Ingleses na Costa
Comédia em um ato Por Joaquim José de França Júnior Bacharel formado pela Faculdade de Direito de São Paulo Personagens:
Luís de Castro, tio de Félix, estudante do 5º ano de direito Silveira, dito do 2º ano Feliciano, dito Lulu Ritinha Teixeira A cena passa-se em São Paulo.
Época – Atualidade.
ATO ÚNICO
O teatro representa um quarto com uma porta ao fundo e portas laterais. À direita e à esquerda camas; no fundo uma estante com livros em desordem, um cabide com roupa; sapatos velhos espalhados, duas canastras ao lado do cabide, uma mesa com papéis e livros, etc.
CENA I
Félix e Silveira (Ao subir do pano Silveira e Félix dormem nas camas embrulhadas em cobertores encarnados. Batem três vezes na porta do fundo.)
Félix (Acordando sobressaltado.) – Hein?
Silveira (Pondo a cabeça fora do cobertor.) – Bata com a cabeça.
Félix – Insensato, o que fazes? É um credor!
Silveira – Um credor! Pois já amanheceu?! (Batem outra vez: baixo.) – Bate, grandíssimo patife.
Félix – Ora isto é incrível! Vir um cadáver assombrar um homem ao romper da aurora!
CENA II
Os Mesmos e Feliciano.
Feliciano (De dentro.) – Abram a porta.
Silveira (Escondendo-se no cobertor.) – Salve-se quem puder! (Feliciano empurra a porta e entra; Félix, levantando-se, esconde-se atrás da cama.)
Feliciano – Pois ainda dormem! (Puxando o cobertor de Silveira.) Que escândalo! (Olhando para a direita vê a cabeça de Félix fora da cama.) Com os diabos o que fazes debaixo da cama?
Félix – Feliciano, há certas graças que não têm graça.
Feliciano – Pelo quê? (Rindo-se.) Ah! Já sei: tomaram-me sem dúvida por algum credor, por um inglês?
Silveira – Por um inglês?
Feliciano – Já vejo que ainda não leram Balzac. Pois saibam que o espirituoso autor da Comédia Humana apelida de ingleses a essa raça desapiedada que nos persegue por todo a parte. Depois da questão anglobrasileira, creio que não pode haver um epíteto mais apropriado para designar um credor. Os ingleses são inimigos terríveis e um credor, a meu ver, é o mais furibundo dos nossos inimigos. (Rindo-se.) Tomaram-me por um inglês!
Silveira – Quando se tem o espírito sobressaltado...
Feliciano – Sei o que é isso. Eu também venho tocado de casa. Acredita-me, Silveira: eu sou um homem infeliz. Às vezes tenho ímpetos de perguntar ao cano de uma pistola os segredos da eternidade. Esses ingleses hão de ser a causa da minha morte! Silveira – E da morte do Brasil inteiro! As coisas não vão bem.
Feliciano – Mas tu não te levantas? São onze horas e um quarto.
Félix – Onze e um quarto? Ainda é muito cedo. (Volta-se para o outro lado.)
Feliciano – Decididamente não pretendem sair hoje de casa?
Silveira – Não sabes, insensato, que hoje é o dia 15 do mês? O dia 1º e o dia 15 de cada mês são dias fatais para um pobre estudante! As ruas estão calçadas de credores!
Félix – Chi!...Andam por aí assanhados!
Feliciano – A quem o dizes. Na rua de São Gonçalo fui abordado por quatro. Um deles era coxo; mas a fatalidade, que protege os verdugos, deparou-me um maçante no momento em que eu dobrava um beco para esconder-me no corredor de uma casa. Imaginem vocês a minha situação: entre um maçante e um inglês. A
vitória do segundo foi inevitável! O homem mediu-me de alto a baixo com a gravidade de um súdito da rainha Vitória e entregou-me a conta. Creio que tive uma vertigem. Quando tornei a mim, já não tinha uns inocentes dez mil réis, que me restavam da mesada.
Silveira – E julgas-te infeliz por teres encontrado um credor coxo? Pois olha, caro Feliciano, eu tenho tido credores com todos os defeitos: coxos, corcundas, surdos, anões...nunca viste o recrutamento na aldeia? E
para coroar a obra, tenho ultimamente um caolho cujo nome há de ser gravado em letras de ouro nos anais da história. É um diabo em figura de homem com o dom da ubiqüidade: encontro-o em todos os lugares. Se nos bailes, de braço com alguma encantadora menina, eu me transporto ao céu numa nuvem de poesia, a figura sinistra de um sujeito que discute com outro sobre a carestia dos gêneros alimentícios embarga-me a voz na garganta e eu fujo aterrado da sala; é o Teixeira. (Chama-se Teixeira.) Nos teatros, quando toda a platéia manifesta a sua expansão por uma chuva de palmas e bravos, eu, semelhante a um herói de melodrama, procuro com a velocidade de um raio a porta da rua, é ainda o Teixeira. Nos cafés, nos botequins, nas igrejas... Enfim, por toda a parte o Teixeira, sempre o Teixeira!... Se algum dia tiveres um credor caolho (ouve este conselho que é de uma pessoa experimentada) quando o avistares toma-lhe sempre o lado do olho arruinado; nunca lhe tomes a frente, porque o credor que só tem um olho, vê mais com ele do que veria com os dois.
