Viagem ao Parnaso
Revista fluminense em três atos e dez quadros.
PERSONAGENS
LAURA
CUPIDO
A IMPRENSA FLUMINENSE
A ARTE DRAMÁTICA NACIONAL
O VARIEDADES
UMA SOGRA
UMA SENHORA INCONSOLÁVEL
UM ATRIZ ESPANHOLA
UMA SENHORA ARGENTINA
UM NOVO
UM APOSENTADO
A FÊNIX DRAMÁTICA
TÁLIA
UMA MULHER POLÍTICA
UMA ATRIZ
UMA NOIVA
OUTRA SENHORA INCONSOLÁVEL
EUTERPE
UMA MULHER POLÍTICA
OUTRA ATRIZ
UMA IRMÃ DE CARIDADE
POLÍMNIA
OUTRA MULHER POLÍTICA
APOLO
ALBERTO
UM POETA
O LUCINDA
O HOMEM DOS ÓCULOS
JOSÉ UM TRANSEUNTE
O SUTIL
UM JOGADOR
MELO
UM HOMEM BARBADO
UM ATOR
UM PINTOR
UM OPERÁRIO
OUTRO PORTA
O PRIMO
O TEATRO LÍRICO
UM MEMBRO DO PARTIDO CATÓLICO
O CHEFE DO BATALHÃO PATRIÓTICO
OUTRO POETA
O INTENDENTE DE POLÍCIA
O TESOUREIRO DA SOCIEDADE DOS HOMENS DE LETRAS
UM CARROCEIRO
OUTRO POETA
O SANTANA
UM HOMEM BARBADO
UM SOLDADO DO BATALHÃO PATRIÓTICO
OUTRO POETA
OUTRO APOSENTADO
O RECREIO
UM OPERÁRIO
UM SUJEITO
OUTRO SOLDADO DO BATALHÃO PATRIÓTICO
O POLITEAMA
O SEIXAS
OUTRO SOLDADO DO BATALHÃO PATRIÓTICO
O SÃO PEDRO
UM HOMEM, que vem ao leilão de São Cristóvão Amores, musas, poetas, aposentados, mulheres políticas, atores, pessoas do povo, operários, argentinos novos, soldados do Batalhão Patriótico, etc.
ATO PRIMEIRO
Quadro 1 Cenário de Carrancini Sala preparada ao gosto moderno em casa de Melo. Preparos para escrever. Na parede, sobre uma peanha a estátua de Vênus de Milo. É de manhã cedo.
CENA I
LAURA, depois GILBERTO.
Dueto LAURA (Entrando)
- Na extrema do horizonte A aurora despontou:
Vou ver o meu Gilberto, Beijar-lhes os lábios vou!
A VOZ DO GILBERTO
- Nos paramos risonhos A purpurina aurora Doura A pudibunda flor...
Aos olhos meus te guardas!
Tardas, Oh! meu querido amor!
LAURA -
- É ele! É ele!...
O coração me impele...
E fala-me a razão;
Mas a razão sucumbe e vence o coração.
(Vai abrir uma janela e acena para a rua. O palco ilumina-se; Gilberto, embuçado num capote, entra pela janela.)
LAURA - Oh! meu Gilberto!
GILBERTO -
- Oh! minha doce amada!
Oh! que hora afortunada!
Vivamos ambos Sempre juntinhos, Quais dois pombinhos, Meigos e sós!
E, a não gozarmos Tão bela sorte, Antes a morte Nos leve a nós!
GILBERTO -
- Eu quero um beijo, Um beijo só!
Do meu desejo, Meu bem, tem dó.
LAURA - - Não tens um beijo, Nem mesmo um só, Do teu desejo Não tenho dó.
Quando eu for sua mulher, Dar-lhos-ei quantos quiser...
GILBERTO -
- Tenho ou não tenho?
Dá ou não dá?
LAURA -
- Fazes empenho?
Pois toma-o lá! (Beijam-se.)
Juntos GILBERTO................................ LAURA
- Deste-me um beijo! ......- Que tem um beijo, Deste-me um só! .............Quando é um só?
Do meu desejo ..................Do teu desejo Tiveste dó! .........................Eu tive dó!
GILBERTO - Podemos conversar sem receio? Teu pai, o Senhor Melo ainda dorme?
LAURA - Papai, a estas horas, já deve estar inteiramente entregue à Musa. Não há nada que o arranque a esse prazer.
GILBERTO - Ah! Laura! Laura! como sou feliz quando a teu lado me deslumbra a luz de teus olhos e me embriaga o perfume de teus cabelos!
LAURA - Deixa-te de lirismos, e vamos ao que serve. Se te concedi mais esta entrevista, foi porque tinha um pedido a fazer-te. É preciso acabar com estes encontros.
GILBERTO - Isto é! Tu expões-te à maldição paterna, e eu a uma carga de pau, o que é pior!
Não facilitemos!
LAURA - É muito fácil dizer "Não facilitemos". Mas quem pode sopitar os arroubos de um coração de dezessete anos?
GILBERTO - Quem pode resistir a uma janela de um metro e cinqüenta centímetros de altura?
LAURA - Há um único meio de acabarmos com isso: o casamento.
GILBERTO - Do casamento tenho-te eu falado um milhão de vezes, e se até hoje ainda não pedi a tua mão, não te deves queixar senão de ti mesma. A culpa tem sido tua.
LAURA - É verdade que te tenho aconselhado que o não faças; hoje, porém, penso ao contrário.
GILBERTO - O contrário? Ainda bem! Mas que motivos eram esses que te levavam a aconselhar-me a que te não pedisse?
LAURA - Pois nunca tos disse?
GILBERTO - Nunca.
LAURA - Papai tem a mania de fazer versos, sem que, para isso, houvesse sido fadado pela natureza... - Não fala noutra coisa: é poesia para cá, poesia para acolá! Tem até um criado que faz versos, e mesmo os improvisa!
GILBERTO - O Albino?
LAURA - O Albino. Não sabes que é obrigado a não falar senão em verso?
GILBERTO - Deveras?
LAURA - Foi essa uma das condições da sua admissão nesta casa.
GILBERTO - Por isso é que o outro dia, estando teu pai sentado a tomar fresco no Passeio Público, o Albino aproximou-se dele, e disse-lhe:
"Meu amo, está posta a mesa Vá para casa jantar;
A menina com certeza Não pode mais esperar."
LAURA - Vê tu que desaforo! O metro e a rima obrigam-no a pregar mentira:
"A menina com certeza Não pode mais esperar!"
Não imaginas que comédia! Papai, quando quer fazer versos, bate. na testa, olha para o teto, conta sílabas nos dedos, faz trinta mil caretas, e não consegue nada. Afinal chama pelo Albino e...
GILBERTO - É original!
LAURA - Mas vamos ao que importa. Acho que papai não será capaz de dar-me em casamento a um homem que não seja poeta. Todos os dias ele me diz: "Minha filha a prosa é terrena e vil, a poesia é celeste e nobre!" Não te engraces de algum marreco que não conheça as nove filhas de Apolo!
GILBERTO (Resolutamente.) - Ora! hoje mesmo venho pedir-te em casamento. Teu pai, provavelmente, pergunta se sou poeta. Nada mais simples: dir-lhe-ei que sim.
LAURA - E depois?
GILBERTO - Depois, não me custará ter também, como ele, o meu alter-ego. Depois que estivermos casados, dir-lhe-ei a verdade, e ele nada poderá fazer.
LAURA - Bravo! És um rapaz decidido.
GILBERTO - Virei hoje mesmo.
LAURA - Não te acanhes. Apresenta-te com todo desembaraço!
GILBERTO - Tranqüiliza-te! (Ouve-se Melo tossir.)
[LAURA] - Aí vem papai. Foge!
GILBERTO - Ora! no melhor da festa! (Beija-a e salta pela janela. Melo entra a ler um papel.)
LAURA (Consigo, enquanto Melo desce ao proscênio.) - Ora! O Gilberto podia ter ficado. Papai, quando está com a Musa, não dá pela presença de ninguém.
CENA II
LAURA e MELO
MELO (A ler.)
- Em seu carro doirado o dino Febo Vem dando ao horizonte rubra cor...
(Pensa e repete pausadamente.)
Vem dando ao horizonte rubra...
LAURA - Como passou a noite, papai?
MELO (Sem lhe dar ouvido.)
- Vem dando ao horizonte rubra cor...
LAURA (À parte.) - É sempre assim! (Alto.) Papai, como passou a noite?
MELO (Sem desviar os olhos do papel.)
- Adeus.
Em seu carro doirado o dino Febo.
(Sem olhar para Laura.) Ó menina?
LAURA - Papai?
MELO - Dás-me uma rima para Febo?
LAURA - Cego.
MELO - Cega estás tu, minha tonta. (Lê.)
Em seu carro doirado o dino Febo Vem dando ao horizonte rubra cor...
(Declamando.) Não fica bom. Este dino Febo é o diabo (Pensando.) Em seu carro doirado o Febo dino... Febo dino ainda é pior que dino Febo. Parece que se trata de alguém que se chama Febodino.
Em seu carro doirado Febodino...
Já não sei a quantas ando. (Chamando.) Ó Albino. (Limpa o suor e continua.)
Em seu doirado carro Febo... Febo...
Copla Oh! que inferno! Fico tonto!
Tenho as fontes a estalar!
Pois já pronto ou quase pronto Isto aqui devia estar!
Virgem Santa! perco o juízo!
Doido a musa me há de pôr!
Nunca faço um improviso Sem três dias de labor!
(Entra Albino.)
CENA III
MELO, LAURA e ALBINO
MELO - Ah! vem cá, meu rapaz, tira-me deste embaraço. Quero dizer em verso a coisa mais natural deste mundo... quando é em prosa. Amanhã faz anos o Comendador Lopes, que é meu compadre. É meu costume felicitá-lo todos os anos com um improviso, e hoje, mais do que nos outros anos, vem a propósito a versalhada, porque ele está na diretoria de três bancos e de seis companhias, é tesoureiro de uma loteria, e já anda de carro próprio. O Comendador faz quarenta anos amanhã. Principiei assim:
Em seu carro doirado o dino Febo Vem dando ao horizonte rubra cor...
(Albino toma o papel com ares de importância, escreve com um lápis, e depois lê o que escreveu, tendo escarrado e batido na testa.)
ALBINO - No carro seu doirado a roxa Aurora...
MELO (Satisfeito.) - Sim, senhor. Não me lembrei da aurora!
ALBINO - Vem dando aos horizontes rubra cor...
MELO - Esse rubra cor não está duro, Albino?
ALBINO -
- Duro não, senhor meu amo;
É mesmo frase elegante;
Se rubra em vogal termina, Cor começa em consoante.
MELO (A Laura, que se tem conservado afastada.) - Que cabeça!...
ALBINO (Lendo.)
- No carro seu doirado, a roxa aurora Vem dando aos horizontes rubra cor;
Em dia tão gentil se comemora O aniversário do Comendador!
MELO - Dá-me um abraço, vate!...
ALBINO (Modestamente.)
- Uma honra assim tamanha Eu não mereço decerto, Mas, enfim, como o deseja, Nos braços meus o aperto. (Abraça-o.)
MELO (Tomando o papel.) - Agora vou para a quietude do meu gabinete improvisar as outras estrofes. Em eu precisando de ti...
ALBINO -
- É só gritar por meu nome;
Lá irei ter às carreiras, A auxiliar esse estro...
(Procurando o último verso.)
A auxiliar-vos o estro...
MELO (Fechando a cara.) - A rima, rima, ou levas multa!
ALBINO (Vivamente.) - Com meia dúzia de asneiras.
MELO (Satisfeito.) - Ahn... (Saindo a ler.)
No carro seu doirado a roxa Aurora, etc.
(Perde-se a voz no bastidor.)
CENA IV
LAURA, ALBINO
LAURA - Forte mania!
ALBINO - Que quer a menina? Aquilo anda-lhe na massa do sangue! Nunca me hei de esquecer daquele dia em que li no Jornal do Commercio um anúncio concebido nos seguintes termos: "Precisa-se de um criado poeta, que faça e improvise versos. Quem se achar nas condições dirija-se à rua tal, número tantos. Paga-se bem, agradando." A menina quer saber quem eu era? (Ao repente da orquestra.) Faz o favor de tocar em surdina a música do "Era no outono quando a imagem tua."? Aquela? Trá lá lá rá lá rá. (Recita ao som da música.)
Eu era um pobre trovador de esquina;
Sempre mofina a minha vida foi;
Desenvolvia inteligência e arte Pra minha parte conquistar do boi.
Passava as belas noites ao relento, A chuva e ao vento, e era meu leito o chão, Eu nisso achava singular delícia Quando a polícia não me punha a mão.
Mas não vi nunca no xadrez infame Negro vexame, ríspido labéu;
Olhava o povo a passear na rua, E olhava a lua a passear no céu.
Ai! quantas vezes célicas venturas Lá nas escuras estações gozei!
Mesmo entre ferros negros e medonhos, Sonhava sonhos que não sonha um rei!
Nisto, menina, de seu pai o anúncio Foi o prenúncio de um viver melhor!
Abençoadas estas quatro linhas!
Emprego tinhas, vagabundo mor!
Vim para casa de seu pai, menina;
Fome canina não padeço, já...
Levo de perna alçada o dia inteiro;
Ganho dinheiro e não me canso -, aí está!
(Declamando.) Todas essas regalias sob condição de falar só em verso, quando estiver na presença dele, já se sabe. Nas respostas, devo empregar redondilhas em quadras, rimando a segunda com a quarta. Nos recados, quadras também, rimando o primeiro verso com o quarto.
Todas as vezes que me faltar a rima, pagarei uma multa, que será descontada no fim do mês, salvo o caso do verso solto em hendecassílabos, admissível nas longas narrações.
LAURA - Não sabia desse regulamento.
ALBINO - Aceitei contente o meu difícil papel, e desde então...
A voz DE MELO - Ó Albino!
ALBINO - Lá está ele a chamar-me!
A VOZ - Albino!
ALBINO - Lá vai quadra. (Gritando.)
Aí vou, senhor meu amo, Eu não me faço esperar...
(Sai a correr. Não se ouve o resto.)
CENA V
LAURA, [só]
LAURA (Vai à janela e volta tristemente ao proscênio.) - Se papai se lembra de pôr à prova a veia poética do meu Gilberto, aqui, antes de lhe conceder a minha mão e sem que ele tenha tido tempo de se preparar, está tudo perdido! Oh! Gilberto, Gilberto do meu coração, por que não és tu poeta? Por que não te aqueceu no berço o bafejo ardente das Musas? Ingratas Musas! O
meu Gilberto, contudo, faz poemas... Fá-los no coração... mas não os escreve: sente-os.
ROMANCE
Infelizmente o meu amor Versos fazer não sabe...
Meu belo sonho encantador Receio que desabe!
Mas diga o velho o que disser, Dele serei somente;
Meu coração deseja e quer Ser dele eternamente.
Ó Deus, que estais no céu, de mim tem dó!
Vê que o meu coração é dele só.
II
Viver não quero um instante assim, Longe do meu Gilberto!
Eu a seu lado, é para mim O mundo um céu aberto.
Se ele comigo não casar, Eu perderei a vida, E a imprensa toda há de falar De mais uma suicida!
Ó Deus, que estais no céu, de mim tem dó!
Vê que o meu coração é dele só!
CENA VI
LAURA, ALBINO
ALBINO (Falando para dentro.)
- Não me deu nenhum trabalho Pedido tão pequenino;
Em precisando outra estrofe É só chamar pelo Albino.
(Ouve-se tocar uma campainha.) Tocaram. Quem será tão cedo? (Vai espreitar.)
LAURA - Dar-se-á o caso que seja ele? (A Albino.) Quem é?
