Os Lobisomens
Comédia Brasileira em três atos por Manuel de Araújo Porto Alegre Dresden, 8 de dezembro de 1862 A cena se passa no Rio de Janeiro, no meado do século XIX.
Declaração Se alguns dos teatros do Brasil desejar pôr em cena esta comédia, não o poderá fazer sem meu consentimento, ou o dos meus dois procuradores no Rio de Janeiro, os senhores Guilherme Schüch de Capanema e Joaquim Manuel de Macedo.
Dresden, 8 de dezembro de 1862 O Autor INTERLOCUTORES
JULIANO, moço de 30 anos, casado com d. AMÁLIA.
ALFREDO, de 27 anos, casado com d. JÚLIA.
BERNARDO, pai das duas damas.
DOUTOR ÁLVARO, médico.
TIBÚRCIO, criado de Juliano.
Mascarados dos dois sexos.
A cena se passa no Rio de Janeiro, em 1859 CENÁRIO
PRIMEIRO ATO – Sala magnífica., com janelas no fundo, dando para a rua; portas laterais: a da esquerda serve de ingresso à sala e a da direita a um gabinete que pega com a alcova de d. Amália. Mesa no meio; sofás e um piano. 2 SEGUNDO ATO – Sala grande, contígua ao salão do teatro. Arcadas envidraçadas no fundo, pelas quais se vêem transparecer o baile e os mascarados. À esquerda, uma porta com reposteiro, que dá entrada ao toucador das damas; no meio, em forma de meia-lua, uma rica mesa com iguarias e dos lados sofás e cadeiras de braços. A entrada é pela esquerda do fundo e não deve ser próxima à mesa.
TERCEIRO ATO – A sala que serviu ao primeiro ato.
PRIMEIRO ATO
Acabada a sinfonia ouvem-se três palmas. Sobe o pano CENA I
AMÁLIA, com um dominó branco, defronte do espelho em atitude de quem é surpreendida. Tira a máscara; ouve forçar a porta da rua; abre-a repentinamente e corre para a alcova dizendo:
AMÁLIA – O que diria ele se me apanhasse assim?!
CENA II
TIBÚRCIO (Entrando pela mesma porta) – Cuidei que estivesse fechada; é bom insistir. Até as portas andam aqui fazendo figas à gente! Aqui não está ninguém! Quem bateria, pois, estas palmas? O diabo parece que anda nesta casa! (Ouvem-se novamente as palmas.) É cá fora. Vamos ver quem é;
se não for alma do outro mundo.
CENA III
ALFREDO, JÚLIA e TIBÚRCIO
JÚLIA (Com um dominó azul) – Seu amo já veio? A senhora está aí?
Responde, depressa.
TIBÚRCIO (Compassadamente) – Meu amo já entrou... mas tornou a sair; e a senhora está em casa. Creio que está lendo. Os senhores estão muito bonitos assim!
JÚLIA – Vai chamá-la, que tenho muita pressa. 3 TIBÚRCIO – Sim, minha senhora. (À parte) Esta leva outra vida. Oh!
Que vidão!
CENA IV
JÚLIA e ALFREDO
JÚLIA – Nem palavra sobre o nosso intento. Vamos sondar o terreno.
ALFREDO – E como resolvê-la agora sem o necessário? Não há de ir assim...
JÚLIA – Eu sei o que faço. Não seja indiscreto, chiton.
CENA V
AMÁLIA, JÚLIA e ALFREDO
AMÁLIA – Sejam bem-vindos. Como estão bonitos! Bravo! O que é isto?
JÚLIA – A nossa visita é meteórica; é uma aparição.
AMÁLIA – Assim parece; mas é brilhante e bem empregada. Aonde vão a estas horas, ao teatro? Estão dois perfeitos venezianos. (Suspira.)
JÚLIA – Viemos do baile do conselheiro. Muita gente e calor de abafar.
Está brilhante, animado e com muita novidade, muito luxo e muita alegria. O
doutor Almeida, aquele escritor de folhetins, esteve como um foguete de lágrimas: subiu luminoso, cheio de graça e encheu a todos de prazer e admiração. É um tesouro inesgotável, porque é momentoso, fino e decente.
ALFREDO – Não lhe acho a menor graça. Nunca diz uma coisa que faça rir a gente com uma boa gargalhada, com uma destas de tirar a respiração, de tossir e de chorar.
JÚLIA – Lembranças originais; trocadilhos lindíssimos, alusões finíssimas, tudo com um ceticismo de bom gosto. É porque atira setas de flores e epigramas que fazem rir sem malevolência e sofrer com prazer; mas como não há Sol sem eclipse, também lá estava o pesado barão de Itajubá, o famoso arrota-contos. É uma anta batizada.
ALFREDO – Esse é que tem muita graça! Porque as diz de tirar couro e cabelo. Aquela história da criação da mulher é muito engraçada!
AMÁLIA – Já a ouvi, por minha desventura; é uma pilhéria de marinheiro: tem sal de Cabo Verde e cheiro de patacho... O outro é uma dessas almas felizes, dessas boas naturezas, que enchem de um ar festivo e alegre toda a sociedade em que se acha. Quem de mais saliente? Muitos poetas? 4 JÚLIA – O autor dos Desenganos; aquele moço que ouvimos na Arcádia Brasileira e que foi tão aplaudido; e mais um mocinho do norte, que me dizem ser uma maravilha! Já publicou um volume, que amanhã terei, e está imprimindo outro.
ALFREDO – Ninguém lá fazia caso deles; estavam de roda à parte.
JÚLIA – Fazia o dono da casa, que os convidou e que é um magistrado de muito saber; fazia eu e outras senhoras, que nos prezamos de ser senhoras.
Cale-se, que isto não é para os seus beiços. Escuta, Amália, vem cá. (Afastamse as duas para conversar.)
ALFREDO – (Aproximando-se.) Se é segredo, retiro-me, porque sou discreto.
JÚLIA – É segredo, e de Estado! Retire-se e não seja criança. Se quer imitar o seu modelo, escolhe mal o terreno. Não quero graças.
ALFREDO – (Enquanto as duas falam.) É-me preciso ter cem olhos e mil ouvidos, porque esta minha mulher é das Arábias! Ah! se eu lhe pilhasse a cabeça! Mas eu sempre tenho algum talento, porque a pilhei, com a ajuda de meu pai, que é fino! A outra disse que sim e agora diz que não! O que será?
Será o plano? Que contos e que artes não estará urdindo a minha cara-metade, que torna a outra tão pensativa? Hesita, temos coisa séria; a minha insiste e pega-lhe nas mãos, bravo! Temos tempo. (Assenta-se.) Há de convencer e vencer, já a conheço. Vai fechar-se a sessão secreta, porque há o reboliço da votação. Ainda não; podemos dormir. (Repotreia-se.) Se eu fosse poeta, escrevia uma comédia intitulada Cinco bugias de espermacete. Cada vela seria um ato. Primeiro: começava a cena pela despedida de três senhoras na porta da sala e aí consumia uma bugia. Fazia-as entrar na sala de novo e aí travarem uma conversa de modas, irem buscar caixas e caixinhas e caminharem até a porta: apaga-se a bugia. Segundo ato; conversa no escuro até chegar a nova luz e desta vez fazia o criado, bem gaiato já se sabe, vir com dois castiçais:
discussão sobre figurinos, revolução na biblioteca e despedida. Terceiro ato, no patamar da escada, consumindo a outra vela só na despedida. Quarto: o previdente criado arrancando da algibeira uma nova vela., esta apaga-se com o vento ao abrir-se a porta; descem aos trambolhões e uma cai. Quinto: volta, amanhece o dia. Era chamado à cena.
JÚLIA (Conversando) – Então, sim? Não há nada, são escrúpulos de criança.
AMÁLIA – Não sei; temo; não sei o que ele dirá.
JÚLIA – Não diz nada, antes estima; não te hás de arrepender.
ALFREDO – A confissão foi longa, mas creio que não houve contrição.
AMÁLIA – Hei de ver primeiro. Ele me disse que não gosta dessas coisas. 5 CENA VI
JULIANO e os mais JULIANO – Já sei que passaram agradavelmente o seu tempo e que o vão findar no teatro italiano. Querem hoje respirar em duas atmosferas.
JÚLIA – Mano, venha conosco, vamos ao baile Mascarado, temos um camarote.
JULIANO – A senhora sabe que eu hoje aborreço estes divertimentos e que até nem posso ouvir falar neles. Se não fui à casa do conselheiro, como hei de ir ao teatro?
ALFREDO – Mas no teatro estamos mascarados, somos de outra raça.
JULIANO – Venho cansado da discussão.
JÚLIA – Da sociedade carnavalesca? Que é a única destes dias.
JULIANO – Coisa mais séria, porque todo tempo é bom. Uns o gastam em futilidades e eu em obras meritórias. Aproveitamos estes dias de sueto geral para uma fundação pia; mas o visgo parlamentar pega por todos os lugares. Há uma mania de orar, de retoricar, que é uma praga de futilidades.
ALFREDO – Por isso não vou lá mais; porque se fosse para comer e gozar, bem, mas para discorrer não; e por aqueles senhores, que conhecemos...
JULIANO (Dando-lhe um beliscão.) A propósito das camas dos dormitórios, discorreram sobre a eletricidade dos metais e influência desta sobre o sono e os sonhos; brigaram pela definição de sonho; houve uma verdadeira descarga psicológica; até se falou de ginástica e de literatura, sem se lembrarem que às nossas órfãs compete uma outra educação. O major Militão, a propósito de umas barras, ou catres, queria que houvesse, no colégio das meninas, uma sala de armas!
ALFREDO – Para as meninas? É muito esquisitão! Florete, pistola, espada, espadão? Ou jogo do pau? Sala de beliscões?
JULIANO – Dizia ele que sendo pobres e destinadas a servir, deveriam estar em estado de defender a casa de seus amos em caso de perigo, ou a si próprias quando saíssem à rua fora de horas. Houve gargalhada velha. O
doutor Couto quer uma escola de música vocal, ensino de coros, porque diz ele que será bonito e novo o ver-se as que forem lavadeiras, ensaboarem, esfregarem, baterem a roupa a compasso e que sei eu! Até disse que as cozinheiras poderiam adoçar destarte a monotonia das pancadas do facão.
Falou-se muito e divagou-se pelo infinito das frioleiras. Estou cansado e quero repousar esta alma como que alfinetada por tantos pontinhos. 6 JÚLIA – E dizem os homens que as mulheres é que falam muito! Então, adeus.
JULIANO – Querem alguma coisa para fora? Porque parto.
JÚLIA – Boa viagem, passe bem. Adeus, mana, boa noite. Hei de vir contar-te o que por lá vimos. Dizem que a festa há de ser esplêndida. Vamos ver o que há em outros teatros e passaremos por aqui, talvez...
ALFREDO (Na porta) – Féerique! Iluminação a giorno, pancadaria dobrada, danças novas, trajes de Paris e a nata de toda a corte. (Vai-se) Flores de Santa Catarina, doces da Bahia, sorvetes da Carceller e pinturas do Tagliabue e a banda do Avelar.
AMÁLIA (Na porta) – Venham amanhã, venham amanhã jantar comigo, não se esqueçam. Adeus, adeus.
CENA VII
TIBÚRCIO
TIBÚRCIO (Olhando para as paredes) – Vamos a apagar isto. Hoje foi dia de grande movimentação; mas estão baldadas todas as minhas esperanças de ir dançar no baile com a gente graúda. Já vi, fico de plantão. O cavalo já está pronto e temos passeio misterioso. Aquele brejeiro daquele pajem é quem leva a boa vida; dorme até o meio-dia e janta do melhor, quando o há; porque os víveres vão agora escasseando nesta casa e não sei por quê. Este meu amo é boa pessoa, mas há dias em que anda assim com uma cara de defunto desenterrado! Ele hoje entrou e saiu; veio a francesa; veio o francês; veio mais outro diabo; depois entrou aquela bela mulatinha, com aquela caixa tão bonita como ela e que não sei o que tem. É coisa leve; já lhe tomei o peso; há de ser algum vestido para a senhora. É bom que assim seja, porque ela anda sempre tão triste. Ainda os não vi brigar, nem na mesa ouvi uma palavra assim mais forte! E no entanto há alguma coisa entre eles. Eu creio que ela anda meia assombrada como eu. Quando aquele maldito ponteiro vai chegando à meianoite, sinto logo as carnes arrepiadas. Não ouvem? (Os quadros da sala movem-se.) Santo breve da marea; vou-me já entaipar no meu quarto, a suar como um jumento de carroça. Já estou tremendo! (Deixa uma vela).
CENA VIII
JULIANO, falando alto JULIANO – Ai, ai! São os sinais precursores da hora fatal! Quando acabará isto? Parece-me que ainda está longe o dia da minha liberdade. Ah! se 7 fosse hoje; se eu encontrasse uma mão benéfica que me quebrasse para sempre este encanto terrível, esta dura expiação por um crime que não é meu, mas que devo pagar sem remissão! Minha pobre mulher! Anjo de candura, vitimado por um destino oculto, por uma lei misteriosa, vim apenas como o cândido cordeiro que geme sobre o altar, sem repelir a morte. Ah! mas o tempo virá em que ambos deslizaremos estações de venturas, dias inefáveis e horas de paraíso. (À parte e em meia voz) E ela está ai, veio ouvir-me... Coitadinha, quer-me tanto e é tão meiga e tão paciente! Eu é que sou um diabrete, um...
(Alto, para que Amália o ouça). Vai chegando a hora fatal! Aquele ponteiro, semelhante ao dedo de um fantasma iníquo, já me está apontando o lugar do meu suplício... Mas eu quero dizer-lhe um adeus, eu quero...
CENA IX
AMÁLIA e JULIANO
AMÁLIA (Entra com uma vela, olha algum tempo para Juliano e senta-se ao pé dele. Pausa) – Vinha ver se estava aqui o meu livro... Que tens, que estás tão triste? Se desejas, eu tenho ali na sacada aquela planta mágica que me trouxeste e que te dá repouso, que te aplaca e te faz dormir. Já plantei mais dois pés.
JULIANO – Hoje não pode ser: as estrelas, o ar e um não sei quê dentro mo estão dizendo. Sinto em mim, não uma mão de ferro, uma cadeia, mas como um vento impetuoso, como uma onda que me arrebata e me atira para esse deserto d’alma, para esse mundo animal, em que perco tudo e até a forma humana! Já estou sentindo aquela tristeza mortal, aquele abatimento, que me leva a uma letargia, a um frio, ao estado de morte, e que de repente passa ao furor e ao não sei quê, porque depois nada sinto! Ai, ai! mas o dia está breve, o dia da minha redenção. (Amália chora) Não chores, meu amor, porque não sou eu o único desgraçado assim condenado. Pressinto que isto vai findar-se.
AMÁLIA – Por muitas vezes devorei este segredo entre as agonias de todas as suspeitas! Parecia-me incrível; pensei mesmo, e deves perdoar-me, que era um meio para encobrir algum crime oculto...
JULIANO – Crime! Eu criminoso, minha filha! Pois tu não vês a minha vida? O crime, por encoberto que seja, é como as cinzas de um vulcão:
queima.
AMÁLIA – Não disse bem; mas uma argúcia, inventada para iludir a minha credulidade; porque tu sabes, Juliano, que amor, quanto maior, mais crédulo. 8 JULIANO – O tempo que rasga o véu de todos os mistérios, que decifra todos os enigmas, há de esclarecer esta triste verdade do meu fado.
AMÁLIA – Hoje estou persuadida da verdade. Procurei esclarecer-me e fiz o que devia...
JULIANO – Como?!
AMÁLIA – Há dias, confesso tudo, e foi no começo da semana passada, creio eu, assim como quem não quer nada, comecei a falar com o nosso médico, o doutor Albano, sobre coisas extraordinárias, sobre o mauolhado, quebranto, feitiços, e vim a cair neste ponto, tendo ar de duvidar de tudo; porém ele, que é homem sério e instruído, tirou-me de todas as dúvidas com um discurso muito longo e até fez mais do que eu esperava...
JULIANO – Já sei que não acreditas em mim, no teu maior amigo.
AMÁLIA – Espera. É bom duvidar; porque a crença depois da dúvida é forte e fica como a fé.
JULIANO – E ele o que é que disse? (À parte) Bate-me o coração, apesar de tudo.
AMÁLIA – Não te comovas, tranqüiliza-te.
JULIANO – A minha comoção é outra; por esse lado estou forte, mas não calmo. Mas enfim, o que te disse o nosso velho amigo?
AMÁLIA – Trouxe-me uns livros de ciências ocultas, aonde bebi todas as convicções da realidade, desta triste realidade! Decorei todos os meios apontados, orei, fiz promessas, armei-me de coragem e quis eu mesma ferir-te, ser a tua salvadora e a que te quebrasse o encanto; mas, ao chegar da hora, tremi porque tive medo de falhar o golpe e em vez de te salvar, morrer às tuas iras e deixar-te desgraçado.
JULIANO – Fizeste bem. Considera o meu estado, quando ao despertar do encanto, encontrasse o teu cadáver ensangüentado, esquartejado e estraçalhado?! O caçador que erra o tiro no leão não dá mais um passo, porque é logo um cadáver. A pata é veloz.
AMÁLIA – Dize-me, fala, não eras tu mesmo aquele animal escuro, que andou rodeando a casa e uivando no jardim antes de ontem?
JULIANO – Não sei se o era, porque quando fico assim perco a razão:
sou um lobo, um furioso animal, um bruto sem razão que não conhece nada!
Só sinto fúrias e vontade de morder e espicaçar quanto vivente encontro! E é por isso que agora monto a cavalo e vou para longe, para os lugares silvestres e solitários... Lá para os matos.
AMÁLIA – E o seu pajem não vê isso?
JULIANO – Não; porque ao chegar na estalagem do Andaraí, dou-lhe em aguardente um poderoso narcótico, com o qual ele dorme um sono de pedra até que eu o venha acordar com três gotas d’água fria e umas rezas. E 9 como não há mal que não traga um bem, sabe que afugentei todos os quilombolas daqueles matos e esconderijos.
AMÁLIA – De certo, que os coitadinhos hão de ter medo.
JULIANO – Como que me lembra, como que sonhei, que há dias despedacei um que fugia, subindo a marmita da Tijuca. Lá no alto da pedra, bem no cabeço do pico, filei-lhe os dentes e de lá rolei com ele por todos os precipícios até que acordei em baixo, todo banhado de sangue e de suor. Sei que é triste este meu fadário assim como sei que se há de acabar em breve.
