Entrei Para o Clube Jácome
Personagens
Julião da Cunha 50 anos
Dorotéia, sua mulher 50 anos Chiquinha, sua filha 17 anos
Ernesto 20 anos
Comendador Anastácio, fazendeiro
Antonio, criado
A cena passa-se no Rio de Janeiro.
Época – Atualidade ATO ÚNICO
O teatro representa uma sala com uma porta ao fundo e duas laterais; aparadores, um sofá, cadeiras, etc. Das paredes pendem diversos quadros, figurando corridas de cavalos.
CENA I
Dorotéia e Chiquinha Dorotéia – Digo-te que aquela criatura está doida.
Chiquinha (Sentada num sofá, bordando num bastidor) – Aquilo é uma mania, como qualquer outra, que há de passar, mamãe.
Dorotéia – Minha filha, teu pai vai caminho do Hospício de Pedro II, conheço muitos que estão lá por menos.
Aquele Clube Jácome! Aquele Clube Jácome! Tu ainda hás de ver se eu minto. De noite, de dia, acordado ou dormindo, ele não pensa senão em cavalos; é a sua idéia fixa! Uma noite dessas estava eu dormindo, eis que acordo sobressaltada com um peso enorme na boca do estômago: abro os olhos e vejo teu pai como um possesso, de cabelos arrepiados...up, up, up....e zás, mete-me tamanha vergalhada no pescoço que ainda hoje sinto as dores. Pois se a criatura sonhava que estava saltando barreiras em São Cristóvão! Teu pai, Chiquinha, acaba por ficar um cavalo!
Chiquinha – Ora mamãe, antes isto do que ir prestar-se ao desfrute no Alcazar, como fazem muitos, mais velhos até do que ele. (Mostrando o bordado) Veja, não está chique?
Dorotéia – Cá está o tema predileto. Cavalos até nas chinelas!
Chiquinha – É para o dia dos seus anos. (À parte) Ai, ai, o que eu sinto é que Ernesto não pertença ainda ao Clube Jácome.
Dorotéia – Ele não tarda aí. Onde está o Antônio?
Chiquinha – Estava há pouco na estrebaria, limpando os arreios.
Dorotéia – Ah, seu Antônio estou com muito medo de teu pai, minha filha; aquele homem...aquele homem. Ah, seu Antônio? Seu Antônio?
Cena II
As Mesmas e Antônio Antônio (Com uma bota enfiada no braço) – Pronto minha arma.
Dorotéia – Você já escovou, já limpou todas aquelas bugigangas que seu amo encomendou-lhe? Já pôs azeite no freio? Ele não tarda.
Antônio – Já está tudo pronto, sim senhora; agora estou limpando as botas. Ele recomendou-me que as queria bem lustrosas. (Mostrando). Veja, está que é um espelho. (Ouve-se dentro um barulho de gargalhadas e assovios).
Dorotéia – Jesus, meu Deus, o que é isto? (Vai à porta do fundo).
Cena III
Os Mesmos e Julião Julião (De dentro) – Antônio? Antônio? Antônio – Pronto (Sai correndo)
Dorotéia – Querem ver que teu pai caiu?
Julião (Entrando todo sujo de poeira e enlameado e limpando-se) – Que rodada!! Pois se o Mouro deu agora em passarinheiro... Mas, que galope! Dorotéia: o cavalinho vinha ventando pelo Aterrado, cataprus, cataprus, cataprus.
O vento zunia-me pelos ouvidos como um guincho de maxambomba, a barriga do Mouro feria fogo nas pedras:
árvores, lampiões, casas, tudo corria para trás, ninguém se animava a atravessar a rua; eu só via pessoas paradas de ambos os lados no meio de uma nuvem de poeira; já não tinha mais fôlego! Em vão quatro urbanos tentaram embargar-me a corrida, eu os vi desaparecer com os lampiões: o povo gritava – Cerca! Cerca! Cerca! Era tudo em vão! Nisso uma negra atravessa a rua, o Mouro espanta-se ainda mais, eu cravo-lhe as esporas nos vazios, a negra cai, rola o barril que ela trazia na cabeça, o Mouro salta o barril, perco os estribos, tento em vão segurar-me com os joelhos, roda o selim, o cavalo escorrega, prancheia, e trás!... caio em terra como uma trouxa.