ALBINO - Um moço.
LAURA - De cabelos pretos?
ALBINO - Sim, senhora.
LAURA - Estatura regular?
ALBINO - Sim, senhora.
LAURA - Bonito?
ALBINO - Sim, senhora.
LAURA - É ele!
ALBINO (Descendo.) - Sim, com certeza não é ela.
LAURA - Sabes quem é?
ALBINO - Sei; é ele.
LAURA - Ele quem?
ALBINO - Não sei.
LAURA - Sei eu.
ALBINO - Quem é ele?
LAURA - Mais tarde saberás. (Vai ver também e volta muito contente.) É ele! é ele! trá lá rá lá rá!... Fá-lo entrar: vem procurar papai. (Sai a correr.)
CENA VII
ALBINO, depois GILBERTO
ALBINO - É ele, não é ela, quem é, não sei, sei eu, é ele! Hum... aqui anda coisa... Meu amo, em vez de se ocupar da família, ocupa-se da Musa... Há de dar bons burros ao dízimo! (Novo toque de campainha.) Lá vai! lá vai! (Vai abrir.)
GILBERTO (Entrando.) - O Senhor Melo?
ALBINO - Está com a Musa.
GILBERTO - Com a...? (Compreendendo.) Ah! sim! já sei, faz versos. A fama poética do Senhor Melo já me chegou aos ouvidos. Faz bem, faz muito bem... A prosa é terrena e vil, a poesia é celeste e nobre. (Outro tom.) Posso falar-lhe, ou o Senhor Melo, quando cultiva as sete filhas de Apolo, não quer que o interrompam?
ALBINO - Ainda que não seja costume entre pessoas de boa sociedade fazer visitas antes do almoço, o Senhor Melo não o fará esperar.
GILBERTO - Vã preveni-lo, ande. Não declino o meu nome. Seria ocioso. O Senhor Melo não me conhece. (Senta-se.)
ALBINO (Saindo a gritar.)
- 'Stá cá fora um cavalheiro Que lhe deseja falar.
(Perde-se o resto. Gilberto ergue-se assustado.)
GILBERTO (Tranqüilizando-se.) - Ah! sim... aquilo é por obrigação.
CENA VIII
GILBERTO, [só]
GILBERTO [(Só.)] A minha coragem vai a pouco e pouco afrouxando. Nunca me senti tão pouco poeta, nem tão apaixonado! Se antes do pai me aparecesse a filha, ela me daria ânimo... Vem alguém... É ele, é o Senhor Melo...
CENA IX
GILBERTO, MELO
MELO (Entrando, como na outra cena, a ler um papel.)
- Oito lustros há já que veio ao mundo Para a ventura fazer do povo...
GILBERTO - Senhor Melo...
MELO (Sem se distrair.)
- Oito lustros já há...
Oito lustros há já...
Há já lustros oito.
Já há oito... já oito há...
Sebo!... (De mau humor.)
GILBERTO (À parte.) - Mau! (Alto.) Senhor Melo...
MELO - Lustros oito já há.
(Atrapalhando-se.) Já há lustros oitos...
(De mau humor.) - Pílulas...
GILBERTO - Senhor Melo...
MELO -
- Já lustros oito há...
Há oito lustros já...
(Agrada-lhe o verso.) Hein? Ora graças! (Repete.)
Há oito lustros já me veio ao mundo Para a ventura deste povo fazer...
Está comprido!
GILBERTO - Senhor Melo...
MELO (Sem desviar os olhos do papel.) - Viva! (Contando as sílabas nos dedos.) Pa-ra-a-ventu-ra-des-te-po-vo-fa-zer. Tem uma silaba de mais. (Poetando.) Para a ventura... (Contando as sílabas como acima.)
Pa-ra-a-ven-tu-ra-fa-zer-do-po-vo.
Tem uma sílaba de menos!
GILBERTO - Senhor Melo..
MELO (Como acima.) - Viva (Poetando.)
Para a ventura... realizar o povo.
(Agrada-lhe muito o verso, e fala rapidamente sem desviar os olhos do papel.) Depressa, senhor, depressa! Uma rima para povo. (Estende os braços para Gilberto como para receber a rima, e estala os dedos com impaciência.)
GILBERTO (Atarantado.) - Hein?
MELO - Uma rima para povo.
GILBERTO - Ovo!
MELO (Olha admirado para Gilberto, cai em si, guarda os versos, e cumprimenta-o.) - Senhor...
GILBERTO - Senhor Melo. (À parte.) - Com esta é a sétima vez que digo Senhor Melo!
MELO - Desculpe-me se o fiz esperar. A Musa deu-me uma esfrega que me deixou a suar!
(Repete vagarosamente.)
A Musa deu-me uma esfrega, Que me deixou a suar...
GILBERTO (À parte.) - É doido!
MELO - Como são as coisas! (Conta as sílabas.)
A-mu-sa-deu-me-u-ma-es-fre-ga, Que-me-dei-xou-a-su-ar!
Batalho o dia inteiro para arranjar um verso, ao passo que agora, involuntariamente, improvisei dois. Sente-se, meu caro senhor, e, antes de dizer o que o trouxe a esta sua casa, permita que eu tome nota do improviso.
GILBERTO - Pois não, à vontade. (Senta-se.)
MELO (Indo escrever os dois versos e repetindo-os.)
- A Musa deu-me uma esfrega, Que me deixou a suar...
(Guarda o que escreveu, e vai sentar-se perto de Gilberto.) Nós, os poetas, devemos ter sempre bem presente o adágio: guarda o que não queres...
GILBERTO - E acharás o que precisas.
MELO - Quem sabe se estes dois versos não me poderão servir nalguma oportunidade? (Outro tom.) Estou às suas ordens.
GILBERTO (À parte.) - É agora! (Alto, tossindo.) Hum! Hum! Hum!
MELO - Hum! Hum! Hum! (À parte.) Vem pedir-me versos!
GILBERTO - Senhor Melo, há três meses eu estava na Rua da Candelária...
MELO - Foi comprar chá?
GILBERTO - Não fui comprar coisa alguma. Estava sem dinheiro, e não tinha onde cair morto.
Ora, achando-me na Rua da Candelária, lembrei-me de atravessar a Rua da Alfândega.
Atravessei. Quando cheguei à Rua Direita, tinha cinqüenta contos de réis. Tornei a passar pela Rua da Alfândega em sentido contrário e, quando cheguei à da Quitanda, essa fortuna estava duplicada.
MELO - Com efeito, foi uma fortuna rápida... mas não admira, porque hoje arranja-se com mais facilidade quinhentos contos que um soneto.
GILBERTO - Autorizado por sua filha, a Senhora Dona Laura, venho pedir-lha em casamento.
MELO - Quer casar-se com minha filha? Homem! por esta não esperava eu.
GILBERTO - Sou de boa família, tenho perto de duzentos contos, gozo saúde, nunca fui preso, e sou republicano histórico.
MELO - Faz versos?
GILBERTO - Hein?
MELO - Pergunto se é poeta.
GILBERTO - Sou... Sou... (Gesto de satisfação de Melo.) Isto é... (Melo encara-o muito sério.
Com resolução.) Sou.
MELO - Ainda bem!
GILBERTO - A prosa é terrena e vil, a poesia é celeste e nobre. Pois sua filha, a filha de um poeta, era lá capaz de gostar de quem não soubesse cultivar as sete filhas de Apolo?
MELO - Sete?
GILBERTO - Sim, sete, pois não são sete? (À parte.) Ai! Ai!
MELO - As Musas são nove, meu caro senhor!
GILBERTO - Nove?
MELO - Não me consta que alguma tenha morrido.
GILBERTO - Eu não quero teimar, mas contemos. (Conta nos dedos.) Dó, ré, mi, fá...
MELO - Isso são notas de música!
GILBERTO - Ah! tem razão! tem razão! Onde tenho eu a cabeça!
MELO (Naturalmente.) - Uma vez que o senhor é poeta, peça-me a mão da pequena em verso.
GILBERTO (À parte.) - Oh! diabo!
MELO - Vamos! Ande! Improvise! Não esteja a estudar.
GILBERTO - Mas...
MELO - Ah! Não há mas nem meio mas! É poeta ou não é poeta!
GILBERTO - Sou assim um poeta da força do Senhor Melo.
MELO - Pois bem, venha o pedido! Se o não fizer, grogotó...
GILBERTO - Grogotó?
MELO - Galhetas. Grogotó galhetas, que é o legítimo grogotó!
GILBERTO (À parte.) - E eu, que nunca fiz um verso!
MELO - Então? Em que ficamos?
GILBERTO (À parte.) - Ora! Saia O que sair! (Atrapalhado.)
Eu venho pedir-lhe a mão Da senhora sua filha, Porque bate por ela o meu peito...
MELO - Está duro.
GILBERTO - O meu peito?
MELO - Não, o verso. Diga outra vez do princípio.
GILBERTO
- Eu venho pedir-lhe a mão Da senhora sua filha.
Porque bate por ela o meu peito...
MELO -
- Aposto que vai concluir assim:
E ela é uma maravilha...
GILBERTO - Não, senhor.
Eu venho pedir-lhe a mão Da senhora sua filha, Porque bate por ela o meu peito E quero pertencer à família.
MELO - Isso nunca foi verso, nem aqui nem na casa do diabo!
GILBERTO - Mas, Senhor Melo...
MELO - Pois bem, vai ver como sou condescendente. Faço-lhe uma concessão. Vou fechá-lo durante um quarto de hora nesta sala.
GILBERTO - Fechar-me!
MELO - Durante este tempo há de escrever uma poesia em que me peça a mão da pequena com todos os ff e rr. Se, ao cabo de um quarto de hora, não tiver feito nada, jamais será meu genro. (Fecha as portas e a janela.) Aqui tem papel e tinta! Até logo! São sete horas e um quarto. Voltarei às sete e meia.
GILBERTO - Mas, Senhor Melo.
MELO - Olhe... ali está a deusa Vênus... Peça-lhe que o inspire: é a Vênus de Milo. (Sai e fecha a porta.)
CENA X
GILBERTO, só GILBERTO [(Só.)] - Que situação! Enfim... (Senta-se à mesa e escreve.) "Senhor Melo..." Ora, Senhor Melo! "Senhor Melo" é o começo de uma carta, e não o de uma poesia! (Depois de pensar alguns instantes, ergue-se e atira fora a pena.) Não arranjo nada!... (Dirigindo-se à estatueta.) Ó Vênus de Melo... quero dizer, de Milo... de Milo e de Melo... tu, que és a deusa do Amor, concede-me o dom da poesia! Tira-me desta entalação!
(Abre-se ao fundo, no lugar da estatueta, uma gruta florida por onde entra Cupido, acompanhado de Amores.)
[Quadro 2]
CENA I
GILBERTO, CUPIDO, Amores GILBERTO (Estupefato.) - Oh! ...
Coplas I
CUPIDO -
Eis o trêfego Cupido, Filho de Vênus e Marte!
Sou bastante conhecido, Conhecido em toda parte...
Tenho fama universal!
Faço o bem, promovo o mal Pois domino as multidões, Sou senhor dos corações, Ah! Ah!
É o deus Cupido que aqui está!
II
No mundo, todos os peitos, Quer dos homens, quer dos bichos, 'Stão mais ou menos sujeitos, Aos meus múltiplos caprichos...
Todos se hão de sujeitar!
Ninguém me pode escapar!
Tudo, seja como for, Obedece ao deus do Amor!
Ah! Ah! etc.
GILBERTO - Cupido! Tu és Cupido? Pois Cupido existe?
CUPIDO - Certamente. Eu sou Cupido, e este é o meu estado-maior... Existo, como vês. Há mais tempo não aparecia, por não haver liberdade de cultos. Hoje, que todas as religiões são livres, aqui estou. Vênus, minha mãe, ouviu a tua invocação... e mandou-me tratar dos teus interesses. Senta-te àquela mesa, e escreve o que te vou ditar. (Gilberto obedece.) "Senhor Melo".
GILBERTO - "Senhor Melo" já está.
CUPIDO (Continuando.) - "Vossa Senhoria sabe que o estro não aceita imposições. Dentro de quinze dias voltarei à sua casa e submeter-me-ei a todas as experiências." Assina.
GILBERTO - Pronto!
CUPIDO - Agora vem comigo!
GILBERTO - Aonde me levas?
CUPIDO - A presença de Apolo; só ele te poderá conceder o que o pai da tua namorada exige.
Irás nas asas do amor.
GILBERTO - Vamos?
TODOS - Vamos! (Repetem o estribilho) e saem todos pela gruta, que desaparece, ficando a cena como estava dantes.)
CENA II
[MELO, só]
MELO (Entrando.) - Passou o quarto de hora. (Vendo a cena vazia.) Hein? Já não está! Por onde passaria ele?! (Examinando em baixo da mesa.) Nada! E esta?... Temos bruxaria!
(Saindo.) Ó menina! Ó Albino!... (Sai. Mutação.)
CENA III
[JOSÉ, só]
(Ao levantar o pano ouve-se o coro dos poetas, cantado na Cena VI. Cessado o coro, José sai do palácio e fecha cuidadosamente a porta. Traz um molho de chaves na cinta e algumas liras de ouro debaixo do braço.)
JOSÉ -
- Até que finalmente Eu por hoje estou livre desta gente!
Diabo leve o Parnaso!
Se não fujo daqui, vai tudo raso!
Meus senhores, eu chamo-me José;
Vou dizer onde estou, e isto o que é, Porém com muita pressa, Pois que esta entrada nada tem com a peça.
Este país, da natureza um mimo, Chama-se Fócida. Isto aqui é o cimo Do Parnaso, a montanha mais famosa, Onde ninguém pode falar em prosa, É dos poetas hospício Aquele imenso e fúlgido edifício, E é curiosa a história Desta fonte marmórea.
Apolo, o meu patrão, é das arábias:
Mas que ninguém tem lábias...
E, se elas não lhe prestam atenção Vinga-se o maganão!
Era uma vez uma mulher bonita Que pôs muita alma aflita, Muita cabeça à roda;
Deu que falar, enfim, e andou na moda;
Apolo um dia a vê, e, de repente, O coração lhe abrasa amor ardente.
Ele, a princípio, mostra que concorda, Mas, passado algum tempo, rói a corda.
Sente Apolo a mostarda no nariz, E transforma a pequena em chafariz!
Que graçola de bruxo!
Um deidade foi, e hoje é repuxo!
Para ser mais pungente a represália, O nome dela, o nome de Castália Ficou à fonte. Singular virtude Têm estas águas: não é dar saúde.
Não são de Caxambu nem de Vizela;
Mas quem delas beber, sem mais aquela Fala em verso, quer queira, quer não queira!
Eu cá poeta me fiz desta maneira!
Ser poeta eu não queria, Porque sempre embirrei com a tal poesia...
Mas, quando cá cheguei, quis beber água:
Imaginem que mágoa Ao dizer-me o patrão: - Beba dali!
Resisti... não bebi!...
Mas, no dia seguinte, O patrão, por acinte, Pôs-me os bofes a arder, a língua seca, E uma enxaqueca... Safa! que enxaqueca!...
Vede, senhores, que suplício! vede!...
Ou fazer versos, ou morrer de sede!
Preferi fazer versos...
Desde então não consigo Falar em prosa vil... Sim! Quereis ver?...
(Esforça-se por falar em prosa.)
Quero em prosa falar... mas do querer Vai ao poder uma distância enorme!
A gente aqui faz versos quando dorme!
(Ouve-se rumor.)
Apolo, o meu patrão, aí vem de volta, Trazendo as nove Musas por escolta.
Ele e elas aí vêm! Eis que começa!
Esta entrada a cantar pertence à peça.