Ninguém me pode matar, mas poder-me-á cortar ou aleijar alguma perna ou braço. São poucos os homens verdadeiramente animosos que se podem arriscar a tanto.
AMÁLIA – Sei de tudo, porque tudo isso eu li nos livros que me trouxe o nosso amigo.
JULIANO (Á parte) – Aquele Albano é um barra; hei de abraçá-lo.
(Para Amália) Ah! são cruéis essas horas da licantropia, vê-se nelas uma eternidade!
AMÁLIA – Com esse mesmo nome deu-me ele um livro francês e bem antigo.
JULIANO (À parte) – Hei de pagar-lhe do verdadeiro Clicquot de la veuve; do fino.
AMÁLIA – Eu li aí e nos outros livros muitos casos! O fato de um desgraçado agarrado em Pádua, a quem cortaram as patas e no mesmo momento se transformou num homem maneta de mãos e pés! Isto foi o que me fez mais medo e o que me faz ainda. Aquele outro caso da mulher de um fidalgo no Auvergne, em França, que atacou o marido em uma caçada e este cortou-lhe uma pata, pondo-a no saco; e qual não foi o seu espanto, no dia seguinte, quando viu que era uma mão de mulher tão alva e tão mimosa e não a pata de um lobo! E mais ainda redobrou de horror ao ver num dos dedos um anel de ouro e nele escrito o seu nome e o de sua própria mulher! Era o anel nupcial! Vendo naquele dia que ela escondia sempre as mãos, avançou-se para ela, reconheceu-a maneta e, louco e irado, a entregou aos tribunais, que a condenaram a morrer queimada! Coitadinha...
JULIANO – Tu bem vês, meu amor, que a mulher também não está isenta deste meu mau fado.
AMÁLIA – Todo o livro de Nynauld é interessante; assim como a obra de Chavincourt, está cheia destes fatos; mas o que é mais sério é o tratado do Prior de Laval! Aí vi mais mulheres.
JULIANO – Uma vez encontrei uma delas, branca como a neve, linda como um galgo! 10 AMÁLIA – Aonde? E o que fizeste? Era bonita esse demônio? O que fazia ao pé de ti?
JULIANO – Fugia...As desgraçadas só têm furores. Parece que és ciumenta?! Por isso algumas vezes me ocultavas os livros que então lias!
Lembra-me que te vi chorar, muitas vezes, mas pensei que era fruto de algum romance.
AMÁLIA – Como não chorar diante de um espelho que me refletia a tua e a minha desventura? O céu é injusto fazendo pagar o filho inocente pelo pai culpado. Perguntei a ele por que nos primeiros tempos de casado não sofreste deste mal e só depois de um ano.
JULIANO – Por quê? Também não o sei. Há de haver aí alguma lei misteriosa em função do casamento e da mulher. Mas o tempo está a findar.
Espera, e tem fé. As vezes penso no suicídio, mas lembro-me de ti e da eternidade e digo a mim mesmo o que te estou dizendo: espera, e tem fé.
AMÁLIA – Não fales nisso. A vida é um dom de Deus e quebrá-la é um crime.
JULIANO – Sei disso, está na minha fé, na minha esperança e no meu amor.
AMÁLIA – E logo hoje, em que estava assim meia satisfeita; mas o coração engana as vezes.
JULIANO – Por quê? Por que estavas meia satisfeita somente?
AMÁLIA – Porque pensei que ias ao teatro e que me levarias a um grande baile Mascarado que reúne todas essas sociedades carnavalescas.
JULIANO – Que lembrança! Antes assim fosse. Ai! Iria de bom gosto, de muito bom grado! Mas quando... (Olha para o relógio) Quando se tem diante de si uma triste lembrança; quando se sente dentro e fora do corpo uma força invisível que nos arranca do chão e de nós mesmos e nos prende às torturas de um martírio, de uma coisa sem igual na terra, ah! Como pensar se pode em tão risonhas frioleiras? E de que maneira te veio isto à cabeça?
AMÁLIA – Pensei, e não sei como. A solidão é criadora de tantas ilusões...
JULIANO – A solidão é o campo das magnas criações e o centro donde partem os dois caminhos do bem e do mal. A solidão, para que não engendre a ociosidade, combate-se com o trabalho, porque o trabalho é produtor e povoa todos os ermos e desertos.
AMÁLIA – Por isso não é bom estar só, e menos ainda sem fazer nada.
Os pobres são mais felizes porque têm obrigação no trabalho e nele o seu bem estar. Antes eu fosse pobre; antes fôssemos pobres, mas queridos do céu e ricos de alegria. 11 JULIANO (Olhando para o relógio) – Amália, tu não és uma criatura humana, és um anjo que o céu me deu. Juro que não te mereço, mas protesto que do dia em que se quebrar este meu fado, acharás daí em diante um coração capaz de te acompanhar e talvez de se elevar um dia às alturas do teu amor.
Sim, sempre te verei a meu lado, como um anjo da guarda; como esse espírito vigilante e protetor que o céu nos envia à hora do nascimento... (Bate meianoite no relógio) Céus! (Levanta-se num sobressalto) Ora por mim até à estrela d’alva; de joelhos, sempre, não saias da tua alcova, não fales com ninguém, com ninguém absolutamente... (Dá um pulo, entra na porta do gabinete, bate com ela e fecha-a. Ouve-se um grande uivo e algum tempo depois o galope de um cavalo. Amália cai de joelhos, fica silenciosa, cobrindo os ouvidos com ambas as mãos e reclina-se sobre o sofá.)
CENA X
JÚLIA, ALFREDO e AMÁLIA; depois TIBÚRCIO
JÚLIA (À porta) – Está tudo no escuro. Estão dormindo. (Amália levanta-se e conserta-se)
TIBÚRCIO (Com uma vela) – Aqui está luz. Bem lhe disse que não. A
senhora aí está.
JÚLIA – Sozinha e no escuro?
AMÁLIA – Como conheço a casa, vim buscar um livro, um companheiro. Parece-me que estás assustada?! Tens alguma coisa?!!
JÚLIA – Se tenho. Quase que fui esmagada por cavalos, montados por dois furiosos... Aqui mesmo ao pé da casa...
AMÁLIA (À parte) – Foram eles, meu Deus!
JÚLIA – E o senhor Alfredo tratou de salvar a si primeiro do que a mim!
ALFREDO – Bagatela! E o que havia de fazer? Era mesmo negócio de deixar o meu corpinho de lado ou debaixo do cavalo e dizer: vem cá minha querida Júlia, e suspendê-la no ar, sem amarrotá-la, porque as senhoras depois do perigo querem os seus vestidos arrumados.
JÚLIA – Egoísta. Para outra vez...Veremos.
ALFREDO – Cada um segure no seu corpinho, que não faz tão pouco neste mundo.
JÚLIA – Um bom marido deve morrer para salvar sua mulher.
ALFREDO – Deve viver para salvar-se do sucessor. A senhora é das que preferem quebrar uma perna a amarrotar o vestido. Conheço tudo.
JÚLIA—Eu é que o conheço. 12 AMÁLIA – Fiquei também assustada. Tibúrcio, traz-me água, açúcar e flor de laranjeira. Querem alguma coisa?
JÚLIA – Beberei também.
AMÁLIA – Três copos.
TIBÚRCIO – Sim, senhora.
CENA XI
AMÁLIA, JÚLIA e ALFREDO
JÚLIA – Teu marido foi sempre?
AMÁLIA – Foi, e pediu-me que o esperasse acordada.
JÚLIA – E estás disposta a isso?
AMÁLIA – E por que não, se ele pediu-me? De certo que o farei.
JÚLIA – Pois cumpre com a tua palavra de uma maneira agradável.
AMÁLIA – Como?
JÚLIA – Vem comigo ao baile...
CENA XII
Entra TIBÚRCIO com os copos AMÁLIA (Preparando os copos) – Aqui tens. Essa água de flor de laranja veio-me de Paris.
ALFREDO – Mandar buscar água desta em França, estando-se no país das laranjeiras?
JÚLIA – Em casa de ferreiro, espeto de pau. Os senhores, que são tão orgulhosos das grandezas da sua terra, por que não fazem estas coisas boas e ao menos luvas e sapatos? Confesso que quando ouço falar em Paris, pareceme que ouço falar do céu. Aquilo não é Paris, é Paraíso. Este é o seu nome.
ALFREDO – Assim é, porque em toda Europa se diz que é: o paraíso das senhoras, o purgatório da algibeira e o inferno dos cavalos.
JÚLIA – O senhor, que por lá andou, deve saber disso perfeitamente.
ALFREDO – E fui sempre bem comportado. Gostava de dançar e ainda gosto.
JÚLIA – Por isso o mandaram vir logo; parece que dançava a passos largos...
AMÁLIA – Bem; (Para Tibúrcio) deixa isso aí e vai para dentro.
CENA XIII 13 AMÁLIA, JÚLIA e ALFREDO
JÚLIA – Não percamos mais tempo. Alfredo vai buscar um dominó e nós vamos ver aquilo num instante. Manda pôr água no fogo e voltamos a tomar chá, porque estamos bem pertinho do teatro.
AMÁLIA – Se meu marido fosse, iria com muito prazer; mas sem ele, não.
JÚLIA – Tu és das que pensam que uma mulher está em perigo quando não tem o marido ao lado? Pois o marido é quem guarda a gente?
AMÁLIA – Não é, bem o sei.
ALFREDO – Então quem é, vamos lá, que teorias são essas? Temos independência?
AMÁLIA – Temos tudo quando temos a nossa dignidade e o próprio respeito.
JÚLIA – Esta conversa não é de mascarados.
ALFREDO – Apoiado. Vamos, mana.
AMÁLIA – Não brinquem. Tenho deveres a cumprir, e deveres sagrados.
JÚLIA – Tudo se harmoniza neste mundo. Olha, são só dois minutos.
Alfredo vai ali, aluga-te um dominó chique, tu o vestes, eu te trago uma máscara nova, porque tenho duas; e vamos ver aquilo que há de estar muito lindo.
AMÁLIA – Não posso, minha irmã.
JÚLIA – Podes, mas não queres.
AMÁLIA – Não quero porque não devo. Se por um incidente qualquer chegasse meu marido à casa e não me achasse?
JÚLIA – Deixava-se-lhe um recado.
AMÁLIA – Não basta. Que idéias lhe passarão pela cabeça vendo esta resolução inesperada? O marido, com quanto não seja um senhor é um amigo a quem devemos todas as boas condescendências.
ALFREDO – Apoiadíssimo! (Ouve-se na rua uma orquestra passar)
Bravo, que belo! Se a música influi nos soldados o valor que agora sinto, creio que uma clarineta vale mais do que uma peça de artilharia.
JÚLIA – É a sociedade carnavalesca que passa e vai para o baile.
Vamos somente ver-lhe a entrada na sala do teatro. Temos um camarote e lá estamos a cômodo, gozando de tudo a portas fechadas.
ALFREDO – E temos um petisco que mandei aprontar, assim como um chá... Um chá de caravana, que mandei buscar à Rússia.
AMÁLIA – Tudo está muito bom, mas não vou. 14 JÚLIA – Porque não tens vontade; porque estás ficando uma freira.
AMÁLIA – Vontade não falta, porque sou moça e gosto de divertir-me;
mas não posso.
ALFREDO – Dizem que está tudo de uma riqueza estupenda! Assevero que vi os carnavais de Paris e de Roma e que ambos estão longe de emparelhar com o nosso deste ano! Não pensem vocês que lá é melhor! Tudo o que é bom pega com facilidade na nossa terra.
JÚLIA – Alguma coisa, alguma coisa; mas o bom, o bom de todos os tempos, o que fez a Europa grande, não veio. Ainda não sabemos louvar e agradecer.
ALFREDO – E o que estou fazendo agora? (À parte) Isto é comigo, que a não louvo dia e noite, como meu cunhado faz à sua. As mulheres gostam mais dos Judas que das Madalenas (Apontando para si no último caso.)
Escutem, minhas senhoras. O programa fala de Apolo, da corte do rei Midas e do seu magnífico acompanhamento. Sei que se recrutaram todas as dançarinas ativas em disponibilidade e exoneradas; sei que há uma dança antiga, uma bacanal em regra; sei que há outra dança pírrica de brancos e vermelhos ensaiada pelo novo mestre que nos veio de Milão; e sei mais que há uma pantomima, que acaba pelo galope infernal. Aí entrarei eu, para lembrar-me do que fui. Eis o que há de acontecer, sem faltar um pontinho.
JÚLIA – Vamos lá, diga tudo.
ALFREDO (Imitando Juliano) – Juliano chega à porta, pergunta pela mana, Tibúrcio responde: “A senhora foi ao baile Mascarado”. “Sozinha?”
pergunta logo. “Não senhor, com a senhora dona Júlia e com o senhor Alfredo”. Calado, dá três passos no corredor, pára e pergunta: “A que horas saíram?” “À uma hora”, responde o criado; e ele diz com ar severo: “Pois bem, esperarei”. O criado anuncia-lhe o bilhete que deixamos em cima da mesa e ele em dois pulos está aqui na sala. De chapéu na cabeça, lê o que tu hás de escrever...
JÚLIA – Ou o senhor, que tem ótima letra...
ALFREDO – Ou eu; e fica pensativo; e do mesmo passo, meia-volta à direita, com outros três pulos está na rua e com mais dois passos no camarote número nove da primeira ordem, contente como sempre. E se viermos antes, pode ignorar...
AMÁLIA – Não brinque assim. Nossa mãe sempre nos dizia: “Não cedam, não fraqueiem, pois que dado o primeiro passo lá vai tudo pelo ar fora.
Os homens, mesmo os mais estúpidos, sabem pintar tudo às maravilhas, mas depois...
ALFREDO – Isso era no tempo do rei velho, quando o bigode era um privilégio, o charuto um crime e o teatro uma casa de perdição. Tempos das 15 beatas e dos santarrões, em que a roda dos enjeitados engolia mais meninos por noite do que as moendas de um engenho feixes de cana de açúcar. Diga a seu marido que a violentei e ele que venha pelejar comigo.
JÚLIA – Às vezes diz coisas boas.
ALFREDO – Obrigado, obrigadíssimo. Vamos a terminar isto, que o tempo corre.
JÚLIA – Vamos, mana, decida-se, tenha caráter e lembre-se que de pequenino é que se torce o pepino.
ALFREDO – Está muito adiantadinha! Pois não há de torcê-lo.
JÚLIA – São dois passos e num instante tudo está pronto. Alfredo, sai e traze-me o mais belo e o mais novo dominó que encontrares. Vê se ainda está lá aquele branco; vai, não faças preço, e volta. Enfim já tens vestes e ninguém nos há de conhecer. (Para Alfredo) Então, que demora é essa?
AMÁLIA – Não saia, mano, porque não precisa.
JÚLIA – Pois então com que hás de ir? Bem, toma o meu dominó que eu vou com o teu chapéu e xales. Está tudo feito. (Quer despir-se).
AMÁLIA – Se eu quisesse ir não precisava do teu dominó nem do outro.
JÚLIA – Por quê?
AMÁLIA – Porque tinha um em casa, e bem bonito e novíssimo.
JÚLIA – Aqui há coisa.
ALFREDO – Há segredo e maganeira. Vamos, porque temos surpresa.
Querem ir sozinhas e nos intrigar por lá! Pois já estou prevenido. Esta mana é muito disfarçada.
JÚLIA – Para que esses mistérios? Tens camarote? É melhor irmos juntas.
AMÁLIA – Estão ambos no ar. Eis o caso. Às ave-marias trouxeramme aqui uma caixa com um lindo dominó branco, e na caixa o número da casa e as iniciais de meu marido. Confesso-te que cuidei ser uma agradável surpresa, mas como o vi entrar e sair sem dizer nada, assentei de o não avisar, à espera...
JÚLIA – Basta, basta, basta; já sei o que foi. Ajustaram-se para ir ao baile e brigaram depois. Ele pegou o chapéu e safou-se.
AMÁLIA – Está enganada.
JÚLIA – Pôs-se a panos e fingiu-nos uma viagem... E a que horas?! Que viagem é essa? Quem vê terras à noite dá ordens às estrelas ou então conversa com os bacuraus e com as corujas. Contos e mais contos.
ALFREDO – Talvez esteja lá no teatro a regalar-se.
AMÁLIA – Antes fosse, antes fosse. (Suspira)
JÚLIA – Foi briga; tu amuaste, e... Ainda és ciumenta? 16 ALFREDO – É e será como todas. O tempo foge, e vamos, já que a senhora não quer.
JÚLIA – Vai buscar o dominó que eu quero vê-lo. Creio que isto não faz mal.
AMÁLIA – Para que, com que fim?
JÚLIA – Se for mais bonito do que o meu, levo-o ao baile, porque tu mo emprestas.
AMÁLIA – Mas eu não sei se ele é meu.
JÚLIA – Pois de quem é? Veio-te à casa e com o nome de teu marido.
AMÁLIA – E se ele resolver mandá-lo? Assim não pagará.
ALFREDO – Apanhei-a com a boca na botija. Que histórias, que disfarce.
AMÁLIA – Para provar-lhes que não há nada e que falo a verdade, vou buscá-lo porque assim acabam-se as curiosidades e as... suspeitas.
CENA XIV
JÚLIA e ALFREDO
JÚLIA – Quero divertir-me porque assim não estarei só. Vosmecê vai ao seu galope, pois vá, que lhe dou plena liberdade no teatro. A sua vizinhança é às vezes muito importuna por causa de certas amizades.
ALFREDO – Obrigadíssimo; mas desejava uma explicação.
JÚLIA – Porque tira a máscara e o seu rosto formoso e resplendente atrai muitas mariposas. Lembra-se do ano atrasado, e era então noivo?
ALFREDO – Eu hoje já não sinto o calor que então sentia. Quanto as suas esperanças de liberdade plena, vá perdendo-as, porque vamos juntos e juntinhos ficaremos.
JÚLIA – Tens medo que eu me perca, no camarote? Seremos duas; é mais difícil.
ALFREDO – Tua irmã lá não vai, e estamos gastando um tempo preciosíssimo.
JÚLIA – Há de ir. Tu sabes que quando quero, quero e venço.
ALFREDO – Isso é às vezes comigo, que cedo, porque quero ceder.
Ceder é vencer; diz o poeta... que agora me não lembro o nome.
JÚLIA – Há de ir, quer queira ou não queira. Agora fiz tenção.
