uh! uh!
EL-REI — Nheco, vê que já se ri...
Dez minutos tem de idade!
NHECO — Não admira, Pois é filho de Vossa Majestade!
(Espalha-se pela sala dos espectadores um cheiro de alfazema)
EL-REI — Que cheiro de alfazema! NHECO — Oh! que cheiro de alfazema!
TODOS (Aspirando.) — Um! um! um! um!
Que boníssimo sistema O de queimar alfazema, Se ao mundo vem Gentil nenen!...
EL-REI — Estou louco de amor E de prazer possesso!
Nomeio o meu Doutor, Barão do Bom Sucesso!...
(À boca de cena)
Tur lu tu tu, tur lu tu tu!
‘Stá satisfeito El-rei Caju!
TODOS — Tur lu tu tu!
‘Stá satisfeito El-rei Caju!
[Cai o pano] ATO PRIMEIRO
Praia. Ao fundo, o mar. À esquerda, uma cabana. À direita uma grande árvore, cujas ramagens, prolongando-se, formam as bambolinas.
Cena I
Marcos, pescadores, depois criadas.
(Ao erguer-se o pano, a cena está vazia.)
INTRODUÇÃO
CORO (Ao longe.) — Do mar ao remanso Lá vou, Que a vez do descanso Chegou!
(Chegam à praia duas canoas tripuladas por Marcos e pescadores, que saltam para terra, trazendo cestos de peixe.)
CORO — Que viver folgado, Pesar de arriscado, Viver a pescar!
Não há quem se queixe De haver pouco peixe No fundo do mar.
MARCOS — Tocai as buzinas, E venham, meninas, O peixe comprar!
(Toque de buzina pelos pescadores.)
TODOS — Ao som das buzinas Vão vir meninas O peixe comprar!
(Entra um grupo de criadas, munidas de cabazes.)
CRIADAS — A noite começa, Começa a cair, Por isso, depressa Nos devem servir.
PESCADORES — A noite começa, Começa a cair, Por isso, é depressa Que as vamos servir.
(Durante este coro as criadas enchem os seus cabazes de peixe que compram e pagam aos pescadores.)
AS CRIADAS — Adeus! Adeus!
MARCOS — Um momento!
Que minha voz vou soar ao vento!
Barcarola I
— Minha barquinha ligeira, Feiticeira, Leva-me longe daqui!
Singra esse mar docemente, Suavemente...
Eu todo me entrego a ti!
Ai, ló, lé!
Ai, ló, lé!
Ao largo, que enche a maré!
TODOS — Ai, ló, lé! Ai, ló, lé!
Ao largo, que enche a maré!
MARCOS — A lua triste e formosa Surge airosa, Surge airosa lá nos céus!
E a brisa que ajuda o leme Chora e geme Passando nos mastaréus Ai, ló, lé!
Ai, ló, lé!
Ao largo, que enche a maré!
(Às criadas.) - Estou satisfeito. Podem ir embora.
AS CRIADAS - Adeus, adeus! (Saem por diversos lados, como entraram.)
MARCOS - Bem. Desta vez os cestos ficaram vazios. — Rapazes, a noite parece que é boa... Vão tratar da vida, que a morte é certa.
OS PESCADORES - Até amanhã, Marcos! (Entram para as canoas.)
MARCOS - Até amanhã.
CORO DE PESCADORES — Do mar ao remanso Lá vou Que a vez do descanso Chegou!
(As canoas afastam-se e as vozes perdem-se ao longe.)
Cena II
Marcos, só [MARCOS] - A ocasião é excelente. A tia Teresa esta sozinha em casa e Paulo erra nos mares, a pescar sardinhas e a entoar barcarolas. Vamos lá deixar a mesada. (Tirando uma bolsa e vai deitá-la por baixo da porta de Teresa.) Pronto! E dizer que faço isso há vinte anos! Toca a safar! (Vai saindo. Teresa abre sua porta.)
Cena III
Marcos, Teresa TERESA (Vendo-o.) - Adeus, ó Marcos! (Dando com a bolsa.) Ah! cá está... cá está...
MARCOS (Voltando.) - Olá Tia Teresa!... (À parte.) Se me viu...
TERESA - Que novas me dá de Paulo? Viste-o por aí?
MARCOS - Vi-o a pescar.
TERESA - Sai de casa pela madrugada... vai cair a noite, e nem sinal! É incorrigível! Só a minha paciência!
MARCOS (Que tem deitado fumo no cachimbo.) - Na verdade, dão muito que falar os modos misteriosos de seu filho.
TERESA - Meu filho... Antes o fosse!
MARCOS - Mas é como se o fosse: vive em sua companhia desde a tenra idade.
TERESA - Quando veio para minha companhia, há vinte anos, poderia ter poucas horas de nascido.
Foi uma época terrível para mim... Meu marido e meu único filho haviam morrido... e eu estava reduzida à mais negra miséria...
MARCOS - Mas Paulo foi seu anjo bom; não é assim?
TERESA - Dizes bem: foi o meu bom anjo. Enjeitaram-no à minha porta, é verdade; mas, ao mesmo passo que me sobrecarregavam com a pensão de educá-lo, substituíram meu filho e garantiram-me a subsistência honrada.
MARCOS (À parte.) - A quem ela o diz...
TERESA - Entre os panos que o envolveram, achei uma bolsa recheada e uma carta que assim dizia:
(Recita a carta escrita pelo Doutor no Prólogo. A mesma música na orquestra.)
MARCOS - E a tia Teresa, justiça se lhe faça, cumpriu religiosamente a misteriosa incumbência.
TERESA - Cumpri. Dei ao menino o nome de Paulo, que, dos três apóstolos, foi o que melhor me pareceu. Recebeu uma educação de príncipe.
MARCOS - De príncipe?
TERESA - Isto é um modo de falar.
MARCOS - E todos os meses é infalível o dinheiro?
TERESA (Mostrando-lhe a bolsa.) - Vês? Agora mesmo acabo de encontrar, metida por baixo da porta, a mesada correspondente ao mês que hoje principiou. Graças a esse dinheiro a nossa existência tem sido descansada e feliz. O que me dá a pensar é a negação absoluta que Paulo, desde os mais verdes anos, revelou pelo trabalho. Quando soube do mistério em que se acha envolvido o seu nascimento, e da mesada certa que eu percebia, disse: — Bem! esse dinheiro chega-nos: não é preciso trabalhar.
MARCOS - Nasceu para fidalgo...
TERESA - Nasceu fidalgo, deves dizer. O seu prazer é andar pelos bosques ou pelo mar: quem lhe tirar a caça ou a pesca, tira-lhe tudo.
MARCOS - E, segundo me consta, é outro esquisitão a respeito de mulheres...
TERESA - Não fazes idéia, Marcos! Nunca ninguém lhe conheceu namorada! A Petronilha...sabes?
MARCOS - Sei, tia Teresa...
TERESA - Pois bem: a Petronilha gosta dele... Estou mesmo convencida que o ama deveras... e...não há meio!
MARCOS - Deixe lá, tia Teresa. Paulo não é nenhum santo; aquilo é que as faz pela calada. — Olhe, se não me engano, é ele que ali passa ao largo.
TERESA - É ele... é...
MARCOS - Deixa-se levar pela correnteza...
(Paulo passa pelo fundo, sentado à proa de uma canoa, que desliza suavemente nas águas, e canta o seguinte.)
Barcarola [PAULO] — O mar que ruge raivoso Medo nunca me causou!
As minhas velas às brisas!
Às brisas soltar vou.
Meu Deus, como se parecem, Quando a noite é de luar, Os pirilampos da terra Co’as ardentias do mar.
(Desaparece no lado oposto.)
MARCOS - Bom. Vai longo o palanfrório. Adeus, tia Teresa.
TERESA - Vou contigo. Tenho que dar uma voltas. Deixa-me dar uma à chave.
MARCOS - Uma! o quê?
TERESA - Uma volta. (Tira a chave e mete-a por baixo da porta.) Cá fica por baixo da porta. Paulo já sabe onde a deve encontrar.
