Meia hora de cinismo
Comédia em um Ato (Representada sempre com extraordinário sucesso em todos os teatros do Rio de Janeiro e Estados do Brasil.)
Nota do Autor:
A Quem Ler Duas palavras sobre aquelles que, na noite de 17 de Julho de 1861, tanto contribuíram para o bom acolhimento, e feliz successo de minha primeira composição.
Apresentando-me pela primeira vez perante uma platéa intelligente e ilustrada, dependia todo o meu futuro de artistas poderosos e eminentes, que podessem com o seu talento supprir o que a penna me negára.
Era assim que, depositando todas as minhas esperanças no Sr. Furtado Coelho e na Sr.a D. Eugênia Câmara, e nos Sr.s. Leal, Peregrino, Henrique e Joaquim Câmara, não fui iludido; e os applausos que obteve a “Meia Hora de Cynismo” vierão confirmar mais uma vez o talento brilhante dos dous primeiros artistas, e o merecimento dos outros.
Exceptuando o Sr. Furtado Coelho e a Sra. D. Eugênia Câmara, artistas superiores à todos os elogios, sem offender o merecimento dos outros, eu destacarei do grupo o Sr. Leal, que na parte de Frederico fez quanto pode fazer um actor de talento e dedicação pela arte. Oxalá receba sempre o Sr. Leal as lições d’aquelle que tanto tem contribuído para melhorar o theatro de S. Paulo, e o seu nome será em breve uma glória para o nosso palco.
O Sr. Peregrino, posto que lhe tocasse um papel de pequena importância, deixou comtudo entrever a habilidade de que é dotado.
Os Srs. Henrique e Joaquim Câmara identificarão-se perfeitamente com os typos que concebi.
Com taes soldados a victoria é certa.
Personagens: Atores Nogueira, estudante do segundo ano F. Coelho Frederico, estudante de preparatórios Leal Neves, estudante do terceiro ano Henrique Macedo, dito do quarto ano Peregrino Jacó, negociante J. Camara Trindade, calouro Eugênia Camara Um Oficial de Justiça não há registro A cena passa-se em São Paulo – Atualidade.
ATO ÚNICO
O teatro representa o quarto de Trindade; ao fundo uma porta aberta e uma janela; duas portas laterais. Junto à janela um cabide com alguma roupa em desordem, uma estante com livros encostada à parede do fundo. À direita um piano, uma mesa no centro como livros espalhados, e a à esquerda uma cama com os lençóis e um cobertor encarnado em desalinho. Cadeiras, etc, etc.
CENA I
(Ao subir o pano ouve-se dentro uma gritaria infernal, na qual devem sobressair as palavras: ó calouro, ó burro, ó ladrão de galinha, ó desfrutável, etc.)
Trindade, só Trindade (Entrando furioso pela porta do fundo.) – Berra, canalha!...Miseráveis!...Infames que assentam e desmoralizar um homem, qualquer que seja o lugar em que se ache. (Pausa: mudando de tom.) São gaiatices do Senhor Nogueira. (Voltando-se para a platéia.) Os senhores acham isto bonito? Quase todos os senhores são veteranos, pois bem; coloquem-se na minha posição, e façam idéia com que cara passa um homem pela rua sacudido por uma vaia com esta que acabo de tomar! Todas as janelas se abriram, milhares de caras às gargalhadas gritavam na minha passagem, ó burro, ó desfrutável, ó ladrão de galinhas!...Ora, senhores, chamarem burro a mim que fiz há dias uma sabatina brilhante em Direito Natural, sim, senhores, (Com expressão.) uma sabatina brilhante, brilhantíssima. Ao apelo de meu nome marcharei majestoso para o banco augusto dos eleitos, e então pela primeira vez elevei minha voz eloqüente no sagrado recinto do templo da ciência. Os senhores não foram à feijoada? Pois não sabem o que perderam. Mas ah! Qual não foi a minha desesperação, quando, depois dos parabéns e abraços dos meus colegas, vejo-me cercado nos gerais da Academia por um grupo de segundanistas que, atochando-me um barrete vermelho na cabeça, obrigaram-me a correr pelo Largo à guise de uma vítima do Santo-Ofício! Julguei-me no meio de uma horda de selvagens, de Cafres, de Hotetontes, de Antropófagos, sim, de Antropófagos, porque estava vendo a hora em que me comiam, em que me devoravam! Quis resistir; porém quatro valentes piúvas, e milhares de punhos fechados que surdiram como por encanto do grupo negro que e cercava, embargaram-me a voz na garganta, e então pela primeira vez em minha vida tremi; tremi, não o nego, mas foi de raiva. (Indo à porta do fundo, e falando para fora.) Hão de me pagar, miseráveis; hei de lhes mostrar que não se desmoraliza um homem impunemente.
Berra, canalha, que eu hei de a cacete Rachar a cabeça de algum valentão, Pregarem uma vaia, domingo, na rua Num homem como eu que já tem posição!
Infames! Eu juro que a minha vingança Cruel e terrível tremenda há de ser, Quão pode um calouro ferido em seus brios Eu juro, canalha, que em breve hão de ver.
Berra, canalha, que eu hei de a cacete Rachar a cabeça de algum valentão, Pregarem uma vaia, domingo, na rua Num homem como eu que já tem posição! Do sangue beber-lhes, de acre vingança.