Félix (Sonhando.) – Sim, meu anjo...Hei de adorar-te...
Silveira – E pode sonhar este desalmado na manhã do dia 15! (Puxando o cobertor e gritando-lhe no ouvido.)
Acorda, bruto!
Félix (Sobressaltado.) – Hein?! Quem me chamou? Bárbaros! Acordaram-me no meio de um sonho vaporoso. (Canta.)
Sonhei que Ieda vieste Junto a meu leito cantar, Um canto que me dizia:
Bardo, não sabes amar.
Julguei-me por momentos um outro D. Juan ao lado da divina Haidéia sob a safira do belo céu da Grécia.
Seus olhos negros e úmidos procuravam as regiões sublimes donde tinham desertado; seus cabelos brincavam em ondas sobre o colo cetinoso...Oh! Mas agora me lembro: o que sonhei antes foi horrível! Sonhei que meu tio, o desalmado Luís de Castro, tivera a infeliz idéia de vir visitar-me a São Paulo, e que praguejava a meu lado com um possesso: Isto é comportamento?! O senhor é um dissipador! é um caloteiro! É um ladrão!
(creio que ouvi a palavra – ladrão -) Os meus pressentimentos nunca falham, Silveira.
Silveira – Tudo isso é muito bonito, meu caro; mas até o presente não há ainda dinheiro para o almoço. Félix – Dinheiro, metal vil! O que é o dinheiro?
Silveira – É aquilo com que se compra o almoço.
Félix – E onde está a sublime instituição do crédito? Não crês no crédito? Não crês na Providência? (Canta.)
Credo in Dio Signor dell’Universo ...Não conheces este pedaço? É dos Mártires.
Feliciano – Pelo que vejo não temos almoço?
Silveira – Desconfio que sim. Vou deitar-me, dizem que o sono sustenta.
Feliciano – Não haverá ao menos cobres em casa?
Félix – Há a sublime instituição do crédito.
Silveira – Desgraçado, tu ainda ousas falar em crédito, quando estamos desmoralizados e ninguém já nos fia um vinte!
Félix – Não desesperem, colegas: o acaso é nosso Deus. Vou proceder a uma busca. (Vai ao cabide e tira um colete.)
Feliciano (Apalpando as algibeiras) – Nem um cigarro!
Félix (Tirando do bolso do colete um papel.) – Um papel!
Feliciano – É uma nota de dez tostões.
Félix (Lendo.) – Lágrimas de Sangue – Poesias inéditas por uma vítima oferecida em holocausto à experiência.
Silveira – Ainda poesias.
Félix – Enganam-se: é uma conta de alfaiate! (Vendo a outra algibeira.) Agora não me engano: creio que é uma nota de dois mil réis. (Os dois aproximam-se.) É uma carta de namoro! (Lendo.) – Meu querido...
Silveira – Dispensamos a leitura.
Félix (Batendo na testa.) – Ah! Eureka, Eureka! (Corre ao fundo e encontra-se com Teixeira que entra.)
CENA III
Os mesmos e Teixeira Teixeira – O senhor Doutor Silveira.
Silveira (Baixo a Feliciano.) – Estou perdido! O Teixeira caolho, e estou do lado esquerdo! Que fatalidade!
Feliciano (Baixo a Silveira.) – Passa para o lado direito. Silveira (Indo para a direita encontra-se de frente com Teixeira que avança para a cena) – Oh! Senhor Teixeira, como tem passado? Tenha bondade de sentar-se...sem cerimônia. Félix? Traz esta canastra para o Senhor Teixeira. (Félix arrasta a canastra: Teixeira fica em pé.) Esteja a gosto. (Teixeira senta-se.)
Teixeira (Com ar severo.) – A minha demora é pequena.
Silveira – Líamos, quando o senhor entrou, um dos mais belos pedaços de poesia clássica. Gosta de versos alexandrinos, Senhor Teixeira?
Teixeira (À parte.) – Parece que estão caçoando comigo.
Feliciano – O senhor pode ter a bondade de me dar um charuto?
Teixeira – Não fumo, senhor.