Dorotéia – E não podia ter quebrado uma costela? Pois o senhor, seu Julião ainda é homem para essas coisas? Na sua idade meter-se a rapaz, andar a correr por aí como um maluco. Todas as vezes que o senhor monta a cavalo eu fico com o coração do tamanho de uma pulga, já espero alguma desgraça.
Chiquinha – E o cavalo sofreu alguma coisa, papai?
Julião – Qual! Pois o Mouro lá é cavalo que se incomode com essas ninharias! Hás de montar ainda nele para irmos ver as corridas em são Cristóvão.
Dorotéia – Seu Julião, deixe-se de graças, não esteja a meter idéias na cabeça da menina.
Julião – É porque tu não sabes o que aquilo é. Olha, Chiquinha: às quatro horas da tarde já vem chegando o povo.
Que rapaziada! Toda ela desempenada! Gente toda assim da minha laia. Às cinco horas já o campo de São Cristóvão está coalhado de quanta moça bonita há por aqueles arredores: carros, guigues, caleches, gôndolas, tudo o que há de bom, ali se vê. – Fora da raia! É o sinal de atenção. Daí a pouco estendem-se as barreiras, os cavalos se agrupam, os cavaleiros se preparam, há um remexer em toda a linha, todos os olhos se fitam no grupo que vai saltar. Sai o primeiro cavaleiro, salta as barreiras, sai o segundo, sai o terceiro, sai o quarto, quinto, sexto, saltam todos, que pulos! Que limpeza! Depois desse primeiro trabalho limpa-se a raia, e vão as corridas rasas. Aí sim... aí entro eu.
Daí a pouco só se ouve em toda a linha: aí vem eles! É o Baio que vem na frente, não é, é o Castanho, não é o Castanho, é o Russo...Qual Russo nem Castanho! É o Mouro que vem, fino como uma seta, rompendo na frente e que ganha com luz a todos os outros.
Dorotéia – Pois não era melhor, seu Julião, que o senhor estivesse aqui em casa conversando com a gente, ouvindo a menina tocar, no repouso da família...
Julião – Pois há nada, senhora, que valha as emoções de uma corrida? Há dinheiro que pague dois galões de saída, uma assentada, um grito de partida? Sair um homem colado ao companheiro, sentir-lhe o coração pulsar de emoção ao lado do seu e ouvir finalmente os urras da vitória! Dorotéia, Dorotéia, (Abraçando-a) ainda hás de correr comigo.
Dorotéia – Chegue-se para lá, seu Julião, não me faça perder-lhe o respeito.
Cena IV
Os Mesmos e Antônio Antônio – O milho acabou-se, meu amo.
Julião – Patife, pois só agora é que vens me avisar.
Chiquinha – O cavalo pode ficar aguado.
Dorotéia – Eu daria parabéns à minha fortuna, se o visse seco e torrado como uma sardinha.
Julião – Vá à casa do farinheiro, vá dizer-lhe que me mande dois sacos de milho e um de fubá. (Antônio vai saindo).
Olhe, que seja milho Catete; e assim que vier dê uma boa ração ao cavalo. (Antônio vai saindo). Olhe, já limpou o meu freio?
Dorotéia – Já está tudo pronto; o criado aqui não faz outra coisa senão cuidar do seu cavalo: quero mandar um recado fora, quero mandar pôr a mesa, e a resposta que me dá o seu Antônio é sempre esta: - estou tratando do cavalo. (Antonio sai).
Chiquinha – Papai, tem-se esquecido de uma coisa que me prometeu.
Julião – O que é? Vestidos para bailes? Não dou.
Chiquinha – Não, não é isso; ora veja se se lembra.
Dorotéia – Seu Julião, a menina precisa de saias, de botinas, de meias, e os lençóis estão se acabando... O senhor não pensa senão lá no seu Clube Jácome...
Julião – Hei de lhe mandar fazer uma saia de montar, uma bonita amazona, como vi ontem uma em São Cristóvão.
Chiquinha – E o cavalo, papai?
Julião – Arranja-se, arranja-se.
