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Textos para uso geral de domínio público.

O Protocolo

CARTA A QUINTINO BOCAIÚVA
Meu amigo, Vou publicar as minhas duas comédias de estréia; e não quero fazê-lo sem conselho da tua competência.
Já uma crítica benévola e carinhosa, em que tomaste parte, consagrou a estas duas composições palavras de louvor e animação.
Sou imensamente reconhecido, por tal, aos meus colegas da imprensa.
Mas o que recebeu na cena o batismo do aplauso pode, sem inconveniente, ser trasladado para o papel? A diferença entre os dois meios de publicação não modifica o juízo, não altera o valor da obra?
É para a solução destas dúvidas que recorro à tua autoridade literária.
O juízo da imprensa viu nestas duas comédias - simples tentativas de autor tímido e receoso. Se a minha afirmação não envolve suspeitas de vaidade disfarçada e mal cabida, declaro que nenhuma outra solução levo nesses trabalhos. Tenho o teatro por coisa muito séria, e as minhas forças por coisa muito insuficiente; penso que as qualidades necessárias ao autor dramático desenvolvem-se e apuram-se com o tempo e o trabalho; cuido que é melhor tatear para achar; é o que procurei e procuro fazer.
Caminhar destes simples grupos de cenas - à comédia de maior alcance, onde o estudo dos caracteres seja consciencioso e acurado, onde a observação da sociedade se case ao conhecimento prático das condições do gênero - eis uma ambição própria de ânimo juvenil, e que eu tenho a imodéstia de confessar.
E, tão certo estou da magnitude da conquista, que me não dissimulo o longo estádio que há percorrer para alcançá-la. E mais. Tão difícil me parece este gênero literário, que, sob as dificuldades aparentes, se me afigura que outras haverão menos superáveis e tão sutis, que ainda as não posso ver.
Até onde vai a ilusão dos meus desejos? Confio demasiado na minha perseverança? Eis o que espero saber de ti.
E dirijo-me a ti, entre outras razões, por mais duas, que me parecem excelentes: razão de estima literária e razão de estima pessoal. Em respeito à tua modéstia, calo o que te devo de admiração e reconhecimento.
O que nos honra, a mim e a ti, é que a tua imparcialidade e a minha submissão ficam salvas da mínima suspeita. Serás justo e eu dócil; terás ainda por isso o meu reconhecimento; e eu escapo a esta terrível sentença de um escritor: "Les amitiés que ne résistent pas à la franchise, valent-elles un regret?"
Teu amigo e colega, Machado de Assis.
CARTA AO AUTOR
Machado de Assis, Respondo à tua carta. Pouco preciso dizer-te. Fazes bem em dar ao prelo os teus primeiros ensaios dramáticos. Fazes bem, porque essa publicação envolve uma promessa e acarreta sobre ti uma responsabilidade para com o público. E o público tem o direito de ser exigente contigo. És moço, e foste dotado pela Providência com um belo talento. Ora, o talento é uma arma divina que Deus concede aos homens para que estes a empreguem no melhor serviço dos seus semelhantes. A idéia é uma força. Inoculá-la no seio das massas é inocular-lhe o sangue puro da regeneração moral. O homem que se civiliza, cristianiza-se. Quem se ilustra, edifica-se. Porque a luz que nos esclarece a razão é a que nos alumia a consciência. Quem aspira a ser grande, não pode deixar de aspirar a ser bom. A virtude é a primeira grandeza deste mundo. O grande homem é o homem de bem. Repito, pois, nessa obra de cultivo literário há uma obra de edificação moral.
Das muitas e variadas formas literárias que existem e que se prestam ao conseguimento desse fim escolheste a forma dramática. Acertaste. O drama é a forma mais popular, a que mais se nivela com a alma do povo, a que mais recursos possui para atuar sobre o seu espírito, a que mais facilmente o comove e exalta; em resumo, a que tem meios mais poderosos para influir sobre o seu coração.
Quando assim me exprimo, é claro que me refiro às tuas comédias, aceitando-as como elas devem ser aceitas por mim e por todos, isto é, como um ensaio, como uma experiência, e, se podes admitir a frase, como uma ginástica de estilo.
A minha franqueza e a lealdade que devo à estima que me confessas obrigam-me a dizer-te em público o que já te disse em particular. As tuas duas comédias, modeladas ao gosto dos provérbios franceses, não revelam nada mais do que a maravilhosa aptidão do teu espírito, a profusa riqueza do teu estilo. Não inspiram nada mais do que simpatia e consideração por um talento que se amaneira a todas as formas da concepção.
Como lhes falta a idéia, falta-lhes a base. São belas, porque são bem escritas. São valiosas, como artefatos literários, mas até onde a minha vaidosa presunção crítica pode ser tolerada, devo declarar-te que elas são frias e insensíveis, como todo o sujeito sem alma.
Debaixo deste ponto de vista, e respondendo a uma interrogação direta que me diriges, devo dizer-te que havia mais perigo em apresentá-las ao público sobre a rampa da cena do que há em oferecê-las à leitura calma e refletida. O que no teatro podia servir de obstáculo à apreciação da tua obra, favorece-a no gabinete. As tuas comédias são para serem lidas e não representadas. Como elas são um brinco de espírito podem distrair o espírito. Como não têm coração não podem pretender sensibilizar a ninguém. Tu mesmo assim as consideras, e reconhecer isso é dar prova de bom critério consigo mesmo, qualidade rara de encontrar-se entre os autores.