CENA IV
JOSÉ, APOLO, as MUSAS
Coplas I
APOLO -
- Eu sou filho de Júpiter, O grande Apolo sou!
Na ponta, na pontíssima, Eternamente estou!
As MUSAS -
- As nove Musas clássicas Estão aqui também;
Saracoteando, gárrulas, Do seu passeio vêm.
Zim lá lá!
Oh! que bela funçanata!
Zim lá lá!
Que agradável passeata!
'Stou satisfeita, olá!
II
APOLO -
- O deus mais xispeteófero, O deus melhor cá está, Não há deus mais simpático, Deus mais gentil não há!
AS MUSAS -
- Quando acordamos lépidas, Tomamos o café, Montou Apolo o Pégaso, E nós fomos a pé.
Zim lá lá! etc.
APOLO - Cessem os cantos! - José.
JOSÉ -
- Pronto, senhor!
O serviço?
APOLO - - 'Stá feito?
Não penso nisso.
JOSÉ - Há muito tempo que está.
APOLO - 'Stáo almoçados os poetas?
JOSÉ -
- Sim, meu senhor. Foi precisa Mais meia arroba de brisa Perfumada com violetas.
APOLO -
- Vai lavar o meu cavalo;
Quero o Pégaso bem limpo.
Tenho de ir logo ao Olimpo.
JOSÉ - Sim, senhor, eu vou lavá-lo. (Sai.)
TÁLIA (A Apolo.) -
- Vê lá! vê lá se imaginas Quem vem subindo!
APOLO - Que vejo!
TODAS - Cupido!
APOLO -
- Nem por gracejo Estejam perto, meninas.
TODOS - Vamos embora!
APOLO
APOLO -
- E depressa!...
Nada, que ele é bem capaz De querer brincar e... zás!
(Gesto de quem arremessa uma seta.)
Só me faltava mais essa.
(Empurra as Musas, que saem.)
CENA V
APOLO, CUPIDO
CUPIDO - Viva o seu Apolo!
APOLO -
- Olá!
Que grande ausência, Cupido!
Sejas bem aparecido!
Há muito não vinhas cá!
CUPIDO -
- As minhas ocupações Não me permitem...
- Brejeiro, Que levas o dia inteiro A maltratar corações.
CUPIDO -
- Pois enganas-te, meu bem;
Eu tornei-me um deus pacato:
Já corações não maltrato, Já não maltrato ninguém!
APOLO -
- Não esperava por esta!
Tu, outrora tão ferino, Tornares-te um bom menino E divindade modesta!
Quem operou tal milagre?
Deixaste de ser cruel?!
O fel transformou-se em mel.
CUPIDO -
- Eu bem quisera, e não posso Recuperar a maldade...
O desalento me invade, O mundo já não é nosso...
Há lá na Terra mesquinha (De todos os olhos salta)
Uma potência mais alta Do que a tua e do que a minha.
APOLO -
- Amor! Que dizes? Blasfemas!
Que enorme potência é essa?
Vamos! Dize-me depressa, Com setecentos mil poemas!
CUPIDO -
- Ele é o deus mais adorado;
Todo mundo lhe obedece...
APOLO - Por Jove! que deus é esse?
CUPIDO - É o dinheiro.
APOLO - Estou calado.
CUPIDO -
- Sim, o dinheiro; por ele, Perdi minha força imensa;
Não tenho seta que o vença Nem sopro que o esfacele!
Quem já eu fui, e quem sou!
APOLO - Quem tu já foste, e quem és!
CUPIDO -
- Anda agora aos pontapés Quem já aos beijos andou!
APOLO -
Pois comigo é o mesmo caso;
Tudo o que vês to confirma...
E é só por honra da firma Que não liquido o Parnaso.
Sempre o dinheiro a fugir - De quem poesias escreve!
Raro é o tipo que se atreve Minhas graças a pedir!
CUPIDO -
- Mas afinal tem razão;
Pois, na sociedade abjeta, Não consta que houvesse um poeta Morrido de indigestão.
- Mas não falemos em tal, Pois melhor assunto tenho.
Sabes de onde agora venho?...
Da Capital Federal.
APOLO - Desse país não me lembro.
CUPIDO - Ora! é o Rio de Janeiro.
APOLO - Então mudou de letreiro?
CUPIDO - Desde Quinze de Novembro.
APOLO -
- Do deus Apolo merece Encômios mudança tal, Pois Capital Federal Se não é verso, parece.
CUPIDO -
- Um moço dessa cidade Sente no peito um afeto, Sagrado, puro, discreto, Por uma doce beldade.
Quer esposá-la.
APOLO - E depois?
CUPIDO -
- Mas o pai da rapariga (Sempre a mesma história antiga!)
Não quer casados os dois.
APOLO - Por quê?
CUPIDO -
Talvez tu te rias...
Não é pra menos o caso...
Porque o moço, por acaso, Não sabe fazer poesias.
O apaixonado galã Teve a lembrança excelente De pedir ardentemente A proteção da mamã.
APOLO - Deveras?
CUPIDO -
- E Vênus bela Ficou muito satisfeita, Porque viu que, desta feita, Alguém se lembrava dela;
Quis ao mancebo agradar E recomendá-lo a ti;
Vim hoje te incomodar.
APOLO - - Pois não ponhas mais na carta:
Vieste buscar a este monte Um pouco da água da fonte Castália. Espera. Vou dar-ta.
(Dá dois passos para o fundo.)
CUPIDO (Retendo-o.)
- Não! não! não! Comigo veio O protegido de Vênus;
De súcia com os meus pequenos Lá mais abaixo deixei-o.
APOLO -
Vai buscá-lo; e, já que tenho Um candidato a poeta, Quero que seja completa A patacoada!
CUPIDO - Já venho. (Sai.)
CENA VI
APOLO, depois as Musas, JOSÉ, depois CUPIDO, GILBERTO, Amores APOLO (Só.)
- Façamos deste caso o caso mais solene! (Chamando.)
Terpsícore! Tália! Erato! Melpômene!
Calíope! Euterpe! Clio! Urânia... Falta alguém?...
Polímnia!... Venham cá! Então? vêm ou não vêm?
(Entram as Musas e José.)
Coro Por que tanta algazarra?
Que foi?... que sucedeu?...
Há novidade na barra?...
Alguém morreu?
Que sucedeu?
Que aconteceu?
(Continua a música em surdina na orquestra.)
JOSÉ (Vindo ao proscênio, confidencialmente ao público.)
- O Pégaso também devia estar presente, E à peça o chamariz daria mais cem casas, O empresário, porém, não pôde, infelizmente, No mercado encontrar um cavalo com asas.
APOLO -
- Meninas, todo recato!
E não se ponham a rir!
Vai ao Parnaso subir, Neste instante, um candidato!
(Entra Cupido trazendo Gilberto pela mão e acompanhado pelos Amores, que ficam ao fundo, enquanto os dois dão uma volta pela cena, cumprimentando Apolo e as Musas.)
CUPIDO - Dás-me licença?
APOLO - Tens toda.
TÁLIA - Ai! é Cupido que o traz!
MELPÔMENE - É bem bonito rapaz!
CLIO - Quero beijá-lo!
ERATO - Estás doida!...
APOLO -
- Mancebo, quem quer que sejas Que ao monte Parnaso ascendes, Explica-me o que pretendes E dize-me o que desejas.
GILBERTO - Meu caso Senhor Apolo, não vê que eu...
(As Musas, ouvindo prosa, dão um grito e tapam os ouvidos.)
APOLO - Nem mais uma palavra! a prosa é proibida!
GILBERTO - Perdão, mas eu...
APOLO -
Silêncio! ou já arranco a vida.
As nove Musas, vi! os seus ouvidos fecham.
AS MUSAS - Apolo, compaixão!
APOLO - Não vês como se queixam?
CUPIDO -
- Grande Febo, consente eu diga o que pretende O pobre que das leis do verso não entende.
APOLO -
- Cupido, o que ele quer sei eu, sabem-no as Musas.
Portanto, ó deus do amor, de te explicar escusas!
GILBERTO (À parte.) - Se sabia, por que perguntou?
APOLO -
José, ligeiro vai dar liberdade aos poetas, E que tragam consigo as liras irrequietas.
(José vai abrir o edifício do fundo. Entrada de um aluvião de poetas.)
Coro Nós todos, que subimos Ao apolíneo monte, E na Castália fonte Bebemos uma vez, Sentimos, sim, sentimos O sacro fogo ardente Que nos escalda a mente E que tão bem nos fez.
Um dom não há mais nobre Que a cândida poesia;
As almas inebria Da poesia a voz;
É pobre, é mais que pobre Quem desgraçadamente No cérebro não sente O que sentimos nós!
PRIMEIRO POETA (Destaca-se do grupo que ficou ao fundo, vem à boca de cena e declama, apontando para a cúpula do ponto.)
- "Eis ali o lugar onde eclipsou-se O meteoro fatal às régias frontes!"'
SEGUNDO POETA (Destacando-se do grupo arrebatadamente.)
- "Eu amo a noite, quando deixa os montes, Bela, mas bela de um horror sublime!"
TERCEIRO POETA - "Perdoa, ó virgem, se te amar é crime!"
PRIMEIRO POETA -
- "Dormes? Eu velo, sedutora imagem, Grata miragem que num ermo vi!
Quem pode ver-te sem querer amar-te?
Quem pode amar-te sem morrer por ti?"
QUARTO POETA - "Eu, Marília, não sou nenhum vaqueiro!"
SEGUNDO POETA - "Adeus, Teresa, adeus, eu vou-me embora."
QUINTO POETA -
- "Minh'alma é triste como a rola aflita Que o bosque acorda desde o albor da aurora."
SEGUNDO POETA
- "Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?"
(Mudando de tom, ao primeiro Poeta.)
PRIMEIRO POETA - "É Gonzaga! Maldição!"
QUARTO POETA
- "Se eu morresse amanhã, viria ao menos Fechar-me os olhos minha irmã... co dedo..."
TERCEIRO POETA
- "Se de ti fujo, é que te adoro, e louco!
És bela, eu moço; tens amor, eu medo!"
PRIMEIRO POETA
- "Vai, Colombo! abre a cortina Da minha eterna oficina!
Tira a América de lá!..."
QUINTO POETA
- "Minha terra tem palmeiras Onde canta o sabiá."
APOLO
- Basta de dizer asneiras!
Ponham-se em linha acolá!
QUINTO POETA (Naturalmente.)
- "As aves que aqui gorjeiam Não gorjeiam como lá!..."
APOLO
- Ah! pois vocês não receiam Que eu?... Ora esperem!... Vou já...
(Ergue-se ameaçador. Os Poetas correm para os seus lugares.)
Silêncio! cesse a desordem!
A meus pés, Clio, te deita!
Tália, fica à direita...
Ponham-se todas em ordem!
Vou fazer poeta este jovem...
Ajoelha-te, cidadão!
(Gilberto ajoelha-se ao pé do trono.)
A minha resolução Conto que todos aprovem.
Musas e Poetas que aprovam Queiram sentar-se.
(Sentam-se todos no chão, menos Cupido e José.)
Aprovado.
CUPIDO (A José.) - Bravo! está tudo sentado!
JOSÉ - (A Cupido.) - As Musas nada reprovam.
APOLO - Como te chamas?
GILBERTO - Gilberto.
APOLO
- Pois, Gilberto, eu te vou dar O dom de metrificar.
Chega-te mais para perto.
(José traz da fonte uma ânfora cheia de água.)
Bebe!
(Gilberto bebe, e, no mesmo instante, fica inspirado. Corre de um lado para outro, olhando para o céu, esbugalhando os olhos e apartando os cabelos com os dedos.)
GILBERTO
- O sol da inspiração Sobre o meu cérebro atua!
JOSÉ (À parte.) - Será o Sol ou a Lua?
CUPIDO - Foi muito rápida a ação!
GILBERTO
- Quero uma lira também!
Vou cantar a minha amada, De saudades torturada...
Quero uma lira!
JOSÉ (Dando uma lira.)
- Aqui tem.
APOLO (Interpondo-se.)
- Basta, meu caro senhor!
Deixe em paz o bem amado!
Terpsícore, anda, um bailado, Que o bailado é de rigor!
(Terpsícore e as outras Musas dançam um bailado.)
APOLO (A Gilberto.)
- Eu vou fazer-te um favor Excepcional!
GILBERTO - Sim? qual é?
APOLO - Uma garrafa, José!
JOSÉ. - Eu vou buscá-la, senhor! (Sai.)
APOLO
- Vais para a Terra levar Uma garrafa desta água.
Queres ou não queres?
GILBERTO - Pago-a!
APOLO - Não é preciso pagar.
GILBERTO
- O senhor enriquecia (Que a palavra o não afronte!)
Se, pra explorar esta fonte, Formasse uma companhia!
Não me chamasse eu Gilberto, Quando todo o capital Não fosse na empresa tal No mesmo dia coberto!
Olha, se quer ser meu sócio...
(Apolo sorri, encolhe os ombros e dirige-se à fonte.)
CUPIDO (A Gilberto.)
- Gilberto, que fantasia!
Ele é o deus da poesia, Não é homem de negócio!
JOSÉ (Entrando com uma garrafa, que entrega a Apolo.) - Pronto, senhor.
APOLO (Depois de encher a garrafa na fonte, dando-a a Gilberto.) - Aqui tens.
GILBERTO
- Muito obrigado, senhor, Por tão precioso favor.
APOLO
- Não há de quê.
- Parabéns.
JOSÉ (Baixo, a Gilberto.)
- Se alguma coisa me dá, Leva mais uma garrafa, Ou mesmo um garrafão!
GILBERTO - Safa!
JOSÉ - Cuidado, que Apolo aí está!
APOLO
- Se nunca falar ouviste De Apolo, meu bom rapaz, De agora em diante dirás Que lhe falaste e que o viste, E me obsequiarás com isto, Porque, segundo presumo, Ninguém, por aquele rumo, Sabe ao certo que eu existo.
GILBERTO
- Se eu com isto te consolo, Sabe: na minha cidade Vão abrir com brevidade Um Teatro chamado Apolo.
APOLO
- Um Teatro, Apolo chamado!
Um Teatro Apolo, ó delícia!
Pois tinhas essa notícia A dar-me, e estavas calado?
Não vês como estou contente?
Oh! doce alegria infinda!
Vejo que há na Terra ainda Quem faça caso da gente!
Ó José! Depressa! Manda Aparelhar o meu carro, Que do Parnaso desgarro Por alguns dias.
As MUSAS e os POETAS - Oh!
APOLO - Anda! (José sai.)
CUPIDO - Quê! vens conosco?
APOLO
- Vou, sim!
Quero ver o meu teatro, E farei o diabo a quatro, Se não for digno de mim!...
AS MUSAS (Rodeando Apolo.) - Papai!... Papai!...
APOLO
- Ó meninas, Tenham muito juizinho!
JOSÉ (Voltando.)
- 'Stá pronto o carro. O caminho Meu bom Cupido, me ensinas.
APOLO (Às Musas)
- De novo lhes recomendo Que tenham muito juízo, Todo o recato é preciso Nos tempos que vão correndo.
GILBERTO
- Grande Apolo, não te rales, Trarás da Terra o magnífico E celebrado específico Do S'or Doutor Costa Sales.
Canto AS MUSAS
- Papai vai fazer viagem!
Sozinhas vamos ficar!
Talvez nos falte a coragem Para a ausência suportar!
Ai! ai!
Papai.
Lá vai.
APOLO
- Não chorem, senão eu choro, E não desejo chorar!
Sosseguem! Não me demoro, Em breve hei de cá voltar.
AS MUSAS
- Ai! ai!
Papai Lá vai!
APOLO e CUPIDO
- Adeus!
Adeus! (Saem.)
As MUSAS e os POETAS
- Que bom! foram-se embora!