Dorotéia – Que loucura, meu Deus! Pois o senhor acredita que eu tivesse criado uma filha até esta idade, para morrer de queda de burro?
Julião – De burro? Pois a senhora confunde cavalo com burro!!!
Dorotéia – Senhor Julião, já não estou para o aturar. Menina, vamos para dentro. (Sai)
Julião – Não, ela fica, preciso falar-lhe.
CENA V
Julião e Chiquinha Julião – Chiquinha, senta-te aqui. (Sentam-se no sofá). Nós havemos de ir, todos os domingos, a São Cristóvão: lá há rapazes muito bonitos, que montam bem, tu hás de vê-los; talvez que venhas ainda a gostar de alguns deles.
Chiquinha – Se é para isso, papai, não quero ir.
Julião (À parte) – Mau, acordaria já tarde? Já lhe transtornaram a cabeça; aposto que são histórias da Senhora Dorotéia. (Alto) Pois fazes mal; aqueles moços do Clube Jácome são muito bem educados e sobretudo que chique!
E que cavalos!! Olha, Chiquinha, há lá um que se tu o visses...
Chiquinha – Ora qual, papai.
Julião (Zangado) – Ora qual, ora qual... Tu ainda não sabes de quem estou falando...Que moço! Tem um cavalo do Cabo, tão bem ensinado pelo Jácome que faz gosto: recua, ladeia, faz perfeitamente o passo espanhol, faz o piafé magistralmente, etc, etc. Tem uns olhos!
Chiquinha – Quem? O cavalo ou o moço, papai?
Julião – O moço. Que tábua de pescoço!
Chiquinha – Do moço?
Julião (Contrariado) – Não, do cavalo. E que posição elegante sobre os arreios! Ar imponente, as rédeas leves sobre a mão...Enfim Chiquinha, é um rapaz que bem te convinha. Hás de ir comigo domingo às corridas. Quero-te mostrar: que estampa!
Chiquinha – Qual, do moço, papai?
Julião – Não, menina, do cavalo.
Chiquinha (Abaixando a cabeça) – Pois...eu...queria comunicar-lhe, mas...
Julião – Quem tem você, que está aqui a engolir palavras?
Chiquinha – É que eu...papai...
Julião (Zangado) – É que eu, é que eu...É que a senhora já tem a cabeça transtornada por algum pintalegrete. Aposto que é algum sujeito que nunca montou em sua vida, hein?
Chiquinha – Não sei se ele já montou, papai.
Julião – Já sei, são histórias da Senhora Dorotéia; mas dou-lhe tamanha rodada, que ela me há de andar aqui em casa num verdadeiro trote inglês. E quanto a você, se me começa a passarinhar, ponho-lhe os machinhos para entrar na verdadeira marcha. Pois saiba que você não se casa senão com um sócio do Clube Jácome: é o meu ultimatum.
(Batem) Entre. Chiquinha – Há de ser o criado com o milho. (À parte) Se fosse o Ernesto...
CENA VI
Os Mesmos e Ernesto Julião (A Ernesto, que entra, tomando-o pelo criado) – Então, seu bruto, é Catete?
Ernesto – Não venho do Catete, não senhor, venho do Rio Comprido.
Julião – Oh, desculpe, senhor Ernesto, tomei-o pelo meu criado. Imagine o senhor, que há mais de um quarto de hora que mandei buscar milho para o cavalo, porque estava sem milho em casa, e até agora nada.
Ernesto – Como tem passado a Dona Dorotéia?
Julião – Vai indo com alguma tosse; o meu cavalo é que não tem passado bem esses dias. (Impaciente) E até agora nada de milho. (Entra o criado).
CENA VII
Antônio e os Mesmos Antônio (Com um punhado de milho) – Veja, meu amo, a amostra.
Julião – Excelente. Quanto te pediram pelo saco?
Antônio – Onze mil réis.
Julião – Veja, Senhor Ernesto, milho Catete de primeira qualidade. Neste a Senhora Dorotéia não mete o dente; se quiser milho para a sua criação, que compre. Com licença, fiquem aí que já volto, vou assistir à ração. (Sai).
CENA VIII
Ernesto e Chiquinha Ernesto – Então, o que se decidiu?