O que desejo, o que te peço, é que apresentes nesse mesmo gênero algum trabalho mais sério, mais novo, mais original e mais completo. Já fizeste esboços, atira-te à grande pintura.
Posso garantir-te que conquistarás aplausos mais convencidos e mais duradouros.
Em todo caso, repito-te que fazes bem. Sujeita-te à crítica de todos, para que possas corrigir-te a ti mesmo. Como te mostras despretensioso, colherás o fruto são da tua modéstia não fingida. Pela minha parte estou sempre disposto a acompanhar-te, retribuindo-te em simpatia toda a consideração que me impõe a tua jovem e vigorosa inteligência.
Teu Q. Bocaiúva.
O PROTOCOLO
Comédia em um ato Representada pela primeira vez no Ateneu Dramático do Rio de Janeiro em novembro de 1862.
PERSONAGENS
PINHEIRO
VENÂNCIO ALVES
ELISA
LULU
Atualidade.
Em casa de Pinheiro (Sala de visitas.)
Cena I
ELISA, VENÂNCIO ALVES
ELISA
Está meditando?
VENÂNCIO
(como que acordando)
Ah! perdão!
ELISA
Estou afeita à alegria constante de Lulu, e não posso ver ninguém triste.
VENÂNCIO
Exceto a senhora mesma.
ELISA
Eu!
VENÂNCIO
A senhora!
ELISA
Triste, por quê, meu Deus?
VENÂNCIO
Eu sei! Se a rosa dos campos me fizesse a mesma pergunta, eu responderia que era falta de orvalho e de sol. Quer que lhe diga que é falta de... de amor?
ELISA
(rindo-se)
Não diga isso!
VENÂNCIO
Com certeza, é.
ELISA
Donde conclui?
VENÂNCIO
A senhora tem um sol oficial e um orvalho legal que não sabem animá-la. Há nuvens...
ELISA
É suspeita sem fundamento.
VENÂNCIO
É realidade.
ELISA
Que franqueza a sua!
VENÂNCIO
Ah! é que o meu coração é virginal, e portanto sincero.
ELISA
Virginal a todos os respeitos?
VENÂNCIO
Menos a um.
ELISA
Não serei indiscreta: é feliz.
VENÂNCIO
Esse é o engano. Basta essa exceção para trazer-me em um temporal. Tive até certo tempo o sossego e a paz do homem que está fechado no gabinete sem se lhe ciar da chuva que açoita as vidraças.
ELISA
Por que não se deixou ficar no gabinete?
VENÂNCIO
Podia acaso fazê-lo? Passou fora a melodia do amor; o coração é curioso e bateu-me que saísse, levantei-me, deixei o livro que estava lendo; era Paulo e Virgínia! Abri a porta e nesse momento a fada passava. (reparando nela) Era de olhos negros e cabelos castanhos.
ELISA
Que fez?
VENÂNCIO
Deixei o gabinete, o livro, tudo para seguir a fada do amor!
ELISA
Não reparou se ela ia só?
VENÂNCIO
(suspirando)
Não ia só!
ELISA
(em tom de censura)
Fez mal.
VENÂNCIO
Talvez. Curioso animal que é o homem! Em criança deixa a casa paterna para acompanhar os batalhões que vão à parada; na mocidade deixa os conchegos e a paz para seguir a fada do amor; na idade madura deixa-se levar pelo deus Momo da política ou por qualquer outra fábula do tempo. Só na velhice deixa passar tudo sem mover-se, mas... é porque já não tem pernas!
ELISA
Mas que tencionava fazer se ela não ia só?
VENÂNCIO
Nem sei.
ELISA
Foi loucura. Apanhou chuva!
VENÂNCIO
Ainda estou apanhando.
ELISA
Então é um extravagante.
VENÂNCIO
Sim. Mas um extravagante por amor... ó poesia!
ELISA
Mau gosto!
VENÂNCIO
A Sra. é a menos competente para dizer isso.
ELISA
É sua opinião?
VENÂNCIO
É opinião deste espelho.
ELISA
Ora!
VENÂNCIO
E dos meus olhos também.
ELISA
Também dos seus olhos?
VENÂNCIO
Olhe para eles.
ELISA
Estou olhando.
VENÂNCIO, O que vê dentro?
ELISA
Vejo... (com enfado) Não vejo nada!
VENÂNCIO
Ah! está convencida!
ELISA
Presumido!
VENÂNCIO
Eu! Essa agora não é má!
ELISA
Para que seguiu quem passava quieta pela rua? Supunha abrandá-la com as suas mágoas?
VENÂNCIO
Acompanhei-a, não para abrandá-la, mas para servi-la; viver do rasto de seus pés, das migalhas dos seus olhares; apontar-lhe os regos a saltar, apanhar-lhe o leque quando caísse... (cai o leque a Elisa. Venâncio Alves apressa-se a apanhá-lo e entrega-lho)
Finalmente...
ELISA
Finalmente... fazer profissão de presumido!
VENÂNCIO
Acredita deveras que o seja?