ALFREDO – Ah, ah, ah... que segurança! São duas teimosas, e aqui ficaremos toda a noite a discutir.
JÚLIA – Quer apostar?
ALFREDO – Tudo quanto quiser, minha senhorita. 17 JÚLIA – Uma caleche? Vamos, não se arrependa...
ALFREDO – Sempre a caleche. Pois vá, pois vá a caleche.
JÚLIA – Dê-me a sua palavra de honra.
ALFREDO – Dou-a. E se a menina não ganhar a aposta?
JÚLIA – Perco a caleche.
ALFREDO – Mas olha que é com cavalos, arreios e librés. (À parte)
Desta feita paga o pai e eu fico como quero. (A ela) E onde hás de ir buscar tanto dinheiro? Vamos lá, é bom esclarecer as coisas.
JÚLIA – Em parte alguma.
ALFREDO – Então como é isso?! Apontamos ao ganha-perde?
JÚLIA – Não, senhor; quem perde neste caso sou eu, porque fico sem a caleche; e quem ganha é o senhor, porque fica com o seu valor na algibeira:
dinheiro poupado, dinheiro ganhado.
ALFREDO – Mas então o que é que eu ganho?
JÚLIA – Ah! Ainda não conheces o pai dos filhos de Zebedeu? Bem se vê que estás já com o galope na cabeça e o juízo nos pés. Ela aí vem; lanças em riste, cavaleiro: está aberta a liça; mas não toque trombeta e atabales.
ALFREDO – Hei de pleitear até morrer.
CENA XV
AMÁLIA e os dois; TIBÚRCIO com a caixa (Abrem a caixa, tiram o dominó e o examinam como senhoras)
AMÁLIA – É muito bonito! Se queres ir com ele vai, pouco me importa. e até estimo.
JÚLIA – Vou, decerto. Que formosa coisa! E que caixa tão taful!
ALFREDO – Há de te assentar como as penas de uma rola.
JÚLIA – Capisco, as penas. Mana, eu o hei de tratar bem, porque não danço hoje.
ALFREDO – (Batendo na algibeira) Tenho cobres e vai-se a caleche com a vaidade.
AMÁLIA – Queres ver como fica? Dá um ar de corpo admirável, um ar de estátua.
JÚLIA – Certamente que quero vê-lo primeiro no teu corpo. (À parte)
Tenho caleche.
ALFREDO – (À parte) Antes que a caleche fuja. (Alto) Menina, vesteo, são horas e mais que horas; vamos, vamos. (Olha para o relógio) E já é tarde. 18 JÚLIA – (À parte) Firme: seguremos nas rédeas. (Alto) Já vou, mas quero ver como me assenta este dominó, porque temos ambas o mesmo corpo.
Mana, para não perder tempo, veste-o, para eu assim melhor vê-lo. De noite não se vê bem no espelho.
AMÁLIA (Pondo o dominó) – Vê como é belo! Que seda, que pregas e que todo magnífico! Anda, veste-o e vai brilhar com ele, não no camarote.
JÚLIA – Vamos lá, complete tudo. É impossível que ele me assente assim!
ALFREDO – São todas duas do mesmo corpo e altura.
JÚLIA – Estás como uma visão encantadora! Se eu fosse um moço, mas um destes moços em regra, caía a teus pés. Tu não sabes o que vales!
AMÁLIA – Não digas asneiras. Toma e parte. (Quer despir-se)
ALFREDO – Ganhei os cobres. Vamos, adeus mana do coração, minha querida maninha.
JÚLIA – Espera.(Para Amália) Amália, dá uma volta, assim, no salão, e faze o que tu bem sabes.
AMÁLIA – Darei, mas com estes sapatos é impossível. Enfim, tu não és homem para apreciar bem um pé de moça?
JÚLIA – E por que não? Anda. Como és graciosa! Confesso que sempre tive inveja de ti. Os dedos não são iguais. Então, doutor Alfredo?
ALFREDO – Já vai ficando muito tarde.
AMÁLIA – És muito caçoadeira e bem te conheço. Lembra-me bem de quando entrávamos em qualquer baile de tudo quanto se passava: tu é que eras o ímã de todos os olhos, o espelho de todos os agrados e sorrisos!
ALFREDO (A Júlia) – Estão rasgando sedas baratas. Estas não me entram pela algibeira. (À parte) Estás empurrando a caleche para o meu lado...
JÚLIA – (À parte) Quer fugir; mas está segura; vamos. (Alto) Conheço quanto és modesta.
AMÁLIA – Acabou-se. Anda, veste-o e vai florear com teu marido. Eu fico, porque devo ficar. Não é assim, Alfredo? Juliano está fora... E depois...
ALFREDO – Sempre vos conheci como um modelo de sabedoria e de prudência. (À parte) Puxa.
JÚLIA – E também eu. Venha o dominó; porém, espera.
AMÁLIA – Para que mais? Aí o tens, ajuda-me a tirá-lo sem amarrotálo.
ALFREDO – (À parte) Venha a caleche. (Alto) Vamos, vamos, seja como for.
JÚLIA – Não vou, não quero. Tenho receios...
ALFREDO – Essa agora é nova e inesperada! 19 AMÁLIA – Receios de quê? Já é teu e não volto atrás: tenho nisso muito gosto, e gosto particular.
ALFREDO – Gosto de quem tem palavra. Decida, senhora Júlia.
JÚLIA – Aceitarei com uma pequenina condição...Com um favorzinho...
ALFREDO – O favor está feito: não há mais condições. (Faz-lhe momices de escárnio)
JÚLIA – Assim não vou, quero ficar.
AMÁLIA – Pois dize, que eu farei tudo (À parte) Quero acabar com isto, que é tarde.
JÚLIA – Fazes?
AMÁLIA – Se é coisa possível.
JÚLIA – Fácil; é um capricho de mulher.
ALFREDO – Deixe-se de maçar sua irmã. Ensaque-se, ou envolva-se nessa nuvem misteriosa e venha ser a deusa do baile.
JÚLIA – Não seja teimoso, deixe-me.
ALFREDO – Não seja mosca tonta: deixe sua irmã, que já fez tudo.
Anda.
AMÁLIA – Estás perdendo tempo.
JÚLIA – Vejo que me não queres aqui e que preferes a solidão.
AMÁLIA – Por Deus, que não. Fala; estou pronta.
JÚLIA – Os homens não entendem disto senão quando estão namorados, mas nós entendemos sempre, porque este é o mundo que eles nos concedem. Quero ver o efeito geral, o todo com suas partes. Quero ver como é que bolsa, como se encurvam as pregas desse dominó em uma volta de valsa, nesse gracioso rodopio, em que as sedas imitam o sussurro da aragem nas folhas das bananeiras, o murmúrio das águas ao respiro da brisa.
ALFREDO – Temos poesia, e eu serei o banana. O respiro? O respiro quero eu.
JÚLIA – As pontas deste laço encarnado, desta divisa com fímbrias d’ouro, devem abrir-se, voar, como as duas asas de um guará sobre o chamalote das ondas de um rio cristalino.
ALFREDO – Essa poesia me faz agora lembrar uma coisa. Como já não estará a água que encomendei para o chá! Certamente esfriada e choca! Lá tem espelhos às dúzias e cada um do tamanho desta sala. Com esses teus olhos, que vêem estrelas às escuras, poderás ver tudo isso à luz do gás. (À parte) Ela bem puxa, mas o carro já está nas mãos de Faetonte. Há de ir tudo pelos ares.
AMÁLIA – O que ele diz é verdade.
JÚLIA – Estás com sono? 20 AMÁLIA – Sono? Nenhum. Quem me dera que aqui ficasses toda a noite.
ALFREDO – Fique, minha senhora, mas eu vou estrear o camarote que já paguei, e o chá...
JÚLIA – Façamos aqui o nosso baile.
ALFREDO – E a nossa ceia, que encomendei para a uma hora em ponto?
JÚLIA – Que esfrie, que se perca e que a coma quem quiser. Amália, vai calçar um sapatinho de cetim branco, uma meia de seda lustrosa, meia cor de carne, como no dia do teu noivado.
AMÁLIA – Para que, e para quem? Que luxo de caprichos a esta hora!
JÚLIA – Para mim. Ainda não é tudo. Quero que calces umas luvas novas, luvas lustradas, daquelas que nos vieram de Paris, e ficará tudo assim completo. Conheces agora o motivo, e dize-me se não tenho razão. Não exijo mais nada. Vai cumprir a promessa: eis o favor.
ALFREDO (À parte) – Está pondo pedrinhas nas rodas da caleche.
(Alto) Não incomodes a mana. Toilette a estas horas, e em casa?
AMÁLIA – (Hesitando) Tens umas idéias! Umas coisas...
JÚLIA – (Enfadada) Pois não vou daqui. A senhora quer faltar à palavra, pois falte.
ALFREDO – Estes sapatinhos me fazem lembrar aqueles sapatinhosde-judeu de que fala o mestre Camões, que também fora mestre em artes.
AMÁLIA – Pois bem, não te quero mais contrariar. Lembrar-me-ei sempre desta noite. (Despe o dominó)
CENA XVI
JÚLIA e ALFREDO
JÚLIA – Abra aquele piano, acenda essas velas, todas; assente-se e ponha-se pronto à voz do mestre-sala. Venceu, meu senhor; está triunfante, mas há de perder ainda alguns minutos. Uma caleche bonita, nova em folha, não se ganha assim. Paciência, perco duas coisas: a caleche e talvez o baile.
ALFREDO – O baile não, mas não te desconsoles, fica para mais tarde a caleche. Esta gente do comércio, estes pés-de-boi não gostam do rapaz que se põe de sege e criados antes de chegar a uma altura sólida; e quase que têm razão. Teu pai será o primeiro.
JÚLIA – Como perdi, não quero ouvir mais razões. Ponha-se no piano e escolha a música. (Enquanto ele abre o piano, escolhe as músicas, acende as velas, Júlia examina o dominó e acha uma carta perfumada na algibeira dele; 21 cheira a carta, arregala os olhos e a guarda consigo) Como é belo! É uma maravilha! (À parte) Todo o meu corpo parece um formigueiro. Que carta será esta? (Alto) Então? Você está hoje um verdadeiro jaboti de atividade. Vamos, luzes e mais luzes.
ALFREDO – (À parte) A caleche é que está mesmo com dois jabotis.
(Alto) Tudo está pronto. Quer valsar, pois valsará: é melhor assim para o corpo.
JÚLIA – Percebo. Mais luzes; acenda as serpentinas, que não há baile às escuras.
ALFREDO – A tua vista é que me parece estar se escurecendo. Tem paciência. Logo dar-te-ei o carro da noite, pintado de azul e marchetado de estrelas, que é mais belo e não precisa de consertos, de cocheiro, pajem e palha...
JÚLIA – Está triunfante; é generoso, zomba da vencida.
ALFREDO – (Cantando no piano)
“La donna è mobile, “Qual piuma al vento, “Muta d’accento “E di pensier.
JÚLIA – Bravo, bravíssimo. (Bate palmas e ri-se) É um rouxinol arribado.
CENA XVII
AMÁLIA, JÚLIA e ALFREDO
AMÁLIA – Não pensei passar esta noite tão agradavelmente. Sempre foste alegre. Continue, mano.
JÚLIA – Para que pesar a vida com mágoas que não vêm perseguirnos?
AMÁLIA – De há muito que não ouvia a sua bela voz. Muito bem, continue.
JÚLIA – Agora sim; que pé! Estou contente por te ver contente. Veste outra vez o dominó enquanto eu vou lá dentro.
AMÁLIA – Tem luz, tem tudo na alcova.
JÚLIA – Bem, obrigada. (À parte) Vamos a decifrar este enigma.
(Mostra a carta)
CENA XVIII 22 AMÁLIA e ALFREDO
AMÁLIA – Toque, ou cante alguma coisa bonita e moderna.
ALFREDO – Esta sua irmã é das Arábias. Ainda a não vi triste um só dia! O que eu sinto é ela estar-lhe a dar esta maçada, e fora de horas.
AMÁLIA (No espelho) – Nenhuma. O que não farei para agradar-lhe!
Olhe, fiz mais porque até trouxe as minhas pulseiras; veja como são bonitas!
ALFREDO – Conheço-as. (À parte) Vaidade! São bichos do diabo.
(Alto) É incômodo o vestir-se assim e despir-se depois. Sua irmã é em tudo assim. Comprei uma coleção de plantas com os desenhos de suas flores; que faz ela? Manda chamar um pintor e figurar em perspectiva no muro do jardim aquelas plantas, já grandes, para ver o efeito. Muda daqui, muda dali; mais um vaso, mais uma estátua, e fez uma coisa linda.
AMÁLIA – Ainda não vi isso e ela nada me disse.
ALFREDO – Surpresa! Não lhe fale nisto que logo me chama de cesto roto. Satisfaça-lhe o capricho; mas eu penso, mana, que não deve de ir ao baile.
AMÁLIA – Não tenho a menor tenção. Se o mano soubesse... Aí vem ela. Estou pronta e até assim. (Mostra-lhe as pulseiras).
CENA XIX
JÚLIA, AMÁLIA e ALFREDO
JÚLIA – Assim mesmo, menina; tu é que me adivinhas. Bravo, que efeito maravilhoso! Hás de fazer ficar tudo de boca aberta.
AMÁLIA – As paredes da minha casa são novas e ainda não têm aberturas. Os teus olhos são os que embelezam tudo. Brinca, porque assim te fez o céu.
JÚLIA – Olha, esse teu pezinho e essas tuas mãozinhas são de invejar.
AMÁLIA – São como os teus e tu bem o sabes.
JÚLIA – E por que nunca os artistas quiseram modelar as minhas mãos?
Aquele escultor que veio para a estátua eqüestre, quando viu na Academia as tuas mãos em gesso, modeladas pelo Honorato, ficou tão louco que fez delas uma cópia e levou-as para a França. Disse que nunca as vira mais belas e as copiou na estátua da Sévigné.
AMÁLIA – Histórias que te contaram. Nunca soube de tais coisas.
JÚLIA – Pois menina, tu não viste até uns versos no Diário do Rio? As mãos divinas! Os jornais falaram tanto disto! A quem pois se referia o poeta, discorrendo sobre o que vira na Academia? Inocente... 23 AMÁLIA – Li, é verdade, mas não atinei. Como já não sou deste mundo, considero-me sepultada. Agora estou de luvas...
JÚLIA – As luvas são como a prata em que se encastoa o brilhante.
Agora sou eu que toco; saia do piano. Vamos; uma volta de valsa. Estas valsas de Strauss e Lanner não me servem; quero esta do Álbum das Senhoras. (Toca e recita o seguinte, á parte) Agora: bravo! (Dançam) Bravo, madame; bravo, chevalier. Allons, du courage.
1. Prendi o rato na ratoeira, Tinha o focinho já na melgueira.
2. Ganhei a aposta, tenho calecha;
Vou dar em cheio, bater a brecha.
3. (Estribilho na 2ª parte)
Cartinha amada, foste um tesouro!
Achei o fio, e que fio d’ouro!
4. (Na repetição)
Oh, que finura! Oh! que requinte!!
Tenho calecha, vou dar no vinte.
1. Pobre da tola, está na esparrela;
E maganão zombando dela.
2. Anda por fora; come a fartar, E a pobre em casa, e a jejuar.
3. Ele na rua, buscando tocas;
Ela encerrada, comendo mocas!
4. Que padre mestre, que meninório!
Que diplomata, oh! que finório.
1. O meu tratante também queria Levar a vida na fadaria;
2. Mas eu cortei-lhe o jogo no meio, Triunfei de rijo, dando-lhe em cheio.
3. e 4. (O estribilho)
1. O meu cunhado não pede meça, É das Arábias, é fina peça!
2. Tem pão em casa e pede ao vizinho!
Hei de fartá-lo mas c’um bolinho.
3. É dos que canta de noite e dia, A caridade, a filantropia; 24 4. Deixa a mulher e vai passear:
Bravo, que santo, oh, e que exemplar!
1. Temos pagode; temos mistérios...
Temos vitória e grão salvatério! (Forte)
2. Mato dois coelhos duma pedrada;
Lucro dois frutos duma assentada.
3. e 4. (O estribilho)
AMÁLIA – Pois já cansaste?
ALFREDO – Está satisfeito o capricho; agora toca a retirada.
JÚLIA – Ainda não. (À parte) Tudo vai bem. (Alto) Muto di accento e di pensier. Quero completar o baile. En avant deux! Marche. (Toca uma contradança).
AMÁLIA – Estou gostando.
JÚLIA – Não sabe quanto estimo. Vamos, firme.
ALFREDO – Já lá se vai a minha bela ceia.
JÚLIA – Teremos melhor pratinho. Não é assim, mana?
AMÁLIA – Farei o que quiserem. Temos chá e ótimo café! (Dançam e por fim acabam com o galope).
ALFREDO (Atirando-se no sofá) – Basta, que mais é matar.
AMÁLIA – Estou botando a alma pela boca fora. Há tanto tempo que não danço! Não pensei passar a noite assim!
JÚLIA – Se tu visses como danças! Que graça, e que pezinho! É a mesma coisa! Danças como uma sílfide sobre as flores; és mais leve do que o colibri quando beija as flores da laranjeira.
AMÁLIA – Deixa-te de asneiras. Aí tens o teu dominó, antes que se amarrote.
JÚLIA – Não o tires ainda, pelo amor de Deus. Descansa e conserva por algum tempo essa atmosfera encandecida, senão podes apanhar o mais prosaico de todos os defluxos.
AMÁLIA – Mas isto é tão leve?...
JÚLIA – Não importa. São cinco minutos.
ALFREDO – Escute a mestra, mas não faça tudo; porque os mestres também erram.
AMÁLIA – Pareceu-me que recitaste versos?
ALFREDO – Eu só ouvi o ruflar das sedas e a voz do mestre-sala.
JÚLIA – Recitei uma Ballata nova, novíssima, que ainda não está acabada.
AMÁLIA – Da tua composição, já se sabe? 25 JÚLIA – Justamente. É um drama em miniatura.
ALFREDO – Se fosse em outra hora, pedia para ouvi-lo.
AMÁLIA – Recita-me o começo, um pedacinho somente...
JÚLIA – Quanto estiver completo. Hás de chorar e gostar muito.
ALFREDO – Está fechada a sessão. Vamos; porque vamos ao enterro do baile. Deixemos a mana.
JÚLIA – Se ela vai conosco. Vamos, mana, temos o palácio de Aladino!