MARCOS - Vamos, tia Teresa. (Saem.)
Cena IV
Petronilha, só (Entra arrebatadamente pelo lado oposto àquele por onde saíram Marcos e Teresa.)
Coplas I
[PETRONILHA] — Eu sou Petronilha, Moça original.
Que não tem rival Em toda esta ilha;
Ninguém pelos campos Me apanha a saltar;
E lá recuar Nem chuva, relampos Coriscos E riscos Que sempre formigam, Me obrigam!
— Eu sou Petronilha, Moça original.
Que não tem rival Em toda esta ilha;
II
— Como eu quem maneja Qualquer varapau?
De faca e calhau Não sei quem mais seja!
‘Stou doida de amores:
Meu fraco aqui está;
Mas olhem que lá Cabelos e flores, E cousas, E lousas Que as outras empregam, Não pegam!
— Eu sou Petronilha, Moça original.
Que não tem rival Em toda esta ilha;
- Paulo já deve estar de volta. (Batendo à porta.) Paulo! Paulo! Dar-se-á caso que não voltasse ainda?... (Bate.) A tia Teresa, essa não está que a vi ir daquele lado em companhia de Marcos.
(Batendo.) Paulo! Paulo! Aposto que não quer abrir, porque já me reconheceu a voz! E não é outra coisa!
Pirracento! (Bate.) Qual! (Desce à cena.) E dizer que me entrou este amor, no coração como uma praga!
Amo-o, adoro-o, e ele despreza-me, como se eu não fosse digna de seus cuidados! — Ah! mas agora resolvi mudar de tática, e exigir o seu amor, como os salteadores exigem a bolsa ou a vida dos viandantes na estrada.
A mulher está no seu direito, deixando de corresponder a este ou àquele afeto, mas o homem... Faça-me o favor! Nada! há de ir por aqui, se por aqui o mandarmos. Era o que faltava: estar eu agora à mercê dos caprichos do Senhor Paulo! Ou ele ama-me, ou deito-me a perder! (Vai bater à porta.) Paulo! Paulo! Abre, ou deito ombros à porta! Ah! não ouves? não queres abrir? Lá vai! (Tenta arrombar a porta. Durante a última parte deste monólogo, Paulo tem entrado pelo fundo e observado.)
Cena V
Petronilha, Paulo PAULO (Do fundo.) - Ó mulher, não me escangalhes a porta!
PETRONILHA (Puxando-o pelo braço, à boca de cena.) - Há duas horas que estou a bater!
PAULO - E que culpa tenho eu disso?
PETRONILHA - Não podias ter dito que não estavas em casa?
PAULO - Vamos saber: o que deseja a senhora? Se ainda vem oferecer o seu amor, o melhor é calarse, porque a esse respeito, resolvi pôr em prática o adágio: orelhas moucas a palavras ocas!
PETRONILHA - Sim, senhor: trata-se de amor, mas note bem: não lho venho oferecer: venho imporlho; entende? Arrebatá-lo, arrancá-lo à força desse coração de pedra.
PAULO - Ora ouve, e deixa-te e desatinos!
PETRONILHA - Vamos lá!
Coplas I
PAULO — Mal empregas esse afeto:
Vê se o empregas melhor;
Vai procurar outro objeto Para o teu férvido amor.
Se te causo algum desgosto, Bem mereço o teu perdão, Pois amor não é imposto, Lançado no coração PETRONILHA — Se eu fosse de faniquitos, Tremiliques, tremilaques, Dava agora quatro gritos, Tinha agora três ataques!...
II
PAULO — A correnteza de um rio Se alguma pedra topar, Há de tomar um desvio, Há de outro rumo tomar;
Faze tu como o regato, Essa pedra, ei-la aqui está...
Tão bom conselho e sensato Ninguém te deu nem te dá.
PETRONILHA — Se eu fosse de faniquitos, Tremiliques, tremilaques, Dava agora quatro gritos, Tinha agora três ataques!...
PAULO - Que queres que eu te faça? Reconheço que és uma excelente rapariga, que nada deixa a desejar: bonita, virtuosa, trabalhadeira...
PETRONILHA - E apatacada.
PAULO - Isso é o menos; mas enfim... és uma mulher como se quer. Feliz do homem que se fizer teu marido!
PETRONILHA - Então? O que mais queres tu? Amo-te, porque te distingui de todos os pintalegretes da ilha, e tu desprezas tão generoso afeto!
PAULO - O meu coração não foi feito para o amor. Adeus, minha amiga, não me queiras mal;
ofereço-te uma amizade de irmão, como nos romances. Aceitas? Se aceitas, muito bem; se não, viva!
PETRONILHA - Nada! não quero assim! Desejo que me ames para casar.
PAULO - Isto é o que se chama a faca aos peitos!
PETRONILHA - Vamos: faze-me a vontade.
PAULO - Não está em minhas mãos.
PETRONILHA - Mas está em teu coração; procura bem, que acharás.
PAULO - Não tenho coração.
PETRONILHA - Anda, dá cá um beijo, e eu te mostro se tens ou não tens coração...
PAULO - Estás doida! Eu dou lá beijos no meio da rua! (A cena vai ficando escura pouco a pouco.)
PETRONILHA - Então entremos... Onde está a chave?
PAULO - Tu enlouqueceste, mulher!
PETRONILHA - Vai, pedaço d’asno! A culpada sou eu, que me não devia apaixonar por um enjeitado!
PAULO - Se sou o enjeitado da família, tu és a enjeitada do amor. Ela por ela!
PETRONILHA - Olha que te esmurro!
PAULO - Pois esmurra! (Procurando a chave.) Nem assim conseguirás que eu te ame! (Abre a porta, entra e fecha-se.)
PETRONILHA - Paulo! Paulo!
PAULO - Adeus! Adeus!
Cena VI
Petronilha, só [PETRONILHA] - Aqui anda coisa... Quem não come é porque já comeu, dizia meu avô. Mas digo eu: quem não come está para comer. deixa estar, que não te perco de vista. (Olhando para dentro.) Quem vem ali?! Uma mulher com o rosto inteiramente encoberto por um véu! Quem sabe se... Escondendo-se atrás da árvore.) Observemos.
Cena VII
Petronilha, escondida, a Princesa, ao fundo, Paulo, que sai da cabana cautelosamente.
PAULO - São horas de chegar a minha misteriosa amante. Custei a ver-me livre daquela maldita Petronilha!
PETRONILHA (À parte.) - Obrigada.
PAULO (Vendo a Princesa.) - Ah! Era tempo! Ei-la! (Corre para a Princesa, e trá-la à boca de cena.)
PETRONILHA (À parte.) - Então? Sempre há palpites...
Dueto PRINCESA — Paulo PAULO — Meu anjo!
PRINCESA — Aqui me tens!
a tremer venho...
PAULO — A tremer vens...
PRINCESA — Será saudade ou ciúme O abalo que sinto aqui?
A pobre rolinha implume, Ao verde ninho arrancada, Não fica tão magoada Como eu, se longe de ti!
PAULO — Será ciúme ou saudade A causa desta emoção?
Tristeza cruel me invade, Pungente dor me quebranta, Se tardas, ó minha santa, Se tardas, meu coração!
JUNTOS — Ó meu }
} amante, — Ó minha }
Caro penhor, Que doce instante Do nosso amor!
Amo-te muito:
Ama-me assim!
Amo-te muito, Meu querubim!
PAULO - Mas quero enfim saber quem és, ó doce amada!
PETRONILHA (À parte.) - Ah! se ela o diz, estou vingada!
PRINCESA — Saber não desejes, Meu Paulo, quem sou!
PAULO — Amor, não gracejes, Que sôfrego estou...
PRINCESA — Saber tu não deves Quem sou, donde vim.
PAULO — Por que não te atreves A dizer-mo a mim?
PRINCESA — Segredos eu tenho...
PAULO — Convenho, convenho; Mas diz-mos!