Mas ah! Agora é que me lembro que ainda não almocei...(Puxando o relógio e vendo as horas.) Bem; ainda falta um quarto para as onze: hoje é domingo, e meus companheiros não almoçam senão lá para o meio-dia; provavelmente ainda estão dormindo, vou acordá-los. (Vai sair pela porta do lado direito na mesma ocasião em que entra Nogueira pela porta do fundo, olha meio atrapalhado para Nogueira, que ri às gargalhadas na ocasião em que ele sai.)
CENA II
Nogueira, só.
Nogueira (Fumando um cigarro.) – Que impagável calouro! É pior do que uma barrica de pólvora inglesa. Não se me dá de apostar que se ele pilhasse uma pistola fazia-me alguma gracinha. Mas, coitado! Prescindindo do desfrute e de todas essas suceptibilidades próprias da posição que ocupa, é uma bela alma; fornece-me todos os dias cigarros, e ontem levou a bondade ao ponto de pagar-me um bilhete de platéia. Mas onde está essa gente? (Virando-se para a porta do lado direito.) Ó Macedo! (Voltando-se para o lado esquerdo.) Ó Frederico!
CENA III
O Mesmo, Frederico e Macedo.
Macedo (De dentro.) – O que queres?
Nogueira – Vamos à prosa. (Macedo e Frederico entram pela porta do lado direito.)
Frederico (Palitando os dentes.) – Desconheci agora a tua voz: pensei que fosse o Araújo.
Macedo (Deitando-se na cama, também palitando os dentes.) – O que há de novo por aí, Nogueira?
Nogueira – O que há de novo? Pois vocês não sabem?
Macedo – Se soubéssemos não te perguntaríamos.
Nogueira (Sentando-se.) – Pois bem; vou contar-lhes. Há pouco estava eu na janela do meu quarto com o Albuquerque, o Inácio, o Martins, e mais uns quatro ou cinco colegas do Neves, que vão todas as manhãs filar-lhe o café de máquina, quando vejo sair do Largo do pelourinho, e dobrar a Rua da Glória a impagabilíssima figura do Trindade. O homem, apenas avistou-nos, veio cambaleando e tropeçando em quanta pedra encontrava pelo caminho.
Descrever então o que se passou é impossível! Insensivelmente seguro em uma lata de folha que tinha debaixo de minha mesa...(Mudando de tom.) Mas entre parêntesis, vocês já almoçaram?
Frederico – Não nos vês de palito?
Nogueira (Rindo às gargalhadas.) – Que pagode: faço idéia como não estará o Trindade furioso.
Frederico e Macedo (Admirados.) – Pelo quê?
Nogueira – Pela tremendíssima hipótese de almoço que vocês lhe pregaram. O homem hoje faz um assassinato.
Frederico – O almoço estava marcado para as dez e meia horas; ele chegou depois da hora, a culpa não é nossa:
queixe-se de si.
Macedo – Ora, o que é uma hipótese de almoço? Console-se comigo que já tenho tomado muitas de almoço, jantar e chá.
Frederico (Sentando-se em uma extremidade da cama em que se acha Macedo.) – Se eu contar a vocês o que se passou comigo há quatro anos, talvez não me acreditem. Estava eu nesse tempo no colégio do João Carlos, e estudava alguns preparatórios que me restavam para largar a maldita casca de bicho, casca que até hoje ainda possuo, e julgo possuirei per omnia saecula saeculorum, se Deus me der vida e saúde, quando em um belo sábado, saindo do colégio, deliberei lá não voltar senão daí a uma semana; por outra, resolvi ficar na pândega para entregarme aos doces prazeres de uma tacada de bilhar no Lefebre, e respirar o ar puro e livre das ruas que eu só via aos domingos e dias santos. Mas desgraçadamente meus cálculos falharam, pois meti-me na noite em que saí do colégio em um malfadado lansquenet, e perdi, ainda me lembro com grande dor, uns magros dez mil réis com que procurava satisfazer todos os meus sonhos e ambições de cascabulho. Saí da tal casa leve como uma pena, sem um real no bolso, disposto já a vagar pelas ruas até que rompesse a aurora, quando encontrei-me com o Martins.
Nogueira – Quem? O Martins que é hoje meu colega?
Frederico – Mas, como ia dizendo, encontrei-me com o Martins, e conto-lhe imediatamente o ocorrido; ele solta uma risada, e diz-me que se achava nas mesmas condições, isto é, sem dinheiro, mas que entretanto morava já há dois dias (note-se que o Martins também estava fugido do colégio.) em uma casa que um estudante do 4º ano tinha deixado alugada nas férias. Introduzimo-nos na tal casa, e aí (Ah! Nem sei como o conte) passamos quatro dias a pêssegos verdes, que e ceroulas colhíamos com as nossas próprias mãos de um rafado pessegueiro que havia no quintal, como outrora a boa mãe Eva no estado primitivo colhia os frutos da árvore proibida. No quarto dia eu estava mais magro que um canivete do Capitão, e o Martins foi transportado para o colégio, por ordem do correspondente, com uma tremenda inflamação de intestinos. (Riem-se todos às gargalhadas.)
Nogueira – A poesia da nossa vida consiste nesses belos episódios. (Para Macedo.) Ó Macedo, dá-me um cigarro.
Macedo (Tirando um cigarro do bolso, e atirando para Nogueira.) – Tome, e sem exemplo. Na Rua de São Gonçalo há muito bons: mande comprar.
Nogueira (Prepara o cigarro, e tirando uma caixa de fósforos de cima da mesa, acende-o) Não duvido: porém eu prefiro os teus. (Mudando de tom.) Silêncio, que se não me engano aí vem o Trindade.