Pinturas do Tagliabue, flores de Santa Catarina, doces da Bahia, bufete do [ilegível], banda do [ilegível], orquestra de Banquete e olhos brasileiros.
Vamos, vamos.
AMÁLIA – Quem! Eu? Que esperança!
JÚLIA – Temos lá mais uma surpresa, um lance inesperado que te há de agradar muito e pelo qual me ficarás eternamente obrigada.
AMÁLIA – Que artes estás inventando!
JÚLIA – Hás de ver teu marido, alegre, voejando como um beija-flor.
ALFREDO – Esta só lembra do diabo. (À parte) Vejam que lembrança!
Isto não é mulher!
AMÁLIA – Só eu sei para onde ele foi, coitado.
JÚLIA – Coitado de ti. (Com acento forte) Lá está.
AMÁLIA (Treme) – Não fales assim, que esse teu “lá está”, mana, como que estalou em minha alma e a fustigou. Dize-me, sabes de alguma coisa; dize-me pelo amor de Deus.
ALFREDO – Não sabe nada, não há nada: tudo isto é uma armadilha.
(À parte) Isto é o demônio encarnado.
JÚLIA – Quero que vás; e não me perguntes.
AMÁLIA – Não, não vou. (Quer despir-se, mas a outra a impede).
ALFREDO – Faz muito bem, mana, faz muito bem assim, dispa-se.
JÚLIA – São justamente as horas e agora vão eles para a ceia, e ele também... Também sua súcia.
AMÁLIA – Eles quem? Ele quem? Que súcia?
ALFREDO – Está improvisando, mana, está improvisando.
JÚLIA – Cale-se, não seja criança. (Ao ouvido da irmã) A sociedade dos lobisomens, só composta de homens casados, de maridinhos fiéis...
ALFREDO (À parte) – Não larga a presa! Pode dizer adeus à caleche.
AMÁLIA (Alto) – Os lobisomens! Pois o que é isso? (À parte) Eu tremo, meu Deus, eu tremo!
ALFREDO – Ah, ah, ah, que idéia, que invenção! (À parte) Isto é o diabo! É de enforcar a gente. 26 JÚLIA – É uma sociedade de certos santinhos, de homens muito sérios, que correm à meia-noite o fado com as fadas. Não entra para ela um só homem solteiro.
AMÁLIA – E quem é que te disse tudo isto?
JÚLIA – Alfredo.
ALFREDO – Ora esta é boa! Para que me estás comprometendo? Eu não disse nada.
JÚLIA – Cale-se; e veja que sou discreta.
ALFREDO – Mana, tudo isto é mentira. Não vá ao baile, fique em casa.
JÚLIA – Também o senhor era da sociedade, mas eu o fiz demitir-se e jurar de lá não pôr mais os pezinhos. Vamos, Amália, que ele lá está.
AMÁLIA – Pois sim, eu vou; mas não, não vou. Não vou, porque...
porque...
JÚLIA – Tens medo de ser conhecida com esse dominó? Pois toma o meu.
AMÁLIA (Pensativa) – Não é por isso, mas... isto... não e por isso...
JÚLIA – Olha: esse laço vermelho é um sinal; e apenas tu chegares, logo conhecerás se há ou não alguma coisa. Olha que eu vejo longe...
AMÁLIA – Estás me envenenando com suspeitas que nunca tive.
JÚLIA – Vamos, e num quarto de horas estamos aqui (Fala-lhe ao ouvido)
ALFREDO (À parte) – Está forrando as rodas da caleche com veludo, para que eu não ouça o barulho e pague sem remissão. Pois não?...
AMÁLIA (Firme) – Vamos, vamos, sem perder um segundo.
ALFREDO – Pois está resolvida!
AMÁLIA (Perturbada) – Por um instante somente; é entrar e sair.
JÚLIA – Vamos que é tempo.
AMÁLIA (Toca a campainha) – Ó lá, estás dormindo?
ALFREDO – Lasciate ogni speranza. Adeus, caleche.
CENA XX
TIBÚRCIO, AMÁLIA, JÚLIA e ALFREDO
AMÁLIA – Apaga as velas; fica na escada, que eu já volto.
FIM DO PRIMEIRO ATO
SEGUNDO ATO 27 CENA I
JÚLIA e AMÁLIA
(Júlia vai entrando desembaraçadamente e Amália com muita timidez).
JÚLIA (Baixo a Amália) – Não tenhas medo, nem vergonha. Nós não somos gente, porque somos máscaras; e as máscaras só têm rubor de vermelhão. Olha como isto aqui esta bonito! Que mesa, que tafularia! Isto é para depois do baile! Quem serão os senhores convivas desta bela ceia?
AMÁLIA – És muito animosa! E...
JÚLIA – E curiosa, dize. E para que me acompanhas? Eu quero ver tudo e para isso é que paguei. Não sei o que sinto de sem-cerimônia e coragem com esta máscara. Parece-me que ando numa solidão, sem me importar com nada!
Ainda não encontrei uma vítima a gosto; tudo o que se vê são insignificâncias, coisas vulgares, rótulos forçados. Queria pilhar um graúdo, assim um deputado, um senador ou um ministro. Quem sabe se isto é deles?
AMÁLIA – Pensei que houvesse mais desordem, mais barulho; porém vejo tudo aqui em perfeito andamento. As salas estão bonitas e a música faz cócegas deveras.
JÚLIA – Havemos de dançar daqui a pouco. Lá no outro teatro há mais liberdade e alegria, porque lá está a rapaziada; isto aqui é mais calmo, por ser mais sério. Não penses que seja lá muito sério. Queira Deus que o senhor Alfredo, com esta folga que lhe dei, não ponha as manguinhas de fora; porque aquele menino tem sangue nas veias, e umas tendências... umas tendências! ...
AMÁLIA – Não sei como nos deixaram entrar, aqueles dois guardas.
Olha, lá fecharam a porta a dois máscaras, e agora? Estamos fechadas!
JÚLIA – É que nos tomaram por algumas das que hão de aqui cear.
AMÁLIA – E depois? Como sair?
JÚLIA – Se não acharmos aberta, veremos. Esta mesa está me dizendo que isto tudo é de gente fina, pois está tudo em regra diplomática.
AMÁLIA – Ando como tonta e a tremer. Vamos indo para a porta...
JÚLIA – Sair; sem saber o que isto significa? Nada, não quero perder tempo.
AMÁLIA – Já vimos tudo, vamos para casa. Pregaste-me aquela peta e eu, como sempre crédula, caí e vim ao baile sem querer. Olha que tu és a responsável desta loucura. Se ele soubesse?... Onde está ele?!
JÚLIA – Não te assustes, que não há de quê. Também não és nenhuma escrava. Fizeste muito bem, porque ganhei uma caleche. Apostei em como 28 vinhas ao baile e ganhei. Fazer uma caridade aos meus pés e um agradável conchego ao meu corpinho, ao meu amor próprio, que é alguma coisa.
AMÁLIA – E à tua vaidade, não?...
JÚLIA – A tudo, a tudo, certamente. Eu morria por uma caleche e já a tenho; falta-me agora um camarote no teatro italiano e uma chácara na Tijuca ou em Petrópolis.
AMÁLIA – Mas isso tudo vai fazer uma despesa enorme!
JÚLIA – A aritmética não foi feita para os passarinhos, porque esses não têm guarda-livros. Pelo contrário, menina, é uma grande economia. Tu não sabes, que assim prendo o senhor Alfredo das Arábias, que é um pássaro fujão e de instintos carna...carnívoros?
AMÁLIA – Não o creio capaz de tal sujeição.
JÚLIA – Na república doméstica, quando o cidadão abusa da liberdade, arma-se-lhe uma destas prisões, para tê-lo o maior tempo em custódia.
AMÁLIA – Os homens fazem as leis, têm calças e vão à guerra, enquanto ficamos em casa.
JÚLIA – Com jeito e paciência tudo se arranja. Uma mulher é tudo para um homem, logo que ela não perde o siso e a perseverança. Estás triste?
AMÁLIA – Nunca me achei nestas coisas; não estou a meu cômodo, nunca vim aqui.
JÚLIA – Nem eu. Dize: se os soldados precisassem de guerrear antes de entrar em batalha, como se faria isso? Se tudo andasse por ensaios, ninguém se casaria...
AMÁLIA – Menos eu, que ainda me não arrependi.
JÚLIA – Pois eu já; e como não tenho remédio, pus mãos à obra e disse:
alto lá, que Deus não me deu cabeça para dar cabeçadas; e a coisa vai correndo às mil maravilhas. Arranquei-o dos lobisomens e o considero arrependido.
AMÁLIA – Meu Deus! Aí vem gente; acabou-se a contradança. Vamos que podem vir os donos da sala. Olha! Lá está um cão enorme falando com o guarda, e apontando para nós.
JÚLIA – Sairemos com todas as honras dos [ilegível] Isto aqui é tudo de gente fina. Não há que temer.
DOUTOR ALBANO (No fundo; vestido de lobo coroado, e falando ao guarda) – Aqui não entra um mosquito macho, sem cantar à orelha o santo e a senha bem claramente; senão temos o diabo a catorze. O madamismo pode entrar livremente, porque logo faremos a apuração, ao tirar das máscaras; e demais, aqui só virá quem for de casa, ou tiver convite. As juritis são mais tímidas do que os gaviões. 29 OS GUARDAS – Não há que temer. Já lá estão duas senhoras, que não conhecemos.
AMÁLIA – Ouves?
JÚLIA – Ouço.
DOUTOR ALBANO – Estejam duzentas. Conheçam-me dos homens e basta. Vocês aqui são como dois eunucos do serralho. Mulher, passa; homem, ferro no justo. Muita civilidade em todo o caso, e trancando logo a porta. Há mouros na fronteira, piratas na costa e salteadores pelo recôncavo. Entendemme?
OS GUARDAS – Perfeitamente.
AMÁLIA – E se nos obrigarem a sair?
JÚLIA – Com a cara que entramos com ela sairemos; e sem mudança alguma.
AMÁLIA – Aí vem o tal cachorro, vamos, vamos depressa pelo outro lado.
JÚLIA – Espera, não tenhas medo, não morde, tem dentes de papelão.
CENA II
DOUTOR ALBANO, JÚLIA e AMÁLIA
DOUTOR ALBANO (Vendo tudo com minúcia) – Está bem; este copeiro sabe pôr uma mesa! (Levanta o reposteiro) Já está o toucador com luzes, bom; parece que nada faltará. Teremos uma noite como muitas, uma das mil e uma noites do oriente. (As duas damas querem fugir pelo lado oposto, mas ele as ataca de braços abertos) Quem é pontual, espera. Bravo, que elegância! O relógio do amor tem uma corda mágica, adianta-se no começo e se atrasa sempre no fim. Podem tirar as máscaras, minhas deidades, e mostrar já esses rostos divinais. Querem tomar alguma coisa? Marrasquino, creme de amêndoas, cravo, canela, baunilha, curaçau legítimo e até laranjinha de Parati?
Aqui é pedir por boca e sem a menor cerimônia.
JÚLIA – Obrigadíssima ainda é cedo.
(Amália quer fugir e puxa por Júlia, mas ele não as deixa).
DOUTOR ALBANO (Indo para ela, fazendo passos) – Adivinho, e que delícia! Ali está o toucador, preparadinho por este bichinho, que tudo sabe e tudo previu. (À parte) Vejo que a de vestes cândidas é uma candidata; a quem pertencerá esta tímida pombinha? Vamos animá-la.
“Grão-mestre, mordomo e guarda Desta mansão venturosa, 30 Às damas só falo em verso, E aos homens em chilra prosa.
Ali está um camarim, Por biombos separado, Com sofás, banhos e leitos, Tudo no trinque arranjado!
Como em um templo de aromas, Em cristais e porcelanas, Tenho ali quanto perfuma As terras das Taprobanas!
De lá foram, pelos mares, Para Londres e Paris, Receber nos alambiques, Receber no almofariz, Tudo quanto a primavera De mais cheiroso produz;
Tudo quanto a uma coqueta Atrai, encanta e seduz!
Temos tudo: pó de arroz, Coldecreme, glicerina, Essência de violetas, E o tutaninho de quina.
Sabão da flor de Ispahan, Extrato Jardim de Itália, Alva creme de baunilha Almíscar puro da Austrália.
Farinha olente de amêndoas, Leite de arábio pepino, A vera essência de rosas, E o filócomo divino;
O elixir de Ninon, Água, mesmo de Colonha;
Pastilhas de grão-serralho, E as gotinhas de Bolonha. 31 Tudo quanto faz Pinaud.
Para a Espanha, para a Ausônia, Para a Prússia, Áustria, Suécia, Para a Rússia e a Saxônia;
Para os Estados Unidos, Para o Peru e o Chil Para a União Argentina E o Império do Brasil.”
JÚLIA – Cortaste um É! Foi a rima, Que faz brancas as formigas!
Pára, ó vate, não prossigas;
Que tens grosa em vez de lima.
DOUTOR ALBANO – (Ajoelhando-se)
Ó divina poetisa, Se excitei a tua ira, Eis-me por terra, e vencido A teus pés quebrando a lira.
Não sou lobo, sou cordeiro;
Sou um bichinho de amor;
Sou pombinho arrulhador, Que amor prende ao cativeiro.
(Tira a máscara)
JÚLIA – (Contendo-se, por conhecê-lo)
Já que estás desencantado Do teu fado e dessa lida, Vai, pombinho lobisomem, Procurar tua nova vida.
AMÁLIA (Reconhecendo Albano) – Meu Deus! Será ilusão ou realidade?!
DOUTOR ALBANO – Bravo! Isto é de fazer morrer a gente! Secou-seme a musa, mas hei de umedecê-la com o champanhe. Agora, tire a sua máscara.
JÚLIA – Ainda não, meu senhorzinho, ainda é cedo. 32 PRIMEIRO GUARDA – Senhor Chefe, aqui o procuram. É de casa, mas não quer entrar. Venha, que se estão amontoando alguns curiosos na porta.
DOUTOR ALBANO (Pondo a máscara de lobo) – Já lá vou. (Para as duas damas) Eu já volto a vossos pés.
CENA III
AMÁLIA e JÚLIA
AMÁLIA – Estou fora de mim e horrorizada do que vi! quem diria? O
Doutor Albano, aquele homem tão grave e tão sisudo?!!
JÚLIA – Não te alteres, que é perder tudo. Caímos mesmo no covil dos lobos. E que te parece o santarrão do nosso médico e conselheiro?
AMÁLIA – Dizes bem, e conselheiro! Se tu soubesses de uma que ele me pregou! Verdadeiramente os homens são muito argutos: têm livros feitos de propósito e escritos em todas as línguas! Que refinado hipócrita! Vamos, mana.
JÚLIA – Espera. Que foi isso, que livros foram esses?
AMÁLIA – São contos largos, minha irmã, são contos largos. Vamos, vamos.
JÚLIA – Se queres ir, vamos; mas repara que ainda não vimos tudo, e aqui...
AMÁLIA – Sinto-me desfalecida. Não sentes aqui um bafio desagradável, um ar pesado, uma atmosfera repugnante?
JÚLIA – Pelo contrário. Mas é tempo, vamos, que a porta está livre.
Aonde estará o meu senhorzinho da minha alma? Vamos, vamos depressa.
(Vão indo, mas recuam)
CENA IV
(Entram vários mascarados; Júlia, depois de os observar e às damas que os acompanham, vai-se sumindo por entre eles com Amália. Entram mais alguns.)
PRIMEIRO MÁSCARA (À sua dama) – Quase que lhe quebrei a máscara na cara! Já te pedi para que não tires a máscara quando andares comigo, pois sabes que estes brejeiros conhecem o dedo pelos anéis. A
desculpa do calor é que não é boa, não me convence. 33 PRIMEIRA DAMA – Gentes! Como está cheio de partes. (À parte) Era ele mesmo, e com que graça! (Alto) Se serve, serve; e se não, novos ares, novos climas. Tenho muito quem me queira; ainda não tenho caruncho. E se quer, é já.
PRIMEIRO MÁSCARA – O dito por não dito; não falemos mais nisso.
Vai para o toucador, meu bem, vai apurar essa beleza.
SEGUNDO MÁSCARA (À sua dama) – Tirei-te da crápula e da miséria, e já te esqueceste de tudo.
SEGUNDA DAMA (Com voz rouquenha) – Se eu não tivesse paixão por você, não aturava as suas rabugices. Anda só xingando a gente. Eu não conheço aquele rapaz; só o vi uma vez na rua passeando. É forte coisa pilhar uma mulher apaixonada.
SEGUNDO MÁSCARA – Digo isto para o teu bem; porque esses meninos não têm dinheiro. Vamos, tem paciência, meu amor, vai-te arranjar e ficar como um anjinho.
SEGUNDA DAMA (Indo para o toucador e à parte) —Hei de pregarte na menina do olho. Não basta sacrifício! Ciúmes! Ora vejam! A formiga quer criar catarro.
TERCEIRO MÁSCARA (Para a sua dama) – Menina, menina... Olhe que isso não vai bem assim...
TERCEIRA DAMA (Com voz fanhosa e acento francês) – Está hoje muito maçante; se continua, fujo e lá se avenha; vou pour Paris.
TERCEIRO MÁSCARA – Tens muita graça! Vai pentear-te e arranjar isso bem bonito.
TERCEIRA DAMA – Adeus, marreque.
QUARTO MÁSCARA – As pernas boliram-me com o estômago.
Quero lastro e em regra.
QUARTA DAMA – Apetite di cacciatore, di cose in Itália.
QUARTO MÁSCARA – E foi com ele, que te cacei... A embocada foi feliz, minha borboleta.
QUARTA DAMA – Io é que fui la tola in fugir com um homo casado.
(À parte) Paga; anda, paga; porque io estou cantando como las brasileiras:
Você já viu.
P’ra acabá di querê Trabaiá o feio Pro bonito comê Até morrê?
(Vai para o toucador) 34 QUINTO MÁSCARA – (Com dama) O pior é que estamos ainda em minoria; e eu com uma rapa...
TERCEIRO MÁSCARA – Os eleitos do quarto voto são poucos e assim é bom; porque muita gente...
QUARTO MÁSCARA – Onde estaria a sociedade? Poucos, mas bons.
PRIMEIRO MÁSCARA – No entanto, parece que já transpirou alguma coisa por fora; e eu temo que se não leve a mal este nosso passatempo tão inocente. Se eu soubesse do miserável traidor, picava-o em postas. Eu cá não sou de brincadeiras, rrrrrrrrr.