Chiquinha – Por ora, nada. Meu pai, com aquela fatal mania, não pensa senão em cavalos e no Clube Jácome; e já me disse que havia de me dar por noivo um...
Ernesto (Admirando) – Um cavalo?!
Chiquinha – Não, um sócio do Clube Jácome. Disse-me que era o seu ultimatum. Ah, Senhor Ernesto, o senhor não pode avaliar como eu fiquei. Ernesto – E eu que nunca montei em dias de minha vida!
Chiquinha – E meu pai que já desconfiou disso.
Ernesto – Por quê?
Chiquinha – Porque convidou-me para ir assistir às corridas de São Cristóvão, disse-me que lá havia moços muito bonitos que montavam muito bem...Enfim, Senhor Ernesto, meu pai quer a todo transe que eu me case com um sócio do Clube Jácome.
Ernesto – Então, pelo que vejo, lá se vão as minhas esperanças?
Chiquinha – Pois o senhor não pode ser sócio do Clube Jácome?
Ernesto – É verdade...posso...Mas, como quer a senhora que eu entre para uma sociedade de montaria...
Chiquinha – Entre, entre, Senhor Ernesto, para agradar a meu pai.
Ernesto – Mas se eu nunca montei em dias de minha vida, minha senhora!
Chiquinha – Não faz mal, aprenderá a montar depois.
Ernesto – Só se for assim. Mas Dona Chiquinha, pense bem; olhe que é uma grande inconveniência entrar para semelhante Clube. Veja os perigos que um homem corre a pé: uma casca de banana na calçada, um preto de ganho com um cesto à cabeça, um tílburi para aqui, uma gôndola para acolá; se tudo isto a pé faz uma confusão tal na vista que muitas vezes o homem esbarra sem querer, quanto mais um pobre mortal a cavalo! Se defende a anca, lá entra a cabeça do cavalo pela portinhola de um tílburi; se defende a cabeça, vem a anca bater na vidraça de uma loja...Enfim, Dona Chiquinha, eu não quero pensar mais nisto! Sou muito nervoso, não tenho o sangue frio necessário para governar-me a cavalo. Decididamente não entro para o Clube Jácome.
Chiquinha – Pelo que vejo, então o senhor dá mais importância aos seus nervos do que ao meu amor! Não lhe valho o sacrifício de uma queda de cavalo?
Ernesto – Não é por isso, minha senhora; é porque só a idéia de cavalo me repugna.
Chiquinha – Aí vem mamãe!
CENA IX
Os Mesmos e Dorotéia Dorotéia – Ora viva, Senhor Ernesto, como tem passado? Ernesto – Estávamos aqui a conversar sobre o Clube Jácome.
Dorotéia – Pois também o senhor está com a mesma mania? Senhor Ernesto, Senhor Ernesto, não me faça perder-lhe a fé que tenho.
Chiquinha – Ao contrário, mamãe, o Senhor Ernesto estava me dizendo que nunca montou a cavalo.
Dorotéia – Faz muito bem, Senhor Ernesto, ao menos mostra que tem mais juízo do que muitos velhos que conheço.
Olhe, Senhor Ernesto, eu perdoaria antes a meu marido se ele fosse ao Alcazar do que vê-lo por aí de chibatinha e luvas, a cavalo. Pois aquele homem é mais para essas coisas? Com aquela barriga, já pesado, a querer por força ser ágil! Está doido, Senhor Ernesto, está doido! O senhor quer ver? Olhe: veja estas paredes, quadros de corridas de cavalos; olhe estas chinelas, (mostrando o bordado) cavalos! Tem lá dentro um chambre com cavalos pintados e até comprou chita para colchas de cama toda estampada com cavalos! Foi no outro dia à exposição comigo e não tive tempo de ver coisa alguma. O homem levou três horas adiante das estrebarias: que anca! Que lombo curto! Que prumos! Que cabeça! Discutia, gesticulava, eu já estava vexada.
Ernesto – Agora mesmo, minha senhora, acabei de falar à senhora sua filha sobre o pedido que já lhe tinha feito.
Dorotéia – E então?
Ernesto – Então...vejo que é quase um impossível.
Dorotéia – Pelo quê?!
