Uma Ode de Anacreonte
PERSONAGENS
LÍSIAS
CLÉON
MIRTO
TRÊS ESCRAVOS
A cena é em Samos.
(Sala de festim em casa de Lísias. À esquerda a mesa do festim; à direita uma mesa tendo em cima uma lâmpada apagada, e junto da lâmpada um rolo de papiro.)
Cena I
LÍSIAS, CLÉON, MIRTO
(Estão no fim de um banquete, os dois homens deitados à maneira antiga, Mirto sentada entre os dois leitos. Três escravos.)
LÍSIAS
Melancólica estás, bela Mirto. Bebamos!
Aos prazeres!
CLÉON
Eu bebo à memória de Samos.
Samos vai terminar os seus dourados dias;
Adeus, terra em que achei consolo às agonias Da minha mocidade; adeus, Samos, adeus!
MIRTO
Querem-lhe os deuses mal?
CLÉON
Não; dois olhos, os teus.
LÍSIAS
Bravo, Cléon!
MIRTO
Poeta! os meus olhos?
CLÉON
São lumes Capazes de abrasar até os próprios numes.
Samos é nova Tróia, e tu és outra Helena.
Quando Lesbos, a mãe de Safo, a ilha amena, Não vir a bela Mirto, a alegre cortesã, Armar-se-á contra nós.
LÍSIAS
Lesbos é boa irmã.
MIRTO
Outras belezas tem, dignas da loura Vênus.
CLÉON
Menos dignas que tu.
MIRTO
Mais do que eu.
LÍSIAS
Muito menos.
CLÉON
Tens vergonha de ser formosa e festejada, Mirto? Vênus não quer beleza envergonhada.
Pois que dos imortais houveste esse condão De inspirar quantos vês, inspira-os, Mirto.
MIRTO
Não.
São teus olhos, poeta; eu não tenho a beleza Que arrasta corações.
CLÉON
Divina singeleza!
LÍSIAS
(à parte)
Vejo através do manto as galas da vaidade.
(alto)
Vinho, escravo!
(o escravo deita vinho na laça de Lísias)
Poeta, um brinde à mocidade.
Trava da lira e invoca o deus inspirador.
CLÉON
"Feliz quem, junto a ti, ouve a tua fala, amor!"
MIRTO
Versos de Safo!
CLÉON
Sim.
LÍSIAS
Vês? é modéstia pura.
Ele é na poesia o que és na formosura.
Faz versos de primor e esconde-os ao profano;
Tem vergonha. Eu não sei se o vício é lesbiano...
MIRTO
Ah! tu és...
CLÉON
Lesbos foi minha pátria também.
Lesbos, a flor do Egeu.
MIRTO
Já não é?
CLÉON
Lesbos tem Tudo o que me fascina e tudo o que me mata:
As festas do prazer e os olhos de uma ingrata.
Fugi da pátria e achei, já curado e tranqüilo, Em Lísias um irmão, em Samos um asilo.
Bem hajas tu que vens encher-me o coração!
LÍSIAS
Insaciável! Não tens em Lísias um irmão?
MIRTO
Volto à pátria.
CLÉON
Pois quê! tu vais?
MIRTO
Em poucos dias...
LÍSIAS
Fazes mal; tens aqui os moços e as folias, O gozo, a adoração; que te falta?
MIRTO
Os meus ares.
CLÉON
A que vieste então?
MIRTO
Sucessos singulares.
Vim por acompanhar Lísicles, mercador De Naxos; tanto pode a constância no amor!
Corremos todo o Egeu e a costa iônia; fomos Comprar o vinho a Creta e a Tênedos os pomos.
Ah! como é doce o amor na solidão das águas!
Tem-se vida melhor; esquecem-se-lhes as mágoas.
Zéfiro ouviu por certo os ósculos febris, Os júbilos do afeto, as falas juvenis;
Ouviu-os, delatou ao deus que o mar governa A indiscreta ventura, a efusão doce e terna.
Para a fúria acalmar da sombria deidade, Nave e bens varreu tudo a horrível tempestade.