TERCEIRO MÁSCARA – Desconfio de um certo esquivo, que não aparece mais! Entrou com muito fervor e agora anda fazendo negaças. Quem tem paixão por sua mulher, não entra aqui.
PRIMEIRO MÁSCARA – E então ela que é bonita e espirituosa!
TERCEIRO MÁSCARA – Também a minha o é e no entanto estou firme. Se isso fosse assim, quem estaria acima do nosso vice-presidente? Há senhora mais bela no Rio de Janeiro?
QUARTO MÁSCARA – Amo a variedade, sou artista. As estátuas são dos museus, assim como as santinhas dos altares. Preciso de emoções, de vistas novas; sou romântico.
TERCEIRO MÁSCARA – Ando desconfiado de um certo Gonçalão.
Olhem, já não está aqui o seu número!
PRIMEIRO MÁSCARA – Dizem todos que lá canta mais a galinha do que o galo. Não é isso assim cá pelos meus arraiais, e nunca o será. Quero, posso e mando, mas finjo ceder. A minha Eva engoliu a pílula suave e naturalmente. Capitão da Guarda Nacional, ando a estas horas rondando e vendo as patrulhas: soldado, permanente, pedestre e guarda nacional, para ela tudo é o mesmo. De mais, entro e saio quando quero, porque sou senhor absoluto em minha casa e desprezo quem o não é.
QUARTO MÁSCARA – Pilhaste o bolo, que o defunto amassara à custa da enciclopédia de todas as ignomínias e agora estás cantando. Assim, deste no vinte, magano.
PRIMEIRO MÁSCARA – Vendi a sociedade por um bote de rapé com muito mofo; sacrifiquei o meu perfume numa arca de bafio...
QUARTO MÁSCARA – Alto lá, e a boceta! E o que contém a arca?
PRIMEIRO MÁSCARA – Podia ser senadora; quanto ao mais, apenas chega para o champanhe.
QUARTO MÁSCARA – Que rapé, e que boceta. De ouro e cravada de brilhantes. Anda lá passar de vendedor de cautelas a milionário, é ter a 35 lâmpada de Aladino, a lâmpada maravilhosa. Confesso que também não tenho queixas contra a sorte.
PRIMEIRO MÁSCARA – Piloto, medidor de terras, pintor de mapas e agora capitalista! ... Creio bem.
QUARTO MÁSCARA – Upa, upa, engenheiro, meu senhor; não confundamos idéias: o pedreiro não é arquiteto.
TERCEIRO MÁSCARA – Dizem que ela é ciumenta como o diabo e que até paga espiões que te seguem a pista.
QUARTO MÁSCARA – É verdade, e de uma fúria!... Mas paga tudo com usura: capacitei-a de que era um dos inspetores da estrada de ferro, porque tenho algumas ações, e assim ando agora sempre a vapor. Quando há pagode, arranjo muito seriamente a mala, parto no comboio das três horas, volto no da noite ou numa sege de aluguel, que me espera no Engenho Novo, e entro no bosque à luz do gás, para gozar da vida. Olhe que eu agora não estou aqui, estou lá perto dos macacos, lá pela serra.
TERCEIRO MÁSCARA – Macaco velho; que és mais feliz do que eu.
SEGUNDO MÁSCARA – Para que tanta coisa? Eu cá achei um meio mais simples. Caminhei com a natureza satisfazendo a minha nos seus gostos.
Gosta de flores; coloquei-a no alto da Tijuca, rodeada de plantas exóticas, e enquanto ela de dia se ocupa com as dálias, junquilhos, cravos, rosas e agapantos, eu também me ocupo de noite com as camélias.
TERCEIRO MÁSCARA – Melhor fiz eu, que prendi a minha pela carolice. Se as coisas continuarem, ela acaba por crer que faço milagres! Já me passou pela idéia aprender algumas artes mágicas, algumas peloticas, para confirmar-lhe mais a crença.
PRIMEIRO MÁSCARA – Não precisas. A maneira porque lhe empalmaste o dote, quase todo em bens de raiz, não é de patau! Toma cuidado com os filhos, porque andas depressa.
TERCEIRO MÁSCARA – Que trabalhem e estudem os meios como eu.
Sou deste mundo e não creio no outro. Diz o poeta que viver é gozar.
CENA V
DOUTOR ALBANO; mais dois mascarados, e os que estavam TERCEIRO MÁSCARA – Viva o grão-mestre. Que demora é esta?
Que anda fazendo?
DOUTOR ALBANO – Andei atrás do Juliano, que me parecia uma vareja tonta. Deixou a Carolina em campo, para procurar um vulto misterioso, 36 que esteve aqui com uma sujeitinha que faz versos e improvisa a embasbacar.
A Carolina zangou-se e disse que se ia... Brigaram, e ele aí anda pairando.
TERCEIRO MÁSCARA – Foi para o aderecista, não? A mudar de pele... Conheço aquela cobra velha.
PRIMEIRO MÁSCARA – Juliano é que é o nosso mestre. Persuadiu a mulher de que era verdadeiramente lobisomem e representa em casa a genuína individualidade da nossa ordem. Quando ele conta as coisas que faz, e com aquela graça que lhe é natural, faz rir os frades de pedra.
DOUTOR ALBANO – Deve isso ao extraordinário talento cômico com que o dotou a natureza. Eu o tenho visto fazer coisas admiráveis: chora quando quer, mas lágrimas deveras, e une a isto os recursos de uma palavra fecunda e cultivada. Juliano é capaz de mudar um chin em mouro e um mouro em chim. Aqui estão dois caladinhos, que em certos pontos pedem meças a nós todos, e em algumas coisas até ao próprio Juliano! São as estátuas da modéstia.
QUINTO MÁSCARA – Qual! São felicidades. A minha cara-metade é capaz de engolir as torres da Candelária.
SEXTO MÁSCARA – E a minha o Pão de Açúcar e as fortalezas, navios e baleias e tudo o que eu lhe disser.
DOUTOR ALBANO – A mulher quer isso mesmo e é preciso assim contê-la. O marido que tem uma mulher ciumenta e injusta, deve sancionar o boato, para não ouvir o chiar de uma nova com alcatruzes de perpétuas quizílias.
QUINTO MÁSCARA – Bravo, grão-mestre, é isso mesmo. A mulher quando pilha um marido bom e complacente, põe-lhe o pé no cangote, botalhe a gargalheira do seu cruel egoísmo e o ata depois ao libambo de seus caprichos variáveis. Tive o exemplo em casa naquele meu bom tio.
DOUTOR ALBANO – Eu, que sou médico e tenho visto nascer e crescer tanta gente...
QUINTO MÁSCARA – Morrer muita mais...
DOUTOR ALBANO – Nada me admira. Felizmente, não preciso de subterfúgios: tenho os chamados. Escrevi no meu canhenho três nomes de velhos milionários, que têm ataques em alta noite. Se não me chama o asmático, tenho desculpa com o gotoso e quando estes folgam, passo ao hepático e hemorroidaico. A caridade, meus amigos, e pontualidade no ofício, é boa coisa.
PRIMEIRA DAMA (Saindo) – Estou ouvindo, estou ouvindo; por isso ainda me não casei e nunca me casarei.
DOUTOR ALBANO – Faz muito bem, menina; precisamos de vestais. 37 SEGUNDA DAMA (Saindo) – Eu, se tivesse a certeza de me não vingar, morria de desgostos.
QUINTO MÁSCARA – Não seja tão mazinha.
TERCEIRA DAMA – Umas vingam as outras. Quem sabe se há por aí também alguma sociedade de lobismulheres? Que pagode!
DOUTOR ALBANO – O mulherio quer assanhar-se, meus senhores; a postos, vamos tapar-lhe a boca. Quem veio, veio; vamos para a mesa.
QUINTO MÁSCARA – Muita falta nos faz o nosso amigo Desidério!
PRIMEIRO MÁSCARA – Já me lembrou de lhe herdar a invenção, fingir-me também sonâmbulo e passear a meu cômodo e frescamente.
DOUTOR ALBANO – Não tens natureza para dançar sobre uma corda de vidro sem quebrá-la. Aquele via mosquitos na lua e pescava baleias com um alfinete.
CENA VI
ALFREDO, preso por dois máscaras e seguido por JÚLIA e AMÁLIA
ALFREDO – É uma imprudência; deixem-me que não vim só. Temos piratas na barra e mouros na vizinhança.
SÉTIMO MÁSCARA – Preso em flagrante; se tem circunstâncias atenuantes, apresente ao tribunal.
OITAVO MÁSCARA – Queria escapar-nos por andar na pista de duas corças.
ALFREDO – Meus amigos, deixem-me por hoje, pois tenho aí a minha Eva, que veio comigo.
SÉTIMO MÁSCARA – Qual Eva nem meia Eva. Bem o conhecemos, senhor bandoleiro.
DOUTOR ALBANO – O caso é sério. Guardas, fechem as portas e não deixem entrar aqui senhora alguma, sem nomear o seu cavaleiro e sem que este a receba. Conheço o terreno, os perigos, e é preciso estar em guarda.
UM GUARDA – Não entra um mosquito; a porta está segura. As que estão, já conhecemos, e todas pertencem a um cavaleiro, exceto as duas.
DOUTOR ALBANO – Estão decerto comigo...
ALFREDO – Eu disse que precisava de umas férias e pedi licença. O
grão-mestre conhece a bicha que tenho em casa: é uma víbora de sete palmos!
JÚLIA (Para Amália) – Olha que sem-vergonha e que atrevido.
AMÁLIA – Silêncio, pelo amor de Deus! E tu o dizias convertido!
DOUTOR ALBANO – Tomáramos nós todos apanhar-lhe uma mordidela, uma sozinha. 38 PRIMEIRO MÁSCARA – Onde está o teu sinal, miserável desertor?
SEGUNDO MÁSCARA – Depois do castigo, pagarás a multa: duas ceias, e um jantar no Jardim Botânico, ou em outro lugar à tua escolha.
ALFREDO (À parte) – Basta-me a multa da caleche e dos cavalos e das librés. (Alto) Pagarei tudo, com tanto que me deixem livre agora.
TERCEIRO MÁSCARA – Pelo artigo 17 dos Estatutos, és obrigado a servir a mesa, de boca presa e atarrachada, e a ficar viúvo durante o pagode.
QUINTO MÁSCARA – A apostasia é crime de fogueira. Quer brincar com os lobos?
ALFREDO – As portas estão bem trancadas?
DOUTOR ALBANO – E suspensa a ponte levadiça. Há alguma revelação?
ALFREDO – Já lhes disse o que havia, para saberem o que temo. Minha mulher está no teatro.
SEXTO MÁSCARA – Abra-se o tribunal e seja o réu processado em regra. Está mentindo.
DOUTOR ALBANO – Falta o Grande Acusador, falta a flor da sociedade; esperemos.
ALGUNS MÁSCARAS AO MESMO TEMPO —
1. Uma andorinha não faz verão.
2. Estamos em caso de guerra.
3. Não percamos tempo.
4. Estamos com muita fome.
5. 6. 7. De joelhos!
DOUTOR ALBANO – De joelhos, vamos, de joelhos.
ALFREDO (De joelhos) – Peccavi, peccavi, meus amados irmãos.
DOUTOR ALBANO – Quer pôr-se em pele de cordeiro?! Não haja piedade. Morra! (Desembainham as espadas de pau; Júlia vai para socorrêlo, mas recua ao ouvir.) Que faz, minha menina, não vê que isto é graça! (Diz isto baixo, Júlia se esconde) Lobo, por que deixaste o pêlo?
ALFREDO – Por não estar na floresta.
DOUTOR ALBANO – E quem te rechaçou da floresta?
ALFREDO – A serpente que voa.
DOUTOR ALBANO – E onde está a serpente?
ALFREDO – Não está em casa, anda por aí a chocalhar a cauda.
JÚLIA (À parte) – Se eu pudesse, arranhava-lhe aquela cara semvergonha.
DOUTOR ALBANO – E por que não te refugiaste aqui? 39 ALFREDO – Porque via outro perigo. Poderia ela seguir-me, e então?...
DOUTOR ALBANO – Aqui não entram serpes, mas sim as aves do céu. És um embusteiro e réu convicto. Dize, o que sente o teu coração agora nesse aviltamento?
ALFREDO – O maior de todos os arrependimentos.
JÚLIA (À parte) – Que desaforo! Eu te curarei...
DOUTOR ALBANO – Será sincera a tua emenda? Olha a espada vingadora!
ALFREDO – Juro pelo juramento dos lobos. (Cava o chão com as mãos) Seja eu aqui enterrado. As estrelas se convertam em pedras e a lua num verdadeiro matacão.
DOUTOR ALBANO (Tira a máscara de lobo e arranca a coroa de papelão) – Recuem as espadas; graça ao réu. (Põe a coroa na cabeça) Coloca em teus beiços o teu coração de lobo; mostra tua alma nos teus dentes; tua força nos teus queixos; tua inteligência em teu passo; tua prudência em tuas emboscadas e o teu amor em tuas conquistas. Torna-te digno de entrares no grêmio heróico dos da tua raça, conquistando o velocino do paraíso, aquela ovelha que canta, que é escrava da modista, que transporta a crinolina eólia e se corta e se tosquia segundo as leis de Monsieur Coiffeur de Paris de França.
Torna-te sublime e sê capaz do grande apostolado.
TODOS OS HOMENS – Apoiado, apoiadíssimo.
AS DAMAS – Não apoiado, não apoiadíssimo...
DOUTOR ALBANO – Silêncio! (Batendo o pé) Quem ousa perturbar a voz do tribunal? (Gargalhadas) Silêncio, tenho dito! (Restabelece-se o silêncio) Presta o segundo juramento.
ALFREDO (Pondo a mão na máscara de lobo) – Juro pela fronte veneranda do muito alto e muito sábio e muito valoroso grão-mestre desta sublime ordem dos Licantropos, pelas trevas que adoro e pela poligamia oriental a que aspiramos,...
(As Damas, interrompendo)
PRIMEIRA – Não apoiado.
SEGUNDA – Viva a liberdade.
TERCEIRA – Pois não!
QUARTA – Não quero.
QUINTA – Seja a lei igual para todos.
JÚLIA (À parte) – Muitos já não precisam da lei. Veremos isso, meu sem-vergonha. Eu te ensinarei.
AMÁLIA – Que horror!
ALFREDO (Continuando) – ... de trabalhar com o exemplo e a palavra para que possamos chegar à felicidade dos povos civilizados e vejamos no 40 novo mundo uma nova Meca e em cada cidade, cada vila, cada aldeia, cada fazenda e cada rancho um serralho, um harém, uma felicidade, um paraíso terreal.
DOUTOR ALBANO – Bem. Qual é o teu símbolo?
ALFREDO – O Galo.
DOUTOR ALBANO – Como canta o galo no pais dos galos?
ALFREDO – Cocorocó! (Canta e abaixa a cabeça).
Os MÁSCARAS – (Baixo, como se fossem ecos) Cocorocó...
cocorocó...
DOUTOR ALBANO – Perfeito! Há eco e prosetilismo! Não dorme a terra; vigia a inteligência; o mundo é nosso! Levanta-te e adorna-te. (Alfredo põe a máscara de lobo) Chegou a hora do desencanto! (Toca uma corneta.
Todos tiram as máscaras ao som de gargalhadas).
JÚLIA – Todos conhecidos! (Para Amália).
AMÁLIA – Estamos perdidas! (Foge para o toucador).
DOUTOR ALBANO – À mesa, no altar do sacrifício. (Tomam lugares, menos ele) Minha divina poetisa, por que não toma assento?
JÚLIA – Porque não vejo aqui o meu cavalheiro.
DOUTOR ALBANO – Não tarda; creio que anda em sua procura. E a outra senhora?
JÚLIA – Viu o seu cavalheiro em castigo e retirou-se...
DOUTOR ALBANO – Havemos de lho restituir logo mais depois que cumprir a pena. Que maganão, quis fazer-nos esta surpresa. A senhora parece que é a primeira vez que...
JÚLIA – Permita-me que espere ali; sem ele não tiro a máscara.
DOUTOR ALBANO – A senhora manda; mas que receio é esse?
Somos todos amigos íntimos.
JÚLIA – Sou nova e creio assim justificado o meu temor. (À parte) Que idéia luminosa! Oh! vou vingar-me daquele sem-vergonha. (Para o marido, para Albano) Quero pedir-lhe uma graça, é um segredo...
DOUTOR ALBANO – O segredo é o timbre da nossa ordem; e ai do miserável que o rompe.
JÚLIA – Não diga a Juliano que estou aqui; porque quero brincar um pouco com ele.
VOZES: PRIMEIRA – Basta de confissão.
SEGUNDA – Vamos à papança.
TERCEIRA – Estamos desesperados.
CENA VII 41 DOUTOR ALBANO, no centro da mesa e de pé DOUTOR ALBANO – Está aberta a floresta. Esta noite, briosos e invulneráveis companheiros, é mais clara.
VOZES: PRIMEIRA – Venha verso;
SEGUNDA – Verso;
TERCEIRA – Queremos isso na língua dos deuses.
DOUTOR ALBANO (Bate palmas) – Lá vai verso. (Há “psius” e grande silêncio).
“Acendam-se as lanternas, quero lume;
Nos vasos de cristal o dia espume.”
VOZES – Bravos! Alfredo, Alfredo, vamos. (Alfredo enche os copos de vinho).
DOUTOR ALBANO – (Escarrando)
“Em nome de mim mesmo, à uma tomem O beijo fraternal do lobisomem!
Mortal perfeito, afronta dos maridos Que, pegados às fraldas e aos vestidos, Como as ostras de um mangue bolorento, Fruem escravos o humor birrento De pamonhas linfáticas, ciosas, Ou magras Evas, serpes furiosas, Subamos do vivente ao Capitólio, E abata-se o femíneo monopólio;
Pois tendo cada um doze costelas Deve ao menos casar com doze belas.”
VOZES DE HOMENS E MULHERES:
HOMEM – Apoiado.
MULHER – Não apoiado.
OUTROS – Silêncio, silêncio,...
DOUTOR ALBANO —
“Deixemos os preceitos da escritura, Que estão em desacordo co’a natura;
E exemplo seja o grande Salomão, Que não foi um patau, nem toleirão!
Adoremos o lume do oriente, O grande Sol que ofusca este ocidente Escravo dessa Europa abastardada, 42 Que vive, em noite eterna malfadada.
Venha a lei da razão, e o brasileiro Viva em casa qual galo no poleiro.