ELISA
Parece.
VENÂNCIO
Pareço, mas não sou. Presumido seria se eu exigisse a atenção exclusiva da fada da noite. Não quero! Basta-me ter coração para amá-la, é a minha maior ventura!
ELISA
A que pode levá-lo esse amor? Mais vale sufocar no coração a chama nascente do que condená-la a arder em vão.
VENÂNCIO
Não; é uma fatalidade! Arder e renascer, como a fênix, suplício eterno, mas amor eterno também.
ELISA
Eia! Ouça uma... amiga. Não dê a esse sentimento tanta importância. Não é a fatalidade da fênix, é a fatalidade ... do relógio. Olhe para aquele. Lá anda correndo e regulando;
mas se amanhã não lhe derem corda, ele parará. Não dê corda à paixão, que ela parará por si.
VENÂNCIO
Isso não!
ELISA
Faça isso... por mim!
VENÂNCIO
Pela senhora! Sim... não...
ELISA
Tenha ânimo!
Cena II
VENÂNCIO ALVES, ELISA, PINHEIRO
PINHEIRO
(a Venâncio)
Como está?
VENÂNCIO
Bom. Conversávamos sobre coisas da moda. Viu os últimos figurinos? São de apurado gosto.
PINHEIRO
Não vi.
VENÂNCIO
Está com um ar triste...
PINHEIRO
Triste, não; aborrecido... É a minha moléstia do domingo.
VENÂNCIO
Ah!
PINHEIRO
Ando a abrir e fechar a boca; é um círculo vicioso.
ELISA
Com licença.
VENÂNCIO
Oh! minha senhora!
ELISA
Faço anos hoje; venha jantar conosco.
VENÂNCIO
Venho. Até logo.
Cena III
PINHEIRO, VENÂNCIO ALVES
VENÂNCIO
Anda então em um círculo vicioso?
PINHEIRO
É verdade. Tentei dormir, não pude; tentei ler, não pude. Que tédio, meu amigo!
VENÂNCIO
Admira!
PINHEIRO
Por quê?
VENÂNCIO
Porque não sendo viúvo nem solteiro...
PINHEIRO
Sou casado...
VENÂNCIO
É verdade.
PINHEIRO
Que adianta?
VENÂNCIO
É boa! adianta ser casado. Compreende nada melhor que o casamento?
PINHEIRO
O que pensa da China, Sr. Venâncio?
VENÂNCIO
Eu? penso...
PINHEIRO
Já sei, vai repetir-me o que tem lido nos livros e visto nas gravuras; não sabe mais nada.
VENÂNCIO
Mas as narrações verídicas...
PINHEIRO
São minguadas ou exageradas. Vá à China, e verá como as coisas mudam tanto ou quanto de figura.
VENÂNCIO
Para adquirir essa certeza não vou lá.
PINHEIRO
É o que lhe aconselho; não se case!
VENÂNCIO
Que não me case?
PINHEIRO
Ou não vá à China, como queira. De fora, conjecturas, sonhos, castelos no ar, esperanças, comoções... Vem o padre, dá a mão aos noivos, leva-os, chegam às muralhas... Upa! estão na China! Com a altura da queda fica-se atordoado, e os sonhos de fora continuam dentro: é a lua-de-mel; mas, à proporção que o espírito se restabelece, vai vendo o país como ele é; então poucos lhe chamam celeste império, alguns infernal império, muitos purgatorial império!
VENÂNCIO
Ora, que banalidade!
PINHEIRO
Parece-lhe?
VENÂNCIO
E que sofisma!
PINHEIRO
Quantos anos tem, Sr. Venâncio?
VENÂNCIO
Vinte e quatro.
PINHEIRO
Está com a mania que eu tinha na sua idade.
VENÂNCIO
Qual mania?
PINHEIRO
A de querer acomodar todas as coisas à lógica, e a lógica a todas as coisas. Viva, experimente e convencer-se-á de que nem sempre se pode alcançar isso.
VENÂNCIO
Quer-me parecer que há nuvens no céu conjugal?
PINHEIRO
Há. Nuvens pesadas.
VENÂNCIO
Já eu as tinha visto com o meu telescópio.
PINHEIRO
Ah! se eu não estivesse preso...
VENÂNCIO
É exageração de sua parte. Capitule, Sr. Pinheiro, capitule. Com mulheres bonitas é um consolo capitular. Há de ser o meu preceito de marido.
PINHEIRO
Capitular é vergonha.
VENÂNCIO
Com uma moça encantadora?...
PINHEIRO
Não é uma razão.
VENÂNCIO
Alto lá! Beleza obriga.
PINHEIRO
Pode ser verdade, mas eu peço respeitosamente licença para declarar-lhe que estou com o novo princípio de não-intervenção nos Estados. Nada de intervenções.
VENÂNCIO
A minha intervenção é toda conciliatória.
PINHEIRO
Não duvido, nem duvidava. Não veja no que disse injúria pessoal. Folgo de recebê-lo e de contá-lo entre os afeiçoados de minha família.
VENÂNCIO
Muito obrigado. Dá-me licença?
PINHEIRO
Vai rancoroso?
VENÂNCIO
Ora qual! Até a hora do jantar.