CENA IV
Os Mesmos e Trindade (À entrada de Trindade todos olham para o teto, palitando os dentes. Trindade fica por algum tempo mudo, e para disfarçar a sua perturbação, segura em um livro que se acha em cima da mesa. Frederico, Nogueira e Macedo procuram abafar o riso.)
Nogueira (Dirigindo-se a Trindade.) – Bom dia, doutor.
Trindade – O senhor é bem ordinário, tão ordinário que não me abaixo a responder-lhe; e se não fosse atender à consideração de achar-se o senhor em meu quarto, já há muito lhe teria quebrado uma cadeira nas costas.
Nogueira – O doutor está realmente queimado! Quer que lhe vá buscar um copo com água? Sans façon, sem cerimônia.
Trindade – Senhor Nogueira, Senhor Nogueira, não me insulte que eu hoje perco-me.
Nogueira – Que mal lhe fiz eu, doutorzinho? Dar-se-á caso que, sem o saber, lhe tenha invadido a esfera jurídica?
Trindade – O senhor ainda se atreve a perguntar-me que mal me tem feito? Quando em plena rua se insulta um homem e o desmoralizam só pelo simples fato de se achar ele ainda no princípio de sua carreira; quando chama-se a um homem de burro e ladrão de galinhas, sem que ele tenha ainda revelado estupidez, nem atacado galinheiro de casa alguma, é preciso ter sangue de barata, Senhor Nogueira, para não calcar um miserável deste a pés, e encher-lhe a cara de bofetadas. (Avançando para Nogueira.)
Nogueira (Pondo uma cadeira de permeio.) – Não quer sentar-se, doutor?
Trindade – Miserável!
Frederico – Deixa-te de queimações estúpidas, Trindade, o Nogueira não tem culpa da hipótese que tomaste.
Trindade – Também você, sô gaiatão, quer divertir-se á minha custa? Vamos lá, não tem mais nada para dizer? Ora, que eu seja nesta casa debicado até por um bicho! Olhem por favor para aquela cara.
Frederico – Não é lá das piores, não é das mais feias.
Trindade – O senhor acha que eu sou o palito cá da casa? Nogueira (Para os dois.) – Psica, psica: segura Minerva, (Para Trindade.) Pega Turbante. (Para Frederico.) Psica, psica.
Trindade – Psica, sô miserável, diz-se aos cães e cão é você que vem aqui todos os dias filar cigarros e mendigar muitas vezes objeções de Eclesiástico ao Macedo, para fazer, além de tudo, um papel ridículo na sabatina. Eu sou calouro, é verdade, porém a primeira vez que falei em público, não desonrei o meu nome nem salpiquei de lama a ilustre classe a que pertenço. Vá perguntar aos colegas que figura fez o Trindade na sabatina outro dia? E eles todos responderão – É a primeira que tem aparecido até o presente.
Frederico e Nogueira (Tocam o bitu e gritam.) – Viva o Trindade! Viva! Viva!
Macedo (Segurando no braço de Trindade, procura levá-lo para fora do quarto.) – Vai-te embora, Trindade, que tu estás te prestando à vista aqui destes senhores. (Apontando para a platéia.)
Nogueira – Deixa o calouro, Macedo, agora é que ele está começando a ficar impagável.
Trindade – Eu vou, Senhor Macedo, e acredite que se não quebro as ventas deste patife (Apontando para Nogueira.) é em consideração ao senhor. (Indo à direita.) Ó moleque, quando estes senhores saírem fecha a porta do meu quarto. (À parte.) Hei de acabar com o tal pagode.
Frederico (A Nogueira.) – Vamos para o meu quarto, antes que o Trindade quebre-nos as ventas. Além disso eu tenho que te falar.(Frederico e Nogueira saem pela porta da esquerda.)
Trindade (À parte.) – Já tenho minha resolução formada, hoje mesmo ponho-me no olho da rua, e ficarei livre dessas amolações contínuas. (Sai pela porta do fundo.)
CENA V
Macedo, só.
Macedo – É hoje o dia em que tem de vencer-se essa maldita letra, e até o presente não sei o que fazer, não tenho um real, e nem sei mesmo onde buscar dinheiro para satisfazer esse compromisso de honra. Concordo que deixei-me arrastar por alguns momentos nesse turbilhão de loucuras que se me apresentou, sem pensar, nem refletir; porém quando a minha honra e o meu crédito podiam prejudicar-se, a razão falou mais alto, e então fugi. Não querendo comprometer a minha dignidade, assinei essa letra e não posso pagá-la. Oh! Malditos sejam todos esses credores!
(Sai pela direita.)
CENA VI
Neves, só.
Neves (Entrando pela porta do fundo, fumando um cigarro, com as mãos no bolso do chambre, passei por algum tempo distraído pela cena, senta-se em uma cadeira, e diz pausadamente.) – Que cinismo! (Sai lentamente pela porta da direita.)
CENA VII
Nogueira e Frederico (Entrando pela esquerda.)
Frederico – É o que te digo, Nogueira, hoje vence-se uma letra que o Jacó obrigou o Macedo a assinar – está portanto realmente encalacrado. Aquele maldito verdugo é capaz de fazer-lhe alguma, e eu antevejo um resultado bem funesto em tudo isso.