Seja a casa um Éden; e o cidadão Doze Evas circulem; novo Adão.
Nova raça derrame nesta esfera, Que ao mundo volva a venturosa era.
O Brasil quer colonos e quer braços E eis como findarão os embaraços.
Cada casa será uma colônia Onde vivam em paz Marina e Sônia Filu, Amélia, Júlia, Ana e Paulina.
Francisca, Paula, Olívia e Carolina.
Teremos uma raça sem mistura Pela nossa feliz progenitura.
E que coisa maior, que felicidade Ver crescer a brasília humanidade?!
E que voto maior, e que nação, Quando cada indivíduo é um sultão!”
(Vivas gerais e bebem. Durante estes versos, Júlia chega-se ao reposteiro e o ouve, e fala para dentro como quem diz alguma coisa a Amália.
Batem na porta com força).
CENA VIII
JULIANO, de fora JULIANO – Abram, quero entrar.
O GUARDA – (Pede o santo: “Ou dente ou queixo”) Agora não se entra com máscara.
JULIANO (Sem máscara) – Estou em branco: deixei o certo pelo duvidoso e estou viúvo.
DOUTOR ALBANO – Em branco, e eu que o diga. Senta-te, e consolate como deves meu [ilegível].
UMA VOZ DE MULHER – PRIMEIRA DAMA – Daqui saiu há pouco. Era uma pombinha bem mimosa.
JULIANO – Quem?
SEGUNDA DAMA – A rival de Carolina. Como está inocente, sô bandoleiro. 43 PRIMEIRA DAMA – Não quis tirar a máscara; porque tem um laço encarnado.
JULIANO – (Levantando-se) O que estão dizendo? Aonde está ela, o sonho da minha vida? Sim, eu a vi um instante, como uma aparição, como uma visão celeste, mas sumiu-se por entre o nevoeiro da turba. Não tinha ela um dominó branco, de cambraia de Nápoles, e um laço de fita escarlate no peito, com franjas de ouro?
SEGUNDA DAMA – Isso mesmo.
CENA IX
JÚLIA (Com o dominó de Amália e inda no reposteiro) Vamos sair.
(Fica ao pé do reposteiro por trás de Juliano).
AMÁLIA – Não; eu quase que desfaleço.
DOUTOR ALBANO – Estamos no escuro e tenho que fazer mais uma saúde. Alerta, Alfredo. Estamos no escuro; venha lume, venha o Sol.
PRIMEIRA DAMA – Champanhe, que estou a seco.
TERCEIRO MÁSCARA – Quero Malvásia.
PRIMEIRO MÁSCARA – Duas garrafas do Duque, que não sou caolho: uma para cada venta do nariz.
SEGUNDO MÁSCARA – Bordéus, venha Bordéus, que a minha garrafa está vazia.
DOUTOR ALBANO – Ordem! Que o nosso penitente não é o gigante de cem braços.
JÚLIA – Não tenhas medo. Olha por este buraquinho e vê se o conheces bem.
DOUTOR ALBANO – Então, Juliano, perdeste o apetite? Há de vir, há de vir mais tarde, e então...
JULIANO – Estou desesperado. Perdi uma das mais belas conquistas do mundo. Ah! se o soubésseis! Eu não vim desprevenido, porque trouxe a Carolina; mas logo que vi a outra mudei de plano. Como lhe conheço o gênio rusguei com ela, e ela comigo, e foi-se. Este caso é uma verdadeira loteria, porque havia mil probabilidades contra uma única; ousei, e muito que ousei; e saiu-me a sorte grande, porém perdi o bilhete.
DOUTOR ALBANO – Como não foi queimado poder-se-á talvez achar aí por algum canto.
JULIANO – Se o não achar amanhã, e aqui mesmo, talvez o perca para sempre.
TERCEIRA DAMA – Pobre Carolina! Assim é que se paga tanto afeto! 44 PRIMEIRA DAMA – Porque é tola. Não quis passear em Paris e em Londres com aquele diplomata, que a queria levar; e agora está demitida com a maior ingratidão.
QUARTA DAMA – Não se há de enforcar por isso. Está moça e é bem bonita.
DOUTOR ALBANO – Sabemos disso: não houve demissão, houve disponibilidade. À saúde do nosso grande Juliano, do mais perfeito de todos os lobisomens, do modelo dos lobisomens!
JULIANO – (Respondendo de copo na mão) Minha alma está morta, e por isso estou mudo como um cadáver. Agradeço. (Sente-se) Penitente, passame o fiambre e os rosbifes.
ALFREDO – (Enganado pelo dominó de Amália, diz a Júlia) Cunhada, onde está Júlia?
JÚLIA (Com voz baixa) – Está se vingando das suas perfídias. Achou um moço bem bonito. (Alfredo deixa cair o prato).
JULIANO (Olhando para trás) – Que vejo! Céus!!!
DOUTOR ALBANO – O bilhete da loteria! (Palmas na mesa).
JULIANO (Indo para Júlia) – Oh! meu amor, como poderei agradecer isto! Venha assentar-se aqui, olhe, cá está o seu lugar; não tem ninguém...
veja...
JÚLIA (Mudando a voz) – Ah! não posso. Vim somente dar-lhe esta prova. (Amália espia-os)
ALFREDO – Estou sentindo um peso na cabeça!... se é que eu tenho cabeça.
JULIANO – Pois vamos passear um pouco, já que não se quer assentar junto de mim! Estou como quem acorda de um pesadelo ao pé de um anjo, que se ama!
TERCEIRA DAMA – Estes noviciados são sempre assim... Venha champanhe... (Alfredo, como estonteado, dá outro vinho) Não é isto! Pateta, quero champanhe, champanhe, champanhe.
DOUTOR ALBANO – Então, senhor moço, perdeu a tramontana? Está com inveja?
ALFREDO – Os meus cabelos estão tão tesos que parecem uma floresta. Não vejo nada... (Endireita a máscara)
JÚLIA – Não, não posso, adeus...
JULIANO – Pois vamos para aqui, um momento, um só momento.
(Para o toucador)
JÚLIA – Não, não posso. Uma outra vez, agora é impossível.
AS DAMAS – PRIMEIRA – Homem no toucador? Fora!
SEGUNDA – Há de ter os dedos dos pés cortados. 45 ALFREDO – Parece-me que tenho dois jequitibás na cabeça! Estão me levando a máscara. (Tira a máscara e deita-se encolhido no sofá da esquerda alta.)
DOUTOR ALBANO – Respeite-se a polícia da casa. Os homens não entram ali, mormente agora. (Amália, ouvindo isto, treme e vê-se tremer o reposteiro)
JULIANO – (Avançando para o proscênio com Júlia) Por que não se assenta um instante? Aqui estão somente amigos e todos do maior segredo, e sem isto?... Não tenha o menor receio; juro-lhe que ninguém o saberá. Tire essa máscara; rasgue a nuvem que encobre esse rosto mais belo do que a estrela matutina, do que o astro de todas as esperanças, que anuncia toda a formosura do dia. Oh! sim, por piedade...
JÚLIA – Juliano, não exijas de mim um impossível, depois desta prova.
Contenta-te com ela, bem o sabes, e a quanto me exponho agora...
JULIANO – Como é cruel! Ah! Ver o céu, tocar com as plantas os penetrais da maior das delícias; sentir a mão de um anjo sobre o peito, como para acariciar o coração; ir segurá-la, e esta não dizer: basta, arreda, como se fosse a mão de um espírito exterminador a um condenado... Por piedade...
JÚLIA – Não sejas desensofrido. A mão que se precipita a colher rosa, pode ser ferida pelo espinho, ou pelo inseto.
JULIANO – E que importa a morte, quando o céu se mostra radiante de esperanças?
JÚLIA – Basta. Sabes que tenho deveres sagrados e que os não devo quebrar.
JULIANO – E eu não quebro os meus por este amor que me enlouquece?
JÚLIA – Mas eu sou amiga de tua mulher e não devo...
JULIANO – As leis do amor são excepcionais: o amor não é como a amizade. O amor é de luz, e a amizade de ferro. Não há paridade entre um fluido e a matéria.
JÚLIA – Lisonjeia-me muito ver que me preferes à mais bela das mulheres. Ela é bonita, virtuosa, jovem, não é assim?
JULIANO – Estátua das perfeições, que não compreende a vida, a vida que amo, a vida que desejo, aquela vida que sonho! (Amália espia com mais audácia) Não falemos dessa mulher, falemos de ti, luz da minha alma, coroa encantadora de todas as minhas esperanças.
JÚLIA – (Chamando Amália para o pé de si) Tanta injustiça esfria-me o coração! Oh! dize que é um capricho, uma veleidade, uma anomalia, um desses delírios da inconstância humana, mas não a trates com esse desdém...
(Acena à irmã) Nem eu sei o que estou dizendo. 46 JULIANO – Não tens o coração nos lábios, sim; porque um raio luminoso me está penetrando a escuridão da vida. Não fales assim, porque sabes quanto te adoro. A simpatia é um segredo misterioso da natureza, que a fria razão não pode penetrar; é um arcano d’alma escrito no coração, o qual existe e existirá eternamente. (Amália se aproxima por trás dele)
JÚLIA – Mas por que te uniste a ela e lhe juraste fidelidade? Eu li os teus juramentos.
JULIANO – Pelo seu dinheiro. Não me dilaceres o coração com tais lembranças.
PRIMEIRA DAMA – (Ao ver Amália por trás dele) Temos sombrinha?!
DOUTOR ALBANO – Agora é que está o ladrão entre duas divindades!
JÚLIA – Adeus, até amanhã. (Ele a retém) Não ouves o que estão dizendo?
PRIMEIRO MÁSCARA – O caçador está firme.
PRIMEIRA DAMA – São requifes de principiante; depois...
SEGUNDO MÁSCARA – Ciência infusa, e eu que o diga. A Carolina não sabe vender o peixe.
JULIANO – Eu não vejo e não ouço senão a ti.
JÚLIA – Última palavra. Vai encontrar em casa o que não acharás em parte alguma. Deixa essas ilusões da vaidade. Olha que sou tua amiga.
AMÁLIA (Baixo a Júlia) – Assim, assim.
JULIANO – (Forte) Já te disse que não amo essa mulher.
AMÁLIA – (À parte e comovida) Que estou ouvindo, meu Deus!
JÚLIA – Mentes, não pode ser! Já não creio em nada.
JULIANO – (De joelhos) Juro a teus pés, minha Clarice, e o juro por minha alma... (Amália geme e cai desmaiada) Quem é esta dama?! O que tem ela? (Alfredo, que a não viu, levanta-se espantado e segura nela)
ALFREDO – (Para Amália) Não creias, minha vida, que eu sou teu e o serei até morrer...
DOUTOR ALBANO (Examinando a dama) – Quase sem pulso?! Tirese-lhe a máscara...
ALFREDO – Não consinto nisso.
JULIANO – E como socorrê-la? (Vai para tirar-lhe a máscara, Alfredo empurra-o)
ALFREDO – Esta dama está com máscara, está sagrada para quem é cavalheiro; e o que ousar tocá-la não sairá com vida! (Levantam-se todos da mesa em tumulto) E o que é cavalheiro, o que respeita uma dama no mais rigoroso incógnito, ajude-me a socorrê-la fora daqui.
JÚLIA – Juliano, faze o teu dever, mostra que és cavalheiro. 47 JULIANO – Mandas; mas quem é esta dama?
JÚLIA – Ninguém sabe e ninguém deve sabê-lo. Vamos, vamos.
UMA VOZ DE MULHER – Sabemos nós, não é assim, senhor Alfredo.
(Ao passarem pelas damas com o corpo de Amália, os homens conservam-se sérios e abrem praça; Júlia recebe das damas umas cortesias de galhofa e, logo que chega ao fundo da sala, ouve de todas essas mulheres perdidas uma dessas gargalhadas desafinadas, que denotam o seu estado de embriaguez e perdição.)
FIM DO SEGUNDO ATO
TERCEIRO ATO
Vai clareando o dia. Amália está recostada no sofá, com os pés cobertos; Júlia recebe de suas mãos uma taça.
CENA I
JÚLIA e AMÁLIA
JÚLIA – Estamos salvas! Não desesperes, que tudo tem remédio.
Aquela gargalhada... Ainda me estruge nos ouvidos como as vociferações dos condenados do inferno. Sou bastante animosa, mas custou-me a suportá-la! No entanto, não me arrependo do que fiz.
AMÁLIA – Nem eu, apesar da triste realidade.
JÚLIA – Não me creias tão indiferente como pareço. Estou profundamente abalada.
AMÁLIA – Sei bem, minha irmã, porque te conheço. A intensidade do sofrimento é sempre medida pela alteza da sensibilidade. Tive uns minutos de morte e da pior, que é a morte da esperança, da fé, dessa vida do coração da mulher. Devia morrer ali, porque só levava saudades de ti, de meu pai, e de...
mais ninguém. À entrada do inferno se deverão ouvir daquelas gargalhadas!
Ah! como a mulher é hedionda quando degenera! Nossa mãe que está lá, e que de lá nos está repreendendo, bem nos dizia: foge da mulher má, porque é mais perigosa do que o homem. E por que não ouvi eu os conselhos de meu pai?
JÚLIA – O amor dos pais é santo e previdente; e quem o despreza paga, e paga duramente. 48 AMÁLIA – Como eu, que confundi o aparente com o real e o falso com o verdadeiro.
JÚLIA – Mas tu não ouviste, como eu, aquela gargalhada, aquele concerto de fúria, aquela descarga do cinismo e da ironia da perdição... Ah! foi como uma barra ardente: repassou-me a medula dos ossos! Nunca me esquecerei!... Como o vício tudo desfigura! E algumas daquelas mulheres eram ainda novas, e mesmo bonitas e bem feitas! Coitadinhas!
AMÁLIA – Custa a crer tanta perfídia e tanto fingimento! Entregar uma existência inteira, uma vida pura, inocente, virginal, cheia das mais belas crenças e ilusões a um homem; depor aos pés deste monstro refalsado tanta elevação e tanta santidade; entregar-lhe a riqueza, a abundância, a paz, o amor de um pai e ser ludibriada? É para desesperar! Ver tudo isto esmagar-se pela mais revoltante das ingratidões, é para se morrer. Quisera vingar-me, fazê-lo devorar todas as serpentes do ciúme e do aviltamento, mas falta-me a consciência de que o crime possa vingar o crime. Não, sou mais nobre que ele, não desço a tanto. E que remédio, meu Deus, haverá aqui?
JÚLIA – Quando o homem degenera, compete à mulher salvá-lo suspendê-lo do lodaçal dos vícios com o exemplo de suas virtudes. Assim como arranquei Alfredo da companhia desses bandidos da honra conjugal, assim também o poderás fazer a Juliano. Dizem que o marido faz a mulher, não duvido, porque o homem é tudo na sociedade; mas também certo é que a mulher é tudo para o marido. Sabes que sempre gostei de brincar, mesmo às vezes de embalar-me na rede folgazona de algumas leviandades inocentes;
sabes que gosto de rir, de doidejar; mas também sabes quanto sou severa em certos princípios, que tenho sempre em vista, como uma barreira invencível, como a defesa eterna e gloriosa de uma mulher. Casei-me virgem e quero morrer senhora; porque o altar está lá, (Apontando o céu) e o juramento aqui (No coração).
AMÁLIA – Mas quanto não difere o teu Alfredo de Juliano? Alfredo é leviano, mas não é hipócrita. Ah! minha irmã, tu não sabes que infernal comédia se representa nesta casa há perto de um ano? Juliano, por artes diabólicas, por aquele talento trágico que tanto admiramos, chegou a convencer-me de que era lobisomem, de que se transformava em bicho, e...
(Chora)
JÚLIA – Ah ah ah! Só assim me farias rir. Pois tu acreditaste nisto?!
AMÁLIA – Como uma criança, como quem ama, minha irmã, como quem desconhece o veneno da serpente.
JÚLIA – Pois nunca desconfiaste?
AMÁLIA – A principio, não. A mulher é de uma natureza singular:
confia e confia muito quando deve desconfiar, e começa a desconfiar quando é 49 tempo de confiar. Quando o espelho nos desengana é que vemos o mundo tal qual ele é, porque então não temos mais nem vaidade nem lisonjeiros.
JÚLIA – Não te julgava tão simples. É verdade que teu marido é um ator consumado, uma dessas naturezas profundamente elásticas, cheias de recursos, e prontas para todas as metamorfoses! Fala como quer.
AMÁLIA – Natureza de subterrâneo, sempre nas trevas, sempre na mesma temperatura. Trêfego e constante no teatro de suas torpezas misteriosas, nunca perdeu o tino e o discurso de refalsado! Nunca o vi desmentir-se, mas tu sabes que há momentos de dúvida, e eu os tive algumas vezes; e uma delas... Aquele Albano é um homem sem nome! Um perverso, um miserável.
JÚLIA – Confesso-te que esse enganou-me completamente.
AMÁLIA – E não é metade do que o outro é em dissimulação. Uma vez, num dia destes, lancei-me nos seus braços, procurei o seu amparo, as suas luzes e a sua experiência; disse-lhe o que pensava, sem falar em meu marido;
apresentei-lhe dúvidas, dissimulei quanto podia; mas o malvado penetrou logo o fundo de minha alma e tratou, habilmente de salvar o seu cúmplice e amigo.
Trouxe-me uns livros sobre o caso, sobre a realidade do fato; e eu fiquei, confesso que fiquei , crente depois daquela leitura; e só vivendo na esperança de um breve desencanto! O desencanto aí está!
JÚLIA – Como este mundo está cheio de enganos e perigos! Quem diria?
AMÁLIA – Procurava um amigo, um ostensor, um anjo da guarda, e achei a Satanás traidor: caí no fogo, e agora dele me ergo lacerada, sangrenta e nas agonias da desesperação.
JÚLIA – Sossega. Vamos tirar estas vestes, ainda impregnadas daquele ar pestífero; e deixa à minha boa estrela o desenlace desta trama. Eles ainda por lá ficaram, mas a claridade do dia os há de rechaçar do antro, a menos que o sono da embriaguez os não retenha sobre o chão da orgia. (Pausa) Juro-te que hei de desencantar todos os lobisomens. O meu já há de estar bem arrependido. E o teu, que me chamava de sua Clarice!...
AMÁLIA – Nunca a julguei tão falsa! Eu a tinha como uma irmã, uma irmã d’alma e coração! Ainda ontem aqui esteve, como se nada houvesse.
Como é triste tudo isto!! Como está tão pervertida?!...