PINHEIRO
Há de desculpar-me, não janto em casa. Mas considere-se com a mesma liberdade. (sai Venâncio. Entra Lulu)
Cena IV
PINHEIRO, LULU
LULU
Viva primo!
PINHEIRO
Como estás, Lulu?
LULU
Meu Deus, que cara feia!
PINHEIRO
Pois é a que trago sempre.
LULU
Não é, não, senhor; a sua cara de costume é uma cara amável; essa é de afugentar a gente. Deu agora para andar arrufado com sua mulher!
PINHEIRO
Mau!
LULU
Escusa de zangar-se também comigo. O primo é um bom marido; a prima é uma excelente esposa; ambos formam um excelente casal. É bonito andarem amuados, sem se olharem nem se falarem? Até parece namoro!
PINHEIRO
Ah! tu namoras assim?
LULU
Eu não namoro.
PINHEIRO
Com essa idade?
LULU
Pois então! Mas escute: estes arrufos vão continuar?
PINHEIRO
Eu sei lá.
LULU
Sabe, sim. Veja se isto é bonito na lua-de-mel; ainda não há cinco meses que se casaram.
PINHEIRO
Não há, não. Mas a data não vem ao caso. A lua-de-mel ofuscou-se; é alguma nuvem que passa; deixá-la passar. Queres que eu faça como aquele doido que, ao enublar-se o luar, pedia a Júpiter que espevitasse o candeeiro? Júpiter é independente, e me apagaria de todo o luar, como fez com o doido. Aguardemos antes que algum vento sopre do norte, ou do sul, e venha dissipar a passageira sombra.
LULU
Pois sim! Ela é o norte, o primo é o sul; faça com que o vento sopre do sul.
PINHEIRO
Não, senhora, há de soprar do norte.
LULU
Capricho sem graça!
PINHEIRO
Queres saber de uma coisa, Lulu? Estou pensando que és uma brisazinha do norte encarregada de fazer clarear o céu.
LULU
Oh! nem por graça!
PINHEIRO
Confessa, Lulu!
LULU
Posso ser uma brisa do sul, isso sim!
PINHEIRO
Não terás essa glória.
LULU
Então o primo é caprichoso assim?
PINHEIRO
Caprichoso? Ousas tu, posteridade de Eva, falar de capricho a mim, posteridade de Adão!
LULU
Oh!...
PINHEIRO
Tua prima é uma caprichosa. De seus caprichos nasceram estas diferenças entre nós.
Mas para caprichosa, caprichoso; contrafiz-me, estudei no código feminino meios de pôr os pés à parede, e tornei-me de antes quebrar que torcer. Se ela não der um passo, também eu não dou.
LULU
Pois eu estendo a mão direita a um, e a esquerda a outro, e os aproximarei.
PINHEIRO
Queres ser o anjo da reconciliação?
LULU
Tal qual.
PINHEIRO
Contanto que eu não passe pelas forcas caudinas.
LULU
Hei de fazer as coisas airosamente.
PINHEIRO
Insistes nisso? Eu podia dizer que era ainda um capricho de mulher. Mas não digo não, chamo antes afeição e dedicação.
Cena V
PINHEIRO, LULU, ELISA
LULU
(baixo)
Olhe, aí está ela!
PINHEIRO
(baixo)
Deixá-la.
ELISA
Andava a tua procura, Lulu.
LULU
Para quê, prima?
ELISA
Para me dares uma pouca de lã.
LULU
Não tenho aqui; vou buscar.
PINHEIRO
Lulu!
LULU
O que é?
PINHEIRO
(baixo)
Dize a tua prima que eu janto fora.
LULU
(indo a Elisa, baixo)
O primo janta fora.
ELISA
(baixo)
Se é por ter o que fazer, podemos esperar.
LULU
(a Pinheiro, baixo)
Se é por ter o que fazer, podemos esperar.
PINHEIRO
(baixo)
É um convite.
LULU
(alto)
É um convite.
ELISA
(alto)
Ah! Se é um convite pode ir; jantaremos sós.
PINHEIRO
(levantando-se)
Consentirá, minha senhora, que lhe faça uma observação: mesmo sem a sua licença, eu podia ir!
ELISA
Ah! é claro! Direito de marido... Quem lho contesta?
PINHEIRO
Havia de ser engraçada a contestação!
ELISA
Mesmo muito engraçada!
PINHEIRO
Tanto, quanto foi ridícula a licença.
LULU
Primo!
PINHEIRO
(a Lulu)
Cuida das tuas novelas! Vai encher a cabeça de romantismo, é moda; colhe as idéias absurdas que encontrares nos livros, e depois faz da casa de teu marido a cena do que houveres aprendido com as leituras: é também moda. (sai arrebatadamente)
Cena VI
LULU, ELISA
LULU
Como está o primo!
ELISA
Mau humor, há de passar!
LULU
Sabe como passava depressa? Pondo fim a estes amuos.
ELISA
Sim, mas cedendo ele.
LULU
Ora, isso é teima!
ELISA
É dignidade!
LULU
Passam dias sem se falarem, e, quando se falam, é assim.