Ernesto – Porque entre mim e sua filha, vejo surgir, dia por dia, hora por hora, um fantasma que diviso ali, (Todos recuam espavoridos) um cavalo!
Dorotéia (Rindo-se) – Pensei que fosse algum rival.
Ernesto – Pois afianço-lhe, minha senhora, que é pior do que um rival.
Chiquinha – Eu já disse ao Senhor Ernesto, mamãe, que o único meio de que ele pode dispor para cair nas boas graças de papai é entrar para o Clube Jácome.
Dorotéia – Deus nos livre! Pois se um já é bastante para trazer a casa numa corrida, quanto mais dois! Eram capazes de me converter aqui a sala em campo de São Cristóvão.
Ernesto – Não se assuste, Dona Dorotéia, nessa não caio eu.
Chiquinha – Há de entrar.
Dorotéia – Não entra.
Ernesto – Vejam em que ficam. CENA X
Os Mesmos e Julião Julião (Entrando e falando para dentro) – Vá lavar os pés do cavalo, dê-lhe água e passe-lhe a escova. Não se pode, não se pode ter animais. É um trabalho insano, Senhor Ernesto. Já viu o meu Mouro?
Ernesto – Que mouro?
Chiquinha (Puxando-lhe a roupa diz-lhe baixo) – Diga que já viu, é o cavalo dele. Fale-lhe já naquilo.
Ernesto – Senhor Julião, desejava-lhe dar-lhe uma palavra a sós.
Julião (À parte) – Já sei, quer entra para o Clube. (Alto) Menina, vá para dentro. Senhora Dorotéia. (Faz menção de quem a despede).
CENA XI
Julião e Ernesto Ernesto – Senhor Julião, desejava...
Julião – Já sei; o senhor não é sócio-fundador, tem de pagar portanto trinta mil réis de jóia, a mensalidade é de dois mil réis paga em trimestre.
Ernesto – Não é isso...desejava...o senhor, creio que já deve saber...
Julião – Ande, não empaque.
Ernesto – É que ...nas minhas circunstâncias...
Julião – Está o senhor só a refugar.
Ernesto – Pois eu me explico. Há seguramente três meses...
Julião – É justamente o tempo que possuo o Mouro. Ainda se me não saiu da cabeça a tal rodada! Continue.
Ernesto – Há seguramente três meses que desejo possuir um objeto, que é o seu desvelo, o seu carinho, e para quem Sua Senhoria ambiciona todas as felicidades da vida.
Julião (À parte) – Já sei, quer me comprar o Mouro; está se ninando.
Ernesto – Para encurtar-lhe razões, Senhor Julião, peço-lhe a mão da senhora sua filha. Julião – Cáspite! Folgo muito de saber disso.
Ernesto – Sou guarda-livros de uma das mais importantes casas comerciais da Corte, tenho trinta apólices, duas moradas de casas...
Julião – Basta, basta meu caro. O senhor sabe montar?
Ernesto (À parte) – Estou em apuros. Eis o meu fantasma.
Julião – Responda, que tenho muito que fazer.
Ernesto (À parte) – É preciso lisonjear-lhe a mania (Indeciso) Monto...já montei e creio mesmo até que montei num burro!
Julião – Num burro! Senhor Ernesto, não me prostitua a arte hípica. O senhor está-se traindo, não minta; diga antes:
Senhor Julião, eu quero ver a verdadeira luz, quero entrar para o Clube Jácome. E as portas do templo se abrirão de par em par para recebê-lo. Diga-me: qual é o melhor sistema de montar? Qual o melhor sistema de ferrar? Como é que conhece quando um cavalo está rengo? Ande, responda sem titubear. Não sabe, não sabe nada, é um ignorante, não lhe dou a mão de minha filha.
Ernesto – Ah! Senhor Julião, o senhor não sabe, não pode avaliar o entusiasmo que de mim se apodera quando vejo uma corrida, todo eu fico num tremor; os olhos saltam-me das órbitas. (Julião acompanha também o entusiasmo). Os cabelos arrepiam-se-me, um suor frio sobe-me dos pés à cabeça: não sabe, Senhor Julião, não pode avaliar: eu seria capaz de passar até por cima de baionetas caladas para ver o seu Mouro correr.