PETRONILHA (À parte.) — Enfim!
PRINCESA (Com mistério.) — Eu a Princesa sou dos Cajueiros!
PAULO — A princesa!... Tu?!
PETRONILHA (À parte.) — Tur lu tu tu Tur lu tu tu A filha! ó céus! d’El-rei Caju!...
(Saindo, com gestos ameaçadores.)
Vou me vingar destes brejeiros!
PAULO — És a princesa!
PRINCESA — E no entanto, Amo-te tanto, amo-te tanto...
JUNTOS — Ó meu }
} amante, — Ó minha }
Caro penhor, Que doce instante Do nosso amor!
Amo-te muito:
Ama-me assim!
Amo-te muito, Meu querubim!
Cena VIII
Paulo, Princesa PAULO - Mas tu... Vossa Alteza...
PRINCESA - Qual Vossa Alteza! Trata-me por tu... Ora aí está! Por essas e outras e que eu queria guardar o incógnito.
PAULO - Princesa! Filha do Rei! É impossível então que nos unamos! Nada pode haver de comum ente nós, senão o esquecimento mútuo.
PRINCESA - Por quê?
PAULO - Sou um pobre enjeitado...
PRINCESA - Que importa! Fugiremos!
PAULO - Fugir! pois há de Vossa Alteza...
PRINCESA - Trata-me por tu, sim?
PAULO - Desprezarás as honras que te cercam, o cetro de ouro que te aguarda, para seguir um miserável, sem passado, sem presente e sem futuro?!
PRINCESA - Deixa dizer-te, e acredita: o viver da corte me enfastia, faz-me mal aos nervos. Depois que morreu minha mãe, e já lá vão tantos anos, apoderou-se de mim um desapego tal pela corte... O que deu motivo a tanto azedume? Não sei... Não sei... O que é certo é que não me sinto Princesa... Os meus instintos são todos burgueses e triviais. Quisera viver tranqüila, ao lado de uma maridinho como tu... a pontear meias, marcar lenços...
PAULO - Eu, o inverso, senhora! Por isso mesmo que nasci sem pai nem mãe; por isso mesmo que sou o ínfimo dos homens, sinto-me talhado para as regiões supremas do poder! Ah! que se eu pudesse mandar cortar uma cabeça... ou duas... ou todas, como Caligula! Por ser o menor, desejava tornar-me o maior... Para quê? Para vingar-me talvez! Para ter ocasião de desprezar os que me desprezam!
PRINCESA - Admiras-te de me ver aqui! O amor tinha para mim irresistível encanto. Eu não o conhecera nunca, mas adivinhava-o.
PAULO - Não o conhecias?
PRINCESA - Não ligava o nome... Quem se atreve na corte a levantar os olhos para a infanta?
O amor é-lhe interdito. Um dia, mandam o meu retrato a um príncipe de outro reino, e dizem-lhe, ao príncipe:
— Aí vai a amostra, vêde se vos agrada. Se assim for, mandai buscá-la. É sacrificando as princesas que se apertam os laços entre as nações. Não nos casamos por amor: casamo-nos por diplomacia. Ah! política!
política! PAULO - Meu anjo!
PRINCESA - Anteontem, descobri no meu aposento uma porta secreta que dá para o jardim.
Descobri no jardim outra porta secreta que dá para a rua. É hoje! disse eu comigo. E saí! Vi-te, e amei-te. Daí é que principiei a ligar o nome...
PAULO - Mas... se dão pela tua ausência?
PRINCESA - Não dão. Tenho por costume fechar-me por dentro. O único que poderia interromper minha solidão é meu pai; mas esse anda todo entretido com a Duquesa da Guarda Velha!
PAULO - A Duquesa da Guarda Velha?
PRINCESA - Uma fidalga estrangeira, que foi há dias apresentada à corte... Uma excelente senhora.
Ama-me como se me conhecesse de velha data. Diz-se no paço que meu pai casa com ela. É uma felicidade!
Eu não escolheria outra madrasta. (Música. Aparece no mar uma suntuosa gôndola, distinguem-se a Duquesa da Guarda Velha e o Barão do Bonsucesso.) Oh! É ela!...
PAULO - Ela quem?
PRINCESA - A Duquesa da Guarda Velha! O que virá fazer aqui? Ai! O barão vem com ela!
Não há mais tempo! Viram-me! Estou perdida! Condenam-me à morte!
PAULO - Cala-te. (Leva-a para a cabana.)
PRINCESA - Ah! (Entram ambos na cabana.)
Cena IX
Barão, Duquesa, gondoleiros e damas de companhia. Noite completa. Luar.
Canto CORO GERAL — Dá Guarda Velha eis a Duquesa!
Cá ‘stá! Cá ‘stá!
Melhor senhora com certeza Não há! Não há!
BARÃO (Saindo da gôndola e oferecendo a mão à Duquesa para sair também.)
— Eis-vos, enfim, chegada À praia desejada.
(À parte.) Não sei por quê, Nem para quê.
DUQUESA — Muito obrigada.
BARÃO — Não há de quê.
DUQUESA (A uma dama.) — Manda embora os gondoleiros:
Volto a pé.
TODOS — Volta a pé!
AS DAMAS — Ide embora, gondoleiros, Ide ligeiros, Que a Duquesa volta a pé!
Um de seus caprichos é.
GONDOLEIROS — Dá Guarda Velha eis a Duquesa!
Cá ‘stá! Cá ‘stá!
Melhor senhora com certeza Não há! Não há!
(As gôndolas desaparecem com os gondoleiros, e as damas ficam ao fundo.)
Coplas I
DUQUESA — Não me foi a sorte avara, Eu não me devo queixa.
BARÃO (Sempre à parte.)
— Não me é estranha aquela cara, Mas não me posso lembrar.
DUQUESA — A ventura bem se esconde;
Mas, no entanto, a descobri.
BARÃO — Não sei quando, nem onde Aqueles olhos já vi.
AS DAMAS — Com é bela esta paragem!
Fresca aragem Corre aqui!
II
DUQUESA — Da pobreza que vitória!
Pois Duquesa hoje sou!
BARÃO — Dou mil tratos à memória, E contudo, em branco estou...
DUQUESA — ‘Spero em breve ser rainha, Pois El-rei morre por mim!
BARÃO — Ai, que cabeça esta minha!
Nunca vi cabeça assim!
AS DAMAS (Descendo à cena.)
— Que lugar! que formosura!
Que frescura!
Que jardim!
DUQUESA (Às damas.) - Afastai-vos! Ide admirar os prodígios desta natureza privilegiada. Preciso conversar a sós com sua Senhoria, o Senhor Barão do Bonsucesso. (À parte.) A casinha deve ser esta.
(As damas afastam-se para o fundo, onde se dividem em grupos.)
Repetição AS DAMAS (Descendo à cena.)
— Que lugar! que formosura!
Que frescura!
Que jardim!
DUQUESA - Afinal! Chegou enfim o momento! (Dirigindo-se ao Barão e fitando-o.) Olhe bem para mim! Não me conheces?
BARÃO - Duquesa!
DUQUESA - Desconhece-me! Não assombra! Há vinte anos que não nos vemos... as fisionomias transformam-se...
BARÃO - Ah! Virgínia!!
DUQUESA - Mas ouve: eu reconheci-te à primeira vista. Assim deveria ser: conservava de ti a mais dolorosa impressão. Era impossível que se me varressem da memória estes olhos, que me mentiram...
esses lábios, que me mentiram... esse nariz...
BARÃO - Nada! o nariz é que não te mentiu... E folgo de ver que ainda não deste de mão ao teu romantismo.
DUQUESA (Em outro tom.) - Dê-me Excelência, Barão.
BARÃO - Dê-me Senhoria, Duquesa... e expliquem-nos. Desde que Vossa Excelência chegou, que tenho buscado a adivinhar em suas feições a fisionomia de outra pessoa. Vossa Excelência é a Virgínia, minha pobre Virgínia, emendada e consideravelmente aumentada. Vossa Excelência dignar-se-á, se tanto mereço, explicar-me o modo pelo qual se operou tão estranha metamorfose.