Nogueira – Deixa o negócio por minha conta, e verás como se trata um credor de estudante. Acredita, Frederico; um credor de estudante é o animal mais covarde que pisa o solo de São Paulo: com quatro gritos e meio abranda-se e humilha-se como o mais inocente cordeirinho. E então este que foge de um estudante atrevido, como o diabo da cruz! Além disso o Macedo é filho-família, e em face da nossa legislação não é responsável pelas dívidas que contrai; se quiser pagar é somente para salvar a sua dignidade.
Frederico – E tu sabes qual é a Ordenação que trata disso para lermos ao Jacó, quando ele vier?
Nogueira – Não, porém é o mesmo: improvisa-se qualquer Ordenação, e ele engolirá a pílula com a mesma facilidade com que qualquer de nós engole uma das do Etchecoin. Deixa o negócio por minha conta e verás. Frederico – Não faças alguma das tuas costumadas pagodeiras, que podes comprometer o Macedo. Eu falo-te com experiência; estou aqui há mais tempo que tu, e em uma ocasião quase fui fazer companhia ao Taborda por uma brincadeira desse gênero.
Nogueira – Por falar em Taborda: lembras-te daquela noite em que o Vilares foi encontrado pela patrulha nos degraus da Igreja da Sé mais bêbado do que um marinheiro inglês em terra, e que daí foi levado em braços para a cadeia?
Frederico – Se me lembro! Nessa noite tomei eu uma carraspana de conhaque que deu-me para quebrar quantos lampiões encontrava pelas ruas. É que a claridade me fazia mal.
Nogueira – O pagode não termina aí: o melhor foi sair o Vilares no dia seguinte pelo Largo da Cadeia de chambre e gorro bordado. Com que cara amarrotada vinha o pobre coitado; isso, porém não o impedia de marchar avante e pretensioso como um sultão. Está hoje formado, casado, e dizem que é um excelente pai de família.
Frederico – Ó tempora! Ó mores! Que belos tempos! (Suspirando.) Tens aí...
Nogueira – Um cigarro? Ia te fazer o mesmo pedido.
Frederico – Pois deixa de ser filante, que é coisa muito ridícula.
Nogueira – Qual, isto é boato espalhado pelos vinagres. Mas, mudando de assunto, já sabes por quem o Trindade está solenemente apaixonado?
Frederico (Sentando-se na cadeira.) – É moléstia de cabeça, não faças caso.
Nogueira – Não, é real: é pela filha do Juca do Braz. Passa por lá todas as tardes, e é raro o dia que não venha para casa meio triste e meio alegre.
Frederico – Explica-te.
Nogueira – Alegre, porque vê a bela, e triste, porque lhe dão vaias. A vaia parte da casa do Martins, e amanhã convido-te para apreciarmos de lá o pagode. É uma paixão de Otelo!
Frederico – Qual, isto é um gracejo teu, porque realmente a Desdemonda é uma lambisgóia.
Nogueira – É uma paixão diabólica que o levou à loucura de empenhar um fraque! Isto deu lugar a que o Martins parodiasse esta poesia do Furtado Coelho – Quero fugir-te, mas não posso, ó virgem.
Frederico – E sabes a paródia?
Nogueira - Lá vai (Sentando-se ao piano.) – Quando pretendem vocês mandar levar este piano lá para a casa?
Vocês souberam mandar buscá-lo para o pagode, mas...
Frederico – Recita a poesia, e deixa-te de maçadas.
Nogueira (Acompanhando o recitativo.)
Quero fugir-te, mas não posso, ó fraque, Ah! Sou levad pela onça ingrata!
Quero fugir-te, mas fatal ataque Me lança em terra, me desgraça e mata!
Lançado ao prego és meu vedado pomo, Ninguém no mundo minha dor compreende, Quero fugir-te, quero, sim, mas como?
Para enganar-me digo muitas vezes, Que és velho, infame que é loucura amar-te:
Então me lembro que não há dois meses, Que eu fui à casa do Fresneau buscar-te. Oh! Quantas vezes eu passava as horas, Mirando as graças de teu talhe airoso, Hoje perdido para mim tu choras, Pendido ao prego, ferrugento, idoso.
Fraque querido...
(Representando.) – Ó diabo, não me lembro do resto.
Frederico – Bravo, bonito, sim senhor.
CENA VIII
Os Mesmos e Neves Neves (Entrando pela direita.) – Que cinismo! Meus senhores, estou-os cumprimentando. (Tira do bolso um canivete e, deitando-se na cama, começa a aparar as unhas.)
Frederico – Que furioso cínico! É capaz de levar todo o dia ali naquela cama, aparando unhas,e contando as tábuas do teto. Em São Paulo há duas classes de vadios: uns que, parecendo ter o do da ubiqüidade,s e apresentam em toda a parte, em bailes, teatros, festas de igreja, leilões do Joly, novenas, etc, menos na Academia; outros que, inimigos do progresso e da atividade, passam onde deixam à vontade crescer o abdômen. Tu pertences à primeira seita, e cá o senhor, que está deitado, à última.
Nogueira – Fechaste a porta do meu quarto quando saíste, Neves?
Neves (Pausadamente) – Sim, fechei. (Muda de posição na cama.)
Frederico – Tens um companheiro de casa assaz divertido!
Nogueira – Há dias que não diz uma palavra; no entretanto é o homem que mais aprecia uma prosa, deitado em uma boa cama, já se sabe, sem nada dizer, mas pronto para tudo ouvir. E sabes qual é a especialidade de prosa que ele mais aprecia?
Frederico – Sem dúvida caçada de veados ou cruzamento de raças de cavalo?