Silveira – Os clássicos falam mais à cabeça do que ao coração.
Teixeira – Eu não quero saber de corações, senhor doutor, eu vim aqui tratar dos meus interesses.
Feliciano – O Senhor Teixeira é acardíaco?
Teixeira – Tudo, menos insultos: podemos brincar sem nos sujarmos. Vamos ao que me interessa. (Tirando um papel do bolso.) Aqui tem a sua...
Félix – Creio que o Senhor Teixeira é mais apaixonado de música. Prefere a música italiana à música alemã?
Ouve talvez uma melodia de Bellini, ou do inspirado Donizetti de preferência a uma fuga de Bach, a uma sinfonia de Beethoven, ou a um oratório de Haydn. A música italiana é a voz do coração; a música alemã, vaporosa como as Walkírias do norte, eleva-se em harmonias até o céu. É a metafísica da música, a música transcendental, como se inacessível na vasta esfera em que ele girava. Conheceu Mozart, Senhor Teixeira?
Teixeira – eu já disse que não gosto de gracejos.
Silveira – O Senhor Teixeira prefere a música italiana.
Félix – Então ouça este pedaço.(Canta.)
Parigi o ó cara lascieremo La vita uniti percorreremo...
É a mais sublime situação da ópera de Verdi!
Silveira – Oh! a situação é admirável! Violeta está crivada de dívidas; Alfredo, para salvá-la das garras dos credores, suplica-lhe que abandone Paris. O credor, Senhor Teixeira, é o diabo. O senhor não pode fazer uma idéia do que é o credor.
Teixeira – Basta, senhor: ao admito mais gaiatadas. Ou o senhor paga o que deve, ou então vou à polícia.
Silveira – Mais devagar, meu caro: não se esquente.
Teixeira – Eu vejo no seu procedimento para comigo uma verdadeira velhacaria.
Silveira – O senhor não pode ver nada direito, porque tem só um olho.
Teixeira – Não! Isto já não é gaiatada! Isto é desaforo! Vou processá-lo por crime de injúria. Feliciano – Faz mal, Senhor Teixeira: deve processá-lo por calúnia.
Teixeira – Hei de arrastá-lo perante os tribunais. Antes ter um só olho do que, do que...Já me sobe a espuma à boca. Hei de lhe mostrar para quanto serve o Teixeira caolho. (Riem-se todos.)
Silveira – Venha cá, Senhor Teixeira. (Teixeira sai.)
CENA IV
Feliciano, Silveira, Félix e depois Teixeira.
Silveira – Eis como deviam terminar as minhas relações com o Senhor Teixeira caolho: por um processo de injúria verbal.
Félix (Cantando.) – Ah! Dell’indegno rendere...
Silveira – E tu cantas.
Félix – Queres que chore?
Feliciano – Afianço-lhes que o homem saiu como uma bomba!
Teixeira (Aparecendo no fundo.) – Então paga ou não paga?
Silveira – Ora ponha um olho de vidro, sô caolho.
Teixeira – Antes ser caolho do que...do que...Vou estourar na polícia.
CENA V
Os mesmos menos Teixeira Feliciano (Batendo no ombro de Silveira.) – Meu caro, não é processo de injúria que me aterra: o que me aterra é a fome. (Vendo as horas.) Quase meio-dia, e não há esperança de almoço!
Silveira – Na nossa vida há momentos terríveis, colega. Mas a generosidade e a franqueza, esses dois sentimentos que são quase sempre a partilha dos vinte e dois anos, pulsam nesses trances em nossos corações.
No grande mundo há homens que calçam luvas de pelica para ocultar as mãos manchadas no sangue do seu semelhante, há mulheres que nos embebem o punhal no peito com o sorriso nos lábios; há amigos que nos abandonam na hora do perigo; mas aqui, na vida do coração e das ilusões, sob o teto enegrecido de uma mansarda, é que se encontram os grandes sentimentos. Toma um cigarro. (Tira um cigarro e uma caixa de fósforos debaixo do travesseiro e dá-o a Feliciano.)
Feliciano – Obrigado, colega.
Félix – Isto tudo quer dizer que não há almoço.
Silveira – Mas tu gritaste – Eureka – quando entrou o Teixeira.
Félix – Gritei; mas não tive a felicidade do filósofo de Siracusa. Fui a um colete velho...
Feliciano – E o que achaste? Félix – Um bilhete de gôndola.
Silveira – Com os diabos! Isso não corre em São Paulo.
Félix – O que querem? Devemos dizer como o cantor da Boêmia – “frágeis caniços, a fatalidade dá-nos as honras de uma tempestade” – (Batendo na testa.) Oh! que idéia! (Dança e cantarola.)
Félix e Silveira – O quê?