Caiamos no cancã!
Dancemos nós agora - Até pela manhã!
(Cancã muito animado.)
Quadro 3 (Rasga-se o fundo, e vê-se no espaço o carro de Apolo dirigido por ele. Cupido e Gilberto vão dentro do carro. Os Amores formam grupos voando.)
(Cai o pano.)
ATO SEGUNDO
Quadro 4 Praça pública na ilha de Pandigônia CENA I
APOLO, CUPIDO, GILBERTO, depois UM TRANSEUNTE
CUPIDO (Entrando.) - Oh!, que grande estopada!
GILBERTO (Entrando.) - Não há maior maçada!
APOLO (Entrando. Ao público.)
- Toda a atenção, que eu narro O que nos sucedeu nas regiões aéreas, E ter podia conseqüências serias!
(Naturalmente.)
Partiu-se uma das rodas ao meu carro.
CUPIDO - Foi brincadeira de algum deus vadio!
APOLO
- Bóreas, talvez, que quis roubar-me Clio, E um dia aos pontapés desceu do monte.
CUPIDO - Não foi outro!
APOLO
- Julguei me acontecesse agora O mesmo que a meu filho Faetonte, Quando a boleeiro se meteu outrora.
GILBERTO
- Mas, graças às cabaças, Não há que lamentar grandes desgraças.
CUPIDO
- Eu mandei para o Olimpo os meus pequenos Tranqüilizar a Vênus.
GILBERTO
- Felizmente encontramos um ferreiro, Que consertando está da roda o eixo.
APOLO
- E temos que passar um dia inteiro Aqui nesta cidade!
CUPIDO
- Eu não me queixo:
Parece-me lindíssima a cidade!
Não a conheço.
APOLO
- Pra falar verdade.
Eu mesmo ignoro em que pais estamos.
Lá vem um tipo. Interrogá-lo vamos.
Mas falemos-lhe em prosa, Pois em verso tornamo-nos suspeitos.
CUPIDO
- Coisa dificultosa!
A água da fonte faz os seus efeitos!
GILBERTO
- Em prosa, meu amigo, Dizer duas palavras não consigo!
CUPIDO
- Talvez que se precise De outra água que os efeitos neutralize...
APOLO (Interrompendo.)
- De nada mais preciso Do que a própria vontade e o próprio juízo Eu posso, quero e mando! E agora conto Que falemos em prosa! Um! Dois! Três!
Pronto!...
(Indo ao Transeunte que aparece.) Meu caro senhor, dá-nos duas palavras.
O TRANSEUNTE - Quantas queira.
APOLO - Nós andamos a correr mundo.
O TRANSEUNTE (Examinando-os.) - Naturalmente são saltimbancos... A julgar por esses trajes...
APOLO - Adivinhou. Somos saltimbancos. Eu faço exercícios de força muscular.
CUPIDO - Eu danço na corda bamba.
GILBERTO - E eu sou o secretário da companhia.
APOLO - Como ia dizendo, andamos a correr mundo, e por acaso viemos ter a esta cidade. O
senhor muito me obsequiaria se nos informasse em que lugar estamos.
O TRANSEUNTE - Não admira que não o saibam, porque esta ilha não figura em nenhuma carta geográfica, nem nunca foi visitada por estrangeiros. Os senhores estão na Pandigônia.
OS TRÊS - Na Pandigônia?
APOLO - E quem governa a Pandigônia? Um rei? Um imperador? um presidente? um cônsul?...
O TRANSEUNTE - Nada disso. A Pandigônia é governada por famílias e não por indivíduos.
CUPIDO - Por famílias?
O TRANSEUNTE - Sim, mas uma de cada vez, já se sabe. Como o governo é periodicamente renovado, há probabilidade de contentar a todos. Aqui onde me vêem, já estive e ainda conto estar no poder com minha mulher e meus filhos.
APOLO - É original! (Vozeria dentro.)
CUPIDO - Que bulha é esta?
O TRANSEUNTE - Uma pequena insurreição política. São mulheres que protestam por lhes ter sido negado o direito do voto. Elas aí vêm!
CENA II
OS MESMOS, algumas Mulheres Políticas Coro das Mulheres Políticas Não há maior iniqüidade Do que este ataque à liberdade!
Deve a mulher, Haja o que houver, Votar e ser também votada!
Se nada se alcançar, Um rolo aqui se faz!
Zás!
Trás!
UMA DAS MULHERES - É uma tirania! Não há razão que se oponha a que nós votemos!
OUTRA - Protestemos com toda a energia!
TODAS - Protestemos!
CUPIDO - Então, minhas senhoras? Perdem o seu tempo! Do que servem esses protestos! Há um meio muito mais eficaz de conseguirem o que desejam...
TODAS - Qual é? qual é?...
CUPIDO - Façam greve!
TODAS - Greve?
CUPIDO - Recusem os seus serviços, e diabos me levem se dentro em três dias não lhes fizerem todas as concessões.
APOLO - Naturalmente. O gênero feminino é em toda a parte um gênero de primeira necessidade.
PRIMEIRA MULHER - É exigir muito de nossas forças. Passar a vida inteira sem votar, isso passamos; mas levar três dias sem fazer o serviço de casa... hum!... é muito difícil.
SEGUNDA MULHER - A greve seria imediatamente furada.
CUPIDO - Nesse caso, minhas senhoras, protestem... e não façam caso da opinião do Amor.
TODAS - Do Amor?
APOLO (Baixo, acotovelando Cupido.) - Ó diabo! não te dês a conhecer!
CUPIDO - Sim, façam de conta que o Amor lhes fala pela minha boca... E, para dizer-lhes toda a verdade, lhe pesaria, a ele, ao Amor, vê-las deputadas e senadoras. Nem a mulher foi feita para a política, nem a política foi feita para a mulher.
APOLO (A uma das Mulheres.) - Eu já não penso assim, minha senhora; não se me dava de vêla na... Câmara.
PRIMEIRA MULHER - Minhas amigas, estes senhores estão zombando de nós. Vamos levar mais longe os nossos protestos.
TODAS - Vamos! (Saem.)
CENA III
APOLO, CUPIDO, GILBERTO, o TRANSEUNTE, depois os Aposentados PRIMEIRO APOSENTADO (Entrando e abraçando o Transeunte.) - Ah!, meu amigo! que felicidade! dá cá um abraço!...
O TRANSEUNTE - Como estás contente! Que te sucedeu?
PRIMEIRO APOSENTADO - Fui aposentado!
GILBERTO - Aposentado! Mas o senhor não parece ter mais de quarenta anos!
PRIMEIRO APOSENTADO - Tenho apenas trinta e quatro, e gozo uma saúde de ferro! É por isso que estou contente.
CUPIDO - Já vejo que não há país como a Pandigônia!
SEGUNDO APOSENTADO (Entrando.) - Oh, que ventura! que ventura! fui aposentado!...
GILBERTO - Também este!
CUPIDO - É quase uma criança!
O TRANSEUNTE - Não fez ainda vinte anos, mas tem prestado muitos bons serviços ao país.
(Entra o terceiro Aposentado; é um menino de dez anos.)
TERCEIRO APOSENTADO - Estou contentíssimo! fui aposentado!...
APOLO - É extraordinário! pois esta criança!
TERCEIRO APOSENTADO - Já não há crianças, meu caro senhor!
GILBERTO - Decididamente venho para a Pandigônia depois de casado! (Entra o quarto Aposentado, é um menino de seis anos; vem montado num cavalinho de pau.)
QUARTO APOSENTADO - Que bom! que bom!... fui aposentado!...
APOLO, CUPIDO, GILBERTO - Oh!... (Entram outros meninos também montados em cavalinhos de pau.)
OS MENINOS - Fui aposentado, fui aposentado!...
PRIMEIRO APOSENTADO - Bem! - e agora, como ainda temos forças para o trabalho, vamos tratar da vida!
SEGUNDO APOSENTADO - Qual há de ser?
PRIMEIRO APOSENTADO - Proponho que nos façamos todos zangões!
TODOS - Apoiado! apoiado!...
PRIMEIRO APOSENTADO - Ao Encilhamento!
TODOS - Ao Encilhamento...
(Os meninos fazem roda e executam uma dança infantil. Saem dançando e cantando.)
APOLO (Ao Transeunte.) - Eles falaram em Encilhamento; que diabo quer isto dizer?
O TRANSEUNTE - Pois o senhor não sabe o que é o Encilhamento? É o lugar onde se encilham animais.
CUPIDO - Quê? pois ser zangão é encilhar animais?
O TRANSEUNTE - Não senhor; aqui a coisa é tomada em sentido figurado. A cilha é o jogo da Bolsa.
APOLO - Ah! - e os animais?
O TRANSEUNTE - Naturalmente são os que se deixam encilhar. E na realidade muitos de lá saem com a cilha na barriga.
GILBERTO - Por falar em animais: vou ver se o carro está pronto.
CUPIDO - Vai. (Gilberto sai.)
O TRANSEUNTE - Sou obrigado a deixá-los: vou ao Encilhamento.
APOLO - Também o senhor?
O TRANSEUNTE - Aqui na Pandigônia todo o cidadão que se respeita vai ao Encilhamento.
(Cumprimentando.) Adeus, caros artistas, adeus... Estimo que sejam felizes.
APOLO, CUPIDO - Adeus. Obrigado. (O Transeunte sai.)
CENA IV
APOLO, CUPIDO, depois os Homens Barbados APOLO - Foi o diabo esta demora! Tarda-me ir ao Rio de Janeiro ver o tal teatro Apolo.
CUPIDO - Olha, filho, não vás julgar que isto é inveja; seria mais justo que o teatro se chamasse Cupido.
APOLO - Ora essa! Por quê?
CUPIDO - Cupido, ou, a rigor, Baco. Hás de ver por que.
APOLO - Xi! que coleção de barbaças aí vêm! ...
(Entram os Homens Barbados, trazendo chapéus Chile.)
Coro Valha-nos Deus! que cacetada!
Que cacetada se apanhou!
Foi muito longa a tal maçada, Mas felizmente já passou.
Eu vou deixar de ser barbado;
Não uso mais destes chapéus!
Por causa disto, Deus louvado, Todos andamos aos boléus!...
Que cacetada!...
PRIMEIRO HOMEM - De boa escapamos!
SEGUNDO HOMEM - Quem diria que as nossas barbas e os nossos chapéus do Chile nos tornariam suspeitos!
CUPIDO - Contem-nos isso. PRIMEIRO HOMEM - Imaginem que há aí um criminoso, um grande criminoso que ninguém sabe quem é. Sabe-se apenas que é um homem barbado, e usa um chapéus destes.
SEGUNDO HOMEM - Por conseguinte, foram chamados à presença da autoridade todos os habitantes da Pandigônia que se acham nessas condições.
PRIMEIRO HOMEM - Felizmente podemos com facilidade provar a nossa inocência... mas lá ficaram ainda detidos uns trinta. Pudera! estes chapéus estão agora em moda!
APOLO - Olhem que brincadeira!
SEGUNDO HOMEM - Vamos tranqüilizar nossas famílias.
PRIMEIRO HOMEM - E fazer a barba... Vou deitar tudo isto abaixo! Nada, que me vi deveras abarbado!
TODOS - Vamos! (Saem.)
GILBERTO (Entrando a correr.) - Fujamos, senão estamos perdidos! Está pronto o carro!
Fujamos!
CUPIDO - Mas... por quê? por quê?
GILBERTO - Vem aí o Intendente de Polícia; disse-me um habitante da ilha que ele anda à procura dos indivíduos sem profissão para prendê-los e deportá-los. Ora, nós não temos profissão... nem passaporte, nem nada!
APOLO - Sim, o caso não é para graças...
CUPIDO - Não faltava mais nada! Vamos!
Os TRÊS - Vamos! (Saem.)
CENA V
O INTENDENTE DE POLÍCIA, depois um PRIMO
O INTENDENTE (Falando para dentro.) - Leve-o! leve-o para o gaiola! É tão bom como os outros!
Coplas I
Não é bom que a sociedade Veja impune um vagabundo!
Não posso limpar o mundo, Porém limpo esta cidade!
Sem profissão decorosa Ninguém devo tolerar, E mando catrafilar Toda a gente perigosa!
Muita gente está zangada, Pelas costas me quer ver;
Mas, confessa a gente honrada, Sei cumprir o meu dever!
II
Sujeito que não trabalha, Parasita ou ratoneiro, Manejador de navalha, Beberra-o ou desordeiro...
Devem ser todos punidos, E deles não tenho dó!
Vão todos pro xilindró, Apesar de protegidos...
Muita gente está zangada, etc.
O PRIMO (Entrando.) - Senhor, meu primo acaba de ser preso por sua ordem. Peço-lhe que o não deporte.
O INTENDENTE - Não peça: perde o seu tempo. Seu primo é tão bom como os outros que já lá foram.
O PRIMO - Mas...
O INTENDENTE - Não insista! O que disse está dito! E não me aborreça! (Sai)
O PRIMO (Só.) - E é assim que me tratam, a mim, que tantos serviços prestei! Pois vingo-me, abandonando o país!
(Sai. Mutação.)
Quadro 5 No jardim do Teatro Apolo CENA I
ARTISTAS, CORISTAS, músicos, empregados do teatro (É dia. Tem acabado o ensaio. Os personagens saem do interior do teatro.)
Coro Está o ensaio terminado, Agora, vamos esperar Que o nosso público ilustrado Seu parecer nos venha dar.
UMA ATRIZ
- A peça vai fazer furor, Pois não lhe falta um matador!
OUTRA
- Tem muita, muita graça a peça;
Nem um instante o riso cessa.
E a partitura é de primor!
UM ATOR
- Que novidade dá você!
Não fosse a música de Hervé!
OUTRO
- A peça agradará, Pois bem montada está.
UM CORISTA
- De mais a mais, o teatro é novo E atrai o povo!
UM DOS ATORES - É peça que não cai!
OUTRO - Sim, a Nitouche um dinheirão dar vai!
CORO - Está o ensaio terminado, etc.
PRIMEIRA ATRIZ - Estou muito contente com o meu papel, e conto agradar muito esta noite.
PRIMEIRO ATOR - Que bela peça é Mam'selle Nitouche! Não troco por nenhum outro aquele meu papelinho!
SEGUNDA ATRIZ - A casa está completamente tomada!
SEGUNDO ATOR - Ih! há de ser uma enchente!
PRIMEIRA ATRIZ - Adeus; tenho ainda que ver umas coisas que me faltam para logo à noite.
SEGUNDA ATRIZ - Espera. Eu vou contigo.
PRIMEIRO ATOR - Eu também me vou embora. (Saem todos.)
CENA II
A ARTE DRAMÁTICA NACIONAL
Que gente aquela será?
Ah! já vejo... São artistas...
Empregados e coristas...
O ensaio acabado está.
(Descendo ao proscênio.
Ao público.)
Senhores, esta figura Pouco atraente e simpática, Saibam, é a Arte Dramática Deste pais sem ventura.
Nasci quando florescia João Caetano, esse portento No Largo da Academia, Mas que, se vivo estivesse, Viveria na desgraça, Pois aqui por ela passa O artista quando envelhece.
Já fui formosa e chibante Tive mil adoradores Que suspiravam de amores Quando eu passava arrogante;
Mas tanto me maltratou A sorte, e fui tão caipora, Que da beleza de outrora Nem vestígio me ficou.
Sabendo que se inaugura Este teatro, aqui venho, Pelo interesse que tenho Guardado nest'alma escura.
Dá idéia de uma nau O novo edifício, e eu acho Ter ficado um tanto baixo, Mas não é de todo mau.
Entretanto, meus senhores, 'Stou convencida que o povo, Em vez de um teatro novo, Quisera novos atores, Pois, pelos modos, parece Que se vai findando a lista, E em breve o último artista Do palco desaparece.