ELISA
Ah! isto é o que menos cuidado me dá. Ao princípio fiquei amofinada, e devo dizê-lo, chorei. São coisas estas que só se confessam entre mulheres. Mas hoje vou fazer o que as outras fazem: curar pouco das torturas domésticas. Coração à larga, minha filha, ganha-se o céu, e não se perde a terra.
LULU
Isso é zanga!
ELISA
Não é zanga, é filosofia. Há de chegar o teu dia, deixa estar. Saberás então, quanto vale a ciência do casamento.
LULU
Pois explica, mestra.
ELISA
Não; saberás por ti mesma. Quero, entretanto, instruir-te de uma coisa. Não lhe ouviste falar no direito? É engraçada a história do direito! Todos os poetas concordam em dar às mulheres o nome de anjos. Os outros homens não se atrevem a negar, mas dizem consigo: "Também nós somos anjos!". Nisto há sempre um espelho ao lado, que lhes faz ver que, para anjos faltam-lhes... asas! Asas! asas! a todo o custo. E arranjam-nas;
legítimas ou não, pouco importa. Essas asas os levam a jantar fora, a dormir fora, muitas vezes a amar fora. A essas asas chamam enfaticamente: o nosso direito!
LULU
Mas, prima, as nossas asas?
ELISA
As nossas? Bem se vê que és inexperiente. Estuda, estuda, e hás de achá-las.
LULU
Prefiro não usar delas.
ELISA
Hás de dizer o contrário quando for ocasião. Meu marido lá bateu as suas; o direito de jantar fora! Caprichou em não levar-me à casa de minha madrinha; é ainda o direito.
Daqui nasceram os nossos arrufos, arrufos sérios. Uma santa zangar-se-ia, como eu.
Para caprichoso, caprichosa!
LULU
Pois sim! Mas estas coisas vão dando na vista; já as pessoas que freqüentam a nossa casa têm reparado; o Venâncio Alves não me deixa sossegar com as suas perguntas.
ELISA
Ah! Sim!
LULU
Que rapaz aborrecido, prima!
ELISA
Não acho!
LULU
Pois eu acho: aborrecido com as suas afetações!
ELISA
Como aprecias mal! Ele fala com graça e chamá-lo afetado!...
LULU
Que olhos os seus, prima!
ELISA
(indo ao espelho)
São bonitos?
LULU
São maus.
ELISA
Em que, minha filósofa?
LULU
Em verem o anverso de Venâncio Alves, e o reverso do primo.
ELISA
És uma tola.
LULU
Só?
ELISA
E uma descomedida.
LULU
É porque os amo a ambos. E depois...
ELISA
Depois, o quê?
LULU
Vejo no Venâncio Alves um arzinho de pretendente.
ELISA
À tua mão direita?
LULU
À tua mão esquerda.
ELISA
Oh!
LULU
É coisa que se adivinha... (ouve-se um carro) Aí está o homem.
ELISA
Vai recebê-lo. (Lulu vai até à porta. Elisa chega-se a um espelho e compõe o toucado)
Cena VII
ELISA, LULU, VENÂNCIO
LULU
O Sr. Venâncio Alves chega a propósito; falávamos na sua pessoa.
VENÂNCIO
Em que ocupava eu a atenção de tão gentis senhoras?
LULU
Fazíamos o inventário das suas qualidades.
VENÂNCIO
Exageravam-me o cabedal, já sei.
LULU
A prima dizia: "Que moço amável é o Sr. Venâncio Alves!".
VENÂNCIO
Ah! e a senhora?
LULU
Eu dizia: "Que moço amabilíssimo é o Sr. Venâncio Alves!".
VENÂNCIO
Dava-me o superlativo. Não me cai no chão esta atenção gramatical.
LULU
Eu sou assim: estimo ou aborreço no superlativo. Não é prima?
ELISA
(contrariada)
Eu sei lá!
VENÂNCIO
Como deve ser triste cair-lhe no desagrado!
LULU
Vou avisando, é o superlativo.
VENÂNCIO
Dou-me por feliz. Creio que lhe caí em graça...
LULU
Caiu! Caiu! Caiu!
ELISA
Lulu, vai buscar a lã.
LULU
Vou, prima, vou. (sai correndo)
Cena VIII
VENÂNCIO, ELISA
VENÂNCIO
Voa qual uma andorinha esta moça!
ELISA
É próprio da idade.
VENÂNCIO
Vou sangrar-me...
ELISA
Hein?
VENÂNCIO
Sangrar-me em saúde contra uma suspeita sua.
ELISA
Suspeita?
VENÂNCIO
Suspeita de haver-me adiantado o meu relógio.
ELISA
(rindo)
Posso crê-lo.
VENÂNCIO
Estará em erro. Olhe, são duas horas; confronte com o seu: duas horas.
ELISA
Pensa que acreditei seriamente?
VENÂNCIO
Vim mais cedo, e de passagem. Quis antecipar-me aos outros no cumprimento de um dever. Os antigos, em prova de respeito, depunham aos pés dos deuses grinaldas e festões; o nosso tempo, infinitamente prosaico, só nos permite oferendas prosaicas; neste álbum ponho eu o testemunho do meu júbilo pelo dia de hoje.
ELISA
Obrigada. Creio no sentimento que o inspira e admiro o gosto da escolha.
VENÂNCIO
Não é a mim que deve tecer o elogio.