Félix – Está salva a pátria! Hoje não é dia 15? Fui convidado para um grande almoço em casa do Barão de Inhangabaú.
Silveira – E nós?
Félix – Ah! L’amor, l’amor ond’ardo, Le favelli in mio favor.
Feliciano – Esta tua alegria é um insulto.
Silveira – Esse almoço repugna com os teus princípios políticos. O Barão é vermelho, e tu és amarelo. Não deves ir comer um pão molhado nas lágrimas do povo. Não deves ir.
Félix – Silveira, quando fala a barriga, cessam os princípios. E demais, quantos não entram amarelos num jantar, e saem vermelhos? Vou quanto antes: não me esquecerei de vocês: a casa do Barão é perto e em menos de meia hora eu estarei aqui com o que puder trazer.
Silveira – E com que roupa pretendes lá te apresentar? Queres fazer uma figura ridícula?
Feliciano – Queres salpicar de lama a ilustre corporação a que pertences?
Félix – E por causa de roupa hei de deixar de ir a um almoço esplêndido? Não: o homem não deve acobardarse em face desses petits riens da vida. (Para Silveira.) Hás de me emprestar a tua casaca preta. Quanto ao mais que me falta, vou proceder a uma busca. Esta camisa está muito indecente...com um colarinho postiço, e casaca abotoada...
Silveira – Colarinho é o menos. E os sapatos?
Feliciano (Apanhando um sapato.) – Aqui está um sapato.
Félix – Cá está outro. (Senta-se na cama e calça um.) Vai às mil maravilhas! (Calçando outro.) – Ananke! –
São ambos do mesmo pé! Mas não se conhece.
Feliciano (Procurando.) – Uma luva preta.
Silveira – Olha: cá está outra.
Félix – Dá-ma. (Reparando.) É branca.
Silveira – Isso é o menos, pinta-se.
Félix – Não tenho tempo a perder: já tenho o essencial: dispenso os objetos de luxo. Vou vestir-me. (Vai saindo pela direita.)
Feliciano – Uma gravata a solferino.
Félix (Voltando.) – Dá-ma. (Sai.) CENA VI
Feliciano e Silveira Feliciano – Pela primeira vez em minha vida sinto a inveja.
Silveira (Bocejando.) – Ai, ai, vou dormir.
Feliciano – Ser convidado para um almoço esplêndido, enquanto que nós...
Silveira – Enquanto que nós...
Feliciano – Silveira: esta vida é cheia de espinhos. No lar doméstico aquecido ao seio da família eu nunca sentia fome.
Silveira – Caímos no sentimentalismo.
CENA VII
Feliciano, Silveira e depois Félix Félix (De dentro cantando.) – Ah! Che la morte ognora È tarda n’el venir...
Silveira – Canta, patife!
Feliciano – Ao menos resta-nos um consolo: não morreremos de indigestão.
Félix (Entrando.) – Pronto. A casaca vai-me bem?
Feliciano – Como uma luva!
Silveira – Mas este colete está indecente: parece um fogo chinês! Isto faz mal até à vista. Não deves ir ao almoço. Tu podes indispor o Barão de Inhagabaú com este colete.
Félix – Abotôo a casaca. Até logo, rapaziada. (Sai cantando.)
Madre infelice Corro a salvar-te...
CENA VIII
Feliciano e Silveira Feliciano – Já tenho suores frios,e a cabeça anda-me à roda.
Silveira – Feliciano, creio que vou ter uma vertigem. (Ouvem-se fora gargalhadas de mulheres.) Hein?!
Feliciano – O quê? CENA IX
Os mesmos, Lulu e Ritinha Lulu – Vivam os doutores.
Silveira – Lulu!
Feliciano – Adeus, adorada Ritinha. Sempre bela e arrebatadora, como as criações antigas de Fídias e de Praxíteles.
Lulu – Saibam que viemos jantar com vocês.
Silveira – O quê?
Ritinha – Olha, Lulu! Fingem-se de surdos. Viemos jantar com vocês. Queremos sobretudo Champagne.
Lulu – Apoiado. Não dispensamos Champagne.
Silveira – Não preferem clicau?
Feliciano – Está dito: manda-se vir Champagne, Chambertin, Sothern...Quem paga?
Ritinha – Olha, Lulu. Estão caçoando!
Silveira – Nós caçoamos; mas vocês fazem mais: vocês insultam-nos. Sim, porque é um insulto entrar ao meio-dia em casa de dois desgraçados que ainda não almoçaram e vir pedir jantar.
Ritinha e Lulu – Ainda não almoçaram?!
Lulu – Tanto melhor; almoçaremos juntos.
Feliciano – Viva a Lulu! (Abraça-a.)
Lulu – Mas eu não os compreendo. Há pouco eu insultava-os e agora abraçam-me!