Foi assim que eu perdi a Lísicles, assim Que eu semimorta e fria à tua plaga vim.
CLÉON
O coitada!
LÍSIAS
O infortúnio os ânimos apura;
As feridas que faz o mesmo Amor as cura;
Brandem armas iguais Aquiles e Cupido.
Queres ver noutro amor o teu amor perdido?
Samos o tem de sobra.
CLÉON
Eu, Mirto, eu sei amar;
Não fio o coração da inconstância do mar.
Não tenho galeões rompendo o seio a Tétis, Estrada tanta vez ao torvo e obscuro Letes.
Aqui me tens; sou teu; escreve a minha sorte;
Podes doar-me a vida ou decretar-me a morte.
MIRTO
Mas, se eu volto...
CLÉON
Pois bem! aonde quer que te vás Irei contigo; a deusa indômita e falaz Ser-me-á hóspede amiga; ao pé de ti a escura Noite parece aurora, e é berço a sepultura.
MIRTO
Quando fala o dever, a vontade obedece;
Eu devo ir só; tu fica, ama-me um pouco e esquece.
LÍSIAS
Tens razão, bela Mirto; escuta o teu dever.
CLÉON
Ai! é fácil amar, difícil esquecer.
LÍSIAS
(a Mirto)
Queres pôr termo à festa? Um brinde a Vênus, filha Do mar azul, beleza, encanto, maravilha;
Nascida para ser perpetuamente amada.
A Vênus!
(Depois do brinde os escravos trazem os vasos com água perfumada em que os convivas lavam as mãos;
os escravos saem levando os restos do banquete.
Levantam-se todos.)
Queres tu, mimosa naufragada, Ouvir de hemônia serva, em lira de marfim, Uma alegre canção? Preferes o jardim?
O pórtico talvez?
MIRTO
Lísias, sou indiscreta;
Quisera antes ouvir a voz do teu poeta.
LISIAS
Nume não pede, impõe.
CLÉON
O mando é lisonjeiro.
LÍSIAS
Pois começa.
Cena II
Os mesmos, um ESCRAVO
ESCRAVO
Procura a Mirto um mensageiro.
MIRTO
Um mensageiro! a mim!
LÍSIAS
Manda-o entrar.
ESCRAVO
Não quer.
LÍSIAS
Vai, Mirto.
MIRTO
(saindo)
Volto já.
(sai o escravo)
Cena III
LÍSIAS, CLÉON
CLÉON
(olhando para o lugar onde Mirto saiu)
Oh! deuses! que mulher!
LÍSIAS
Ah! que pérola rara!
CLÉON
Onde a encontraste?
LÍSIAS
Achei-a Com Partênis que dava uma esplêndida ceia;
Partênis, ex-bonita, ex-jovem, ex-da-moda, Sabes que Vê fugir-lhe a enfastiada roda;
E, para não perder o grupo adorador, Fez do templo deserto uma escola de amor.
Foi ela quem achou a náufraga perdida, Exposta ao Vento e ao mar, quase a expirar-lhe a vida.
A beleza pagava o emprego de uma esmola;
Dentro em pouco era Mirto a flor de toda a escola.
CLÉON
Lembrou-te convidá-la então para um festim?
LÍSIAS
Foi um pouco por ela e um pouco mais por mim.
CLÉON
Também amas?
LÍSIAS
Eu? não. Quis ter à minha mesa Vênus e o louro Apolo, a poesia e a beleza.
CLÉON
Oh! a beleza, sim! Viste já tanta graça, Tão celestes feições?
LÍSIAS
Cuidado! Aquela caça Zomba dos tiros vãos de ingênuo caçador!
CLÉON
Incrédulo!
LÍSIAS
Eu sou mestre em matéria de amor.
Se tu, atento e calmo, a narração lhe ouvisses Conheceras melhor o engenho desta Ulisses.
Aquele ardente amor a Lísicles, aquele Fundo e intenso pesar que à sua pátria a impele, Armas são com que a astuta os ânimos seduz.
CLÉON
Oh! não creio.
LÍSIAS
Por quê?
CLÉON
Não vês como lhe luz Tanta expressão sincera em seus olhos divinos?