DUQUESA - Muito simplesmente, Barão: Vossa Senhoria lembra-se de que, logo depois de casada com primo Bernardino, fomos, eu e ele, a correr o mundo? Depois de andarmos por seca e meca, resolvemos firmar a nossa residência na Ilha da Guarda Velha.
BARÃO - O quê? Pois foram a seca e meca e não deram um pulo até a olivais de Santarém, que é tão perto?...
DUQUESA - Oito anos depois, meu marido morreu, deixando-me uma avultada riqueza. Dois anos depois da morte do meu marido, comecei a ser requestada pelo fidalgo mais poderoso da ilha, o Duque da Guarda Velha, senhor feudal em dez léguas de terreno e homem de senso prático. Casei com o Duque da Guarda Velha. Seis anos depois, enviuvei pela segunda vez. Há quatro anos que me sucedeu esta catástrofe.
BARÃO - Vejam de que escapei! Se me tivesse casado com Vossa Senhoria, estava a estas horas no outro mundo!
DUQUESA - Deixei passar no feudo a minha lua de mel....
BARÃO - Outra?
DUQUESA - A lua de mel da viuvez. E aqui estou. Vamos ajustar contas, Senhor Barão: Vossa Senhoria sabe onde quero bater? BARÃO - Perfeitamente. Vossa Excelência quer bater àquela porta... Agora percebo por que a Duquesa me pediu que a acompanhasse a este sítio...
DUQUESA - Ainda bem que o percebe. Sem querer, fui informada que é ali que vive aquele cujos direitos extorquimos por amor da cabeça de Vossa Senhoria e por amor de minha filha.
BARÃO - Da nossa filha, Duquesa.
DUQUESA - De nossa filha, Barão. — Pedi então a Vossa Senhoria que me acompanhasse a esta praia, para, de viva voz e em sua presença, informar-me se foram cumpridas as suas obrigações. Se assim não sucedeu, trema: Vossa Senhoria não deve ignorar que foi hoje tratado o meu casamento com El-rei Caju.
BARÃO - Não, Senhora Duquesa, e esse casamento é uma grande honra para mim... porque, enfim, eu... mas lembre-se Vossa Excelência de que mesmo porque eu... in illi tempore... compreende? não pode lançar-me no abismo, sem ser arrastada na queda pelo meu corpo...
DUQUESA - Enfim, viveremos como anjos, se o Barão cumpriu o que prometeu há vinte anos. Serei feliz ao lado da minha filha...
BARÃO - De nossa filha, Barão. — Hei de habituá-la a dar-me o tratamento de mãe.
DUQUESA - Eu é que não posso obrigá-la a chamar-me de pai... e no entanto, amo-a...
DUQUESA - Sei que a ama, e agradeço-lhe... Mas... vamos...
BARÃO - Não é preciso: aí vem a mulher a cujos cuidados está entregue o príncipe. Ela nos dirá...
DUQUESA - Silêncio...
Cena X
Os mesmos, Teresa, que vai atravessando a cena para entrar em casa, depois El-Rei BARÃO (Embargando-lhe a passagem.) - Senhora Teresa...
TERESA - Quem é?
BARÃO - Um momento de atenção. Conhece-nos?
TERESA - Ah! o médico do paço!
BARÃO - Então já vê que não somos para aí quaisquer notívagos. — Esta senhora deseja tomar certas informações...
TERESA - Estou às suas ordens, minha senhora. Não quer entrar?
DUQUESA - Por ora não. Diga-me cá... (Toma-a de parte, e fala-lhe baixo. El-rei entra, embuçado dos pés à cabeça, sem ser pressentido pela Duquesa, e bate levemente no ombro do Barão.)
BARÃO - El-rei!
EL-REI - O que vieste fazer aqui em companhia da Duquesa?
BARÃO - Sua Excelência quis admirar esta praia... Faz um luar esplêndido... Pediu-me que a acompanhasse...
EL-REI - É singular! No momento em que firmamos nosso contrato de matrimônio, abandona-me, para vir admirar uma praia! Ah! Barão! quem me viu e quem me vê! Quem diria que aquele El-rei Caju, o enérgico, havia de tornar-se um babão por esta mulher! Julguei que não devia contrair segundas núpcias; mas o amor, Barão, o amor...
Coplas I
— Para ser livre, tinha resolvido Não mais casar-me. Que dirás, ó povo?
Mas, ai! de amores, ó Barão, perdido, Caio na asneira de casar de novo.
O amor de nós dá cabo!
É o diabo!
AMBOS — É o diabo!
II
EL-REI — A ninguém poupa de Cupido a seta;
Ninguém se isenta de ser alvo dela:
Se o mais altivo coração espeta, O mais altivo coração debela!
O amor de nós dá cabo!
É o diabo! AMBOS — É o diabo!
EL-REI - E sabes o que aqui me trouxe. Barão? O ciúme... Ora aqui tens tu: teu rei tem ciúmes! -
Quem é aquela mulher com quem conversa a Duquesa?
BARÃO - Uma pobre criatura... A duquesa, sempre que lhe apresenta ensejo, da expansão ao sentimento da caridade, que é o apanágio de seu boníssimo caráter.
EL-REI - Ah!
DUQUESA - Muito bem. Aprecio suas virtudes, e hei de premiá-las. (Voltando-se.) Estou satisfeita, Barão. (Vendo o Rei.) Quem é?
EL-REI (Desembuçando-se.) - Eu, Duquesa!
TERESA (À parte.) - El-rei! Que quer isto dizer?! (Entra em casa.)
DUQUESA (Perturbada.) - Vossa Majestade! Que agradável surpresa!
EL-REI - Por que não me ordenou que a acompanhasse?
DUQUESA - Oh! senhor... não me atrevia...
EL-REI - Nada de cerimônias... Não sei estar um instante longe da Duquesa... Estou caído, estou derreado... Oh! como a amo!
BARÃO (Que tem olhado para os bastidores.) — O que é aquilo? Um grupo.
EL-REI - Vamos para ali. Não convém que nos reconheçam. (Reúnem-se os três às damas, que se conservaram ao fundo.)I
Cena XI
Os mesmos, os Ministros, Nheco, Petrolina
(Os Ministros e Nheco trazem cada um a sua lanterna furta fogo na mão. Petronilha condu-los.)
Final PETRONILHA — Já cá não estão!
(Apontando para a cabana.)
Entrem; ali os acharão!
NHECO — Isto parece estranho!
Há já vinte anos que não tomo banho!
PETRONILHA — Não há tempo a perder!
Os melros podem as asas bater!
(Dirigem-se todos com muito mistério para a cabana.)
NHECO — Vamos lá! vamos lá!
NHECO e MINISTROS — Cautela!
Cautela!
Baixai a voz!
Que a bela, Que a bela, Não dê por nós..
OS OUTROS — O que quer dizer aquilo?
Que quer aquilo dizer?
BARÃO — Eu não estou nada tranqüilo!
DUQUESA — ‘Stou a tremer!
DAMAS — ‘Stou a tremer!
NHECO (Batendo à porta.) — Em nome d’El-rei Caju!
EL-REI — D’El-rei Caju!
TODOS — Em nome d’El-rei Caju!...
(Abre-se a porta e entram na cabana Petronilha, Nheco e o Ministros, repetindo o coro — Cautela!
Cautela!
Baixai a voz!
Que a bela, Que a bela, Não dê por nós.. Cena XII
El-Rei, Barão, Duquesa, damas, cortesãos, depois Nheco, Petronilha, Paulo, Princesa, Ministros CORO DE CORTESÃOS (Entrando em confusão.)
— Será possível!
Não pode ser Que suceder Possa este fato;
Mas, se assim for, Que espalhafato!
Que horror! Que horror!
OS QUE ESTÃO AO FUNDO — O que será?
O que haverá?
Do paço a gente toda aqui está!..