JÚLIA – Não façamos juízos temerários sobre uma amiga de infância.
Tenho uma boa idéia! Vou agora verificar isto mesmo.
AMÁLIA – Queres mais claro? Pois não está tudo verificado?
JÚLIA – Ainda não; tenho motivos para assim proceder.
AMÁLIA – Mas ele a esperava no baile, e não é tão tolo para iludir-se. 50 JÚLIA – Tenho motivos. Uma mulher pode cometer uma leviandade, sem muitas vezes comprometer a sua honra. E nós, não fomos ao teatro?...
Não entramos na caverna?... Quero escrever um bilhete...
AMÁLIA – Aí tens tudo em cima da mesa. (Júlia pensa e escreve) E ele repetiu: “Já te disse que eu não amo essa mulher!” (Levanta-se) Não; está tudo acabado! Mesmo que volte a si, quem me certificará se é arrependimento ou cálculo? Meu pai tinha toda a razão, quando dizia: as mulheres não conhecem os homens, nós é que nos conhecemos. E talvez prevendo isto, fez-me aquela escritura de casamento... Sim, que volte à pobreza donde o arranquei; e sofra o castigo da ingratidão com as penas daquela que teve e já não tem. Morri para ele. (Júlia toca a campainha)
CENA II
TIBÚRCIO, JÚLIA e AMÁLIA
TIBÚRCIO – Minha senhora, ainda não chegaram os senhores. Foi festa grande, porque ainda está passando muita gente mascarada.
JÚLIA – Vai à casa de dona Clarice e entrega este bilhete. Tem resposta, e traze-a.
TIBÚRCIO – Já há de estar dormindo, porque a vi passar há muito tempo.
AMÁLIA – Pois ela foi ao baile? Como a conheceste no escuro?
TIBÚRCIO – Passou com seu marido; falou-me e mandou lembranças à senhora.
AMÁLIA – Não perguntou pelo senhor?
TIBÚRCIO – Não, senhora. (Júlia o faz sair com um aceno, mas o retém)
AMÁLIA – Nem era preciso. Então?
JÚLIA – Espera. (Pensa) Dize lá em casa que eu estou aqui.
TIBÚRCIO – Mais nada?
JÚLIA – Nada mais. Depressa, anda.
CENA III
JÚLIA e AMÁLIA
JÚLIA – O caso é este: se ela foi ao baile com o marido, está claro que recusou o presente.
AMÁLIA – Qual presente? 51 JÚLIA – Este dominó, que não era para ti.
AMÁLIA – Está claro, que se fosse com ele, o marido, que não é rico, havia de indagar.
JÚLIA – Poderia mentir-lhe, dizendo que era emprestado. Não te precipites. Está claro que recusou o presente, pois o mandou para cá, certamente com o fim de que tu o visses e naturalmente indagasses do fato e soubesses do caso. Se ela fosse cúmplice, ele a teria encontrado certamente e não se enganaria comigo como se enganou. Não a viu e nem lhe falou. Clarice é uma rapariga muito sisuda e muito honesta; tem o meu defeito de brincar muito às vezes, mas é senhora: sabe respeitar-se e repelir insolências e ousadias.
AMÁLIA – E como ousou ele mandar-lhe este dominó, sem, ao menos, uma esperança?
JÚLIA – Porque o homem que não crê em si, também não crê na mulher. Perdido no deboche, sem Deus, sem fé, ousa tudo, e algumas vezes vence. Vence quando a miséria aspira ao luxo, e a pobreza ao ouropel da vaidade. Juliano sabe que Clarice gosta dos prazeres e do luxo; mas não sabe que o exterior daquela folgazona não é mais do que o grão de prata que engasta um diamante sem preço, como é o das suas virtudes. Conheço-a perfeitamente, porque é muito franca.
AMÁLIA – Por isso não é bom brincar.
JÚLIA – É verdade. Hei de ficar mais séria, pois não preciso de mais convicções. Oh! aquela gargalhada! Foi como uma apupada de selvagens, disparando flechas envenenadas! Ah! nunca mais... Vamos mudar isto: dá-me um dos teus vestidos.
AMÁLIA – Não ouves galopar ao longe? É ele, é ele, que aí vem muito contente, cuidando que me engana... Estou como louca, não sei o que faça?...
JÚLIA – Vamos para dentro, e prudência...
AMÁLIA – Quero matá-lo com um desengano agora mesmo...
JÚLIA – Temos tempo: para brigar nunca é tarde. Vamos, vamos...
(Como que lutam, mas Júlia a leva para a alcova).
CENA IV
JULIANO
JULIANO – Estou acabrunhado! O movimento do cavalo e a frescura da manhã fizeram-me algum bem: bebi muito, bebi demais, mas tenho a cabeça aliviada. Bebi muito vinho e comi pouco. Vamos dormir, se eu puder dormir! Ah! é preciso dar tréguas a esta vida de lutas e de sobressaltos. A 52 ociosidade, o amor próprio, uma vaidade ruinosa e a sociedade em que vivo arrojaram-me nesta vida e nesta comédia sombria, que poderá acabar em drama! Quem seria aquela dama que acompanhava Clarice? Desmaiou quando eu proferia esses lugares comuns, essas frases banais de todos os tempos! Não era Carolina, porque essa não desmaiaria; seria?... (Pensa) Não; é impossível!
A tanto se não abalançaria. É tímida, e virtuosa, e cândida. Mas aqui há sempre alguma coisa de sério, porque Alfredo tomou a sua defesa heroicamente! É verdade que ele costuma dramatizar, às vezes, e faz-se o defensor extremo do belo sexo; mas ali houve alguma coisa bem significativa!
O que lhe diria Clarice ao ouvido, que o fez ir logo buscar uma sege, embarcar nela as duas damas e desaparecer, como um relâmpago, sem dar-me uma palavra? Eu bem procurei penetrar aquele mistério, mas todos ficaram mudos, ou eu fiquei perturbado. Talvez que hoje à noite se decifre o enigma. Mas que lucro eu com tudo isto? Estou estragando uma saúde de ferro, minha fortuna e talvez a felicidade de um anjo de bondade e de candura! E tudo isto por vaidade de primar, e primar em quê? Depois que deixei o estudo, depois que abandonei os livros, não tenho aquela mesma paz e felicidade: o ócio, a fraqueza de ânimo e as condecendências estão me desgraçando! Vou parar com tudo isto. Vou para a fazenda de meu sogro passar lá um ano inteiro, junto de Amália; e, a pretexto de saúde, acabarei com esta vida de embriaguez e de torpor moral e de perdição. Albano salvou-me uma vez, mas noutra? E
meu sogro, que é temível?...ai! ai! Vamos descansar. (À porta da alcova)
Nunca penetro nesta alcova, depois de um engano destes, sem um certo pavor, sem todas as agonias do remorso! Ah! se eu pudesse purificar-me, purificarme aqui mesmo, à porta deste santuário, onde repousa a mais pura e a mais bela de todas as mulheres; ah! se eu pudesse despegar de mim este ar e este fumo criminoso para envolver-me num globo atrativo de amor e luz, para subir à atmosfera de suas virtudes... Mas eu sou um grande miserável, um ingrato, um louco, e um marido desprezível! Estará ela dormindo?
Escutemos!... Coragem, vamos; quase que não tenho ânimo de entrar...
CENA V
AMÁLIA e JULIANO
AMÁLIA – (Pondo a mão no peito de Juliano) Não entra, senhor, que não é digno de entrar aqui.
JULIANO – Que estavas fazendo aí?
AMÁLIA – (Muito alterada) À espera da hora da justiça.
JULIANO – Mas que é isto, senhora?!... Deixa-me entrar, Amália... 53 AMÁLIA – Não entra, que aqui esta é a minha alcova.
JULIANO – E a minha?
AMÁLIA – A sua? Não quero dizer; não quero sujar a minha boca.
JULIANO – Agora mesmo, neste instante, minha alma te perfumava com os mais sagrados pensamentos...
AMÁLIA – As almas que sagram, não hesitam. Medi o terror de teus pensamentos pela tua respiração, pelas tuas ânsias, por esse ofego, que embebe o ar de tenebrosas agonias, e derrama em torno uma atmosfera repulsiva. Saia daqui.
JULIANO – Mas que tens, meu amor, que delírio é esse?! Acalma-te...
AMÁLIA – Calma estou; porque a morte do coração é a da vida;
(Forte) porque a morte d’alma é maior do que a de todo o corpo. Sabes o que eu sou?... Um cadáver, uma vítima da traição!...
JULIANO – Não te entendo; nunca te vi assim!
AMÁLIA – Não me entendes, sim, porque não sentes o que eu sinto JULIANO – Vamos, acalma-te;... vamos descansar...
AMÁLIA – Não entras, já te disse: esta alcova é minha. Nunca me viste assim? Nunca, porque eu estava cega...porque estava na escuridão.
JULIANO – (À parte) Bem me dizia o coração! Era ela!...
AMÁLIA – ... cega, mas agora?... Eu vi... (Soluça e chora)
JULIANO – Se tens queixas de mim, se tens graves ofensas, escuta-me, e...
AMÁLIA – Não tenho mais que escutar, porque vi e ouvi...
JULIANO – ... guarda o teu ressentimento para mais tarde; invoco a tua prudência, a tua generosa bondade, e... o teu amor! Sufoca estes ímpetos;
castiga-me com o teu desdém, com o teu desprezo, se quiseres; condena-me à sorte cruel de viver contigo como um irmão, mas não prorrompas com todas as violências do ódio e do despeito; e não dês causa ao mundo de se deleitar com mais esta desgraça... Eu quero viver contigo...
AMÁLIA – Como um irmão? Tu sabes o que é ser irmão?! Pois eu te amava, como irmã, como filha e como amante... (Chora)
JULIANO – Eu quero justificar-me...
AMÁLIA – É impossível...
JULIANO – (De joelhos) Amália, não me mates, por quem és...
AMÁLIA – (Energicamente) Levante-se, monstro, e não venha parodiar a cena que há pouco representava no teatro de suas torpezas.
JULIANO – Amália, tem compaixão de um desgraçado... arrependido...
AMÁLIA – Quando o cinismo se alia ao crime, completa a malvadez.
Os maus não se arrependem.
JULIANO – Tranqüiliza-te... Tenho muito para dizer-te... 54 AMÁLIA – Não tenho que ouvir. Responde: para quem fora aquele dominó branco?
JULIANO – Aquele dominó branco?!
AMÁLIA – Que me trouxeram aqui?
JULIANO – Para quem seria... pois para quem era, se o trouxeram para aqui?
AMÁLIA – Seja franco, ao menos uma vez na vida.
JULIANO — (Levantando-se) Já o disse...
AMÁLIA – Não o disse; e basta de mentir. Dê por finda a comédia e responda-me: quero saber para quem era aquele decoro!
JULIANO – E para quem mais seria se não para ti...
AMÁLIA – Covarde! Já se atirou no lodo com o diadema da dignidade, com a coroa da verdade; já não tem pejo, nem... nem vergonha.
JULIANO – Não me aviltes, não me insultes, que eu...
AMÁLIA – Que eu o quê? Não tenho medo de ti. Sê brutal, muito embora; mas lembra-te de que a brutalidade não salva a ignomínia...
JULIANO – Não me provoques, não me faças perder o decoro!
AMÁLIA – Não tenho medo. Quando a mulher se eleva, reúne todas as forças do céu e com elas abate o homem, e o confunde no charco imundo de seus convícios. (Juliano a segura no braço, mas recua com a chegada de Alfredo)
CENA VI
ALFREDO, JULIANO e AMÁLIA
ALFREDO – (Muito açodado) Ora vivam!... Minha mulher não está aqui?
JULIANO – Não. (Grande pausa; Alfredo observa-os)
ALFREDO – A Júlia não está por cá?
JULIANO – Não sei.
ALFREDO – (À parte) Estão na vinagreira! Assim estarei eu logo mais... (Alto) Então, como a Júlia... sim... boa noite... (À parte) Safa...
CENA VII
AMÁLIA e JULIANO
AMÁLIA – (Depois de largo silêncio) Estamos separados d’alma, pelo destino, e o seremos de corpo pela lei. 55 JULIANO – Que estás dizendo, louca?
AMÁLIA – Estamos separados por toda a vida. Quero desquitar-me.
JULIANO – Eu não me separo, porque não quero, não devo, e porque te amo.
AMÁLIA – Que horror! Eu não amo essa mulher! Eis a minha sentença de morte, eis o que disseste ao dominó branco.
JULIANO – Nego, não disse tal; nunca o disse, nem o poderia dizer...
AMÁLIA – Ignomínia sobre ignomínia! Pois tu o não disseste?
JULIANO – Juro que...
CENA VIII
JÚLIA, JULIANO e AMÁLIA
JÚLIA (Com o dominó branco) – Não jures falso, Juliano, que o perjuro é dos infernos.
JULIANO – (À parte) Clarice! Traição feminina...
JÚLIA – Pensaste que a pobreza é a porta de todos os crimes, e que a mulher é um joguete de caprichos criminosos. Disseste-o, ouvimos, e não jures o contrário.
JULIANO – Quem é esta mulher? (Vai indo para ela com a mão no ar)
JÚLIA – Não me toques, porque sou uma mulher honrada...
AMÁLIA – Nem mais um passo. (Interpondo-se)
JÚLIA – ... e por que tenho um marido para te castigar.
JULIANO – Usa da tua voz, que aqui não é teatro.
AMÁLIA – O grande ator ainda não deixou a cena: estamos no teatro.
JULIANO – Queres intrigar-me com teu marido, depois do que acabas de fazer? As senhoras honradas procedem de outra maneira.
JÚLIA – Assim procedem. Toma a tua carta, o teu processo, que estava aqui (Na algibeira do dominó) e pede perdão a tua mulher. (Amália toma-lhe a carta)
JULIANO – Tudo se complica! (Cai sentado) Vamos à verdade, que é mais segura. (Amália lê a carta com ansiedade. Quase que desfalece)
AMÁLIA – É bem a sua letra; é toda a sua perfídia! Quero saboreá-la em voz alta...
JÚLIA – Não leias essa elegia da mentira; essa violência do crime, mascarada pela perfídia de um falso amor.
AMÁLIA – (Lendo) “O que farei neste mundo para merecer-te um sorriso, minha adorada Clarice?” Assim começou ele uma das primeiras cartas que me entregou! “A minha vida seria vida se fosse uma esperança e não este 56 continuo ansiar, este desespero, esta escuridão, esta incerteza e estas agonias que superam todos os horrores da morte. Se eu fosse um desses espíritos celestes, que lêem os corações como se lê no diamante as cores do céu... ”
Basta, é uma cópia; saiu da mesma fábrica que me iludiu. Bem me dizias, Júlia, que as orgias do coração viciam o talento! Os homens são muito desprezíveis.
JULIANO – (Erguendo-se) Júlia! Será possível?!
JÚLIA – (Tirando a máscara) Eu mesma; e agora? (Dá o subscrito da carta a Amália) Antes que vás mais longe, lê o que aquela honrada Clarice aqui escreveu.
AMÁLIA – Não vejo nada; tenho a vista escurecida. Lê.
JÚLIA – (Lendo) “Enganou-se; guarde o seu presente; e não venha mais a esta casa, e se o fizer, meu marido o receberá como merece. Clarice.” Está assinada e é letra dela.
JULIANO – Assim, minha cunhada, assim! Sempre a tratei com tanto respeito e agasalho; sempre a tive por amiga e hoje...
JÚLIA – Não é novo, nem extraordinário o ver-se o amigo da manhã convertido no inimigo da tarde. O presente desfez todo o passado. 57 CENA IX
TIBÚRCIO, JULIANO, AMÁLIA e JÚLIA
TIBÚRCIO – A senhora d. Clarice está dormindo; voltou cansada do baile. O senhor Alfredo tem andado como louco e a chorar, em procura da senhora d. Júlia. Bateu por todas as portas, e até foi à casa do senhor Bernardo, que estava almoçando e pronto a partir para a fazenda; eles ai vêm com muita aflição.
AMÁLIA – Meu pai! Que felicidade!
JÚLIA – Assim é que eu o quero. Há de pagar-me tudo.
JULIANO – Sabemos tudo. Retira-te, depressa.
CENA X
BERNARDO, ALFREDO, JULIANO, AMÁLIA e JÚLIA
AMÁLIA – Meu querido pai. (Beija-lhe a mão)
JÚLIA – A bênção, meu pai? (Beija-lhe a mão)
BERNARDO – Eu bem disse que estava aqui! Pois aonde mais estaria, saindo com a irmã do baile? Esta sua cabeça, senhor Alfredo, esta sua cabeça!... Pois para onde iria minha filha? Fale...
ALFREDO – Mas eu vim aqui e... e não a vi...
BERNARDO – Não a viu, logo não está; como se a casa fosse de vidro!
E já castelos no ar e quanta coisa pode passar por uma cabeça leviana! E fezme susto; porque mandei parar a bagagem, e agora perco este trem, deixando os cavalos e os outros animais à espera em Belém, o que é tudo uma desordem. (Para Júlia) Ah! tu não viste, que girândolas perdidas,que foguetes saíam daquela cabeça; e, já se sabe, cada um rebentando a seu modo, estourando um despropósito no campo de todos os disparates. Não sei o que foi fazer à Europa! Então? É ela ou não é?
ALFREDO – É ela mesma, e estou sossegado.
JÚLIA – O barulho do baile estonteou-o e a multidão das luzes o deslumbrou.
ALFREDO – Mas eu vim aqui primeiro e disseram-me que cá não estavas. Não tenho culpa deste engano. (À parte) Obra do senhor Juliano.
(Para Júlia) Agora que tudo está acabado, vamos, que eu hoje quero dormir até a hora do jantar.
JÚLIA – Eu estava lá dentro. Há momentos em que... (Devorando-o com os olhos) 58 ALFREDO – Sim, bem sei que vim em maus momentos...
BERNARDO – Pois houve alguma coisa séria?
ALFREDO – Houve ... houve o que quiserem... mas não houve nada de sério.
JÚLIA – Vem cá dentro, que te quero mostrar uma coisa, anda, vem cá.
ALFREDO – Espere, que seu pai já vai sair.
BERNARDO – Como lhes disse anteontem, parto; e só virei por cá, se vier, depois da safra. A cada dia sinto crescer o tédio que tenho à cidade: está muito grande e muito cheia de coisas. Adeus, meninas, até a volta; adeus, meus senhores. (Amália chora e se abraça com o pai) Mas que é isto? Menina, tu tens alguma coisa?!