Feliciano – Pois não pagas o almoço?
Ritinha – E que tal!
Silveira – Não há em casa nem um real!
Lulu (Depois de alguma pausa.) – Está dito: eu pago o almoço.
Feliciano e Silveira – Viva a Lulu!
Silveira – Eu vou já ao hotel defronte. (Vai saindo e volta.) Não, vai, tu, Feliciano. A felicidade desvairoume. Louco, ia eu mesmo procurar a boca do lobo!
Feliciano – Por que não vais?
Silveira – Tenho lá um credor.
Lulu (Rindo-se.) – Cobarde! Feliciano – Vou já num pulo. (Vai saindo, volta: para Lulu.) É verdade e o ... (Faz o acionado de quem pede dinheiro.)
Lulu – Mande assentar na minha conta; e sobretudo que venha Champagne do melhor. (Feliciano sai.)
CENA X
Os mesmos menos Feliciano Lulu – Senhor Silveira: o seu procedimento para comigo ultimamente tem sido inqualificável! Há duas semanas que não tenho a honra de o ver.
Silveira – Menina, os credores...
Ritinha – Quanto a mim, tenho do Senhor Silveira uma ofensa que jamais esquecerei. Lembra-se daquela célebre viagem a Santo Amaro, em que o senhor, entrando numa venda para comprar cigarros sem ter dinheiro, deixou-me na porta, e disse-me: _ Ritinha, meu coração, espera-me dez minutos que eu já volto, e trocando algumas palavras em voz baixa com o caixeiro, desapareceu sem mais voltar? Deixar-me empenhada numa venda por meia pataca de cigarros! Desta nunca me hei de esquecer!
Silveira (Rindo-se.) – Águas passadas não moem moinhos, menina. Agora que a felicidade começa a sorrirnos, falemos de coisas alegres. O que teremos para almoço?
CENA XI
Lulu, Ritinha, Silveira e Feliciano Feliciano (Com uma caixa de charutos.) – Um magnífico roastbeef, ovos, Bordeaux, Champagne, Porto, doces finos... Trouxe esta caixa de charutos por conta. São trabucos.
Silveira – Viva a Lulu.
Feliciano – Vivam. (Cantam.)
Silveira – Viva a bela Providência Que o céu nos deparou, Viva o anjo tutelar Que o almoço nos pagou.
Lulu – Nada têm que agradecer-me Eu olho para o porvir, Da vossa algibeira um dia O almoço há de sair.
Coro – Viva a bela Providência etc, etc.
(Entra um criado com uma bandeja.)
Silveira – Arreia, arreia: não há tempo a perder. (Feliciano e Lulu arrastam a mesa até o meio da cena:
Silveira põe a bandeja em cima da mesa.)
Ritinha (Destapando os pratos.) – Não é um almoço: é um lauto jantar! Silveira (Sentando-se na canastra e comendo.) – Já não posso mais; sentem-se e façam o mesmo, nada de cerimônias.
Feliciano – Ritinha, queres um bocado de roastbeef?
Ritinha – Aceito, meu anjo.
Lulu – Eu começo pelo Champagne: é a bebida dos amores. Não há saca-rolha?
Feliciano – Veio um. Aqui está. Champagne à saca-rolha!
Lulu (Abrindo a garrafa.) – Viva o néctar dos deuses! (Bebe.) Agora serve-me de qualquer coisa.
Feliciano – Queres ervilhas?
Lulu – Qualquer coisa.
Ritinha – O colega da frente perdeu a fala!
Feliciano (Suspirando.) – Ai, ai, meninas; não há gozo perfeito nesta vida. Diante deste roastbeef eu vejo dissiparem-se todos os meus sonhos de felicidade. E sabes por quê? Porque a idéia de – roastbeef – associa-se uma outra: a de – inglês!-.
Ritinha – E o que tem o senhor com os ingleses?
Feliciano – Cala-te: não quero inocular o mal da experiência em teu coração de vinte e dois anos. Só o que te digo é que eles hão de ser a causa da minha desgraça. Num belo dia vocês hão de encontrar o meu corpo pendurado a um pé...
Lulu – De malvas.
Silveira (Para Feliciano.) – Por falar em malvas, passa-me o prato das ervas. (Feliciano passa o prato.)
Lulu (Levantando-se.) – Meus senhores: à saúde daqueles e daquelas a quem consagramos nossas horas de ventura há de ser com – Ups - .
Todos (Menos Silveira.) – Ups, ups, urrah, etc, etc.
Feliciano – Eu proponho outro brinde. À saúde da nossa Providência do dia 15. Á tua saúde, Lulu.
Silveira – À razão da mesma.
Todos (Menos Silveira.) – Ups, ups, etc, etc.