ELISA
Foi gosto de quem vendeu?
VENÂNCIO
Não, minha senhora, eu próprio o escolhi; mas a escolha foi das mais involuntárias; tinha a sua imagem na cabeça, e não podia deixar de acertar.
ELISA
É uma fineza de quebra. (folheia o álbum)
VENÂNCIO
É por isso que me vibra um golpe?
ELISA
Um golpe?
VENÂNCIO
É tão casta que não há de calcular comigo; mas as suas palavras são proferidas com uma indiferença que eu direi instintiva.
ELISA
Não creia...
VENÂNCIO
Que não creia na indiferença?
ELISA
Não... Não creia no cálculo...
VENÂNCIO
Já disse que não. Em que devo crer seriamente?
ELISA
Não sei.
VENÂNCIO
Em nada, não lhe parece?
ELISA
Não reza a história de que os antigos, ao depositarem as suas oferendas, apostrofassem os deuses.
VENÂNCIO
É verdade: este uso é do nosso tempo.
ELISA
Do nosso prosaico tempo.
VENÂNCIO
A senhora ri? Riamos todos! Também eu rio, e da melhor vontade.
ELISA
Pode rir sem temor. Acha que sou deusa? Mas os deuses já se foram. Estátua, isto sim.
VENÂNCIO
Será estátua. Não me inculpe, nesse caso, a admiração.
ELISA
Não inculpo, aconselho.
VENÂNCIO
(repoltreando-se)
Foi excelente esta idéia do divã. É um consolo para quem está cansado, e quando à comodidade junta o bom gosto, como este, então é ouro sobre azul. Não acha engenhoso, D.. Elisa?
ELISA
Acho.
VENÂNCIO
Devia ser inscrito entre os beneméritos da humanidade o autor disto. Com trastes assim, e dentro de uma casinha de campo, prometo ser o mais sincero anacoreta que jamais fugiu às tentações do mundo. Onde comprou este?
ELISA
Em casa de Costrejean.
VENÂNCIO
Comprou uma preciosidade.
ELISA
Com outra que está agora por cima, e que eu não comprei, fazem duas, duas preciosidades.
VENÂNCIO
Disse muito bem! É tal o conchego que até se podem esquecer as horas... É verdade, que horas são? Duas e meia. A senhora dá-me licença?
ELISA
Já se vai?
VENÂNCIO
Até a hora do jantar.
ELISA
Olhe, não me queira mal.
VENÂNCIO
Eu, mal! E por quê?
ELISA
Não me obrigue a explicações inúteis.
VENÂNCIO
Não obrigo, não. Compreendo de sobejo a sua intenção. Mas, francamente, se a flor está alta para ser colhida, é crime aspirar-lhe de longe o aroma e adorá-la?
ELISA
Crime não é.
VENÂNCIO
São duas e meia. Até a hora do jantar.
Cena IX
VENÂNCIO, ELISA, LULU
LULU
Sai com a minha chegada?
VENÂNCIO
Ia sair.
LULU
Até quando?
VENÂNCIO
Até a hora do jantar.
LULU
Ah! janta conosco?
ELISA
Sabes que faço anos, e esse dia é o dos amigos.
LULU
É justo, é justo!
VENÂNCIO
Até logo.
Cena X
LULU, ELISA
LULU
Oh! Teve presente!
ELISA
Não achas de gosto?
LULU
Não tanto.
ELISA
É prevenção. Suspeitas que é do Venâncio Alves?
LULU
Atinei logo.
ELISA
Que tens contra esse moço?
LULU
Já to disse.
ELISA
É mau deixar-se ir pelas antipatias.
LULU
Antipatias não tenho.
ELISA
Alguém sobe.
LULU
Há de ser o primo.
ELISA
Ele! (sai)
Cena XI
PINHEIRO, LULU
LULU
Viva! Está mais calmo?
PINHEIRO
Calmo sempre, menos nas ocasiões em que és... indiscreta.
LULU
Indiscreta!
PINHEIRO
Indiscreta, sim senhora! Para que veio aquela exclamação quando eu falava com Elisa?
LULU
Foi porque o primo falou de um modo...
PINHEIRO
De um modo, que é o meu modo, que é modo de todos os maridos contrariados.
LULU
De um modo que não é o seu, primo. Para que fazer-se mau quando é bom? Pensa que não se percebe quanto lhe custa contrafazer-se?
PINHEIRO
Vais dizer que sou um anjo!
LULU
O primo é um excelente homem, isso sim. Olhe, sou importuna, e hei de sê-lo até vê-los desamuados.
PINHEIRO
Ora, prima, para irmã de caridade, és muito criança. Dispenso os teus conselhos e os teus serviços.
LULU
É um ingrato.
PINHEIRO
Serei.
LULU
Homem sem coração.
PINHEIRO
Quanto a isso, é questão de fato; põe aqui a tua mão, não sentes bater? É o coração.
LULU
Eu sinto um charuto.
PINHEIRO
Um charuto? Pois é isso mesmo. Coração e charuto são símbolos um do outro; ambos se queimam e se desfazem em cinzas. Olha, este charuto, sei eu que o tenho para fumar;
mas o coração, esse creio que já está todo no cinzeiro.
LULU
Sempre a brincar!