Nogueira – Nada, coisa mais séria; é a tese das teses – a vida alheia. Respeita-o como uma das primeiras rabecas de São Paulo: toca admiravelmente variações sobre motivos de qualquer tema; tem arcadas de Paganini. Também não respeita ninguém: é um verdadeiro pagão!
Frederico – E qual é o sistema da rabequeação que ele mais aprecia? Sim, porque há diversos sistemas de rabequear.
Neves – Falem mais alto que eu também vim para a prosa.
Nogueira – Falamos dos diversos sistemas de rabequeação, e o Frederico tem a palavra.
Frederico (Em atitude magistral.) – Pois, meus amigos, pela experiência que tenho, atrevo-me a oferecer-lhes uma brilhante preleção sobre este assunto. Querem?
Nogueira – Sim, venha lá isso.
Neves – Topo.
Frederico (Com dignidade cômica.) – Há sujeitos que rabequeiam de uma maneira insinuativa: eu me explico melhor – há sujeitos, por exemplo, que nas suas arcadas dizem: “O Nogueira é um tratante, um canalha, um miserável, um caloteiro, mas no entretanto é bom moço, cumpre as suas obrigações, tem boa alma, toma regularmente a sua carraspana, por divertimento, já se vê, desmoraliza-se em lugares públicos, mas não é mau rapaz, tem bons sentimentos”. Este é o sistema aristocrático, rabeca de salão, e que tem grande número de sectários. O
segundo é o sistema dos ronhas. O ronha é o homem que exerce a ronha. A ronha pode-se estender a todos os atos humanos: assim é, por exemplo, ronha o beato ou o hipócrita que, acabando de bater nos peitos na igreja, vem cá fora entregar-se religiosamente às delícias de Cápua. Parece-me que não há estudantes dessa natureza; no entretanto, se é que há, sou de opinião que andem de mantilha para se distinguir dos outros. Mas a ronha, aplicada especialmente à hipótese vertente, é um certo desprezo e mesmo rancor que alguns sujeitos parecem afetar em uma prosa de vida alheia, mas que entretanto extasiam-se às mais pequenas notas de instrumento divino, como o poeta se expande diante do belo. Estes entram somente de ouvido, e são tantos os sectários como os admiradores do Padre Pereira.
Nogueira – A comparação é mesmo de bicho.
Frederico – Não me interrompa. O terceiro sistema é o dos que falam mal de tudo e de todos e não encontram nos homens senão defeitos: é o exclusivismo, e peca como todos os sistemas exclusivistas.
Nogueira – É o sistema do Neves.
Frederico – Justamente.
Neves – Não tanto.
Frederico – O quarto sistema é o dos que rabequeiam por mero passatempo, para suavizar as horas de cinismo. É este o sistema que quase todos nós seguimos, é o menos nocivo, e o que produz menos males, porque não é o ódio nem o rancor que preside a prosa, mas apenas um desejo de pagode. Tais são, senhores, as observações que tenho colhido de minha longa vida de bicho, e que procurarei ir aperfeiçoando com o correr dos tempos.
Nogueira – Bravo! Falas com a experiência de um velho: és um alcorão; entretanto esqueces o sistema dos mitras, que tecem os maiores panegíricos a um sujeito pela frente e por detrás não são rabecas, são rabecões.
Frederico – Cada dia aparecem novos sistemas, e eu ultimamente não estou muito a par do progresso da ciência, porque os credores não me deixam pôr o nariz na rua.
Neves – Vocês estão muito cínicos.
Nogueira (Rindo-se.) – Este desgraçado ainda acaba tocando realejo para se distrair.
Frederico – Ó Neves! Diz alguma coisa para animar a prosa: estás mesmo de neve.
Neves – Vocês estão estupidamente cínicos: eu me retiro. (Levanta-se da cama e sai pela porta do fundo.)
Frederico – Ó Neves! Amanhã aparece mais cedo para prosearmos. (Nogueira e Frederico riem-se às gargalhadas.)
CENA IX
Frederico, Nogueira e Trindade Trindade (Entrando com dois negros, aponta para as canastras.) – Rapaz , segura ali. (Virando-se para o outro negro.) – Rapaz, ajuda ali teu parceiro. Irra! Hoje acaba-se o pagode, mudo-me, e está tudo decidido.
Nogueira (Para Frederico.) – É preciso abrandarmos o homem. O Macedo, quando souber que fui eu a causa da mudança do calouro, queima-se comigo, e eu não estou para indispor-me com ele. Não quero ser o ponto de discórdia desta casa. Vou fazer as pazes com o calouro. (Para Trindade, batendo-lhe no ombro.) Não sejas criança, Trindade, foi uma brincadeira própria de rapazes.
Trindade – Vá-se embora, senhor, não me aborreça.
Frederico – Você também cavaqueia com qualquer coisa, encordoa por uma bagatela.
Trindade – Pois é qualquer coisa, é bagatela ser um homem constantemente amolado, não poder dizer uma palavra que não lhe respondam com quatro gargalhadas não poder sair à rua sob pena de lhe gritarem: ó burro, ó sandeu, ó calouro? Isto é bonito? É próprio de moços decentes e civilizados que freqüentam os bancos de uma Academia? Nogueira – Concordo com tudo que quiseres; mas dá-me um abraço e façamos as pazes. (Trindade deixa-se abraçar um pouco friamente.) Manda os pretos embora, e continua a viver com os teus companheiros que te estimam como um bom menino que és. Deixa-te de criançadas, e viva a pândega!