Sim, senhores, porque, em suma, Nos teatros, infelizmente, Vejo sair muita gente, E não vejo entrar nenhuma, Mas basta de dar à língua, Eu vou para aquele canto, E, dando largas ao pranto, Lastimar a minha míngua.
CENA III
O SUTIL, APOLO, CUPIDO, GILBERTO
O SUTIL - Ora está feita a vontade aos cavalheiros. Mostrei-lhes todo o teatro à exceção do salão do público, porque ainda não está pronto.
APOLO - Não é mau, não é mau, mas que diabo! um teatro que se chama Apolo devia ser todo de mármore e ouro!
CUPIDO - A inauguração é hoje impreterivelmente?
O SUTIL - Impreterivelmente.
APOLO - Não há meio de arranjar um camarote?
O SUTIL - Nem uma cadeira!
GILBERTO - Hão de ver que nas mãos dos cambistas...
O SUTIL - Quais cambistas! Pois o senhor não sabe que a Polícia acabou com eles? Já não há cambistas! (Um cambista que entra chama Gilberto de parte o oferece-lhe bilhetes.) Podem os senhores ficar certos de que não há mais um cambista no Rio de Janeiro!
GILBERTO - Apenas este...
O SUTIL (Zangado.) - Oh! (Corre para o cambista, que desaparece.)
GILBERTO - Quer os olhos da cara por três cadeiras... Viremos noutra ocasião.
O SUTIL - Os senhores acordaram tão tarde!
APOLO - Se eu cheguei hoje!
O SUTIL - Ah! é de fora?
APOLO - Sim, senhor. (Cupido acotovela-o.) Sou da Bahia.
CUPIDO - É uma vítima do Tabuão.
O SUTIL - Pois estimo que o teatro lhes tenha agradado... Eu cá por mim gosto dele... Apenas embirro com o nome.
APOLO - Perdão, mas o nome... Apolo...
O SUTIL - Já ninguém sabe quem foi Apolo... é um deus muito rococó. Podiam ter escolhido coisa melhor. (Apertando-lhes as mãos.) Adeus, tenho muito que fazer... Quando quiserem...
sou o administrador do teatro. Chamo-me Sutil. (Sai.)
Os TRÊS (Arremedando-o.) - Sutil... (Gilberto sai.)
CENA IV
APOLO, CUPIDO, GILBERTO
APOLO - Um deus rococó! Rococó será ele!
CUPIDO - Viste o teu retrato no pano de boca!
APOLO - Vi... a tocar rabeca... Uma pilhéria do Senhor Rafael... Onde ficou a clássica lira de Apolo?
GILBERTO (Descendo.) - Quem dirá que isto aqui já foi a casa do Braga Júnior?
CUPIDO (A Apolo.) - Quando tencionas voltar ao Parnaso?
APOLO - Tencionava voltar imediatamente, mas uma vez que estamos enroupados à moda da terra...
CUPIDO - Providência de que me lembrei para não darmos na vista...
APOLO - ... ficaremos mais alguns dias. Valeu?
CUPIDO - Valeu.
APOLO - Já agora quero ver a Capital Federal.
GILBERTO - Eu é que peço licença para deixá-los. Vou...
APOLO - Não tens que ir a parte alguma. Serás o nosso cicerone.
GILBERTO - Perdão, mas a minha namorada e o meu futuro sogro esperam-me.
APOLO - Pois que esperem! Se teimas, tomo-te essa garrafa!
GILBERTO - Isso não!
CUPIDO - E o espalhafato que causou o teu carro quando apareceu na cidade.?
APOLO - Mas eu disse que era um argentino que vinha a toque de caixa de Buenos Aires, e engoliram a pílula. Aonde vamos agora?
CUPIDO - Sei lá! Vamos por aí... por essas ruas... (Vão saindo; a Arte Dramática Nacional entra e embarga-lhes o passo.)
CENA V
OS MESMOS, a ARTE DRAMÁTICA NACIONAL
APOLO - Quem é esta velha andrajosa?
CUPIDO - Que horror!
GILBERTO - Quem é a senhora?
A ARTE - Eu sou a Arte Dramática Nacional.
APOLO - A Arte? Ninguém o dirá!
GILBERTO - Eu vou recomendá-la ao Doutor Pires de Almeida; é digna de figurar na Artilheria Histórica, da Gazeta. - Vamos, diga, que quer?
A ARTE - Sei que este senhor deseja ver os teatros do Rio de Janeiro, e não dispõe de muito tempo. Quero mostrá-los, sem que para isso sejamos obrigados a arredar pé daqui.
CUPIDO - Boa idéia.
APOLO - Bem lembrado!
GILBERTO - Não se me dá de ver isso!
A ARTE - Apareça em primeiro lugar o mais velho, o São Pedro.
CENA VI
OS MESMOS, SÃO PEDRO, depois o RECREIO, depois o SANTANA, depois a FÊNIX, depois o LUCINDA, depois o VARIEDADES, depois o POLITEAMA, depois uma ATRIZ, ATORES
ESPANHÓIS, depois o LÍRICO, depois JAPONESES
O SÃO PEDRO - Ora deixe-me com a minha vida! Estou desesperado!
TODOS - Por quê?
O SÃO PEDRO - Pois não sabem? fui vendido.
TODOS - Vendido?
O SÃO PEDRO - Sim, vendido, eu, o teatro mais glorioso do Brasil, o teatro de João Caetano!
Vão transformar-me num grande estabelecimento de modas!
TODOS - Deveras?
O SÃO PEDRO - É o que lhe digo.
CUPIDO - Também você ultimamente só servia para bailes mascarados.
GILBERTO - E espetáculos impossíveis... aos sábados e domingos... com uns dramalhões levados de todos os diabos!...
O SÃO PEDRO (Fazendo da mão trombeta acústica.) - Como?
APOLO - E depois, vejam! é surdo! Os teatros surdos não prestam!
CUPIDO - É verdade que este não é um teatro de música...
O SÃO PEDRO - De música? Perdão, eu tive os Três Bemóis!
GILBERTO - Ora os Três Bemóis! Um espetáculo de circo!
A ARTE - Venha outro? - Qual há de ser!
APOLO - Veja se vem algum mais divertido.
CUPIDO - O Recreio!
A ARTE - Pois venha o Recreio!
O RECREIO - (Entra dançando a polca Vamos para Mato Grosso executada em surdina pela orquestra. Dá algumas voltas pelo palco, pára, e diz muito sério.) - A variedade deleita... por isso, não faço outra coisa senão variar.
CUPIDO - Está variando.
O RECREIO - Hoje, O dramalhão; amanhã, a comédia; depois, a revista; depois, a peça literária... Molière e Offenbach!... Sganarello e o Sarilho. (Continua a dança interrompida. Todos dançam.)
A ARTE - Este conhece perfeitamente o público.
O SÃO PEDRO - Conhece, e por isso enriqueceu.
APOLO - Venha outro!
A ARTE - Apareça o Santana!
O SANTANA (Entrando.) - Eu sou, meus senhores, o teatro mais caluniado do Rio de Janeiro.
TODOS - Como assim? Por quê?
O SANTANA - Pois não! Dizem todos que sou um teatro de opereta. Pois bem, não ponho opereta que não caia -, ao passo que ultimamente hospedei uma companhia dramática, e o povinho não me abandonou uma noite...
O RECREIO - Mas agora voltaste aos teus antigos amores.
O SANTANA - Voltei... tenho uma nova edição da Companhia Heller.
APOLO - E que tem feito?
O SANTANA - Têm sido umas em cheio, outras em vão... vou vivendo... Mas com que saudades da Fênix!
A ARTE - A propósito, venha a Fênix!
GILBERTO - Pois ainda existe a Fênix?
A FÊNIX (Entrando.) - Se ainda existo? Ora ouve!
Copla Eu estava pro canto atirada, Já tinham rezado por mim, E há muito era coisa provada Que próximo estava o meu fim.
O público vendo remisso, Confesso: dispunha-me até A transformar-me num cortiço, Que muito bom negócio é.
Uma bela opereta A situação salvou, E me encheu a gaveta, E o público voltou!
A ARTE - Bom! Agora venha o Lucinda.
O LUCINDA (Entrando e abraçando a Arte.) - És tu que me chamas, ó minha adorada amiga?
Cá estou... Mas que é isso? que andrajos são esses?... (A Arte faz uma careta para não chorar.
O Lucinda cobre o rosto com as mãos. A orquestra executa em surdina a melodia da Dalila.) -
Não venho diretamente da Rua do Espírito Santo. Negócios de interesse me chamaram à Rua do Ouvidor, e vi a Imprensa, que me fez carga por eu ter dançado o cancã. Que queres? Um dia, lembras-te? tu me disseste: - Meu filho, tenho dois favores a pedir-te. O primeiro é que me dês um ar de riso. Eu tentei sorrir-me. Depois, continuaste tu, é que me representes hoje o Carnioli. - Não, não, disse eu com voz pungente, querendo simular uma alegria, no dia do teu casamento... Agora falta-me a Dalila... Vou representar outras peças igualmente literárias... as Duas Diplomatas... Meter-se a Redentor... o Bandido de Casaca... Representei!... Enquanto representei, não tive senão vazantes... Enchia-se o Santana, enchia-se o Recreio, enchia-se o Variedades; só eu não me enchia porque não dançava o cancã! (Todos os personagens enxugam silenciosamente as lágrimas. A melodia da Dalila vai a pouco se transformando numa toada alegre e saltitante.) Então não podendo encher-me de público, enchi-me de coragem, mandei para o diabo todos os meus escrúpulos, e comecei a dançar o cancã... Principiei a dançar o cancã com o Crime do Padre Amaro... A princípio assim... (A música vai crescendo. O
Lucinda dança. Todos os personagens o imitam.) ... assim... meio envergonhado... meio corrido... e depois assim... assim... mais... mais! ... (Com explosão.) E, finalmente hoje, danço o cancã desenfreado, louco, infernal! (A orquestra executa o cancã a toda a força. Todos dançam entusiasticamente.)
APOLO - Silêncio! Isto vai desandando em pândega! (A música vai diminuindo, e a dança vai arrefecendo também, até acabar de todo. O Lucinda e a Arte lançam-se nos braços um do outro, chorando.) Venha outro teatro! (Indo bater no ombro da Arte.) Psiu! Olá! Chama outro!
A ARTE (Chorosa.) - Venha o Variedades.
O VARIEDADES (Entra e canta.)
Valsa Se eu vivo feliz e contente, É graças à bela Mimi;
Risonho me afaga o presente, E o futuro me sorri!
Do fundo d'alma detesto, Desejo peça faceta, Quero a opereta E o vaudeville exp'rimentar.
Eu sei que ao público agrada Mais da Leonor a pernada Do que a virtude premiada Do final de um drama bom, Sei que uma valsa bonita Todo este público agita Mais do que uma peça escrita Por Dumas ou Pailleron!
Se eu vivo feliz e contente, etc.
O RECREIO - Aí está um Colega que tem sido feliz.
O VARIEDADES - Pudera! Comecei por onde os outros acabam.
TODOS - Como assim?
O VARIEDADES - Comecei pela Meia-noite... mas a minha mascote foi Mimi Bilontra.
O SANTANA - Uma peça estupefaciente!
O VARIEDADES - Estou lançado!
A ARTE - Agora apareça o Politeama.
O POLITEAMA (Entrando.) - Lá lá lá lá lá lá lá! (Entrada de clown.)
CUPIDO - Este parece contente!
O POLITEAMA - Estou na realidade contente, graças a uma companhia eqüestre.
APOLO - Tinha bons artistas?
O POLITEAMA - Nem por isso; o que ela tinha eram magníficos bichos? Um elefante, duas focas, alguns cavalos e outros bichos fizeram a minha fortuna.
A FÊNIX - Mas a menina dos teus olhos foi o Blondin...
O POLITEAMA - Oh! Blondin, o famoso cavalo equilibrista!...
APOLO - Um cavalo equilibrista...
O RECREIO (Com desprezo.) - Equilibrista é um modo de dizer.
O POLITEAMA - Ora essa! Pois se ele atravessava uma corda... Ora atravessava! atravessava!
Um metro... dois metros, quando muito.
O SÃO PEDRO - E a corda era multo larga...
O POLITEAMA - Sim, convenho, era bastante larga.
O SANTANA - Nem era uma corda, era uma prancha...
O POLITEAMA - Sim, uma prancha, reconheço, mas multo estreita.
CUPIDO - Em que ficamos? Era estreita ou larga?
O POLITEAMA - Como corda era larga, mas como prancha era estreita.
O VARIEDADES - E o cavalo passava muito devagar...
O SÃO PEDRO - Doucement, Blondin... Doucement...
GILBERTO - Assim como se pisasse ovos...
APOLO - E é com isso que se atrai o povo? Ah, seu Politeama, se você apanhasse um cavalo que tenho lá no Parnaso...
TODOS - No Parnaso?
CUPIDO (Vivamente, disfarçado.) - Parnaso é uma fazenda que ele tem lá na Bahia.
APOLO - Isso é que era obra! Um cavalo que voa!...
TODOS - Que voa?!...
CUPIDO (Disfarçando.) - Vamos... venha outro teatro!
O POLITEAMA - Perdão, é preciso que saibam: não me presto exclusivamente aos cavalinhos...
tenho uma companhia de zarzuelas. Ei-la. (Entram alguns artistas mal vestidos.)
APOLO - Por Júpiter! que pobreza franciscana!
O POLITEAMA - A pobreza não é vicio.
UMA ATRIZ - Nosotros somos pobrecitos, pero una compensación: cantamos muy bien.
CUPIDO - Pois dêem-nos uma amostra dos seus talentos!
A ATRIZ - Con mucho gusto. (Canta um tango espanhol com acompanhamento de coros.)
APOLO - Outro teatro!
A ARTE - Apareça agora o Pedro II.
O LÍRICO (Entrando.) - Perdão; o Pedro II, não; agora chamo-me Teatro Lírico.
O LUCINDA - Aderiu.
CUPIDO - Lírico por quê?
O LÍRICO - Naturalmente porque deixei de ter companhias líricas.
APOLO - Deixou por quê?
O LÍRICO - Porque o público não quer.
A FÊNIX - Pobre público! tem costas largas!...
A ARTE - Tem razão: o público não quer senão lunduns!
CUPIDO - Pelo amor de Deus, não fale mal dos lunduns.
A ARTE - Pois defendes essa vergonha musical?
CUPIDO - Defendo, sim, senhora, e por solfa. Ouça.
Lundum I
Embora haja quem diga Do gênero tão mal, Não sei de outra cantiga Que tenha tanto sal.
Sujeito já sem bola, Que esteja pra morrer, Ouvindo uma viola, Começa a reviver.
Iaiá!
laiá!
Como um lundum não há!
Iaiá!
laiá!
Vida e calor nos dá!
II
Ouvindo cançonetas E pândegos couplets, Não sinto malaguetas Arderem-me nos pés;
Mas se um lundum brejeiro Acaso ouço cantar, Jesus! que formigueiro Obriga-me a saltar!
Iaiá! etc.
CORO - Iaiá! etc.
A ARTE - Dize a estes senhores o que tiveste este ano.
O LÍRICO - Em primeiro lugar, uma companhia de cavalinhos.
APOLO - Oh! oh! no Teatro Lírico!
O LÍRICO - Depois um grande artista italiano, que passou quase despercebido: o Novelli.
TODOS - Viva o Novelli!
O LÍRICO - Depois, a célebre Judic!
TODOS - Viva a Judic!
O LÍRICO - E o grande Coquelin!
TODOS - Viva o Coquelin!
O LUCINDA - Infelizmente o Coquelin que veio ao Rio de Janeiro não é o mesmo da Comédie Française.