PINHEIRO
Achas que devo chorar?
LULU
Não, mas...
PINHEIRO
Mas o quê?
LULU
Não digo, é uma coisa muito feia.
PINHEIRO
Coisas feias na tua boca, Lulu!
LULU
Muito feia.
PINHEIRO
Não há de ser, dize.
LULU
Demais, posso parecer indiscreta.
PINHEIRO
Ora, qual. É alguma coisa de meu interesse?
LULU
Se é!
PINHEIRO
Pois, então, não és indiscreta!
LULU
Então, quantas caras tem a indiscrição?
PINHEIRO
Duas.
LULU
Boa moral!
PINHEIRO
Moral à parte. Fala, o que é?
LULU
Que curioso! É uma simples observação; não lhe parece que é mau desamparar a ovelha, havendo tantos lobos, primo?
PINHEIRO
Onde aprendeste isso?
LULU
Nos livros que me dão para ler.
PINHEIRO
Estás adiantada! E já que sabes tanto, falarei como se falasse a um livro. Primeiramente, eu não desamparo; depois, não vejo lobos.
LULU
Desampara, sim!
PINHEIRO
Não estou em casa?
LULU
Desampara o coração.
PINHEIRO
Mas os lobos?...
LULU
Os lobos vestem-se de cordeiros, e apertam a mão ao pastor, conversam com ele, sem que deixem de olhar furtivamente para a ovelha mal guardada.
PINHEIRO
Não há nenhum.
LULU
São assíduos; visitas sobre visitas; muita zumbaia, muita atenção, mas lã por dentro a ruminarem coisas más.
PINHEIRO
Ora, Lulu, deixa-te de tolices.
LULU
Não digo mais nada. Onde foi Venâncio Alves?
PINHEIRO
Não sei. Ali está um que não há de ser acusado de lobo.
LULU
Os lobos vestem-se de cordeiros.
PINHEIRO
O que é que dizes?
LULU
Eu não digo nada. Vou tocar piano. Quer ouvir um noturno ou prefere uma polca?
PINHEIRO
Lulu, ordeno-lhe que fale!
LULU
Para quê? Para ser indiscreta?
PINHEIRO
Venâncio Alves?...
LULU
É um tolo, nada mais. (sai. Pinheiro fica pensativo. Vai à mesa e vê o álbum)
Cena XII
PINHEIRO, ELISA
PINHEIRO
Há de desculpar-me, mas, creio não ser indiscreto, desejando saber com que sentimento recebeu este álbum.
ELISA
Com o sentimento com que se recebem álbuns.
PINHEIRO
A resposta em nada me esclarece.
ELISA
Há então sentimentos para receber álbuns, e há um com que eu devera receber este?
PINHEIRO
Devia saber que há.
ELISA
Pois... recebi com esse.
PINHEIRO
A minha pergunta poderá parecer indiscreta, mas...
ELISA
Oh! Indiscreta, não!
PINHEIRO
Deixe minha senhora esse tom sarcástico, e veja bem que eu falo sério.
ELISA
Vejo isso. Quanto à pergunta, está exercendo um direito.
PINHEIRO
Não lhe parece que seja um direito este de investigar as intenções dos pássaros que penetram em minha seara, para saber se são daninhos?
ELISA
Sem dúvida. Ao lado desse direito, está o nosso dever, dever das searas, de prestar-se a todas as suspeitas.
PINHEIRO
É inútil a argumentação por esse lado: os pássaros cantam e as cantigas deleitam.
ELISA
Está falando sério?
PINHEIRO
Muito sério.
ELISA
Então consinta que faça contraste: eu rio-me.
PINHEIRO
Não me tome por um mau sonhador de perfídias; perguntei, porque estou seguro de que não são muito santas as intenções que trazem à minha casa Venâncio Alves.
ELISA
Pois eu nem suspeito...
PINHEIRO
Vê o céu nublado e as águas turvas: pensa que é azada ocasião para pescar.
ELISA
Está feito, é de pescador atilado!
PINHEIRO
Pode ser um mérito a seus olhos, minha senhora; aos meus é um vício de que o pretendo curar, arrancando-lhe as orelhas.
ELISA
Jesus! Está com intenções trágicas!
PINHEIRO
Zombe ou não, há de ser assim.
ELISA
Mutilado ele, que pretende fazer da mesquinha Desdêmona?
PINHEIRO
Conduzi-la de novo ao lar paterno.
ELISA
Mas afinal de contas, meu marido, obriga-me a falar também seriamente.
PINHEIRO
Que tem a dizer?
ELISA
Fui tirada há meses da casa de meu pai para ser sua mulher; agora, por um pretexto frívolo, leva-me de novo ao lar paterno. Parece-lhe que eu seja uma casaca que se pode tirar por estar fora da moda?
PINHEIRO
Não estou para rir, mas digo-lhe que antes fosse uma casaca.
ELISA
Muito obrigada!
PINHEIRO
Qual foi a casaca que já me deu cuidados? Porventura quando saio com a minha casaca não vou descansado a respeito dela? Não sei eu perfeitamente que ela não olha complacente para as costas alheias, e fica descansada nas minhas?
ELISA
Pois tome-me por uma casaca. Vê em mim alguns salpicos?