Trindade – Pois bem, se juram doravante tratar-me como um companheiro de casa, e não como um cão, fico.
Nogueira e Frederico – Juramos.
Trindade (Virando-se para os negros.) – Ponham-se fora. (Os negros saem.)
Nogueira (Abraçando a Trindade.) – Viva a conciliação! Se tivéssemos uma boa garrafa de vinho, poderíamos tornar mais solene este tratado de paz.
Trindade – Se prometem cumprir o juramento, isso é o que menos custa. Tenho ali na canastra duas garrafas de vinho que me restaram do pagode que dei no dia de minha sabatina...
Nogueira (À parte.) – Sempre desfrutável.
Frederico (À parte.) – Lá vem a sabatina.
Trindade (Continuando.) – E podemos esvaziá-las.
Frederico e Nogueira – Prometemos.
Nogueira – Eu ainda levo a minha promessa mais longe: prometo que de hoje em diante serei o teu mais fiel e dedicado amigo.(À parte.) Ó mágico poder do vinho.
Trindade – Pois bem, viva a rapaziada e vamos à pândega. (Enquanto Trindade tiras as garrafas da canastra, Frederico e Nogueira fazem-lhe gaifonas pelas costas.) Aqui estão, rapaziada. (Dá uma garrafa a Nogueira e fica com a outra.)
CENA X
Os mesmos e Macedo.
Macedo (À parte.) – Aproxima-se o momento fatal: é quase meio-dia, e o verdugo não tarda a aparecer. (Reparando para o grupo.) Pois quê, já fizeram as pazes?
Nogueira – Não há copos nem saca-rolha.
Frederico – Saca-rolha há um aqui em cima da mesa. (Tira o saca-rolha e dá a Nogueira.) Quanto a copos dispensa-se perfeitamente, podemos beber pela garrafa – é mais clássico.
Trindade – Está dito, vai-se ao gargalo. (Recebe o saca-rolha e abre a garrafa.)
Nogueira – Viva o Trindade. (Bebe.)
Frederico (Tirando-lhe a garrafa.) – Alto frente: ainda não bebi. À saúde de sua brilhante sabatina, Senhor Trindade. (Vira a garrafa.)
Trindade – Meus senhores, um brinde: à saúde da emancipação do primeiranista, e à morte de todos esses prejuízos acadêmicos que herdamos da velha Coimbra. À saúde de todas aquelas por quem nossos corações palpitam.
Nogueira (Para Frederico.) – Percebo. A filha do Juca do Braz.
Trindade – Viva a mocidade inteligente e briosa que abandonando, que abandonando, que...
Frederico (À parte.) – Temos cabeleira.
Nogueira – Não se engasgue, dê-me o caroço. Trindade - ...as afeições mais caras, o lar doméstico e a terra que lhe deu o ser, vêm, longe de tudo isso, conquistar os louros que engrinaldaram a fronte de Homero, Tasso, Petrarca, Dante e Camões que, cantando as ações heróicas dos Lusitanos, enxergava um horizonte de glórias no futuro.
Frederico – E assim mesmo não via pouco; olhe que tinha só um olho.
Nogueira – Pelo menos assim o diz a história.
Trindade (Pulando em cima da cadeira com entusiasmo.) – Vou arrematar este brinde, senhores, bebendo à saúde daquelas idéias que mais se harmonizam com o estado de perfectibilidade e civilização dos povos: à saúde das idéias republicanas. (Vira a garrafa toda.)
Viva o Porto, Viva o Madeira, Não é tolice Uma cabeleira.
(Todos, menos Macedo.)
Viva o Porto, Viva o Madeira, Não é tolice Uma cabeleira.
Nogueira (À parte.) – O vinho já começa a fazer efeito antes de tempo. (Para Trindade.) Passa-me a garrafa.
Trindade (Descendo da cadeira.) – Já não há mais nada. (Vira a garrafa de boca para baixo.)
Macedo (Que durante esse tempo passeia pensativo.) – Entretanto esqueceram-se de mim.
Nogueira – Pois também estás hoje tão cínico! Não sei o que tens.
Trindade (Mal podendo suster-se em pé.) – Que diabo, anda-me tudo à roda...o tal vinho é forte. Ó Nogueira, tu estás meio fardado, fala franco. Está-me tudo a andar à roda... Ó Nogueira anda cá, dá-me ali aquela vela para acender um cigarro. (Mete a mão no bolso, e tira da algibeira um lápis que põe na boca, julgando ser um cigarro.)
que diabo tem este fumo? (Olhando para o lápis.) Está furado. (Atira o lápis no chão.)
Frederico (Encostando-se à mesa.) – Furada está a tua cabeça.
Nogueira – De que cor é esta linha, Trindade?
Trindade – Que pagode, minha comadre. Vem cá, Mariquinha, não fujas; olha que é teu benzinho quem fala.
Nogueira (Segurando em Macedo, e puxando Frederico.) – Não sejam cínicos, vamos formar aqui uma pândega, e apreciar o Trindade enquanto está impagável. Dance-se o cancan, e viva o pagode.(A orquestra toca a última quadrilha da – Corda Sensível -; Frederico e Nogueira dançam em cancan desesperado, e Trindade sempre cambaleando embrulha-se no cobertor encarnado, trepa em cima da cama, e aí dança um cancan infernal, no meio do qual Jacó aparece no fundo, e o cancan continua.)