TODOS - Não é o mesmo?
O LUCINDA - Sim, é um Coquelin de exportação, um Coquelin preparado especialmente para o estrangeiro.
CUPIDO - Em todo o caso, é o Coquelin da Casa de Molière. Chapeau bas!
O LÍRICO - Por último tive a companhia de ópera-cômica inglesa, que só deu dois espetáculos.
APOLO - Só dois! Por quê?
O LÍRICO - Não sei. Eram ingleses: ficaram talvez com medo do batalhão patriótico. Viram o Micado? Não sabem o que perderam! Vou dar-lhes uma amostra. (Entra um coro de japoneses.
Dançam todos os personagens ao som da música do Micado.)
Coro Eis alguns tipos do Micado, Eis alguns tipos do Japão;
É cada qual mais engraçado, É cada qual mais folgazão!
UM TEATRO
- Se o tal Micado se demora, O que há de ser, meu Deus, de nós!
OUTRO
- Mas felizmente vai se embora, E em campo aqui ficamos nós.
CUPIDO
- Música assim tão saltitante É rara em terras de Albion!
Isto seduz qualquer dançante!
Isto é xpto London?
CORO - Eis alguns tipos do Micado, etc. (Saida geral.)
CENA VII
APOLO, CUPIDO, GILBERTO
APOLO - Agora vamos ver a cidade.
GILBERTO - Se me deixassem dar um pulo à casa do meu futuro sogro...
CUPIDO - Já se te disse que não! Tens muito. tempo! Anda daí! (Saem. Mutação.)
Quadro 6 Na Praça Quinze de Novembro, ao fundo o barracão do Panorama do Rio de Janeiro, visto de muitos lados.
CENA I
APOLO, CUPIDO, GILBERTO, depois o PINTOR [e o TESOUREIRO]
GILBERTO (À parte.) - Que grandes cacetes! Estou tão perto da minha Laura, e não posso vêla!
APOLO (Olhando para o barracão.) - Que espantalho é este?
CUPIDO - Dir-se-ia uma enorme forma de pudim.
GILBERTO - É o barracão do Panorama do Rio de Janeiro, visto do Morro de Santo Antônio, pintado na Europa por dois artistas ilustres.
O PINTOR (Aprovando.) - Sim, meus senhores, é o meu Panorama, o meu infeliz Panorama!
CUPIDO - Infeliz por quê?
O PINTOR - Pois não sabem que o pobrezinho estava na chuva, e por causa disso ficou estragado?
APOLO - É; não há nada para estragar como a chuva.
O PINTOR - Felizmente o desastre está remediado. Ah! meus senhores, nós vivemos numa época cheia de dissabores para os velhos artistas.
CUPIDO - Deveras?
O PINTOR - Os rapazes reuniram-se no Derby Club, pediram a extinção da Academia de BelasArtes (Tira respeitosamente o chapéu.), e fundaram um ateliê livre noutro barracão, no Largo de São Francisco.
GILBERTO - É uma coisa esquisita. Nesta cidade é sempre em nome da arte que se levantam os barracões.
O PINTOR - Havemos de ver que obras-primas sairão dali!
APOLO - Quando se inaugura a Exposição do Panorama?
O PINTOR - Só em janeiro.
CUPIDO - Nós estamos de passagem... Se o senhor consentisse que déssemos uma vista de olhos...
O PINTOR - Pois não! com todo o prazer! venham comigo.
OS TRÊS - Vamos. (Vão saindo, e esbarram-se no Tesoureiro da Sociedade dos Homens de Letras.)
O TESOUREIRO - Não posso! não posso! Decididamente resigno o meu cargo!
APOLO - Que cargo? (Ao Pintor.) Vá indo; já lá vamos.
O PINTOR - Quando quiserem, batam à porta... Lá os espero. (Sai.)
CENA II
APOLO, CUPIDO, GILBERTO, o TESOUREIRO DA SOCIEDADE DOS HOMENS DE LETRAS
O TESOUREIRO - Façam os senhores uma pequena idéia: eu sou o tesoureiro da Sociedade dos Homens de Letras. Os senhores são sócios?
CUPIDO - Não, senhor.
O TESOUREIRO - Admira. É difícil encontrar no Rio de Janeiro alguém que não seja sócio.
GILBERTO (à parte.) - Não sou, mas hei de ser. (Aponta para a garrafa.)
O TESOUREIRO - Nós temos uma quantidade infinita de sócios, mas até hoje (e a Sociedade já está fundada há dois meses) apenas oito pagaram a jóia. Tenho suado o topete a andar atrás dos remissos! Não há meio! Os literatos não se explicam!
CUPIDO - Mande-lhes os meirinhos.
APOLO - E como são escritores e poetas, muito prazer terão em ser citados.
O TESOUREIRO - Qual! Não têm por onde se lhes pegue. - Adeus, meus senhores, vou até à Praia Grande comprar um vidro de óleo de São Jacó para fazer umas fricções... políticas. Estou aqui, estou eleito. Adeus. (Sai.)
APOLO - Que linguagem sibilina! Então ele, para sei eleito, precisa de fricções de óleo de São Jacó?
CUPIDO - Vamos ao Panorama!
Os TRÊS - Vamos! (Vão saindo) mas detém-se vendo entrar a sogra, o noivo e a noiva.)
CENA III
APOLO, CUPIDO, GILBERTO, uma SOGRA, um NOIVO, uma NOIVA
A SOGRA - Hão de ir à igreja! hão de ir à igreja!
O Noivo - Não vou! não vou! Estamos casados e bem casados.
A NOIVA - Naturalmente não há necessidade alguma de ir à igreja!
A SOGRA - Pois olhem, seus pelintras, que se vocês não vão à igreja, não os deixo um momento sozinhos! Não serei uma sogra: serei um obstáculo vivo! Nada de consummatum est!
CUPIDO - (Interpondo-se.) - Então que é isso? que é Isso?
A SOGRA - Não há nada mais incivil que o tal casamento civil! E demo-nos por felizes por não terem decretado o casamento militar, a ponta de baioneta!
APOLO - Que asneira, senhora! Baioneta! A arma seria imprópria.
CUPIDO - Deixem-se disso, não façam questão da forma.
O NOIVO - Apoiado! No casamento só se deve fazer questão do fundo!
A SOGRA - Ah! coisa ruim!
CUPIDO - O casamento civil é tão bom como o religioso, desde que seja purificado pelo amor.
Sem amor é que não há união decente. O casamento sem amor é uma prostituição, quer seja feito por um padre, quer por um juiz.
APOLO (A parte.) - O tratante está a puxar a brasa para a sua sardinha!
O NOIVO - Eu amo minha mulher!
A NOIVA - Eu adoro meu marido!
CUPIDO - Pois então vão para casa, sejam felizes e tenham muitos filhos!
A SOGRA - Não! não consinto que minha filha coabite com um homem que não é seu marido à face da Igreja.
O NOIVO - Ai, que a senhora já me vai amolando! Sou marido de Quinota à face do Doutor Salvador, e é quanto basta!
APOLO - Ele está dentro da legalidade.
A SOGRA - Pode ser, mas está ofendendo a Deus! Se o pai desta menina fosse vivo, não consentia nisto.
CUPIDO - Talvez consentisse... quem sabe?
A SOGRA - Não consentia, não, senhor; o pai dela era cônego.
APOLO - Ah! nesse caso não consentia por espírito de classe.
A SOGRA (Agarrando a filha pela mão.) - Você com minha filha não vai!
O NOIVO - Eu fico doente!
A NOIVA - Me larga, mamãe!
O NOIVO - Esta mulher faz-me ir para a cama!
GILBERTO - É justamente o que ela não quer!
O NOIVO (Segurando a noiva Vela outra mão.) - Largue minha mulher, Dona Procópia!
A SOGRA - Largue minha filha, seu Cazuza!
Os TRÊS - Então? Então?
O NOIVO - Ah! não larga? (Dá-lhe um murro.) Toma!
A SOGRA - Ah! (Desmaia nos braços de Apolo.).
CUPIDO - Fujam, e vão tratar da vida, que a morte é certa. (Os noivos fogem..)
APOLO - Ora não me faltava mais nada! Volte a si, Senhora Dona Procópio! (A Gilberto.) Dá-lhe a beber um pouco dessa água!
GILBERTO - Boas! (Aperta a garrafa com ciúmes.)
A SOGRA (Voltando a Si.) - Não é preciso. Por donde foram eles?
CUPIDO (Indicando a direção contrária.) - Por aqui.
A SOGRA - Hei de empatar-lhe as vasas! (Vai saindo.)
APOLO - Qual! Agora só o especifico do Doutor Costa Sales!
A SOGRA (Voltando.) Que época desgraçada! Até já se vê um genro dar pancada na sogra!
(Sai.)
GILBERTO - O Cazuza foi bruto.
CUPIDO - Isso foi. Não se bate numa mulher nem com uma flor.
APOLO - Numa mulher, sim, mas numa sogra bate-se até com um pau! - Vamos ao Panorama!
GILBERTO - Que é isto? (Atravessa a cena um Adivinho com os olhos vendados, levado pela mão de um Sujeito.)
CENA IV
APOLO, CUPIDO, GILBERTO, um ADIVINHO, um SUJEITO, depois: IRMÃS DE CARIDADE,.
depois um MEMBRO DO PARTIDO CATÓLICO
OS TRÊS - Ora esta!
O SUJEITO - Psiu... psiu... Não o perturbem!
CUPIDO - Que quer isto dizer?
O SUJEITO - Ele vai adivinhar onde pus o meu charuto...
GILBERTO (Ao ouvido do Sujeito.) - E onde o pôs você?
O SUJEITO - Atirei-o ao mar... (Saem o Adivinho e o Sujeito.)
CUPIDO - Vão cair n'água!
GILBERTO - Se ele adivinhasse o número da sorte grande da Bahia, e mo dissesse...
APOLO - Que fazias tu?
GILBERTO - Comprava o bilhete. Por quê?
APOLO - Espera, deixa-me acabar: - Serias muito tolo se não comprasses também as aproximações!
GILBERTO - Vamos ao Panorama.
Os TRÊS - [Vamos!]
APOLO - Ainda não é desta vez. Olhem!
(Entram algumas Irmãs de Caridade com malas e outros preparativos de viagem. Uma delas traz um papagaio.)
Coro Amigas, vamos, que outro ofício Podemos ter, E não devemos lá no Hospício Permanecer!
Nós não levamos dor profunda, Mágoa iracunda No coração!
Achamos coisa divertida Esta partida De supetão!
Adeus, ó Rio de Janeiro, Hospitaleiro País, adeus!
Adeus! Adeus!
GILBERTO - Então vão se embora?
UMA IRMÃ - Sim, senhor, nós vamos embora, porque não consentimos que ninguém mande mais do que nós! - Allons!
As OUTRAS - Allons! (Vão saindo. Entra um membro do Partido Católico.)
O CATÓLICO (Vendo as Irmãs.) - Oh! fui procurá-las para dizer-lhes adeus! Estive uma hora ali no cais. (Abraçando uma por uma.) Adeus, Irmã Maria! Adeus, Irmã Inês! Adeus, Irmã Suzana e do Coração de Jesus! Adeus, Irmã Cunegundes do Amor! Adeus, Irmã Bertolesa das Cinco Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo! Adeus! Adeus! Adeus!
(As Irmãs saem sucessivamente depois de abraçadas.) Deus as conduza!...
CUPIDO - Maganão... Abraçando as mulheres...
O CATÓLICO - Religiosamente, irmão. Já viram o telegrama?
Os TRÊS - Que telegrama?
O CATÓLICO - O telegrama do Papa. (Tirando-o da algibeira.) Ele cá está! Digam agora que é mentira.
APOLO - Antes de mais nada, diga-nos: quem é você?
O CATÓLICO - Um membro proeminente do Partido Católico.
CUPIDO - Sim, senhor, o Partido Católico é um bom partido. Como vai essa católica?
O CATÓLICO - Com a graça de Deus, irmão. Mas sabem? Nós formamos o nosso Partido, e o Papa abraçou-o pelo telégrafo.
APOLO - E que temos nós com isso?
O CATÓLICO - Atreveram-se a dizer que não havia tal... que o Papa não abençoara coisa alguma! Cá está o telegrama de Roma, afirmando o contrário... Vejam! é letra de Sua Santidade. Vou expô-lo na Rua do Ouvidor.
CUPIDO - Na Rua do Ouvidor? Oh! Devia ser em algum estabelecimento religioso!
O CATÓLICO - Pois bem, vou expô-lo na Notre Dame. Adeus, irmão. A paz do Senhor seja convosco.
Os TRÊS - Amém. (O Católico sai.)
CUPIDO - O tal partido tem tanto de católico como eu, que já existia antes de Cristo.
APOLO - Por isso, não: podias ter aderido.
GILBERTO - Sim, não creio que essa gente esteja... quero dizer - seja muito católica...
CENA V
APOLO, CUPIDO, GILBERTO, depois Operários CUPIDO - Bem; creio que desta vez podemos ir ao Panorama.
APOLO - Qual! Decididamente não podemos arredar pé daqui! Aí vem um mundo de gente!
(Entram muitos operários com suas mulheres e seus filhos. Vêm muito alegres. Entrada animada.)
O OPERÁRIOS - Viva o Ministro da Fazenda! Viva!
CUPIDO - Bravo! que alegria!
PRIMEIRO OPERÁRIO - Hoje é dia de festa!... Vamos tomar parte na grande manifestação das classes operárias, feitas ao Senhor Ministro da Fazenda.
APOLO - Manifestação bem merecida. O Ministro é um brasileiro digno de todos os louvores...
GILBERTO - Levam discurso engatilhado?
SEGUNDO OPERÁRIO - Não, senhor; o discurso é chapa... Levamos uma cantiga...
OS TRÊS - Uma cantiga?
TERCEIRO OPERÁRIO - Sim, senhor, e podemos cantá-la aqui, para dar-lhes uma mostrinha da fazenda.
OS TRÊS - Valeu! Ouçamos.
Coro Nós vimos em coro, Contentes saudar Quem sabe o Tesouro Com jeito levar!
Ministro excelente, De tanto valor, Merece da gente Sincero louvor! (Os operários saem.)
CENA VI
APOLO, CUPIDO, GILBERTO
APOLO - Estou entusiasmado! Que belo, que opulento, que futuroso país, e como são felizes esses operários, que às vezes se queixam sem outro motivo senão essa nevrose da queixa, que acomete a todas as classes! No Brasil o trabalho e a fortuna estendem os braços a todos os indivíduos!
CUPIDO - Como estás verboso!
APOLO - Palavra que, se eu não fosse Febo, filho de Júpiter e de Latona, irmão de Diana, pai das Musas, deus da Poesia, vencedor da serpente Píton, e se não me desse tão bem no Parnaso, no Piário e no Pindo, e nas margens do Hipocrene e do Permesso, ficava nesta terra, fazia-me brasileiro, mudava de nome, chamava-me, por exemplo, Joaquim José da Silva, e mandava à tábua a minha divindade, o Pégaso, as Musas, os poetas e os deuses!
CUPIDO - Apolo, essa linguagem...
APOLO - É a linguagem da franqueza e da sinceridade. Gosto do Brasil.. Adoro o Rio de Janeiro, apesar dos bondes, dos quiosques, dos cortiços e dos cem sonetos do Diário do Commercio.
CUPIDO - Lembra-te que tens uma grande responsabilidade...
APOLO - Ora não me aborreças! Estou farto de ser deus!
GILBERTO - Bom, não briguem... vamos ver esse encantado Panorama!