Ritinha – Não tem medo de uma apoplexia fulminante, Senhor Silveira?
Feliciano – Silveira? – És homem: pára! –
Silveira – Vejo tudo azul! Creio que desta não escapo. Amanhã os jornais publicarão: “Fato Extraordinário”!
Morreu um estudante de indigestão. Eu serei depois de morto o alvo das atenções públicas. Mas, antes que me entoem o – Requiescat in pace -, eu quero fazer um brinde. Encham os cálices de Champagne. À morte de todos os credores.
Feliciano – Bravo! Se é exato o princípio dos Romanos – Mors omnia solvit - , eu seria capaz de beber...eu nem sei o que beberia para solenizar este brinde. (Ouve-se dentro bater palmas.) Silveira – Hein?!
Feliciano – Ingleses na Costa!
Silveira – Salve-se quem puder. (Correm todos e escondem-se na porta do lado direito.)
CENA XII
Os mesmos e Luís de Castro Luís de Castro (Entra com botas de montar; traz um grande chapéu de palha e uma mala de viagem na mão.) – Dão licença. Ninguém?! Olá de dentro!
Feliciano – Um credor de botas!
Silveira – É um cometa!
Feliciano – Tu tens dívidas no Rio de Janeiro?
Silveira – Não sei; parece-me que tenho verdugos até na China!
Luís de Castro (Sentando-se aos poucos na canastra.) – Ui, ui, ui. Irra! Doze léguas! Parece-me um sonho estar aqui! Que viagem, que precipícios e que burro! Corcoveou um quarto de hora comigo na serra; afinal não pude: deixei-me escorregar pelo rabicho, e caí com a parte onde a espinha dorsal muda de nome mesmo na ponta de uma pedra! Vi estrelas! Ui, ui, ui. E tudo para quê? Para vir ver o patife de um sobrinho que me anda esbanjando a fortuna! Ah! São Paulo, tu és um foco de imoralidades! Mas onde estará esse bigorrilhas?
Disseram-me que ele morava aqui. (Põe a mala no chão e tira as esporas.)
Silveira – Um sobrinho?! Quem será?
Luís de Castro – Hei de lhe mostrar para quanto sirvo, Senhor Félix de Castro. Há de me pagar. (Ferindo-se com as esporas. ) Ui, ainda mais esta. Ora esta! Bebi um pouco de aguardente a viagem. Estou assim meio aéreo!
Feliciano – É o tio do Félix: é o desalmado Luís de Castro. Ritinha e Lulu, vão batizar aquele mouro.
Lulu – Fiquem vocês aqui: quando o homem estiver convertido, eu os chamarei. (Ritinha e Lulu entram em cena.)
Luís de Castro – Minhas senhoras...Perdão: creio que estou enganado. (Á parte.) É uma casa de família.
(Alto.) Como cheguei agora mesmo, julguei que fosse esta a casa de meu sobrinho Félix de Castro.
Lulu – Esteja a gosto, pode ficar, o senhor está em sua casa.
Luís de Castro – Bondade de vossa excelência, minha senhora.
Ritinha (Tirando um charuto da caixa e fumando.) – Não quer um charuto?
Luís de Castro – Obrigado, minha senhora. (À parte.) E esta!
Lulu – Prefere cigarros campineiros? Não quer um cálice de Champagne? Luís de Castro (À parte.) – Com que gente estou metido! Estou na Torre de Nesly. (Alto.) Eu estou enganado, minhas senhoras; vou procurar o meu sobrinho. (Vai a sair.)
Lulu – Ora, não vá já, não seja mau. (Tomam-lhe ambas a frente.)
Luís de Castro – Deixem-me, senhoras. Eu sou um pai de família. Não me envolvo em intrigas amorosas.
Ritinha – Pois tem ânimo de nos deixar tão cedo?!
Lulu – Ora, fique.
Luís de Castro – Eu porventura as conheço? Tenho negócios com as senhoras? (À parte.) Decididamente vou-me embora: dizem que o fogo perto da pólvora...(Alto.) Minhas senhoras. (Vai sair.)
Lulu (Baixo.) – Não vá: se for há de se arrepender.
Luís de Castro – O quê?
Ritinha (Baixo.) – Ingrato.
Luís de Castro – Como? (À parte.) Mau, que já vai me virando a bola!
Lulu – Pois o senhor ousa abordar a ilha de Calipso e quer retirar-se impune?!
Ritinha (Oferecendo-lhe um cálice de Champagne.) – Não seja egoísta: beba ao menos à saúde daquela que tanto lhe adora: à minha saúde.
Luís de Castro (À parte.) É um fazendão! (Alto.) Este vinho irrita-me os nervos, minha senhora.