LÍSIAS
Sim, têm muita expressão... para iludir meninos.
CLÉON
Pois tu não crês?
LÍSIAS
Em quê? No naufrágio? Decerto.
Em Lísicles? Talvez. No amor? é mais incerto.
Na intenção de voltar a Lesbos? isso não!
Sabes o que ela quer? Prender um coração.
CLÉON
Impossível!
LÍSIAS
Poeta! estás na alegre idade Em que a ciência da vida é a credulidade.
Vês tudo azul e em flor; eu já me não iludo.
Pois amar cortesãs! isso demanda estudo, Não vai assim, que as tais abelhitas do amor Correm de bolsa em bolsa e não de flor em flor.
CLÉON
Mas não as amas tu?
LÍSIAS
Decerto... à minha moda;
Meu grande coração co'os vícios se acomoda;
Sacrifícios de amor não sonha nem procura;
Não lhes pede ilusões, pede-lhes só ternura.
Não me empenho em achar alma ungida no céu:
Se é crime este sentir, confesso-me, sou réu.
Não peço amor ao vinho; irei pedi-lo às damas?
Delas e dele exijo apenas estas chamas Que ardem sem consumir, na pira dos desejos.
Assim é que eu estimo as ânforas e os beijos.
Lá protestos de amor, eternos e leais, Tudo isso é fumo vão. Que queres? Os mortais Somos todos assim.
CLÉON
Ai, os mortais! dize antes Os filósofos maus, ridículos pedantes, Os que não sabem crer, os fartos já de amores, Esses, sim. Os mortais!
LÍSIAS
Refreia os teus furores, Poeta; eu não quisera amargurar-te, e enfim Não podia supor que a amasse tanto assim.
Cáspite! Vais depressa!
CLÉON
Ai, Lísias, é verdade, Amo-a como não amo a vida e a mocidade;
De que modo nasceu esta afeição que encerra Todo o meu ser, ignoro. Acaso sabe a terra Por que é mais bela ao sol e às auras matinais?
Amores estes são terríveis e fatais.
LISIAS
Vês com olhos do céu coisas que são do mundo;
Acreditas achar esse afeto profundo, Nestas filhas do mal! Se a todo o transe queres Obter a casta flor dos célicos prazeres, Deixa a alegre Corinto e todo o luxo seu;
Outro porto acharás: procura o gineceu.
Escolhe aquele amor doce, inocente e puro, Que inda não tem passado e vive no futuro.
Para mim, já to disse, o caso é diferente;
Não me importa um nem outro; eu vivo no [presente.
CLÉON
Deu-te amiga Fortuna um grande cabedal:
Viver, sem ilusões, no bem como no mal;
Não conhecer o amor que morde, que se nutre Do nosso sangue, o amor funesto, o amor abutre;
Não beber gota a gota este brando veneno Que requeima e destrói; não ver em mar sereno Subitamente erguer-se a voz dos aquilões.
Afortunado és tu.
LÍSIAS
Lei de compensações!
Sou filósofo mau, ridículo pedante, Mas inveja-me a sorte; oh! lógica de amante.
CLÉON
É a do coração.
LÍSIAS
Terrível mestre!
CLÉON
Ensina Dos seres imortais a transfusão divina!
LÍSIAS
A lição é profunda e escapa ao meu saber;
Outra escola professo, a escola do prazer!
CLÉON
Tu não tens coração.
LÍSIAS
Tenho, mas não me iludo.
É Circe que perdeu o encanto e a juventude.
CLÉON
Velho Sátiro!
LÍSIAS
Justo: um semideus silvestre.
Nestas coisas do amor nunca tive outro mestre.
Tu gostas de chorar; eu cá prefiro rir.
Três artigos da lei: gozar, beber, dormir.
CLÉON
Compras com isso a paz; a mim coube-me o tédio, A solidão e a dor.
LÍSIAS
Queres um bom remédio, Um filtro da Tessália, um bálsamo infalível?
Esquece empresas vãs, não tentes o impossível.
Prende o teu coração nos laços de Himeneu;
Casa-te; encontrarás o amor no gineceu.