APOLO - Qual Panorama nem meio Panorama! Querem ver o que ali está dentro? Subam ao tal Morro de Santo Antônio! Escusam de ver pintado o que têm diante dos olhos, palpável, movimentado, eterno, perfumoso, belo! O que eu queria, o que esses dois ilustres artistas deviam ter pintado, era o Rio de Janeiro como há de ser no futuro, quando desaparecerem os estafermos dos morros, e as ruas se alargarem, e novas praças se abrirem, e os casebres desaparecerem para dar lugar a verdadeiros primores de arquitetura! E porque eu, Apolo, o deus das Belas-Artes, não lhes hei de mostrar esse panorama do futuro? Tudo pode a minha fantasia! Tudo obedece à minha onipotência!
CUPIDO - Vais dar-nos um panorama?
APOLO - Vou.
GILBERTO - Mesmo porque é um bom final de ato!
APOLO - Vejam! O Rio de Janeiro daqui a vinte e nove anos. (Aponta para o fundo. Mutação.)
Quadro 7 O Rio de Janeiro do futuro [(Cai o pano.)]
ATO TERCEIRO
Quadro 8 No Largo da Carioca CENA I
O SEIXAS, PRIMEIRO ARGENTINO, SEGUNDO ARGENTINO, uma SENHORA ARGENTINA, ARGENTINOS, POVO
(Ao levantar o pano, a cena está cheia de povo. Os Argentinos entram como quem vem de viagem. Entre eles, algumas senhoras, uma das quais traz alguns quadros debaixo do braço.)
Bolero dos Argentinos Coro Viva la bella Guanabara, Cándida ninfa del Brasil, Patria feliz, hermosa y rara, Fúlgida perla tan gentil.
Amo el calor de tus montanas, Amo tu cielo abrasador!
Tierra de luz, de luz me bañas Y me haces palpitar de amor.
Que cosa rara Es Guanabara Trá lá lá lá!
A SENHORA ARGENTINA
- Viva la bella Guanabara! etc.
Ai que montanas Ai que calor!
De luz me banas, Tierra de amor!
- Trá lá lá lá!
Viva la bella Guanabara) etc.
SEIXAS - Ora vivam, monsiús. Então que lhe parece a cidade?
PRIMEIRO ARGENTINO - Muy mona, muy mona.
SEIXAS - Mona!
UM SUJEITO - Mona em espanhol quer dizer bonita.
SEIXAS - Pois mona aqui é mulher de macaco ou bebedeira.
SEGUNDO ARGENTINO - Buenos Aires es también muy monita, pero después de la revolución no se puede vivir allá. No hay plata.
PRIMEIRO ARGENTINO - Principalmente en La Plata.
A SENHORA - Yo trago unos cuadros a ver se los puedo vender.
SEIXAS - Talvez venda, talvez...
A SENHORA - Me dicen que en Rio de Janeiro el gusto por las bellas- artes se va desarrolíando... que son mui concurridas las exposiciones de pintura.
SEIXAS - Não, madama; gosto não há muito... mas, enfim, como dizem que agora o que não falta é dinheiro...
PRIMEIRO ARGENTINO - En Buenos Aires también no faltaba el dinero... pero un dia se cayó la casa!
A SENHORA - Y si no fuera haber faltado la pólvora, como faltá la plata, no sé que seria de nosotros. Adiós, caballero!
Os ARGENTINOS - Vamos?
SEIXAS - Adeus, Senhores Argentinos... Argentinos... sempre às ordens. Eu chamo-me Seixas... o célebre cobrador.
Os ARGENTINOS - Gracias... Adiós... (Saem repetindo um motivo do bolero.)
CENA II
POVO, o SEIXAS, um MONARQUISTA, depois um JOGADOR
SEIXAS (Indo ao encontro de um Monarquista, que atravessa a cena com um embrulho debaixo do braço.) - Ó seu Faria, que leva você aí?
MONARQUISTA - Uma relíquia. Vim do leilão do paço de São Cristóvão.
SEIXAS - Ah!
O MONARQUISTA - Queria comprar um objeto de uso particular do meu amado ex-monarca...
mas um objeto que não fosse muito caro. O que pude arranjar, e assim mesmo por duzentos mil réis, foi isto... Tem se vendido tudo por um dinheirão.
SEIXAS - E isto que é? (Apalpando.) Ah! Já sei, já sei! É um objeto de uso muito íntimo.
O MONARQUISTA - Imaginem o valor histórico que isto há de ter mais tarde! (Beijando o embrulho.) Meu pobre ex-monarca! Adeus, seu Seixas!
SEIXAS - Cuidado com a terrina. (O Monarquista sai, entra o Jogador.) Oh! diabo! que cara traz você!
O JOGADOR - Deixe-me! Fui apanhado pela Polícia numa roleta!
SEIXAS - Estão agora a perseguir outra vez o jogo?
O JOGADOR - O jogo, não: as casas de jogo. As loterias continuam, na Rua da Alfândega jogase desesperadamente, e já este ano se inauguraram mais dois prados de corrida! E não imagina você com que caiporismo eu estava hoje. Eu só jogo no 23, no 26 e no 29. Pois nem uma vez saiu nenhum desses números! Desapareceram!
Lundu Ai! todos três foram-se embora de uma vez!
O Vinte e Seis, o Vinte e Nove e o Vinte e Três!
Dizei-me, olá, se há por aí quem desencove O Vinte e Três, o Vinte e Seis e o Vinte e Nove.
SEIXAS
- O vinte e Seis foi suprimido, O Vinte e Três foi revogado, E o Vinte e Nove foi corrido Porque era muito desbocado.
JUNTOS - Ai! todos três foram-se embora de uma vez! etc.
O JOGADOR - Adeus.
SEIXAS - Vamos juntos. Aonde vai você?
O JOGADOR - A Intendência Municipal pagar mil e quinhentos réis por um sermão que não encomendei.
SEIXAS - Como assim?
O JOGADOR - Uma chapa de numeração que me pregaram à porta.
SEIXAS - Amigo, pague e não bufe. A Intendência, quando cobra, é pior que eu. (Saem.)
CENA III
CUPIDO, APOLO, GILBERTO, depois o HOMEM DOS ÓCULOS
APOLO - Ora que idéia! pôr a estátua de Colombo no cume do Pão de Açúcar! Esta não lembrava ao diabo!
CUPIDO - O autor da idéia devia ir para o Bico do Papagaio.
GILBERTO (Consigo.) - E eu nada de ir ter com a minha Laura! Que deuses impertinentes!
APOLO - Oh! a manifestação é uma velha mania dos brasileiros.
GILBERTO - Parece que, depois de proclamado o regime da liberdade e da independência, as manifestações deveriam cessar ou, pelo menos, diminuir de intensidade. Deu-se exatamente o contrário; nunca o Farani e o Luís de Resende cravejaram de brilhantes tantas condecorações de ouro, nunca no Globo foram encomendados tantos banquetes, nem ao Petit tantos retratos a óleo! (Nisto, os três personagens, ouvindo ao fundo prolongados psius, voltam-se muito intrigados. É o Homem dos Óculos que vende uma seringuinha que, apertada entre os dedos, dá esse som.)
APOLO, CUPIDO e GILBERTO (Dando pelo engano.) - Ah!
O HOMEM DOS ÓCULOS - Compre! Compra um pra eu!
(Aproximando-se dos três.) Meus senhores, vejam isto!
Coplas Uma bela novidade Tenho aqui para vender!
É provável que isto agrade, Porque tem graça a valer!
Meus ilustríssimos senhores, Façam favor de examinar...
Reparem bem pra estes primores E queiram todos três comprar, Tão curiosa descoberta Descanso dar à língua vem...
Isto com os dedos aperta Quem quiser chamar alguém!
Vejam lá!
Psiu!
Meu bem, vem cá!
Meu bem, vem cá!
Teu amor cá está Quando eu te vejo, faço assim:
Psiu!
Não fujas de mim! Meu bem, vem cá! etc.
OS TRÊS
II
Este pândego assobio Se é verdade o que se diz, Invenção foi de um vadio, Que os há muitos em Paris, Como no Rio de Janeiro Também os há e em profusão, Eu vou ganhar muito dinheiro, Eu vou ganhar um dinheirão!
Tão curiosa descoberta, etc.
APOLO - Bem... vá vender mais longe a sua gaita.
(O Homem dos Óculos afasta-se apregoando sempre, e desaparece.)
CUPIDO - Que misteriosas mulheres aí vêm!
CENA IV
APOLO, CUPIDO, GILBERTO, PRIMEIRA MULHER, SEGUNDA MULHER, MULHERES
(Entra um grupo de mulheres embuçadas de modo que ninguém as possa reconhecer.)
CORO DE MULHERES
- Que lei tirânica!
Que coisa exótica, Vândala, bárbara E despótica!
Não há mais para onde ir!
Um lugar não achamos Onde possamos Nos distrair!
UMA DAS MULHERES - E agora, minhas amigas, que havemos nós de fazer?
CORO
- Ai! meu Deus!
Não pode haver maior maldade!
Oh! que calamidade!
Oh! que homens tão judeus!
A MULHER - É tratar de arranjar outra coisa...
CORO - Que lei tirânica! etc.
GILBERTO - Quem são Vossas Excelências?
PRIMEIRA MULHER - Somos senhoras da melhor sociedade, casadas, mães de família... não queremos que nos reconheçam.
APOLO - E por que se lamentam desse modo?
CUPIDO - Naturalmente por causa da carestia da carne.
SEGUNDA MULHER - Não senhor; lamentamo-nos porque havia aí umas casas onde costumávamos a passar algumas horas divertidas, e a Polícia acabou com elas. Perdemos o único refúgio que tínhamos contra a sensaboria do lar doméstico.
GILBERTO - Mas que faziam as senhoras nessas casas?
CUPIDO - Ora que pergunta!
PRIMEIRA MULHER - Nada de mais...
APOLO - Jogavam a bisca...
SEGUNDA MULHER - Cantávamos duetos...
PRIMEIRA MULHER - Brincávamos.
CUPIDO - E privam-nas desses eldorados! Que gente má!
SEGUNDA MULHER - E acabaram também com as cartomantes! Só nos falta agora que acabem com as modistas!
(Saem repetindo um motivo do coro.)
GILBERTO - Pobres senhoras! Também já não existe o Cassino. Tiram-lhes tudo!
CENA V
APOLO, CUPIDO, GILBERTO, um CARROCEIRO, depois a IMPRENSA FLUMINENSE
(O Carroceiro entra e fala para dentro. Tem a cabeça amarrada com um pano manchado de sangue.)
O CARROCEIRO - Nã senhor, nã trabalho (Apontando para a cabeça.) à vista deste argumento.
(Descendo.) Arre! desta vez é que se vai ver o que é uma greve!
GILBERTO - Quê! há greve?
O CARROCEIRO - Sim, senhor, uma greve de cocheiros e carroceiros... e como eu sou carroceiro para servir a Vossa Senhoria, já deixei a carroça e mal o burro.
APOLO - Mas qual é o motivo desta greve?
O CARROCEIRO - O motivo não mo disseram, e como eu o perguntasse, arrumaram-me com uma pedra que me abriu esta brecha no casco... Motivo creio que nã há... só sei que há greve e que não devo trabalhar.
CUPIDO - Que diabo! Se não há razão para a greve, os animais serão os únicos a lucrar com ela.
O CARROCEIRO - Eu cá não sei disso... Os meus colegas fizeram parede, e nanja eu que a fure! (Sai)
APOLO - Ora aí está um sujeito que não fura paredes.
GILBERTO - Uma greve de veículos! Que bom! Enquanto isso durar, o Rio de Janeiro será uma cidade ideal! Aí vem a Imprensa Fluminense!
A IMPRENSA (Entrando.) - Estou desesperada!
APOLO - Por quê, minha senhora?
A IMPRENSA - Por causa do ataque à Tribuna... A solidariedade!...
CUPIDO - Pois sim, mas não se incomode; a senhora este ano tem tido uma felicidade brutal!
A IMPRENSA - Sim, graças ao anúncio... mas a solidariedade! ...
CUPIDO - E há outros motivos para estar contente... A senhora tem grande cotação na praça...
foi vendido o Jornal... foi vendido o País... e o Novidades... e o Correio do Povo... e vai ser vendida a Gazeta...
APOLO - Tudo se tem vendido este ano... o Palácio de Nova Friburgo, o Teatro São Pedro, o Variedades, a fábrica de flores da Rua do Passeio...
A IMPRENSA - Sim, estou satisfeita... mas vou também fazer greve, porque a solidariedade!...
Oh! a solidariedade!...
Os TRÊS - Sim, a solidariedade!... (Passa pelo fundo um grupo de homens disputando-se um enorme par de sapatos.)
OS TRÊS - Que é aquilo?
A IMPRENSA - Aqueles sujeitos brigam por causa de uns sapatos de defunto. Foi o que deixou o Ferreira boticário. Vou apreciá-los. (Sai.)
CENA VI
CUPIDO, APOLO, GILBERTO, os NOVOS
Coro dos Novos I
Eis os tais chamados Novos Estupenda legião, Que é o assombro destes povos, Que é o orgulho da Nação!
Acabou-se a noite escura Que ensombrava este País!
Vamos ter literatura Muito mais que em Paris.
Abaixo a velhada Que está rococó Viva a meninada E viva ela só!
II
Atiremos para um canto Nossos trêmulos avos...
Nenhum deles teve tanto Talentinho como nós!
Vai o mundo ver em guerra, Os filhotes contra os pais!
Quem dá regras nesta terra Somos nós, e ninguém mais!
Abaixo a velhada, etc.
APOLO - Então os meninos são os Novos?
PRIMEIRO NOVO - Sim, senhor. Na literatura brasileira só nós valemos alguma coisa. Tudo o mais é imprestável!
SEGUNDO NOVO - Os velhos são inúteis!
APOLO - Oh! que bonitinho! (Pega o segundo Novo ao colo.)
TERCEIRO NOVO - Dos vinte e cinco anos para cima os literatos brasileiros não prestam para mais nada!
PRIMEIRO NOVO - Da geração passada não há um literato que se salve.
CUPIDO - E Gonçalves Dias?
PRIMEIRO Novo - É um fóssil!
GILBERTO - Otaviano?
TERCEIRO NOVO - Um tolo.
APOLO - Alencar!
SEGUNDO Novo (Sempre ao colo de Apolo.) Uma besta!
PRIMEIRO Novo - Só nós, os Novos, fazemos alguma coisa com jeito... Vamos deitando abaixo tudo quanto é velho!
APOLO - Bonito! (Deita vivamente o menino no chão.)
TODOS - Que foi?
APOLO - Uma arte deste Novo! Bem diz o ditado: Quem se mete com crianças... Ora esta!
PRIMEIRO NOVO - Aí vem o batalhão patriótico!
CENA VII
OS MESMOS, o COMENDADOR, PRIMEIRO, SEGUNDO, TERCEIRO, QUARTO, QUINTO
SOLDADOS, SOLDADOS
(O batalhão entra marchando com o Comendador na frente, a servir de baliza.)
CORO DOS SOLDADOS
- Rataplã! Rataplã! Rataplã!
Plá!
O batalhão patriótico Ei-lo, cá está! cá está!
Que lá nas terras de África A manta pintará!
A valorosa espada Que ao nosso lado cai, Batendo na calçada Sonoramente vai Assim:
Tlin! Tlin!
O COMENDADOR
- Eu tenho uma comenda, Mas longe estou de ser um homem rico, Porém me sacrifico Por este batalhão!
Acompanhá-lo agora Eu vou até Lisboa, E há de a Inglaterra, a proa Logo abaixar, verão!
PRIMEIRO SOLDADO
Pra minha terra Quero ir me embora...
Não tenho agora Nem um tostão...
Ai! se não fosse Pr' economia, Eu não iria Co batalhão!
CORO
- Ah! Ah! Ah! Ah!
Viaja de graça!
Que espertalhão!