(Saem da cabana os Ministros e Nheco, segurando em Paulo e na Princesa. Acompanha-os Teresa e Petronilha. Assombro geral. Perturbação do Barão e da Duquesa.)
NHECO e os MINISTROS — Cá ‘stão!
Precisam de uma boa lição!
EL-REI — Exijo disto explicação!
NHECO — Quem és tu?
EL-REI- (Deixando cair a capa.)— El-rei Caju!...
TODOS — El-rei caju!...
NHECO — Somente vos direi Que Vossa filha está perdida. ó Senhor Rei!
EL-REI — Perdida!
DUQUESA — Perdida!
BARÃO — Perdida!
TODOS — Perdida!
EL-REI — Por minha vida!
Vais-me explicar no mesmo instante!
PRINCESA — Pois não! Pois não! Eis meu amante!
PAULO — Sou seu amante!
PAULO e PRINCESA — Estamos perdidos!
Fatal situação!
E em breve metidos Em negra prisão!...
Concertantes BARÃO e DUQUESA — Não posso salvar-me!
Fatal situação!
Vai prejudicar-me Tal complicação!
EL-REI — Eu caio!
Desmaio!
Tombar vou no chão!
Foi como que um raio!
Foi um furacão!
TODOS — Imóveis de pasmo Todos aqui estão!
Que enorme sarcasmo!
Que insulto à nação!
PAULO e PRINCESA — Que desgraça infinda!
Que negro sofrer!
Tão novos ainda, Nós vamos morrer! Repetição do concertante EL-REI — Tudo esqueceste, tudo, Princesa!...
PRINCESA — Meu pais, atenda!
EL-REI — Não sou teu pai!
E tremam todos! A Vossa Alteza Castigo horrendo ser dado vai!
TODOS — Ser dado vai!
I
EL-REI — Quer como pai, quer como rei, Abuso tal castigarei!
Mas conheço, Reconheço Que o amor de nós dá cabo...
É o diabo!...
TODOS — É o diabo!
II
EL-REI (A Paulo.) — E a ti, plebeu, vilão ruim, Mandarei dar na forca fim!
Mas, no entanto, Não é santo!
E o amor de nós dá cabo...
É o diabo!...
TODOS — É o diabo!...
EL-REI — Senhores meus Ministros, Tomai ares sinistros, E os dois heróis levai!
(Encarando Paulo.) — Mas agora reparo!
Caso realmente raro!
Este insensato Da minha mulher é o retrato!...
TODOS — Justiça! Justiça!
Justiça fatal!
Não haja preguiça Para um caso tal!
PAULO e a PRINCESA — Cruel castigo Não nos importe!
É doce a morte Ao lado teu!
Viver na terra Não nos é dado!
Vem ao meu lado Viver no céu!
CORO GERAL — Mas na verdade Na realidade, O amor de nós dá cabo...
É o diabo!...
É o diabo!...
[Cai o pano] ATO SEGUNDO
Sala do conselho no palácio d’El-rei Caju. A cena está armada para um julgamento. No centro, uma mesa coberta com veludo. Bancos em volta.
Cena I
Cortesãos, depois Nheco, depois os Ministros, depois El-Rei (Ao levantar o pano, cada um dos cortesãos está a arranjar os bancos, e a espaná-los. De vez em quando param o seu serviço e impõem-se mutuamente silêncio.)
CORO — Psiu! Psiu! Psiu!...
Ninguém levante a voz neste salão!
Haja silêncio e discrição!
Psiu! Psiu! Psiu!...
(Entra Nheco. Todos se curvam.)
NHECO — Oh! não façais cerimônia Com quem delas mestre está!
(Recomendam-lhe silêncio, e, por gestos, pedem que lhes diga o que se tem passado.)
Vós sois pessoas idôneas:
Vou dizer-vos o que há.
Atenção!
TODOS — Psiu!
NHECO (Baixo.) — Atenção!
Psiu!
TODOS — Haja silêncio e discrição!
I
NHECO (Com mistério.) — Caso esquisito Que é de pasmar, Fato inaudito De embasbacar, Ontem, contrito, Presenciar Fui muito aflito, Quase a chorar!
CORO — Psiu!...
II
NHECO — Digo e repito Que é de assombrar!
Nomes não cito Que se os citar, Desacredito Quem devo amar!
Nomes evito Pronunciar...
CORO — Psiu...
III
NHECO — Eu me limito Tal nova a dar;
Nomes omito, Que é mau palrar...
Não facilito...
Sei me guardar!
Tudo hei vos dito...
Vou me banhar!
(Vai fugindo. Os outros impedem-lhe a passagem.)
OS CORTESÃOS — Não se vá!
Venha cá!
Do que há Nos fará Narração, Confissão!
Far-nos-á Descrição!
NHECO (Volta, e depois de muito mistério, irrompe alto.)
— Trá lá lá lá!
Metida em maus lençóis nossa Princesa está!
TODOS — Trá lá lá lá!
Metida em maus lençóis nossa Princesa está!
Ai, que o caso é muito sério!
NHECO — Eis que chega o ministério!
(Arranjam-se todos a um lado da cena.)
ENTRADA DOS MINISTROS
— Ministros somos Do rei melhor;
Chamados fomos Para compor O conselho feroz que vai julgar A princesa que deu pra namorar!
NHECO (Aproximando-se.) — Na qualidade de mestre De cerimônias, que sou, Fazer discurso que preste Neste instante tentar vou EL-REI (Entrando.) — Silêncio! o teu discurso é natural, dispense-o Quem está como estou eu!
TODOS — El-rei Caju!
EL-REI — Silêncio!
(Descendo à cena, sombrio.)
Tor ló tó tó!
Tor ló tó tó!
El-rei Caju quer ficar só...
TODOS (Saindo misteriosamente.)
—Tor ló tó tó!
Tor ló tó tó!
El-rei Caju quer ficar só...
NHECO (Saindo por último, ao som dos derradeiros compassos.)
— Este momento apanho Para tomar um banho...
Cena II
El-Rei, só [EL-REI] - El-rei Caju quer ficar só... E para que quer ficar só El-rei Caju? Apenas para retardar este julgamento, porque afinal de contas, sou rei, mas também sou pai! Sou pai! e hei de passar pela sensaboria de ver subir ao cadafalso minha querida filha? Sim, que a Constituição é clara neste ponto, apesar de escura em todos os outros. (Tirando um livrinho do bolso e lendo.) “Artigo duzentos. Toda pessoa real que, esquecendo o decoro que deve a si própria e ao povo, der escândalo público, será julgada por um Conselho composto de quatro Ministros de estado, e, averiguado o delito, condenada a pena última”. Se se pudesse sofismar este maldito artigo duzentos! Vejamos por partes: “Toda pessoa real...” Minha filha é ou não é pessoa real? É. É real. É realmente real! Mas também quem se lembra de fazer um artigo contra as pessoas reais? Vejam se, nas partes descobertas do universo, os príncipes vão ao cadafalso por causa destas ninharias!.. “que esquecendo o decoro que deve a si própria e ao povo...” Disto se esqueceu ela... Comeu queijo... !der escândalo público...”
Escândalo foi! Lá ser, foi!... É o diabo! Não há meio de sofismar! E o Conselho não pode estar à espera! (Vai chamar o Conselho e para.) Mas, afinal d e contas, qual é o crime da minha filha? A pobre pequena passava aqui uma vida levada de todos os diabos. Um dia deu-lhe a mosca... e... psit! Isso acontece à mais pintada! E
não é que o rapaz é um rapagão? Simpatizo com ele... é uma coisa esquisita! Que bonitos olhos! Parecem-se tanto com os de sua Majestade a falecida minha mulher... Que olhos! vamos lá ver essa gente... Enquanto julgam vou pensar... Hei de achar furo. (Vai à porta por onde saíram os Ministros.) Olha esse Conselho que saia! (Sai pelo lado oposto.)
Cena III
Nheco, os Ministros OS MINISTROS - Não pode ser! não há tempo!