CENA XI
Os mesmos e Jacó Jacó (Entrando.) – Com licença, meus senhores. (Macedo e Frederico escondem-se na porta da esquerda. Nogueira pára espantado, olhando para Jacó, obriga-o a valsar pelo meio da cena, e largando-o de repente, atira-o de costas.) É desta maneira (Levantando-se e sacudindo a roupa.) que os senhores recebem as pessoas? (À parte.) Se não viesse buscar dinheiro...é preciso humilhar-me para ver se o pilho. (Alto.) Não sabem dizer se o Senhor Doutor Macedo está em casa?
Nogueira – Julgo que não. O senhor deseja alguma coisa? É sem dúvida dinheiro que vem buscar?
Jacó (Risonho.) – Como o senhor doutor adivinha; é isso mesmo. Vossa Senhoria é muito pitoresco. Vence-se hoje uma letra que o Senhor Doutor Macedo assinou, e eu vim buscar os 300$000 por que ele se obrigou. Nogueira – Queira sentar-se. (Na ocasião em que Jacó vai sentar-se, Trindade puxa-lhe a cadeira, e atira-o de costas.)
Jacó (Furioso.) – O senhor não me deixará! (À parte.) Este sujeito está bêbado.
Trindade (Batendo-lhe no ombro.) – Excelso vinagrão, eu te saúdo.
Jacó (Risonho.) – Isso é lisonja, senhor doutor.
Nogueira (Vai buscar o violão, e vem sentar-se em cima da mesa ao pé de Jacó.) – Tenha a bondade de explicar-se pausadamente para que eu o entenda.
Jacó – Eu já disse ao que vim. (Nogueira acompanha-lhe a frase a violão.)
Nogueira – Pode continuar.
Jacó – O Senhor Doutor Macedo deve-me já há dois anos 300$000 (Nogueira acompanha-o a violão.) e para garantia dessa dívida pedi-lhe que me assinasse uma letra...(Acompanhamento de violão.) Senhor Doutor, olhe que falo sério: deixe-se de caçoadas. (Acompanhamento de violão.)
Nogueira – Senhor Jacó, tenha a bondade de falar outra vez e repetir o recitativo, para ver como é sonoro este acompanhamento. (Fere o violão.)
Jacó (Levantando-se.) – Eu não vi, aqui para ouvir música, senhor doutor; quando quero vou às retretas.
Nogueira – Está incomodado, Senhor Jacó? A retrete é no fundo do corredor à esquerda. (Indicando a porta da direita.)
Jacó – S ó o que desejo é falar com o Senhor Doutor Macedo. (Acompanhamento.)
Frederico (Para Macedo.) – O Nogueira com aquele debique é capaz de comprometer-te.
Macedo – Haja o que houver eu não apareço.
Nogueira (Continuando a tocar.) – Ora, Senhor Jacó, esqueça-se disso: o Macedo está sem dinheiro, e ainda mesmo que tivesse é filho-família, e não é responsável pelas obrigações que contrai.
Jacó (Furioso.) – Não é responsável, senhor doutor! Não me diga isso: a letra está assinada por ele, e em nome de sua dignidade deve pagá-la.
Trindade (Dando uma encapelação em Jacó.) – Está queimado! Viva o rei dos Vinagres!
Jacó – Olhe que o senhor está me fazendo chegar a mostarda ao nariz. (Faz menção de avançar para Trindade.)
Nogueira (Empurrando-o) – Ponha-se fora.
Frederico (Entrando em cena.) – Fora! Fora! (Trindade dá uma porção de encapelações em Jacó, Nogueira dá-lhe com o violão nas costas, e Frederico ri-se às gargalhadas.)
Macedo (Entrando.) – O homem queima-se e é capaz de fazer alguma.
Jacó (Sai pela porta do fundo aos empurrões, e voltando, pára na porta.) – Isto é um estorpício, é um vandalismo.
Por terem força julgam-se uns Rockchilles. Hei de mostrar o que é um negociante ofendido em sua dignidade! Eu já volto acompanhado. (Sai.)
CENA XII
Frederico, Nogueira, Macedo, Trindade e depois Neves Trindade (Ainda envolvido no cobertor encarnado, deita-se de barriga para baixo em cima da cama.) – Que pagodeira! Neves (Entrando com toda a fleuma.) – Que algazarra foi esta que vocês fizeram?
Nogueira – Foi uma pequena correção doméstica em um credor.
Macedo – Vocês com o seu pagode acabam de comprometer-me. O homem saiu desesperado.
Frederico – Ele é incapaz de queimar-se: aquilo foi fogo de cavaco.
Nogueira – Eu responsabilizo-me pelo resultado.
Trindade (Levantando-se da cama.) – Esteve riquíssima a pagodeira. Ó Nogueira! Tu viste a cara com que saiu o Jacó? O homem saiu vraiment indignado! Ó Frederico! Passa a garrafa, e vamos beber à saúde do Jacó. Ora esta, homem, quem me vir é capaz de apostar que estou bêbado.
Frederico – Qual, não tens nada: estás somente com um fardão de grande gala.
Macedo (Passeando.) – Vejamos qual é o desfecho desta tragédia.
Nogueira – Eu já te disse que não te maces; deixa correr o negócio por minha conta.
Neves – Mas que diabo de cinismo: eu não os entendo.
Trindade – Nem eu tão pouco, meu amigo.
Nogueira – Pois eu lhes explico, meus amigos. O Macedo deve 300$000 ao Jacó, ele veio cobrá-los, e nós tocâmolo a cachações pela porta fora. É uma coisa muito natural, e que nada tem de extraordinário: seria extraordinário se o Macedo pagasse a dívida e o deixasse sair impunemente.