SEGUNDO SOLDADO - Eu fui caixeiro.
TERCEIRO SOLDADO - Fui carroceiro.
QUARTO SOLDADO - Fui chacareiro.
QUINTO SOLDADO
- Pois eu cá fui vagabundo Desprezou-me todo o mundo...
E é por Isto Que me alisto...
CORO
- Nosso belo batalhão Vai fazer um figurão, Pois nós afirmamos Que, dentro em dois meses, Matamos Duzentas, Trezentas, Quinhentas, Seiscentas, Centenes Apenas De Ingleses!
Plã! Rataplã! Plã!
Plã! (Saem todos.)
CENA VIII
CUPIDO, GILBERTO, APOLO
APOLO - Bem! É tempo de voltar para o Parnaso.
CUPIDO (A Gilberto.) - É sim! Vais ver a tua namorada.
APOLO - Quando chegares ao corredor da casa em que ela mora, bebe um gole valente dessa garrafa. Adeus! Sê feliz! (Abraça-o.)
CUPIDO - Adeus! (Abraça-o.)
GILBERTO - Não sei como agradecer tantos obséquios...
APOLO - Não agradeças. Adeus. (A Cupido.) Vamos tomar o carro!
CUPIDO - Vamos!
GILBERTO - Adeus! (Apolo e Cupido saem.)
GILBERTO (Só.) - Só! Ainda me parece um sonho! Corramos à casa de minha querida Laura!
(Sai. Mutação.)
Quadro 9 A mesma cena do primeiro quadro CENA IX
MELO, ALBINO, depois LAURA
(Melo entra, trazendo na mão uma lista do recenseamento. Albino acompanha-o.)
MELO - Ela só pelo diabo! Não entendo esta maldita lista do recenseamento! Nunca vi coisa tão complicada! (Senta-se.) Vem cá! (Albino aproxima-se.) Ajuda-me a encher isto. É em prosa, mas é muito difícil! (Lendo.) "Nome... Já está. "Estado..." "Município..." Já está. "Idade..." Já está. "Sexo..." Ora, dize-me cá: uma vez que eu já declarei que me chamo Bernardo Vítor de Melo, que necessidade tenho de dizer que sou do sexo masculino?
ALBINO
- Sempre é bom, senhor meu amo...
Fica claro como o dia...
Eu conheci um sujeito Que se chamava Maria.
MELO - Pois sim, mas o que ninguém conheceu foi uma sujeita que se chamasse Bernardo Vítor de Melo. Enfim... (Escrevendo.) "Masculino"... (Continuando a ler.) "Cor"... Branca.
"Defeitos físicos"... "Cego"... Não sou. "Surdo-mudo"... Deus me livre! "Surdo"... Credo! "Idiota"...
(Encara Albino.) Por que é que olhas para mim? Então eu sou idiota?
ALBINO
- Nessa casa, meu bom amo, Cabem dizeres diversos...
Não diga "sou idiota", Mas escreva "faço versos".
MELO - Ora vai para o diabo! Fazer versos não é defeito físico! (Continuando a leitura.)
"Filiação..." Legítima... Duvido que nestas listas apareça um filho natural. "Estado civil"... Viúvo.
Tudo o mais já está. (Passando uma página.) Esta página é para os casados. (Indo á página seguinte.) Tenho agora que repetir a mesma cantiga. Isto me põe doido! "Nome"...
"Nacionalidade"... "Relação com o chefe da casa"... O chefe da casa sou eu. "Sabe ler e escrever"... "Culto..." Tudo isto já está "Profissão" Achas que eu escrevo "poeta"? Ah! Não!
(Escrevendo.) "Proprietário"... "Poeta" fica para esta outra casa: "Título científico, literário ou artístico"... "Renda"... Olha, sabes que mais? Vai encher isto. Eu perco a cabeça! (Dá a lista a Albino. Laura entra muito triste.) Então, ó pequena, ainda estás triste? Ainda não te desenganaste? Duvido que o tal Gilberto apareça, assim como sempre duvidei que desaparecesse, estando as portas tão bem fechadas como estavam!
LAURA - Papai está enganado; se houvesse fechado as portas, ele não sairia...
MELO - Pode ser: eu estava naquele dia com a musa, e quando estou com a musa, não respondo por mim. A propósito: ouve esta quadra que fiz ontem à noite. (Tirando um papel da algibeira.) É o princípio de uma ode. (Lê.)
"Honra à poesia, a deusa augusta e altiva, Honra à poesia, a deusa divinal!
O povo elegeu muitos poetas, Mandou-os ao Congresso Nacional."
LAURA (Friamente.) - Muito bem.
MELO - Estes foram feitos sem o adjutório do Albino.
ALBINO (À parte.) - Vê-se.
MELO - Menina, isto de fazer versos fica muito fino. O dom da poesia não é coisa que se arranje do pé para a mão. Enfim, se o rapaz prometeu voltar, lá tinha as suas razões.
LAURA - Ah! papai! se soubesse como sofro! (Albino tem um estalar de língua.)
MELO (A Albino.) - Ainda aí estás?
ALBINO
- Eu acho bem razoável De sua filha a quizília.
Não é preciso ser poeta Para ser pai de família.
MELO - Também tu?
ALBINO
- Sonetos, décimas, quadras - Concorde, ó flor dos patrões! -
Nunca deram para aquilo Com que se compram melões.
MELO - Pois tu de que vives, animal? Com que profissão vais figurar nessa lista de recenseamento?
ALBINO
- Vivo de versos, é certo...
Que descoberta!... ora bolas...
Mas, se não fosse o patrão, Eu estava a pedir esmolas!
MELO - Péssima quadra, Senhor Albino. Esse "ora bolas" e uma muleta. Uma muleta e uma insolência!
LAURA - É escusado, Albino! por mais muletas que ponhas nos teus versos, papai não nos atende! Ninguém o demove! Quer um genro poeta! (Chora.)
ALBINO (A Melo.)
- Daquele pranto sincero Piedade o patrão não tem!
A menina chora tanto, Que me faz chorar também!
MELO (Sempre sentado, impassível, a reler os versos.)- Honra à poesia, a deusa augusta e altiva, etc.
LAURA (Chamando Albino com um gesto.) - Vê se te lembras de um estratagema qualquer...
ALBINO
- Não há menina, decerto, Estratagema nenhum...
LAURA - Podes falar em prosa.
ALBINO - Que quer? O costume...
LAURA - Mas dizias?
ALBINO
- Estratagema não vejo, Estratagema não há...
LAURA - Fala em prosa, Albino!
ALBINO - Desculpe... Aqui não há estratagemas possíveis: seu papai quando embirra, é o mesmo que um sendeiro velho.
LAURA - Isso agora é prosa demais. Mas experimenta. Tens tanta influência sobre ele...
ALBINO - Distingamos. Tenho muita influência sobre o poeta, mas não sobre o pai. Ah! quem me dera a mim que seu marido não fosse poeta!
LAURA - E a mim também! Um marido maluco!
ALBINO - Em havendo poeta na família, seu pai dispensa os meus serviços.
LAURA - Qual! Tu fazes-lhe muita falta.
ALBINO - Ninguém faz falta neste mundo. A menina não viu o que fez o imperador da Alemanha?
LAURA - Que foi?
ALBINO - Dispensou os serviços de Bismarck. Ora, se Bismarck foi dispensado, que direi eu?
LAURA - Meu pobre Gilberto! (Vai sentar-se.)
MELO (Que tem estado a reler os seus versos.) - Vem cá, Albino. (Albino aproxima-se.) Sentate, e dize-me cá, em vez de:
Honra à poesia, a deusa augusta e altiva, Não seria melhor:
Honra à poesia, a deusa altiva e augusta?
(Albino franze a testa, toma o papel e vai responder, quando todos os instrumentos da orquestra soltam um nota uníssona e estridente. Ao mesmo tempo, Gilberto entra com impetuosidade.
Melo e Albino assustam-se e caem por terra, Laura levanta-se contentíssima.)
CENA II
MELO, ALBINO, LAURA e GILBERTO
MELO e ALBINO - Ai!...
LAURA - Ele!
GILBERTO (Com muito fogo.)
- Qual saudoso passarinho Que o abandonado ninho Vai procurar com carinho, Cidadão Melo, aqui estou!
Um genro poeta queria?
Pois bem, senhor, hoje em dia Já tenho o dom da poesia Com que Apolo me dotou!
(Melo e Albino erguem-se boquiabertos.)
Eu trago um estro luzente!
Eu trago um estro potente!
Eu trago um estro esplendente!
Eu trago um estro titão!
ALBINO (A Melo.)
- Traz quatro estros na mente...
E uma garrafa na mão!
MELO (Muito interessado.) - Espera, homem!
GILBERTO
- Quando os meus versos vomito, Quando despeço o meu grito, Abalo todo o infinito, Comovo toda a amplidão!
ALBINO (A Melo.)
- Ele é poeta, tenho dito;
E é gongórico, patrão!
MELO (Repreensivo.) - Oh!
GILBERTO (Sempre com muito fogo.)
- Cupido levou-me ao colo Aos pés do divino Apolo, E eu pedi-lhe a inspiração!
Por um mágico processo Fiquei poeta! Outra vez peço Esta alva e mimosa mão.
(Corre para Laura, beija-lhe a mão e fala-lhe baixo.)
ALBINO (A Melo.)
- Senhor meu amo, uma idéia De repente me ocorreu...
MELO - Dize qual foi... em prosa.
ALBINO
- Em prosa, senhor meu amo!
A prosa é terrena e vil.
MELO - Em prosa, sim! Pois hei de estar sempre a ouvir versos! Tomei agora uma barrigada, que me empanturrou!
ALBINO (A parte.) - Hum... Cá está o Bismarck, e (Apontando para Gilberto.) ali está o Caprivi...
(Alto.) É que pode bem ser que aquilo viesse estudadinho de casa.
MELO - Sim senhor! bem lembrado!... Foi pena ser em prosa! (A Gilberto.)
- Psiu, ó amiguinho, mais devagar...
Faça favor de fazer um improviso já.
GILBERTO (Com muita volubilidade.)
- Oh! pois não! é só pedir!
Rimo com facilidade, Metrifico sem vontade, Versejo sem sentir!
LAURA - Mas não te podes exprimir senão em verso?
GILBERTO
Não posso. Nem me recorda Como é que em prosa falei!
Meu doce amor, tenho corda, Por quanto tempo não sei!
MELO (A Albino, com muita convicção.) - Parece-me que o rapaz é poeta, e poeta às direitas!
Façamos uma experiência definitiva e suprema. Ó seu Gilberto, faça favor de glosar um mote...
(Pensando.) Que há de ser? Dá-lhe um mote, Albino! Quero ver como se sai!
ALBINO
- Esse mesmo:
Quero ver como se sai.
GILBERTO (Repetindo.) - Quero ver como se sai.
(Depois de pequena pausa.)
Amor é uma cidadela Onde eu entrei facilmente, E fiquei, preso e contente, Nos braços de Laura bela;
Mas como, se me quer ela, Não me deseja seu pai, Em fugir do que me atrai Meu desejo se concentra;
Eu já sei como se entra, - Quero ver como se sai.
MELO - Lança-te nos meus braços, meu genro! (Entusiasmadíssimo.) Bocage! Bocage puro!...
Vou ter em casa um novo Elmano!... Minha filha, dá-me a tua mão. (Pega, por engano, na de Albino.) Então! temos brincadeira, seu poetastro? (Toma a mão de Laura.) Gilberto, dá-me a tua mão! (Pega outra vez, por engano, na mão de Albino, que tem passado para o lado oposto.)
Adeus, viola!... (Toma a mão de Gilberto e une-o à filha.) Casem-se e sejam muito felizes!
Tenho pena de não lhes poder dizer isso em bonitos versos...
ALBINO (Insinuando.) - Se o patrão quiser...
MELO (Vivamente.) - Não. (Continuando.) Tenho pena de não poder empregar aqui essa linguagem maviosa com os sons de longínqua flauta que suspira uma endeixa repassada de melancolia e de amor, branda como o sopro da brisa que às ave-marias cicia por entre os arbustos orvalhados pelo crepúsculo. - Vai em prosa, meus filhos, vai em prosa... poética!
(Gilberto e Laura ajoelham-se.) Tableau!
ALBINO (Ao público.) - A vista disto e dos autos, Bismarck vai tratar de arrumar a trouxa! (Sai.
Gilberto e Laura erguem-se.)
CENA III
MELO, LAURA, GILBERTO, depois ALBINO
GILBERTO - Adivinhe se é capaz O que esta garrafa traz?
LAURA - MELO (Tomando a garrafa.) - É o quê? Sabes lá o que é! (Cheira.) Parece água pura!
(Depois de cheirar.) É; cheira a água.
LAURA (Tomando a garrafa.) - Deixe ver.
GILBERTO (Tomando a garrafa da mão de Laura, a Melo.)
- Muito bem. Um gole beba, E o dom das Musas receba!
MELO - Olhe, não vá fazer mal!
GILBERTO
- Beba um gole bem taludo, E me dirá se o iludo!
MELO (Toma a garrafa, hesita) bebe afinal, e fica como Gilberto no Parnaso.)
- Em meu cérebro se opera Singular transformação!
O meu miolo é cratera E a minha bola, vulcão!
LAURA - Meu Deus! papai ficou maluco! (Gilberto tranqüiliza-a com um gesto.)
- Será isto uma quimera?
Será isto uma ilusão?
Faço versos de improviso!
Do Albino já não preciso!
Este líquido me afoga!
Tenho cá dentro uma brasa!
(Noutro tom.)
Onde se vende essa droga?
Eu quero ter dela em casa!
Minha filha bebe um gole...
(Laura hesita.)
Vai! Não tenhas medo.
Engole!
(Laura bebe.)
LAURA (Com os mesmos sintomas do pai.)
- Ai meu Deus! que coisa estranha!
Sonora fonte desliza E tenros arbustos banha Ao som do sopro da brisa Hei de repetir a dose, Que a droga é mais papa-fina Do que a célebre cocoquina Que cura a tuberculose!
Filhos, por este sistema, Poderão dar-me vocês De vez em quando um poema...
GILBERTO (Atalhando.)
- E um poeta de quando em vez.
Esta garrafa guardada Com mil cuidados vai ser:
Toda a nossa filharada Versinhos há de fazer.
LAURA (A Albino, que entra com uma trouxa debaixo do braço.)
- Não sabes? Eu sou poetisa...
Sei a linguagem da brisa, Conheço o idioma da flor...
Meu Gilberto, de hoje em diante, Serei muito mais amante, Amar-te-ei com mais fervor.
ALBINO - Que é isso, Mãe Santíssima!
MELO (A Albino.)
- Sou poeta! Foi benefício De uma droga que bebi, Vai procurar outro ofício, Já não preciso de ti.
ALBINO (À parte.) - Nem eu ficava nesta casa de orates.
(A Melo.) Adeus! Bem vê: já tenho as malas prontas.
MELO - Queres dizer: a trouxa.
ALBINO
- Sim, senhor.
Mais tarde voltarei pra ajustar contas, Pois deve ter um saldo a meu favor. (Sai.)
GILBERTO (Tomando Laura pela mão e conduzindo-a ao proscênio.)
- Agora o couplet final, Pois com uma apoteose Esta peça se descose E termina muito mal.
(A orquestra executa a introdução da copla, e Laura começa a cantar, mas é interrompida por vozes que se levantam de todos os ângulos da sala, protestando.)
ESPECTADORES - Fora o couplet: venha a apoteose!
MELO
- A apoteose o povo exige!
A apoteose é de rigor!
LAURA - Tem razão: noblesse oblige...
(Apontando para o fundo.)
Aquele é o reino do Amor!
(Mutação. Apoteose)
Quadro 10 [(Cai o pano)]