Mas cortesãs! jamais! São Górgones! Medusas!
CLÉON
Essas que conheceste e tão severo acusas - Pobres moças! - não são o universal modelo:
De outras sei a quem coube um coração singelo, Que preferem a tudo a glória singular De conhecer somente a ciência de amar;
Capazes de sentir o ardor da intensa chama Que eleva, que resgata a vida que as infama.
LÍSIAS
Se achares tal milagre, eu mesmo irei pedir-to.
CLÉON
Basta um passo, achá-lo-ei.
LÍSIAS
Bravo! chama-se?
CLÉON
Mirto.
Que pode conquistar até o amor de um deus!
LÍSIAS
Crês nisso?
CLÉON
Por que não?
LÍSIAS
Tu és um néscio; adeus!
Cena IV
CLÉON
Vai, cético! tu tens o vício da riqueza:
Farto, não crês na fome... A minha singeleza Faz-te rir: tu não vês o amor que absorve e mata;
Mirto, vinga-me tu da calúnia insensata;
Amemo-nos. É ela!
Cena V
CLÉON, MIRTO
MIRTO
Estás triste!
CLÉON
Oh! que não.
Mas deslumbrado, sim, como se uma visão...
MIRTO
A visão vai partir.
CLÉON
Mas muito tarde...
MIRTO
Breve.
CLÉON
Quem te chama?
MIRTO
O destino. E sabes quem me escreve?
CLÉON
Tua mãe.
MIRTO
Já morreu.
CLÉON
Algum antigo amante?
MIRTO
Lísicles.
CLÉON
Vive?
MIRTO
Sim. Depois de andar errante Numa tábua, à mercê das ondas, quis o céu Que viesse encontrá-lo um barco do Pireu.
Pobre Lísicles! teve em tão cruenta lida A dor da minha morte e a dor da própria vida.
Em vão interrogava o mar cioso e mudo.
Perdera, de uma vez, numa só noite, tudo, A ventura, a esperança, o amor, e perdeu mais:
Naufragaram com ele os poucos cabedais.
Entrou em Samos pobre, inquieto, semimorto, Um barqueiro, que a tempo atravessava o porto, Disse-lhe que eu vivia, e contou-lhe a aventura Da malfadada Mirto.
CLÉON
É isso, a sorte escura Voltou-se contra mim; não consente, não quer Que eu me farte de amor no amor de uma mulher.
Vejo em cada paixão o fado que me oprime;
O amar é já sofrer a pena do meu crime.
Íxion foi mais audaz amando a deusa augusta;
Transpôs o obscuro lago e sofre a pena justa, Mas eu não. Antes de ir às regiões infernais São as graças comigo Eumênides fatais!
MIRTO
Caprichos de poeta! Amor não falta às damas;
Damas, tem-Ias aqui; inspira-lhe essas chamas.
CLÉON
Impõe-se leis ao mar? O coração é isto;
Ama o que lhe convém; convém amar a Egisto Clitemnestra; convém a Cíntia Endimião;
É caprichoso e livre o mar do coração;
De outras sei que eu houvera em meus versos [cantado;
Não lhes quero... não posso.
MIRTO
Ai, triste enamorado.
CLÉON
E tu zombas de mim!
MIRTO
Eu zombar? Não; lamento A tua acerba dor, o teu fatal tormento.
Não conheço eu também esse cruel penar?
Só dois remédios tens; esquecer, esperar.
De quanto almeja e quer o amor nem tudo alcança;
Contenta-se ao nascer coas auras da esperança;
Vive da própria mágoa; a própria dor o alenta.
CLÉON
Mas, se a vida é tão curta, a agonia é tão lenta!
MIRTO
Não sabes esperar? Então cumpre esquecer.
Escolhe entre um e outro; é preciso escolher.
CLÉON
Esquecer? sabes tu, Mirto, se a alma esquece o prazer que a fulmina, e a dor que a fortalece?
MIRTO
Tens na ausência e no tempo os velhos pais do [olvido, O bem não alcançado é como o bem perdido, Pouco a pouco se esvai na mente e coração;
Põe o mar entre nós... dissipa-se a ilusão.