PINHEIRO
Não, não vejo. Mas vejo a rua cheia de lama e um carro que vai passando; e nestes casos, como não gosto de andar mal asseado, entro em um corredor, com a minha casaca, à espera de que a rua fique desimpedida.
ELISA
Bem. Vejo que quer a nossa separação temporária... até que passe o carro. Durante esse tempo como pretende andar? Em mangas de camisa?
PINHEIRO
Durante esse tempo não andarei, ficarei em casa.
ELISA
Oh! Suspeita por suspeita! Eu não creio nessa reclusão voluntária.
PINHEIRO
Não crê? E por quê?
ELISA
Não creio, por mil razões.
PINHEIRO
Dê-me uma, e fique com as novecentas e noventa e nove.
ELISA
A primeira é a simples dificuldade de conter-se entre as quatro paredes desta casa.
PINHEIRO
Verá que posso.
ELISA
A segunda é que não deixará de aproveitar o isolamento para ir ao alfaiate provar outras casacas.
PINHEIRO
Oh!
ELISA
Para ir ao alfaiate é preciso sair; quero crer que não fará vir o alfaiate à casa.
PINHEIRO
Conjecturas suas. Reflita, que não está dizendo coisas assisadas. Conhece o amor que lhe tive e lhe tenho, e sabe de que sou capaz. Mas, voltemos ao ponto de partida. Este livro pode nada significar e significar muito. (folheia) Que responde?
ELISA
Nada.
PINHEIRO
Oh! que é isto? É a letra dele.
ELISA
Não tinha visto.
PINHEIRO
É talvez uma confidência. Posso ler?
ELISA
Por que não?
PINHEIRO
(lendo)
"Se me privas dos teus aromas, ó rosa que foste abrir sobre um rochedo, não podes fazer com que eu te não ame, contemple e abençoe!" Como acha isto?
ELISA
Não sei.
PINHEIRO
Não tinha lido?
ELISA
(sentando-se)
Não.
PINHEIRO
Sabe quem é esta rosa?
ELISA
Cuida que serei eu?
PINHEIRO
Parece. O rochedo sou eu. Onde vai ele desencavar estas figuras.
ELISA
Foi talvez escrito sem intenção...
PINHEIRO
Ah! Foi... Ora diga, é bonito isso? Escreveria ele se não houvesse esperanças?
ELISA
Basta. Tenho ouvido. Não quero continuar a ser alvo de suspeitas. Esta frase é intencional; ele viu as águas turvas... De quem a culpa? Dele ou sua? Se as não houvesse agitado, elas estariam plácidas e transparentes como dantes.
PINHEIRO
A culpa é minha?
ELISA
Dirá que não é. Paciência. Juro-lhe que não sou cúmplice nas intenções deste presente.
PINHEIRO
Jura?
ELISA
Juro.
PINHEIRO
Acredito. Dente por dente, Elisa, como na pena de Talião. Aqui tens a minha mão em prova de que esqueço tudo.
ELISA
Também eu tenho a esquecer e esqueço.
Cena XIII
ELISA, PINHEIRO, LULU
LULU
Bravo! voltou o bom tempo?
PINHEIRO
Voltou.
LULU
Graças a Deus! De que lado soprou o vento?
PINHEIRO
De ambos os lados.
LULU
Ora bem!
ELISA
Pára um carro.
LULU
(vai à janela)
Vou ver.
PINHEIRO
Há de ser ele.
LULU
(vai à porta)
Entre, entre.
Cena XIV
LULU, VENÂNCIO, ELISA, PINHEIRO
PINHEIRO
(baixo a Elisa)
Poupo-lhe as orelhas, mas hei de tirar desforra...
VENÂNCIO
Não faltei... Oh! Não foi jantar fora?
PINHEIRO
Não. A Elisa pediu-me que ficasse...
VENÂNCIO
(com uma careta)
Muito estimo.
PINHEIRO
Estima? Pois não é verdade?
VENÂNCIO
Verdade o quê?
PINHEIRO
Que tentasse perpetuar as hostilidades entre a potência marido e a potência mulher?
VENÂNCIO
Não percebo...
PINHEIRO
Ouvi falar de uma conferência e de umas notas... uma intervenção da sua parte na dissidência de dois estados unidos pela natureza e pela lei; gabaram-me os seus meios diplomáticos, as suas conferências repetidas, e até veio parar às minhas mãos este protocolo, tornado agora inútil, e que eu tenho a honra de depositar em suas mãos.
VENÂNCIO
Isto não é um protocolo... é um álbum... não tive intenção...
PINHEIRO
Tivesse ou não, arquive o volume, depois de escrever nele - que a potência Venâncio Alves não entra na santa-aliança.
VENÂNCIO
Não entra?... mas... creia... A senhora... me fará justiça.
ELISA
Eu? Eu entrego-lhe as credenciais.
LULU
Aceite, olhe que deve aceitar.
VENÂNCIO
Minhas senhoras, Sr. Pinheiro. (sai)
TODOS
Ah! Ah! Ah!
LULU
O jantar está na mesa. Vamos celebrar o tratado de paz.


Edição de referência: Teatro de Machado de Assis, de Machado de Assis
Martins Fontes, 2003, São Paulo


Domínio Público Gov.BR


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