Lulu – O senhor padece dos nervos?
Luís de Castro (À parte.) – A provocação já é muito direta: vou-me embora. (Alto.) Minhas senhoras. (Vai sair, Ritinha toma-lhe a frente com o cálice.)
Ritinha – Então não quer satisfazer o meu pedido?
Luís de Castro (À parte.) Vai tudo com os diabos. (Alto.) Bebo.
Lulu (Enchendo outro cálice.) – Mais este.
Luís de Castro – Venha (À parte.) Não me apanham no laço.
Lulu (Baixo a Ritinha.) – Está filado.
Luís de Castro –Às suas ordens.
Lulu (Dando-lhe um charuto.) – Fume sempre um charutinho.
Luís de Castro (À parte) – Esta é melhor fazenda. (Alto.) Não fumo: eu só tomo rapé. (Tirando uma boceta.)
Não gostam?
Lulu (Pondo-lhe a mão no ombro.) – E se eu lhe pedir muito?
Luís de Castro – Desencoste-se, senhora. (À parte.) Não há dúvida: estou na Torre de esly. Vivam. (Vai sair, Lulu e Ritinha ajoelham-se.) Lulu – Não vá, meu coração.
Ritinha – Ora, fique...
Luís de Castro (À parte.) – É preciso muita coragem. (Alto.) Fico.
Lulu (Oferecendo-lhe outro cálice.) – Então à saúde dos nossos amores.
Luís de Castro – Vá lá: à saúde dos nossos amores. (Bebe até o meio.)
Lulu – Esta é de virar.
Luís de Castro – Viro.
Silveira (Para Feliciano.) – Isto promete um desfecho majestoso.
Luís de Castro (Risonho.) – Mas as senhoras moram mesmo aqui...sozinhas?
Ritinha – Sozinhas.
Luís de Castro (À parte.) – É célebre! Estou tão leve! (Alto.) Então com que...(Rindo-se.) Eu vou-me embora: eu bem disse que aquele vinho fazia-me mal aos nervos.
Lulu – É porque não está ainda acostumado. Beba outro cálice que há de sentir-se melhor. (Dá-lhe outro cálice.) Tem ânimo de rejeitar?
Luís de Castro – Quem pode resistir ao fogo desses olhos? (Bebe.)
Ritinha – Mais outro.
Luís de Castro – Tudo o que quiseres, meu coraçãozinho. (Beija a mão de Ritinha. Lulu lança-lhe um olhar lânguido.) Machuca-me todo, (Ajoelhando-se.) mata-me; mas não me lances este olhar! (Lulu dá sinal a Feliciano e a Silveira que entrem para a cena.)
Silveira (A Luís de Castro que quer levantar-se.) – Esteja a gosto. (Tirando um charuto da caixa.) Não quer um charuto?
Luís de Castro – Eu bem disse que estava enganado. Eu vou-me embora. (Levanta-se cambaleando.) Mas aquele patife há de me pagar. (Vai saindo.)
Ritinha – Não vá.
Lulu – Ora, fique.
Silveira – Fique.
Feliciano – Ora, fique.
Luís de Castro (Consigo.) – Que papel representam estes dois sujeitos aqui? Estou abismado! Era preciso que eu viesse a São Paulo para presenciar esta cenas!
Silveira – Senhor Luís de Castro.
Luís de Castro – O senhor sabe o meu nome?! Donde me conhece o senhor? Silveira (Para Feliciano.) – Uma idéia! (Para Luís de Castro: baixo.) Maganão feliz! Então com que pensa que não o conheço. Não se lembra talvez daquele célebre pagode no Rio de Janeiro...
Luís de Castro – Eu nunca estive em pagodes, senhor.
Silveira (Continuando.) – Em que havia uma célebre menina de olhos negros, cor de jambo,cabelos encrespados...Maganão! Não tem mau gosto.
Luís de Castro – Fale mais baixo, senhor, não me comprometa.
Silveira (À parte.) – Creio que pegam as bichas. (Alto.) E no entretanto quer fingir-se santarão...Diz que o Champagne faz-lhe mal aos nervos...
Feliciano (Para Lulu e Ritinha.) O que quererá o Silveira com aquele D. Juan em segunda mão?
Silveira – Basta de hipocrisia. Se continuar com esse ar estudado de moralista, irei denunciá-lo ao seu sobrinho e então...
Luís de Castro – Basta, senhor: o que quer que eu faça?
Silveira – Quero que se apresente tal qual é: deixe-se de hipocrisias. (Para Lulu e Ritinha.) Meninas, o Senhor Luís de Castro é dos nossos: é velho no corpo, mas criança na alma. Senhor Luís de Castro: viva a pândega!