CLÉON
Impossível!
MIRTO
Então espera; algumas vezes A fortuna transforma em glórias os reveses.
CLÉON
Mirto, valem bem pouco as glórias já tardias.
MIRTO
Um só dia de amor compensa estéreis dias.
CLÉON
Compensará, mas quando? A mocidade em flor Bem cedo morre, e é essa a que convém a amor.
Vejo cair no ocaso o sol da minha vida.
MIRTO
Cabeça de poeta, exaltada e perdida!
Pensas estar no ocaso o sol que mal desponta?
CLÉON
A clepsidra do amor não conta as horas, conta As ilusões; velhice é perdê-las assim;
Breve a noite abrirá seus véus por sobre mim.
MIRTO
Não hás de envelhecer; as ilusões contigo Flores são que respeita Éolo brando e amigo.
Guarda-as, talvez um dia, e não tarde, as colhamos.
CLÉON
Se eu a Lesbos não vou.
MIRTO
Podem colher-se em Samos.
CLÉON
Voltas breve?
MIRTO
Não sei.
CLÉON
Oh! sim, deves voltar!
MIRTO
Tenho medo.
CLÉON
De quê?
MIRTO
Tenho medo... do mar.
CLÉON
Teu sepulcro já foi; o medo é justo; fica.
Lesbos é para ti mais formosa e mais rica.
Mas a pátria é o amor; o amor transmuda os ares.
Muda-se o coração? Mudam-se os nossos lares.
Da importuna memória o teu passado exclui;
Vida nova nos chama, outro céu nos influi.
Fica; eu disfarçarei com rosas este exílio;
A vida é um sonho mau: façamo-la um idílio.
Cantarei a teus pés a nossa mocidade.
A beleza que impõe, o amor que persuade, Vênus que faz arder o fogo da paixão, Teu olhar, doce luz que vem do coração.
Péricles não amou com tanto ardor a Aspásia, Nem esse que morreu entre as pompas da Ásia, A Laís siciliana. Aqui as Horas belas Tecerão para ti vivíssimas capelas.
Nem morrerás; teu nome em meus versos há de ir, Vencendo o tempo e a morte, aos séculos por vir.
MIRTO
Tanto me queres tu!
CLÉON
Imensamente. Anseio Por sentir, bela Mirto, arfar teu brando seio, Bater teu coração, tremer teu lábio puro, Todo viver de ti.
MIRTO
Confia no futuro.
CLÉON
Tão longe!
MIRTO
Não, bem perto.
CLÉON
Ah! que dizes?
MIRTO
Adeus?
(passa junto da mesa da direita e vê o rolo de papiro)
Curiosa que sou!
CLÉON
São versos.
MIRTO
Versos teus?
(Lísias aparece ao fundo.)
CLÉON
De Anacreonte, o velho, o amável, o divino.
MIRTO
A musa é toda iônia, e o verso é peregrino.
(abre o papiro e lê)
"Fez-se Níobe em pedra e Filomena em pássaro.
"Assim "Folgaria eu também me transformasse Júpiter "A mim.
"Quisera ser o espelho em que o teu rosto mágico "Sorri;
A túnica feliz que sempre se está próxima "De ti;
"O banho de cristal que esse teu corpo cândido "Contém;
"O aroma de teu uso e donde eflúvios mágicos "Provêm;
"Depois esse listão que de teu seio túrgido "Faz dois;
"Depois do teu pescoço o rosicler de pérolas;
"Depois...
"Depois ao ver-te assim, única e tão sem êmulas "Qual és, "Até quisera ser teu calçado, e pisassem-me "Teus pés."[1]
Que magníficos são!
CLÉON
Minha alma assim te fala.
MIRTO
Atendendo ao poeta eu pensava escutá-la.
CLÉON
Eco do meu sentir foi o velho amador;
Tais os desejos são do meu profundo amor.
Sim, eu quisera ser tudo isto - o espelho, o banho, O calçado, o colar... Desejo acaso estranho, Louca ambição talvez de poeta exaltado...
MIRTO
Tanto sentes por mim?