Julião – Bravo, bravo. (Abraçando-o). O senhor nasceu com a predestinação do cavaleiro. Viu aquela última corrida? Como saiu o Mouro fino! Por um triz que o Russo não me ganha. Hei de lhe dar algumas lições; vou lhas dar já.
Ernesto (À parte) – Buli numa casa de marimbondos.
Julião – Sabe qual é o sistema Jácome? Primeira regra: o cavaleiro deve formar com o cavalo uma só peça, deve se confundir completamente com o cavalo. O tronco desempenado, perpendicular ao selim, descansa sobre as pernas que devem se apoiar nos estribos, de maneira que se possa tirar uma linha reta da cabeça aos pés. (Tomando duas cadeiras e dando uma a Ernesto). Monte. (Montando na outra). Assim. (Imita).
Ernesto (Montando na cadeira) – O que diria o meu patrão se me visse nesta posição!
Julião – A cabeça deve estar firme nos ombros. Não mexa com a cabeça, Senhor Ernesto. O tronco ainda mais firme.
Rédeas nesta posição. O lugar onde a espinha dorsal muda de nome deve ficar colado ao selim: esta é uma das regras gerais; sofre exceção no trote inglês que deve acompanhar o movimento do cavalo neste sentido. (Imita o trote). Cuidado, não perca os estribos, a barriga da perna colada à barriga do cavalo. Não é assim que se segura nas rédeas: a mão deve estar firme e na altura do estômago. Para ladear para a direita não tem mais do que fazer unhas acima e pôr a perna esquerda na virilha do cavalo; para a esquerda, unhas abaixo e a perna direita toma a posição da perna esquerda.
Ernesto (Á parte) – Tomo um tombo com toda a certeza. Julião – Equilibre-se, Senhor Ernesto, o senhor está provando que nunca trotou sem estribos. Agora prepare-se para a corrida.
Ernesto – Misericórdia!
Julião – Ao grito do juiz, chegam-se as pernas à barriga do cavalo, faz-se a mão leve e cai-se-lhe com duas rimpadas na anca. (Cai para a frente e indica a posição). Up, up, up. (Sai a correr com a cadeira, Ernesto acompanho-o) Não se importe, Senhor Ernesto, com o povo que está na raia. Fora da raia! Firme, sempre, olhe que o cavalo desgarra. Eh lá Mourinho de uma figa.
CENA XII
O Comendador Anastácio e os Mesmos Anastácio (Pára na porta) – Está doido! Já me tinham dito e eu não queria acreditar. (Ernesto esbarra-se com Julião e vão ambos no chão)
Ernesto (Levantando-se) – O Comendador! Que escândalo!
Julião – Ei, Comendador, que tal? Assistiu à corrida? Qual era o seu palpite?
Anastácio – Que o senhor estava doido. Ora, Senhor Julião, pois o senhor não satisfeito de dar desfrutes no campo de São Cristóvão, ainda vem fazer criançadas em casa? Onde está a sua família?
Julião – Lá está na estrebaria. Vá vê-lo, que elegância! Como está fino! Está um perfeito cavalo de corrida.
Anastácio – Não lhe perguntei pelo cavalo, perguntei-lhe pela família.
Julião – Venha ver, venha ver.
Anastácio – Bem me disse a Dona Dorotéia.
Ernesto – Então, Senhor Julião, o que decide depois de todo esse exercício?
Julião – Que não lhe dou a mão de minha filha, sem vê-lo no Clube Jácome. Vá já falar com o homem, ele é um moço muito amável, há de recebê-lo de braços abertos. Vá já, não perca tempo. Vá, vá, e venha receber o meu consentimento. (Empurra a Ernesto pela porta fora)
CENA XIII
Anastácio e Julião Julião – Que corrida! (Sentando-se cansado) Anastácio – O senhor não perde mais esta mania.
Julião – Mania?! O senhor ousa chamar o progresso de mania? É melhor sem dúvida andar montado num burro de marcha, como anda o senhor lá pela fazenda, ou nalgum cavalo de guinilha?