1º MINISTRO - Com mil raios! Pois o senhor mestre de cerimônias quer abandonar-nos no momento do Conselho!
2º MINISTRO - Era o que faltava!
3º MINISTRO - Tomar banho quando serviço do Estado reclama-o!
4º MINISTRO - Incúria!
NHECO - Mas, Senhores Ministros...
1º MINISTRO - Com mil bombardas!
NHECO - Há vinte e tantos anos que não tomo banho!
4º MINISTRO - Quem esperou tanto tempo, pode esperar mais duas horas!
1º MINISTRO - Vamos! Mande entrar os réus, ou fuzilo-o, com mil canhões!...
NHECO - Este ferrabraz bem mostra ser Ministro da Guerra! (A um gesto seu, entram Paulo e a Princesa, escoltados por guardas, e cortesãos de ambos o sexos, ao som de uma marcha triste. Sentam-se todos. Os Ministros em volta da mesa. Os cortesãos em bancos. Os réus em bancos especiais.)
Cena IV
Os Ministros, cortesãos, guardas, Paulo, Princesa, depois os Advogados NHECO (Aproximando-se.) - Como mestre de cerimônias que sou, vou proceder à leitura do artigo da Constituição, que tem relação com o cargo vertente. (Tira a Constituição do bolso.)
OS MINISTROS (Tirando cada um a sua Constituição.) - Nós todos sabemos. (Abrem os livros.)
TODOS (Menos os réus.) - E nós! (Estão todos de livro na mão; leitura geral do artigo duzentos.
Lendo.) “Artigo duzentos. Toda pessoa real que esquecendo o decoro que deve a si própria e ao povo, der escândalo público, será julgada por um Conselho composto de quatro Ministros de Estado e, averiguado o delito, condenada à pena última.”
1º MINISTRO - Manda entrar os advogados. (A um gesto de Nheco, entram os dois advogados.)
1º ADVOGADO (Muito alegre.) - Meus senhores, minhas senhoras, bom dia.
2º ADVOGADO (Sorumbático.) - Bom dia.
4º MINISTRO - Diabo! este aposto que é o da acusação!
2º ADVOGADO - Está enganado: sou da defesa.
4º MINISTRO - Ah!
2º ADVOGADO - Mas acredite que é contra a vontade... O meu desejo era vê-la morta...
TODOS - Oh!...
1º ADVOGADO (Sempre muito alegre.) - Pois eu, apesar de vir acusá-la, queria vê-la livre de culpa e pena. Que diabo! Amar nunca foi crime!
TODOS - Oh!
1º ADVOGADO (Ao colega.) - Uma proposta? vá o senhor acusá-la; eu irei defendê-la.
2º ADVOGADO (Vivamente.) - Aceito.
1º MINISTRO - A seus lugares, com mil duzentas e trinta e quatro espingardas! (Os advogados tomam seus lugares. Erguendo-se.) Estão em presença deste Tribunal... porque, não sei se sabem, isto é um Tribunal, dois réus.
3º MINISTRO - Não apoiado! 2º MINISTRO - Como não apoiado?
3º MINISTRO - Não são dois réus: é um réu e uma ré. (Todos riem.)
1º MINISTRO - Silêncio! com cem cartuchos! Cumpre-me fazer uma observação... (Ao 4º Ministro, que ainda se ri às gargalhadas.) Esteja quieto, menino! (O 4º Ministro ri-se cada vez mais.) O culpado é Sua Majestade, que fez ministro um fedelho, que ainda cheira a cueiros. (O 4º Ministro fica sério.) Cumpre-me fazer uma observação. O julgamento do réu Paulo aqui presente, era da competência do júri popular; mas como o povo tem mostrado de algum tempo para cá certas tendências democráticas, julgamo-lo nós, para que não no-lo absolvam por lá. — O Conselho... o Conselho conhece a história deste processo sumário: por denúncia de uma mulher do povo, o Ministério, que se achava reunido por amor do tratado de casamento de sua Majestade, o Ministério foi encontrar a herdeira presuntiva da coroa em casa do pescador Paulo. Enquanto o rei tratava de dar uma mãe à Princesa, esta comprazia-se talvez em dar um neto ao rei. — Vossa Alteza tem que alegar alguma coisa em sua defesa.
PRINCESA - Em minha defesa, não; mas na de Paulo: ele não sabia quem eu era.
3º MINISTRO - Vossa Alteza namorava incógnita?
PAULO - Nego! Eu sabia perfeitamente quem era Sua Alteza!
1º MINISTRO - Tem a palavra o advogado de acusação!
Coplas e concertante I
2º ADVOGADO (Erguendo-se.)
— Há muito tempo eu não acuso Delito assim tão desmarcado!
Juntos UNS — Muito apoiado! OUTROS — Não apoiado!
2º ADVOGADO — Senhores meus, tão grande abuso Deve de ser bem castigado!
Juntos UNS — Muito apoiado! OUTROS — Não apoiado!
2º ADVOGADO — Está na vossa consciência Que a tal indecência Exemplo bom deve ser dado!
Juntos UNS — Muito apoiado! OUTROS — Não apoiado!
2º ADVOGADO — Mais não digo, Não prossigo!
O que foi vós bem sabeis!
Eu sé quero, Só espero Que se cumpram nossas leis!
(Senta-se.)
Juntos UNS — Muito apoiado! OUTROS — Não apoiado!
1º MINISTRO — A palavra agora tem Da defesa o advogado II
1º ADVOGADO (Erguendo-se.)
— O deus de amor tem uma venda;
Cupido é muito endiabrado!
Juntos UNS — Muito apoiado! OUTROS — Não apoiado! 1º ADVOGADO — Eu não sei mesmo o que defenda:
No’é crime amar e ser amado!
Juntos UNS — Muito apoiado! OUTROS — Não apoiado!
1º ADVOGADO — Está na vossa consciência Não ser indecência Ter a princesa um namorado!
Juntos UNS — Muito apoiado! OUTROS — Não apoiado!
1º ADVOGADO —Mais não digo, Não prossigo!
Não é crime crime tal!
Um namoro Sem decoro, Nessa idade era fatal!
(Senta-se.)
PRINCESA (Levantando-se vivamente do lugar em que está, e vindo à boca da cena.)
Tango — Amor tem fogo, Tem fogo amor;
Tem fogo intenso, Devorador!
Põe-nos em jogo O coração, Nosso bom senso, Nossa razão!
E lavra, Palavra!
Sem descansar;
Começa Depressa, Custa a acabar...
TODOS (Erguendo-se maquinalmente e acompanhando o canto com um ligeiro movimento de corpo.)
PAULO — Todos amam: japoneses, Chineses, ingleses, Franceses, malteses, Portugueses, cordoveses, Genoveses, irlandeses, Hamburgueses, lubequeses, Islandeses, holandeses, Genebreses, escoceces!
Aragoneses, Piemonteses, Dinamarqueses Cartagineses!
1º ADVOGADO — Em vez de matá-los, Casá-los pra bem!
2º ADVOGADO — Em vez de casá-los, Matá-los convém!
Matá-los!
1º ADVOGADO — Casá-los!
CORO — Muito apoiado! Não apoiado!
(Disputa geral, animada e calorosa.)
CORO GERAL - — Amor tem fogo, Tem fogo amor;
Tem fogo intenso, Devorador!
Põe-nos em jogo O coração, Nosso bom senso, Nossa razão!
E lavra, Palavra!
Sem descansar;
Começa Depressa, Custa a acabar...
1º MINISTRO - Toca a safar! O Conselho, porque saibam que isto é um Conselho, tem que deliberar. (Os fidalgos retiram-se. Aos guardas.) Direita volver! Marche! (Os guardas saem.)
2º MINISTRO - Mas havemos de deliberar em presença dos réus?
3º MINISTRO - Passemos à sala das deliberações. Senhor Mestre de Cerimônias, fica-lhe confiada a guarda destes dois pombinhos. — Vamos! (Ao 3º Ministro.) Mexa-se.
2º MINISTRO - Também é tão gordo! Vejam que barriga!