Trindade – Lá isso é; tem toda a razão. Mas que diabo tenho eu que está tudo a andar-me à roda? E esta? Parece-me que tenho tanta gente na minha frente; dar-se-á o caso que e esteja em aula? Ó Araújo! Dá-me o compêndio, e passame uma lição que eu estou in albis.
Frederico (Segurando em Trindade e procurando levá-lo para a cama.) – Vai-te deitar, Trindade, que tu estás meio incomodado.
Trindade – Quem? Eu incomodado? Ó Frederico! Não me insultes; olha, eu vou aqui à república vizinha, e vê só a certeza com que ando. (Vai cambaleando para o fundo da cena, e encontrando-se com Jacó, que entra com um oficial de justiça, atira-o ao chão.)
CENA XIII
Os mesmos, Jacó e um Oficial de Justiça Jacó- Não há dúvida – este sujeito está tocado.
Trindade – Levante-se, que eu não brigo com homem deitado.
Jacó (Levantando-se.) – Pois, meus senhores agora espero obter um melhor resultado, porque trouxe uma boa carta de recomendação de pessoa influente, a quem os senhores não podem deixar de servir. (Tira do bolso uma citação, e entrega a Macedo.)
Macedo (Lendo.) – É uma citação; eis o desfecho terrível que eu esperava de tudo isso.
Nogueira – Uma citação!
Jacó – Quando vim pela primeira vez já a tinha comigo; pois sabia perfeitamente que o Senhor Macedo havia de esquivar-se ao pagamento da dívida; porém o acolhimento benévolo que aquele senhor (Apontando para Trindade.)
prodigalizou-me e obrigou-me a ir pedir o auxílio da justiça para fazer valer o meu direito: é a razão por que volto agora com este senhor.
Macedo – E julga o senhor que vem fazer valer o seu direito quando usa de uma infâmia?
Frederico (Batendo o pé.) – Sim, é uma infâmia. Trindade (Cambaleando para ele, e dando-lhe um arroto na cara.) É um desaforo; é uma vinagreira.
Jacó – Será tudo o que os senhores quiserem.
Nogueira – Pois bem, se eram os seus desígnios comprometer a reputação sem mancha de um moço, fazendo-o comparecer perante uma autoridade por um motivo que o difama e extorquir depois, abrigado à sombra da lei, o dinheiro que lhe roubou, se eram estes os seus desígnios, Senhor Jacó, fique convencido que nunca os realizaria. Eu já volto. (Sai precipitadamente.)
CENA XIV
Trindade, Jacó, Frederico, Macedo, Neves, depois Nogueira Jacó (À parte.) – Eles todos falam em dignidade, em vinagreira e dizem tudo o que lhes vem à boca, mas quando têm de bater o cobre, vêm com desculpas, quando não dão para atrevidos.
Macedo – Então com que o senhor esperava que eu havia de esquivar-me ao pagamento da dívida? (Com furor.) O
senhor é bem ordinário.
Jacó – Ora, senhor doutor, isto não vai a zangar.
Frederico( À parte.) – O que iria fazer o Nogueira em casa?
Trindade – Estes credores são temíveis!
Macedo – É bem triste a minha posição, porém a sua ainda é mais, é degradante. Diga-me, finalmente, Senhor Jacó, o que pretende fazer?
Nogueira (Entrando apressado.) – Coisa nenhuma. (Para Macedo.) Aqui tens o dinheiro que te devo.
Macedo – Dinheiro que me deves?
Nogueira (Em voz baixa.) – Cala-te e aceita. Senhor Jacó, a sua dívida vai ser satisfeita, mas antes de tudo há de ouvir-me. Há ladrões que, embrenhando-se pelas matas, assaltam os viandantes de pistola e faca; há outros que roubam de luva de pelica nos salões da nossa aristocracia, estes têm por campo de batalha uma mesa de jogo; há outros, finalmente, os mais corruptos, que são aqueles que, arrimados a um balcão, roubam com papel, pena e tinta.
O senhor faz honra a esta última espécie: é um ladrão e um ladrão muito mais perigoso do que os outros. Dê-me essa letra, documento autêntico de sua infâmia e tome o seu dinheiro. (Tira o dinheiro da mão de Macedo, e esfrega-lhe na cara.)
Jacó – Ora, senhor doutor, não se zangue; deixe-se de brincadeiras.
Macedo (Abraçando Nogueira.) – Obrigado, meu amigo, obrigado. Acabas de provar que tens uma alma grande e generosa, que, no meio dos risos e folguedos próprios da nossa idade, não olvidas esses sentimentos sagrados, que tanto enobrecem o coração do bom amigo. Obrigado, obrigado.
Jacó (Que durante esse tempo está contando o dinheiro.) – Está exato. Agora vamos fazer outra visita. O dia está feliz.
Nogueira – Ponha-se fora. (Todos tocam Jacó pela porta fora.)
Trindade – Viva a pândega! (Cai na cama.)
Neves (Olhando ao redor da cena.) – Que cinismo!
(Toca a orquestra a última quadrilha da Corda Sensível; dançam todos o cancan.)
(Cai o pano.)
FIM
Fonte:
FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José da. Teatro de França Júnior. Rio de Janeiro : Funarte, 1980. p. 51-73 :
Meia hora de cinismo. (Clássicos do Teatro Brasileiro).
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Claudia de Moura Leite Ribeiro – São Paulo/SP
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