Cena VI
CLÉON, MIRTO, LISIAS
LÍSIAS
(entrando)
Amor, nunca sonhado.
Se a musa dele és tu!
CLÉON
Lísias!
MIRTO
Ouviste?
LISIAS
Ouvi Versos que Anacreonte houvera feito a ti, Se vivesses no tempo em que, pulsando a lira, Estas odes compôs que a velha Grécia admira.
(a Cléon)
Quer falar-te um sujeito, um Clínias, um colega, Ex-mercador, como eu.
MIRTO
Ai, que importuno!
LÍSIAS
Alega Que não pode esperar, que isto não pode ser, Que um processo... Afinal não no pude entender.
Pode ser que contigo o homem se acomode.
Prometeste talvez compor-lhe alguma ode?
CLÉON
Não. Adeus, bela Mirto; espera-me um instante.
MIRTO
Não tardes!
LÍSIAS (à parte)
Indiscreta!
CLÉON
Espera.
LISIAS
(à parte)
Petulante!
Cena VII
MIRTO, LISIAS
MIRTO
Sou curiosa. Quem é Clínias, ex-mercador?
Amigo dele?
LÍSIAS
Mais do que isso; é um credor.
MIRTO
Ah!
LÍSIAS
Que belo rapaz! que alma fogosa e pura, Bem digna de aspirar-te um hausto de ventura!
Queira o céu pôr-lhe termo à profunda agonia, Surja enfim para ele o sol de um novo dia.
Merece-o. Mas vê lá se há destino pior:
Quer o alado Mercúrio obstar o alado Amor.
Com beijos não se paga a pompa do vestido, O espetáculo e a mesa; e se o gentil Cupido Gosta de ouvir canções, o outro não vai com elas;
Vale uma dracma só vinte odezinhas belas.
Um poema não compra um simples borzeguim.
Versos! são bons de ler, mais nada; eu penso assim.
MIRTO
Pensas mal! A poesia é sempre um dom celeste;
Quando o gênio o possui quem há que o não [requeste?
Hermes, com ser o deus clos graves mercadores, Tocou lira também.
LÍSIAS
Já sei que estás de amores.
MIRTO
Que esperança! Bem vês que eu já não posso amar.
LÍSIAS
Perdeste o coração?
MIRTO
Sim; perdi-o no mar.
LÍSIAS
Pesquemo-lo; talvez essa pérola fina Venha ornar-me a existência agourada e mofina.
MIRTO
Mofina?
LÍSIAS
Pois então? Enfaram-me estas belas Da terra samiana; assaz vivi por elas.
Outras desejo amar, filhas do azul Egeu.
Varia de feições o Amor, como Proteu.
MIRTO
Seu caráter melhor foi sempre o ser constante.
LÍSIAS
Serei menos fiel, não sou menos amante.
Cada beleza em si toda a paixão resume.
Pouco me importa a flor; importa-me o perfume.
MIRTO
Mas quem quer o perfume afaga um pouco a flor;
Nem fere o objeto amado a mão que implora o amor.
LÍSIAS
Ofendo-te com isto? Esquece a minha ofensa.
MIRTO
Já esqueci; passou.
LÍSIAS
Quem fala como pensa Arrisca-se a perder ou por sobra ou por míngua.
Eu confesso o meu mal; não sei tentear a língua.
Pois que me perdoaste, escuta-me. Tu tens A graça das feições, o sumo bem dos bens;
Moça, trazes na fronte o doce beijo de Hebe Como um filtro de amor que, sem sentir, se bebe, De teus olhos destila a eterna juventude;
De teus olhos que um deus, por lhes dar mais [virtude, Fez azuis como o céu, profundos como o mar.
Quem tais dotes reúne, ó Mirto, deve amar.
MIRTO
Falas como um poeta, e zombas da poesia!
LÍSIAS
Eu, poeta? jamais.
MIRTO
A tua fantasia Respirou certamente o ar do monte Himeto.
Tem a expressão tão doce!
LÍSIAS
É a expressão do afeto.
Sou em coisas de Apolo um simples amador.
A minha grande musa é Vênus, mãe do amor.