AMÁLIA – Espere, que eu vou aprontar-me: eu parto com vosmecê.
JULIANO – E eu também.
BERNARDO – E porque não me preveniram? Não pode ser hoje, porque só tenho lá condução para um, e não há mais; o resto são bestas de carga e vocês não podem ir assim ...
JULIANO – Ficaremos à espera em Belém, se não houver cavalgaduras de aluguel...
BERNARDO – Meus filhos em cavalos de aluguel! O que está dizendo?!
AMÁLIA – Quem parte sou eu somente, meu pai; é sua filha quem vai, e não aqui o senhor...
JULIANO – Amália! O que é isso?
AMÁLIA – (Apoiando a voz)...e não aqui o senhor, que tem muitíssimo que fazer na cidade.
BERNARDO – Temos arrufos? Pois o que é que temos, vamos lá com essas bagatelas? (Assenta-se)
JULIANO – Coisas passageiras, zelos bem perdoáveis.
BERNARDO – Saiu à mãe em corpo e alma! Era um composto de todas as perfeições, e seria um anjo se não tivesse esse defeito. Às vezes custava-me a sofrê-la, porque era injusta.
JULIANO – A filha não é menos virtuosa.
AMÁLIA – Não é injusta, é desgraçada. Desgraçada, meu pai, e muito desgraçada! A mais infeliz de todas as mulheres.
ALFREDO – Ora, cunhada, isso agora é exageração.
JÚLIA – Cale-se.
BERNARDO – (Levantando-se) Desgraçada! Pois tu és desgraçada?
Como é isso agora e repentinamente? Julguei-te sempre feliz e bendizia a tua escolha... 59 AMÁLIA – Escolha funesta. A vara mágica dos meus sonhos era uma serpente; o cordeiro não era mais do que um lobo disfarçado.
BERNARDO – Está bem, sossega, que tudo isto há de passar. Fica, que eu daqui a um mês te virei buscar. Vou preparar a estrada na fazenda, a fim de que desembarques de caleche na porta, como o faz o meu vizinho marquês.
JULIANO – Essa viagem será mais agradável.
ALFREDO – Assim, até eu quero ir. Vim mal acostumado da Europa.
AMÁLIA – Devo partir, meu pai, e o quanto antes. Não posso ficar nesta casa e se me obrigarem a isso, morrerei. Já pronunciei o meu divórcio.
BERNARDO – O teu divórcio! Divórcio, por quê?
JULIANO – Minha Amália, não te abandones a tanto excesso! Não dês desgostos a teu pai, ao teu melhor amigo.
BERNARDO – Divórcio! Tu não sabes o que é um divórcio.
AMÁLIA – Sei; é o inferno da mulher na terra, quando o marido tem razão; mas aqui, meu pai, é diferente e bem diferente.
BERNARDO – Olha que o divórcio é a morte social de dois entes; a quebra de uma jura, de um sacramento.
AMÁLIA – Não quebrei juras, nem profanei o sacramento. Deus me está ouvindo!
BERNARDO – Estou certo, porque do contrário não terias mais pai.
Mas que é isto, senhor Juliano? Então? Não se justifica?! Se o não fez em particular, faço-o agora, somos todos de casa, e amigos...
AMÁLIA – O inferno só tem argúcias para enganar e não para destruir a verdade. A ocasião é oportuna e o juiz imparcial.
JULIANO – Pois o senhor seu pai, um homem grave, deve entrar nestas coisas?
BERNARDO – Está bom, está bom; adeus meninas: um abraço. A
roupa suja lava-se em casa e às escondidas. (Amália enfia o braço no do pai)
AMÁLIA – Adeus, Júlia. Não chores por mim, quando eu morrer, reza somente; porque a oração sobe e o pranto desce. (Juliano a segura no braço, mas ela o repele energicamente) Não me toque, senhor, que lhe não pertenço mais. Sou uma desgraçada que saiu de casa de seu pai, enganada por um monstro, mas que agora volta arrependida; um pai é sempre bom, porque é o imediato de Deus sobre a terra.
BERNARDO – Quero isto claro, e bem claro: basta de acusações vagas.
ALFREDO – Não digas nada, mana, porque é feio... Júlia, vem ajudarme a pedir a tua irmã que se cale; tu podes tanto nela e sabes tão bem falar...
Eu só me contento com uma palavra...
JÚLIA – Contente-se com o meu silêncio, agora, que não é pouco; e tome conta em si. 60 BERNARDO – Pois também há por lá coisa? Parece que a moléstia é geral.
JÚLIA – Este, ainda o salvei a tempo, porque é mais simples.
ALFREDO – Está sempre com gracinhas; porque sabe que lhe quero bem. (Para Juliano) Fala, homem, que esse teu silêncio! ... Bota esse orgulho na rua.
JULIANO – Confesso que tive um erro, um erro grave aos olhos de uma senhora; tive uma alucinação passageira, um desvio, um crime, se quiserem, mas espero que será esquecido pela senhora sua filha...
AMÁLIA – Nunca.
JULIANO – ... em quem reconheço todas as virtudes de uma perfeita senhora.
BERNARDO – Assim deve ser; e eu espero que esse erro...
AMÁLIA – Não foi um erro, meu pai, nem uma alucinação, nem um crime passageiro, foi um plano de refalsário, uma abominação contínua. Uma mulher que se estima pode esquecer o abandono, a traição e o renegá-la seu marido no meio de uma orgia? Não meio de uma dessas saturnais, em que se consome o dever, a honra, o dote que seu pai lhe dera e se prostituem todos vínculos sagrados, e o juramento entre esposos?! Ninguém me disse, meu pai, eu o vi e eu ouvi! Este homem há um ano que me ilude, e de que maneira?!
BERNARDO – Vejo que é o caso grave, e que o senhor Juliano...
JULIANO – Prometo emendar-me e ser doravante um outro.
BERNARDO – Estou satisfeito. Aceita, minha filha este arrependimento sincero.
AMÁLIA – Não, meu pai, porque não é sincero. Aquela língua é de goma elástica, estende-se, enrosca-se, mas não tem firmeza. É uma lâmina que se dobra, mas quando se desdobra é para matar. Este homem é o maior hipócrita do mundo, e de uma tal habilidade, que chegou-me a convencer de que era lobisomem, para não dormir em casa e andar por aí...
BERNARDO – Pois tu és tão simples que acreditaste?
AMÁLIA – Os meses têm trinta dias, e destes apenas o via em casa cinco ou seis noites; o resto era consumido em deboches contínuos. A nossa mesa foi-se reduzindo de dia em dia, porque o dinheiro que vosmecê lhe entregou, se ia por outras vias! Aquelas minhas visitas a sua casa, na hora do jantar, não eram as de uma filha, mas sim as de uma desgraçada faminta; e aquele apetite era o da cólera e o do disfarce. A minha alegria era fingida, era uma máscara porque o meu coração era um vaso de amarguras. Ele que o diga, se me ouviu uma só queixa, uma só palavra, uma só lágrima?
JÚLIA – A tanto não avaliei os teus sofrimentos. 61 AMÁLIA – Só, e só aqui, consumia dias de pranto, horas de fome e momentos de desespero. Eu, a filha de Bernardo José da Silva, morrendo de fome e vendo o suor de meu pai esbanjado em vícios, evaporado em licores consumidos nos lábios de quanta mulher devassa infama as ruas da cidade?! É isto ser esposo?... Ainda tenho pai e, graças a Deus, não perdi a sua estima.
Meu pai, dê-me um abraço e beijo, porque ainda os mereço.
BERNARDO – Vamos, minha filha, que eu saberei consolar-te.
JULIANO – Esperai, senhor, esperai. Amália, não me abandones, porque morrerei de dor! Amália, já sou outro homem. Eu quero acompanharte como um escravo, como uma vítima que expia no cativeiro os seus crimes, e o tempo, o grande e seguro revelador de todas as verdades, te mostrará o meu arrependimento.
AMÁLIA – Fujamos, meu pai, daquela língua, que é como esses frutos cheirosos que dão a morte a quem os prova. Não se iluda, que é a onça imitando o canto do inocente macuco.
ALFREDO – (Para Juliano) Não a deixes partir. Atira com o orgulho no chão, ajoelha-te. (Pesa-lhe no ombro)
JULIANO – (De joelhos) Não me deixes, Amália, porque morro. Longe de mim, quem compartilhará teus males?
AMÁLIA – Meu pai, que me ama; meu pai, em cujo seio encontrarei aquela serenidade do céu imaculado; aquela paz, aquele refúgio por onde não cruzam os tufões e os raios da ingratidão. As tuas palavras, os teus excessos não são mais do que outros tantos enganos calculados, como aqueles em que caiu este coração inocente. Estás conjurando a riqueza, porque temes voltar à miséria: fica com o meu dote, que me não serve em casa de meu pai. Lá, eu tenho tudo.
JULIANO – A tua dor é grande, porque te desconheço...
AMÁLIA – Cuidei achar em teu seio aquela existência que me pintavas com o fogo do inferno, cuidei entrar nesses êxtases de felicidade, nesse paraíso da amizade e do amor com que me fascinaste, mas enganei-me, e oh!
muito que me enganei! Arrancaste a vitima, despojaste-a das brancas vestes da virgindade, pisaste a coroa sagrada do himeneu, rasgaste o véu da esposa e cuspiste no altar. Aquela grinalda celeste, tecida da matéria dos astros que me prendia a uma vida, a um sonho de venturas, ao céu, é hoje um símbolo da morte: mirrou-se na fronte da manceba... como tu, que morreste! Não te quero mais bem.
JULIANO – Tens razão, Amália, tens toda a razão. (Com força)
Despedaça-me esta cabeça, mas respeita o meu coração. Levado pelos maus exemplos, pelo contato perigoso, pela ociosidade, pelo falso orgulho, e pela febre imitativa que leva o homem ao delírio e à loucura, mergulhei-me no 62 lodaçal do crime, nesse charco brilhante, semeado do ouropel de todas as vaidades; falsifiquei palavras, não os sentimentos, blasfemei contra o teu amor, contra a tua santidade, mas oh! nunca em mim baixaste das alturas em que brilham tuas virtudes; nunca te precipitei daquele santuário em que o céu te colocou para minha admiração. Deus me está ouvindo, e ele bem o sabe.
Por tua mãe, que nos ouve agora, pela paz de sua alma; por teu pai que nos honra com sua compassiva bondade; por todos estes exemplares sagrados, por todos estes amores tão santos e tão respeitáveis, não me abandones, Amália, não me deixes assim morrer. Sê minha outra vez, Amália, e vem com teus dotes celestes regenerar esta alma, que se levanta agora da perdição, para subir à esfera da perfeição e da felicidade! Sim, sim, minha querida Amália...
(Ambos choram e todos limpam as lágrimas. Pausa, e ele continua:) Sim, sim, minha querida Amália.
CENA XI
DOUTOR ALBANO e os mais (Juliano levanta-se)
DOUTOR ALBANO – Ora muitos bons dias, meus amigos. (Olha espantado para todos) Como vão?
JÚLIA – Foi engano, não temos doentes na casa, senhor doutor.
DOUTOR ALBANO – Vim aqui para outro mister. Venho chamar o senhor Juliano, a pedido do nosso amigo barão, que está às portas da morte.
BERNARDO – Pois o que é que lhe sucedeu! Ainda ontem à tarde jogamos o gamão e ele estava nas melhores disposições de saúde! Bem diz lá o ditado: para morrer basta estar vivo! Mas que tem ele, que moléstia?
DOUTOR ALBANO – Uma forte indigestão. Está mal, muito mal, e receio bastante pelos seus dias.
ALFREDO – Se ele ontem à noite comeu e bebeu como um alarve!
DOUTOR ALBANO – Aonde? Só se foi em casa. Coitado! Vive na mais rigorosa dieta, nunca ceia e nem mesmo toma chá! Não posso adivinhar do que lhe proveio semelhante indigestão!
JÚLIA – (À parte, para Alfredo) Pois não era ele um dos lobisomens?
Juro que o vi lá sentado.
ALFREDO – (Para ela em voz baixa) Estava sentado à direita deste inocente e em companhia lírica.
BERNARDO – É verdade que ele é de um belo parecer, vermelho e um tanto colérico... 63 DOUTOR ALBANO – Um tanto sangüíneo; e, por sabê-lo, vive com o prumo na mão...
ALFREDO – (À parte) Com a garrafa e o copo... e tu que o digas, maganão.
DOUTOR ALBANO – ... e como se fora um doente. É homem que se deita muito cedo; nunca anda fora de horas; vive engaiolado ao pé da sua querida metade, que faz inveja a todos. Venha, senhor Juliano, porque é tempo; mais tarde será inútil, poderá a congestão...
JULIANO – Daqui a pouco lá irei; estou agora com um negócio muito importante. O senhor Bernardo parte para a fazenda e temos negócios...
ALFREDO – (Para Albano) Está mal o nosso barão? Muito sinto. (À parte) Isto é que se chama ser amigo! E com que carinha? (Alto para Albano)
Então está o caso feio? E aí está, fiem-se lá em dietas!
DOUTOR ALBANO – (À parte) Parece-me que o caso está mais feio por aqui. (Para Juliano) Não perca tempo, meu amigo, que é uma de caridade e de dever.
AMÁLIA – Eis o fruto das orgias! O senhor grão-mestre dos lobisomens tem largas contas que dar a Deus e sérias à sociedade.
DOUTOR ALBANO – Que está dizendo, minha senhora? Eu não a entendo!
BERNARDO – É o que vê, senhor doutor; minha filha quer divorciarse, e isto dilacera-me o coração.
JULIANO – Amália, crê na sinceridade do meu arrependimento.
AMÁLIA – Decidi partir e não mudo de resolução. Morri de corpo e alma; considere-se livre e viva como quiser. Vamos, meu pai.
DOUTOR ALBANO – Perdão, senhor Bernardo. A senhora quer ir agora para a fazenda?
BERNARDO – Quer, e dou-lhe toda a razão.
DOUTOR ALBANO – Não consinta nisso de modo algum. A senhora d. Amália está num estado muito interessante e perigoso e, assim, não deve montar a cavalo.
JULIANO— (À parte) O céu se compadece de mim.
AMÁLIA – Que tem o senhor doutor comigo: não sofro nada e nada tenho.
DOUTOR ALBANO – Tem, minha senhora, tem; e eu tenho obrigação de o dizer, apesar de que a senhora simule o que bem sabe.
AMÁLIA – Nada sei e nada simulo.
DOUTOR ALBANO – Sou médico, e o declaro na família: essa viagem pode acarretar duas mortes.
JULIANO – Eu, por certo, que morrerei. 64 DOUTOR ALBANO – Três! E quando menos a de seu filho ou filha, minha senhora.
AMÁLIA – Céus!
DOUTOR ALBANO – E assim prevenida, se o fizer, comete mais do que um erro. Senhor Bernardo, a senhora sua filha traz em seu seio um fruto, que é seu neto.
JULIANO —. Pois Amália está em caminho de ser mãe?! Eu de nada sabia!
DOUTOR ALBANO – Guardei este segredo porque a ela pertencia revelá-lo.
AMÁLIA – O senhor nunca me falou de uma maneira afirmativa.
DOUTOR ALBANO – Nem o podia dizer na primeira consulta, mas disse-o na segunda e da maneira a mais clara. Marquei-lhe o tempo e disse-lhe o que se costuma às senhoras respeitáveis. Declaro que a senhora d. Amália está grávida.
BERNARDO – Assim, minha filha, não deves partir; não consinto. (À parte) Agora se explica toda esta exaltação!
JULIANO – (Indo para Amália) E eu ignorava tão grande ventura.
Amália... (Amália o repele)
BERNARDO – Amália, irás comigo. Não chores, minha filha.
JULIANO – Para a fazenda não, não é possível.
BERNARDO – Para minha casa. Já não vou para a fazenda, fico na cidade.
JULIANO – Meu pai, por quem é, não me roube Amália. Agora tenho mais outro motivo para emendar-me.
BERNARDO – Veremos. Dizem que o tempo é médico tardio, e cura radicalmente todas as moléstias. Veremos.
AMÁLIA – Muito bem, meu pai. Vamos, fujamos desta casa.
JULIANO – Amália, não infundas sobre essa criatura um ódio criminoso. Deus perdoa aos arrependidos e tu deves imitá-lo; tu em quem sempre admirei todas as virtudes da mulher! Fica, que eu dou a teu pai por meu fiador.
BERNARDO – Veja lá o que diz! Olhe que serei implacável.
JULIANO – (De joelhos) Juro por vossas respeitáveis mãos, que beijo, juro pelo novo amor que em mim se abre, agora mesmo. Por esse fruto, por essa criancinha, que virá santificar-me com seu sorriso e com sua inocência, e conduzir-me à verdade de esposo, de pai, e de homem de bem. Juro pelas virtudes de vossa filha, juro por Deus, que está vendo o meu arrependimento...
Meu Deus e meu Senhor, matai-me neste instante se eu não falo a verdade! 65 BERNARDO – Minha filha, então, que dizes? Isto parece-me sério.
Olha que eu fico por fiador e aqui hei de vir todos os dias conversar contigo.
À mais pequena coisa, estará tudo acabado; porque eu cá não brinco. Então?...
Responde me.
AMÁLIA – Ficarei, meu pai... mas...
JULIANO – Amália, dá-me a tua...
AMÁLIA – Ainda não, senhor lobisomem!
JULIANO – Esperarei, esperarei pela minha futura felicidade. (Levantase)
DOUTOR ALBANO – (Para Alfredo) Quem diria, que esta tímida criatura, que esta menina havia de matar a nossa tão bela sociedade. Há sempre uma Lucrécia em todos os desastres. Isto está sabido, e não há remédio para ela.
ALFREDO – Está morta, e morta para sempre. Será bom enterrá-la já, antes que lhe exponham o cadáver à irrisão pública.
JÚLIA – (Entre os dois e por trás) E nem ao menos um epitáfio, uma pedra em forma de garrafão ou de empada?
DOUTOR ALBANO – (À parte) Este espalha-brasas (Olhando para Alfredo) foi quem nos fez a brecha. Não lhe vejo remédio. É pena.
BERNARDO – Vamos todos para minha casa; quero-os todos comigo hoje.
JÚLIA – Eu ainda tenho umas contas aqui com o senhor Alfredo.
ALFREDO – Não falemos mais nisso; não há mais lobisomens; está tudo pago e acabado, não é assim grão-mestre?
DOUTOR ALBANO – Estamos desencantados. Agora vamos ser homens.