4º MINISTRO - Pudera! É ministro das Finanças! (Saem.)
Cena V
Paulo, Princesa, Nheco NHECO - Vossa Alteza provavelmente vai morrer... Ao menos morre limpa... Eu parece que decididamente morro sem tomar banho! Faça idéia Vossa Alteza de que hoje, logo pela manhã, introdução de vossa futura madrasta, augusta noiva de vosso augusto pai. Ao meio dia, preparação da sala do Conselho. Eu pretendia tomar banho enquanto deliberavam: mas eis que me ordenam que vos guarde. E todos os dias são assim!
PRINCESA - Nheco, és meu amigo?
NHECO - Quem pode ver-vos sem querer amar-vos?
PRINCESA - Pois bem, se te mereço piedade, deixa-nos a sós um momento.
NHECO - Deixar-vos a sós. Sereníssima Princesa? Vossa Alteza não viu que me confiaram a vossa guarda? Não, isso não faço eu! O mais que posso fazer é fechar os olhos... (Cantarolando)
Oh! não façais cerimônias Com quem delas mestre está...
PRINCESA - Nheco, tu nunca amaste?
NHECO - Nunca tive tempo de tomar banho, quanto mais de amar...
PAULO - Descanse, pois não fugimos... Amamo-nos... Precisamos da solidão e do silêncio para desafogar...
NHECO - Ainda se eu tivesse tempo de meter-me na água...
PRINCESA - Anda... faze-nos a vontade... Antes de morrer, pedirei a meu pai que te aposente...
NHECO - Com o ordenado por inteiro?
PRINCESA - Sim.
NHECO - Então, vá lá! Se apanho a aposentação, hei de passar os restos dos meus dias metido num tanque! — Até logo. (À parte.) Não irei para muito longe... Nada, que se fugissem... (Sai)
Cena VI
Paulo, Princesa (Correm um para o outro, abraçam-se e beijam-se ardentemente.)
AMBOS - Enfim!
PAULO - Que sorte nos aguardará?...
PRINCESA - E fui eu que te perdi...
PAULO - Tu?! Oh! não! Não falemos nisso...
PRINCESA - Vivias feliz e despreocupado, em companhia dessa excelente mulher a quem tanto deves, e que a estas horas teme pelo seu destino... A caça... a pesca... era essa a tua existência descuidada!
Que fatalidade nos atirou nos braços um do outro!
PAULO - Foi uma fatalidade, foi; mas não te recrimines, porque me considero feliz na minha desgraça! Morro contigo! Estava-me reservada essa ventura suprema!
PRINCESA - Meu pobre Paulo!
Dueto PAULO — Que sorte funesta!
PRINCESA — Que funesta sorte!
PAULO — Nada mais no resta...
PRINCESA — Resta-nos a morte...
AMBOS — Abrem-se os céus! Nas asas de ouro, A morte vai nos conduzir!
Juntos, ó meu casto tesouro, À eterna luz vamos subir!
PRINCESA — Castigo não se afigura, Mas divinal, supremo bem, A doce paz da sepultura Que o fado meu trazer-me vem!
PAULO — Eu morro satisfeito!
Acaba a minha dor!
Gelado, negro leito Encontra o meu amor!
Juntos PAULO PRINCESA
Eu morro satisfeito! Serenas; ó meu peito, Acaba a minha dor! Acabas, minha dor!
Gelado, negro leito Gelado, negro leito Encontra o meu amor! Encontra o meu amor!
NHECO (Voltando.) - Então? Vossa Alteza já desafogou? era tempo! Aí volta o Conselho!... (A
música prolonga-se em surdina até o final da seguinte cena.
Cena VII
Paulo, Princesa, Nheco, Ministros, Advogados, Cortesãos, guardas.
1º MINISTRO - Sereníssima Senhora, o Tribunal, porque, afinal de contas, por mais que me digam, isto é um Tribunal... O Tribunal, dizia eu, usando da faculdade que lhe faculta o artigo duzentos da Constituição do reino, acaba de proferir a sentença que tem de ser cumprida tanto por Vossa Alteza como pelo indivíduo Paulo: estão ambos condenados à pena última.
2º ADVOGADO - Apelo!
1º MINISTRO - Não há apelação nem agravo! — Guardas, sentido, com três mil buchas! Meia volta à direita, e prendam! prendam! (Três guardas levam Paulo e três a Princesa. Saem todos graves e silenciosos, como entraram. A cena fica só por alguns momentos. Cessa a música.)
Cena VIII
Barão, Duquesa, depois El-Rei (A Duquesa entra aflita; o Barão acompanha-a no mesmo estado de agitação.)
DUQUESA - Não há remédio senão confessar tudo a El-rei! BARÃO - Eu perco a cabeça! E perco mesmo: isto não é figura de retórica. Vê Vossa Excelência como o demo as arma, Duquesa...
DUQUESA - Estou resolvida a tudo, contanto que salve a minha filha!
BARÃO - Nossa filha, Duquesa...
DUQUESA (De mau humor.) - Nossa filha, Barão!
Coplas I
Por minha filha salvar Do cadafalso Mil passos pretendo dar Embora em falso...
Sofrerei negra aflição Eterna mágoa Se der minha pretensão Cos burros n’água!
Sou muito forte, Mas desvelada;
Desesperada, Nervosa estou!
Quem já viu sorte Que mais capriche?
Madre infelice Mísera sou!
II
Para salvá-la verá Que me rebaixo, Embora o trono se vá Por água abaixo!
Se não lhe alcanço o perdão...
Que escaramuça!
Hei de pintar o Simão De carapuça!
Sou muito forte, Mas desvelada;
Desesperada, Nervosa estou!
Quem já viu sorte Que mais capriche?
Madre infelice Mísera sou!
BARÃO - Aí vem Sua Majestade. Fale-lhe, que não tenho ânimo para isso. Uf! Não me posso ter nas pernas!
EL-REI (Entrando, angustiado.) - Barão, Barão! andava à tua procura meu velho amigo! Tenho te buscado por toda a parte! Onde te meteste?
BARÃO - Estava receitando: Vossa Majestade sofreu um violento abalo moral: precisa medicar-se.
A receita cuja confecção levou-me três horas, já foi enviada para a botica.
EL-REI - Quem te fala aqui em despesa... quero dizer: em receita? O que eu quero é salvar minha filha! Põe-te em meu lugar: faze de que conta que és seu pai! Faça de conta que é sua mãe, Duquesa. — Tu, que tanto a estimas, Barão, não te lembras de algum meio? Não se pode sofismar aquele maldito artigo duzentos?
DUQUESA (Irresoluta, ao Barão.) - Vai?
BARÃO - Vá! Um, dois, e... três!
DUQUESA (Resoluta.) - Saiba Vossa Majestade que a Princesa, se ama o pescador Paulo, não lesa a majestade, nem ofende o povo que a venera.
EL-REI - Por quê? BARÃO (Consigo.) - Um, dois, e... três! (Alto.) Real Senhor, o Príncipe Paulo é vosso filho!
EL-REI - Meu filho...
BARÃO - Vossa Majestade lembra-se do que me disse há vinte anos quando vossa real esposa estava para dar à luz? — Doutor, há de ser uma menina ou... Tur, lu, tu, tu, tur, tu, tu... verás quem é El-rei Caju!
Ora, como a criança que estava para nascer era um menino, levei o menino para fora. eduquei-o longe das vistas de Vossa Majestade, e a menina tem até hoje passado por vossa filha. Acontece que vinte anos depois esta trapalhada, a menina apaixona-se pelo menino, o menino pela menina, e...
EL-REI (Interrompendo-o tragicamente.) - Horror! Horror! três vezes horror! As abóbadas deste palácio repercutam ainda uma vez esta palavra: Horror! e outra: Horror!
BARÃO - É a mesma.
EL-REI - Afinal de contas, tiveste razão. O teu dever era salvar a própria vida. isso não impede, porém, que houvesse feito uma grandíssima maroteira!