No mais não aprendi (os fados meus adversos Vedaram-mo!) a cantar bons e sentidos versos.
Cléon, esse é que sabe acender tantas almas, Conquistar de um só lance os corações e as palmas.
MIRTO
Conquistar, oh! que não!
LÍSIAS
Mas agradar?
MIRTO
Talvez.
LÍSIAS
Isso mesmo; é já muito. O que o poeta fez Fá-lo-ei jamais? Contudo, inda tentá-lo quero;
Se não me inspira a musa, alma filha de Homero, Inspira-me o desejo, a musa que delira, E o seu canto concerta aos sons da eterna lira.
MIRTO
Também desejas ser alguma coisa?
LÍSIAS
Não;
Eu caso o meu amor às regras da razão.
Cléon quisera ser o espelho em que teu rosto Sorri; eu, bela Mirto, eu tenho melhor gosto.
Ser espelho! ser banho! e túnica! tolice!
Estéril ambição! loucura! criancice!
Por Vênus! sei melhor o que a mim me convém.
Homem sisudo e grave outros desejos tem.
Fiz, a este respeito, aprofundado estudo;
Eu não quero ser nada; eu quero dar-te tudo.
Escolhe o mais perfeito espelho de aço fino, A túnica melhor de pano tarentino, Vasos de óleo, um colar de pérolas, enfim Quanto enfeita uma dama aceitá-lo-ás de mim.
Brincos que vão ornar-te a orelha graciosa;
Para os dedos o anel de pedra preciosa;
A tua fronte pede áureo, rico anadema;
Tê-lo-ás, divina Mirto. É este o meu poema.
MIRTO
É lindo!
LÍSIAS
Queres tu, outras estrofes mais?
Dar-tas-ei quais as teve a celebrada Laís.
Casa, rico jardim, servas de toda a parte;
E estátuas e painéis, e quantas obras d'arte Podem servir de ornato ao templo da beleza, Tudo haverás de mim. Nem gosto nem riqueza Te há de faltar, mimosa, e só quero um penhor.
Quero... quero-te a ti.
MIRTO
Pois quê! já quer a flor, Quem desdenhando a flor, só lhe pede o perfume.
LÍSIAS
Esqueceste o perdão?
MIRTO
Ficou-me este azedume.
LÍSIAS
Vênus pode apagá-lo.
MIRTO
Eu sei, creio e não creio.
LÍSIAS
Hesitar é ceder: agrada-me o receio.
Em assunto de amor, vontade que flutua Está prestes a entregar-se. Entregas-te?
MIRTO
Sou tua!
Cena VIII
LÍSIAS, MIRTO, CLÉON
CLÉON
Demorei-me demais?
LÍSIAS
Apenas o bastante Para que fosse ouvido um coração amante.
A Lesbiana é minha.
CLÉON
És dele, Mirto!
MIRTO
Sim.
Eu ainda hesitava; ele falou por mim.
CLÉON
Quantos amores tens, filha do mal?
LÍSIAS
Pressinto.
Uma lamentação inútil. "A Corinto Não vai quem quer", lá diz aquele velho adágio.
Navegavas sem leme; era certo o naufrágio.
Não me viste sulcar as mesmas águas?
CLÉON
Vi, Mas contava com ela, e confiava em ti.
Mais duas ilusões! Que importa? Inda são poucas;
Desfaçam-se uma a uma estas quimeras loucas.
Ó árvore bendita, é minha juventude, Vão-te as flores caindo ao vento áspero e rude!
Não vos maldigo, não; eu não maldigo o mar Quando a nave soçobra; o erro é confiar.
Adeus, formosa Mirto; adeus, Lísias; não quero Perturbar vosso amor, eu que já nada espero;
Eu que vou arrancar as profundas raízes Desta paixão funesta; adeus, sede felizes!
LÍSIAS
Adeus! Saudemos nós a Vênus e a Lieu.
AMBOS
Io Pæ an! ó Baco! Himeneu! Himeneu!
Edição de referência: Teatro de Machado de Assis, de Machado de Assis
Martins Fontes, 2003, São Paulo