Luís de Castro (Gritando.) – Viva a pândega! (À parte.) Estou desmoralizado!
Silveira (Baixo a Feliciano.) – Está preparada a situação. (Baixo a Lulu.) Enche um cálice de vinho do Porto.
(Lulu enche o cálice.) Senhor Luís de Castro (Dando o cálice.) à saúde dos velhos moços.
Luís de Castro – Vivam! (Bebe até o meio.)
Silveira – Não senhor; esta é de virar.
Ritinha (Baixo.) – Olhe que o homem já bebeu muito Champagne.
Silveira – Vá outra: à saúde dos seus verdadeiros amigos.
Luís de Castro – Vá.
Todos – Up, up, urrah, etc, etc.
CENA XIII
Os mesmos e Félix Félix (Cantando dentro.) – La donna é mobile Qual pouima alvento...
Luís de Castro – Esta voz...
Silveira (Para Feliciano.) – Vejamos o desfecho.
Félix (Entrando.) – Um cometa! (Luís de Castro volta-se.) Meu tio! Estou perdido! Ah! meus pressentimentos! (Para Luís de Castro.) Abença.
Luís de Castro – Sô bigorrilhas! Félix (À parte.) – Ai! Que cheiro de vinho!
Luís de Castro (Cambaleando.) – O seu comportamento é inqualificável! O seu ofício em São Paulo tem sido pregar calotes. (Esbarra na canastra.)
Félix – Meu tio, olhe a canastra.
Luís de Castro – E tem o arrojo de não corar em minha presença! Quem julga o senhor que eu sou?
Félix – A princípio supus que fosse um cadáver.
Luís de Castro – Cadáver, grandíssimo patife! Estou vivo e bem vivo para te meter o chicote. (Félix sentase.) Levante-se.
Félix (Sentado.) – Admira-me bastante que o senhor meu tio venha moralizar num lugar destes entre garrafas de Champagne, e exalando vapores de vinho. (Baixo.) Quando chegar ao Rio de Janeiro, minha tia há de ser informada de tudo isso.
Luís de Castro (Brando.) – Sim...mas tu não tens te comportado bem: Constantemente estou a receber contas tuas. Tu não sabes que eu não tenho grande fortuna?
Félix – Meu tio: à primeira vista parece que eu devo muito: mas está ali o Silveira que deve mais do que eu.
Luís de Castro – Eu não digo que deixe de se divertir...mas (Cambaleando.)
Félix – Meu tio, não caia.
CENA XIV
Os mesmos e Teixeira Silveira – Ainda o Teixeira caolho.
Teixeira – Venho aqui...
Silveira (Baixo.) – Já sei, espere. (Baixo a Félix.) Diz a teu tio que o Teixeira é teu credor. O homem hoje está disposto a tudo!
Luís de Castro (Voltando-se.) – Quem é este senhor?
Félix – Este senhor...
Luís de Castro – Diga logo: é um credor.
Silveira – É uma pequena dívida de 100$000, Senhor Luís de Castro.
Luís de Castro – Tome. Trouxe o recibo? (Recebe.) Suma-se. (À parte) Com os diabos, anda-me tudo à roda!
CENA XV
Os mesmos, menos Teixeira Silveira (Suspirando.) – Estou livre do Teixeira caolho! Lulu, Ritinha e Feliciano – Viva o Senhor Luis de Castro.
Luís de Castro – Hoje mesmo pagarei todas as tuas dívidas; mas hás de me prestar dois juramentos: 1º de não as contrair mais; 2º (Baixo.) de nada revelares a tua tia do que se passou aqui.
Félix – Juro.
Silveira – Eu também quero impor uma condição. O senhor há de ficar aqui pelo menos dois meses.
Luís de Castro – Fico.
Silveira (Para Feliciano.) – Já não morreremos mais de fome.
Luís de Castro – Estou desmoralizado, perdido, esbandalhado, e tudo por quê? Por causa de um sobrinho extravagante.
Feliciano – Engana-se, Senhor Luís de Castro: tudo isso é devido a – Ingleses na Costa.
Luís de Castro – Que ingleses?
Félix (Segurando em Luís de Castro.) – Venha para o quarto, meu tio. É uma história muito complicada; logo lha contarei.
Silveira – Esperem. Eu tenho que falar com estes senhores por parte do autor.
Se algum inglês se ofendeu, Com o autor não encavaque O autor só se refere - aos Ingleses de Balzac.
(Cai o Pano.)
FIM
Fonte:
FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José da. Ingleses na costa. In: Teatro de França Júnior. Rio de Janeiro
: Funarte, 1980 p. 75-94 (Clássicos do Teatro Brasileiro).
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Claudia de Moura Leite Ribeiro – São Paulo/SP
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acima sejam mantidas.