BARÃO - Foi por instinto de conservação.
EL-REI - Por isso é que o rapaz parece-se tanto com minha mulher! Por isso é que simpatizo tanto com ele...
DUQUESA - A natureza! a natureza!
EL-REI - Mas quem é o pai de minha filha? quero dizer - da suposta Princesa? Não lhe entrego nem a cacete! (Terrível.) De quem é a filha?... Responde!...
Terceto BARÃO — É minha filha!
Seu papai sou!
DUQUESA — É sua filha!
Quem tal pensou?
EL-REI — É sua filha!
Seu pai não sou!
Cruel partilha, Desgraça pura, A sorte escura Me reservou!
I
BARÃO — Sob este corpo cansado Que o tempo quase vergou, Sob este corpo, coitado!
Um coração já pulsou...
Na flor da minha existência Todo aos estudos me dei;
Namorado da ciência, Em vez de amar, estudei Por isso, Ah! Ah!
Por isso, Ah! Ah!
Tive somente um derriço Olá!
II
Cataplasmas e calmantes, Ungüentos e fricções;
Laxantes e mais laxantes;
Cerotos, basilicões, Sulfatos, plantas, altéias, Tudo o mais, que não direi, Foi com estas panacéias Que a mocidade passei!
Por isso, Ah! Ah!
Por isso, Ah! Ah!
Tive somente um derriço Olá!
EL-REI — E esse derriço foi, Barão, que te valeu A filha que passou por ser trabalho meu?
(A um gesto afirmativo do Barão.)
Passei por pai de quem não era!
Passo por pai de quem não sou!
Punido hás de ser tu, pudera!
Um juramento aqui te dou!
Ah!
(Dá uma grande volta pela cena, parodiando os artigos líricos italianos, e vem requebrar-se perto da Duquesa.)
Oh! je t’aime! je t’aime! je t’aime!
Deixa, ó bela, dizer-to em francês!
Vê, meu anjo, vê que a voz me treme!
Oh! je t’aime! je t’aime! je t’aime!
Juntos EL-REI Oh! je t’aime! je t’aime! je t’aime!
Deixa, ó bela, dizer-to em francês!
Vê, meu anjo, vê que a voz me treme!
Oh! je t’aime! je t’aime! je t’aime!
BARÃO — Que ela o ama, que o ama, que o ama, Caso é certo, mesmo sem francês!
Ora, faça a vontade à madama!
Ora faça, que o peço por três!
DUQUESA — Oh! je t’aime, je t’aime, je t’aime, Oh! je t’aime, meu bem, como vês!
Vê, meu anjo, vê que a voz me treme...
Oh! je t’aime, je t’aime em francês!
(O Barão e El-rei dão juntos outra volta por toda a cena, prolongando a última nota, que a Duquesa corta de súbito, tapando-lhes as bocas quando descem à cena, cantando.)
DUQUESA — Pois se me adoras, Como protestas E como atestas, Meu coração, Oh! tu, que uma alma Tens, e tão boa, Meu bem, perdoa Dá-lhe o perdão!
Juntos DUQUESA — Pois se me adoras, Como protestas E como atestas, Meu coração, Oh! tu, que uma alma Tens, e tão boa, Meu bem, perdoa Dá-lhe o perdão!
EL-REI — Eu, que te adoro, Oh! pura! honesta!
Mulher modesta, Meu coração, Hei de, que o pedes, Hei de lançar-lhe, Hei de atirar-lhe O meu perdão!
BARÃO — Se és bom sob’rano, Como protesta E como atesta Teu coração, Oh! tu, que uma alma Tens, e tão boa, Ó Rei, perdoa, Dá-me o teu perdão!
EL-REI - Mas sem castigo não desejo eu que fique este mariola!...
BARÃO - É melhor que as coisas fiquem no pé em que estavam. - Vossa Majestade tem amor de pai à Princesa, não tem?
EL-REI - Por força.
DUQUESA - O Príncipe Paulo passará por filho de Sua Majestade, o rei da Ilha da Guarda Velha.
EL-REI - O meu augusto vizinho?
DUQUESA - Depois de entender-me com ele, anuirá ao meu pedido, e perfilhá-lo-á.
BARÃO (À parte.) - Hum...
EL-REI - Sim, podemos contar com o assentimento do colega, que nada te recusa, como já disseste.
Demais, sabendo que Paulo é meu filho...
BARÃO (Timidamente.) - É verdade.
EL-REI - Bico, Senhor Barão. — Senhor Barão! Nada! De hoje em diante não é mais Barão! Se está feito Barão por ter nascido uma menina, estás elevado a Visconde, maroto! É o teu castigo! — Vai chamar esta súcia! (O Barão sai.) Vou anular o julgamento... e, para segurança de minhas netas, convocar uma Constituinte para revogar o tal artigo duzentos.
Cena IX
El-Rei, Barão, Duquesa, Nheco, Ministros, Advogados, fidalgos, fidalgas, guardas, depois Paulo, Princesa EL-REI - Trazei minha filha e Sua Alteza o Príncipe Paulo para esta sala!
TODOS - O Príncipe Paulo!
DUQUESA - Esse que supondes um simples pescador!
BARÃO - O réu.
EL-REI - É um príncipe disfarçado. Tudo isto foi uma comédia. Queria experimentar-vos. Sois íntegros.
1º MINISTRO (Aos guardas.) - Direita volver! Ide buscar os réus, com trinta mil carabinas! (Saem os guardas, e voltam com Paulo e a Princesa.) Está portanto anulada a sentença proferida pelo Conselho, que, aquilo, digam o que quiserem, foi um Conselho.
EL-REI (A Paulo, que entra com a Princesa e os guardas.) - Príncipe Paulo, dê cá um abraço!
PAULO - Príncipe!!...
BARÃO (A Paulo.) - Tudo será mais tarde explicado a Vossa Alteza.
EL-REI (Depois de abraçar e beijar o Príncipe.) - Dê a mão à Princesa: é sua!
PRINCESA - Paulo!
PAULO - E Teresa? Um vez que sou Príncipe...
BARÃO - Não vos dê cuidado.
EL-REI - O Barão não deve ficar impune. Mas... qual deve ser o castigo.
UM LACAIO (Entrando, acompanhado de dois homens que trazem grandes caixas.) - Aqui estão os remédios de Vossa Majestade, receitados pelo Senhor Barão. A botica ficou vazia.
EL-REI - Leva-os para fora. (Saem o lacaio e os homens. Ao Barão.) Querias que eu ingerisse aquela farmácia? Por causa do meu abalo moral, não é assim? mas como a filha era tua e não minha, tu é que hás de tomar aquelas drogas. (À parte.) Achei um castigo.
BARÃO (À parte.) - Morri. EL-REI (Tomando a mão da Duquesa.) - Apresento minha noiva à corte. (À Princesa e a Paulo.)
Casar-nos-emos no mesmo dia... (Grandes mesuras dos cortesãos.)
Final CORO GERAL — Viva El rei Caju!
Viva o Rei Caju!...
PRINCESA — É papai, do meu agrado, Seja Nheco aposentado!
NHECO — Se aposentação apanho, Oh! que permanente banho!
PAULO — O meu pedido é mais sério:
Deito abaixo o Ministério!
EL-REI — Caia, pois, o Ministério!
(A um gesto seu, os Ministros caem no chão)
Coplas ao público Sei que o desejo, e único Dos míseros autores, É de fazer-te rir;
Assim, pois a comédia Dispensa os teus favores, E seja o Ministério O único a cair.
Tur lu tu tu Tur lu tu tu Eis o que quer El-rei Caju!
CORO GERAL — Tur lu tu tu Tur lu tu tu Eis o que quer El-rei Caju!...
[Cai o pano.]
FIM
Fonte:
AZEVEDO, Artur. Teatro de Artur Azevedo - Tomo 1. Instituto Nacional de Artes Cênicas- INACEN. v. 7
(Clássicos do teatro Brasileiro).
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Sérgio Luiz Simonato
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima
sejam mantidas.