Anastácio – E há nada que pague uma boa besta? Nem o senhor nem o seu Mouro fundidos valem o meu Joãopequeno: aquilo é meter-se-lhe as esporas e sai o burrinho que é uma rede.
Julião – Comendador, não esteja aí a falar sem ver o animal, venha ver o bicho.
Anastácio – Ora, qual, são uns cavalos cansados que é só vista e nada mais.
Julião – E os seus são só pêlo e lombo e nada mais. É por essas e outras que a raça cavalar está em abandono no país, que o governo não olha seriamente para o importante ramo da zootecnia.
Anastácio – Aí vem o senhor com os seus palavreados. Eu calo-lhe a boca, mostrando-lhe os burros da minha fazenda. Agora digo-lhe também: vá ver os bichos.
Julião – Pois eu vou mostrar-lhe o que é um animal.
Anastácio – Se já o vi, Senhor Julião...
Julião – Espere, espere (Sai a correr e esbarra com Dorotéia que entra)
CENA XIV
Os Mesmos e Dorotéia Dorotéia – Cruz, te arrenego, criatura! Senhor Comendador, desculpe-me, há três meses que meu marido não está em si. São vexames, sobre vexames por que passo.
Anastácio – Parece-me mesmo, Dona Dorotéia, que o Senhor Julião não anda lá muito bom da cabeça. Quando eu entrei, estava ele aqui com um outro moço, cada um montado em sua cadeira, como dois esbaforidos a correrem pela casa.
Dorotéia – O senhor ainda não viu nada! O criado anda num sarilho para dentro e para fora com arreios, selins, cavalos. Estou vendo que acabo também por ficar maluca.
CENA XV
Os Mesmos e Chiquinha Chiquinha (Entrando a toda pressa) – Mamãe, aí vem papai com o cavalo pelo corredor.
Dorotéia – O que estás dizendo, menina?! Anastácio – É verdade, parece-me que ele foi buscar o cavalo. (Ouve-se dentro barulho de patas de cavalo).
CENA XVI
Os Mesmos e Julião Julião (De dentro) – Deixem o animal; não o espantem. (Fazendo com a boca o som de quem chama um cavalo)
Anastácio – Não estou aqui em segurança. (Trepa em cima do sofá). Deixe-me pôr em guarda.
Dorotéia – Seu Julião, tenha juízo. (Ouve-se barulho da queda de trastes). Lá se vai tudo, lá caiu o guarda-louça.
Francisca, sai de detrás desse cavalo, Senhor Comendador, vá ver aquilo. Lá pisou a criança. Lá caiu o papagaio assustado.
Julião – Lá vai ele, Comendador.
Dorotéia – Não entre aqui com o cavalo, Senhor Julião, nós brigamos seriamente.
Julião – Pois levo-o para a estrebaria.
Dorotéia – Por causa daquele cavalo ainda há aqui em casa uma catástrofe!
Anastácio – Eu ainda estou tremendo; querer introduzir um cavalo parelheiro numa sala.
CENA XVII
Julião e os Mesmos Julião (Entrando) – Eu queria mostrar-lhe o que é uma estampa.
Anastácio – Faço idéia, faço idéia. (À parte) Parece-me que o homem vai ter um acesso. (Alto) Com licença. (Quer retirar-se)
Julião – Espere, Comendador, quero ler-lhe uma obra que estou escrevendo sobre o sistema moderno.
CENA XVIII
Os Mesmos, Ernesto e Membros do Clube Jácome Ernesto (Entra correndo) – Cá está o meu diploma. Entrei, entrei para o Clube Jácome.
Membros do Clube – Viva o Clube Jácome! Anastácio (Á parte) – Outros?! Isto é um Hospício de Pedro II. Este é tal da cadeira. Decididamente vou-me embora.
Julião (Abraçando Ernesto) – Meu filho, meu filho.
Chiquinha – Meu pai.
Julião – Toma, Chiquinha; é teu faze-o feliz e que seja bom cavaleiro. Que seja quanto antes, para irmos todos à corrida e me verem lá no Mouro. (Segurando em Anastácio e pulando com ele) Up, up, up... (Entra o criado com uma bota enfiada no braço e põe-se também a pular). Up, up, up.
Membros do Clube – Up, up, up.
Anastácio – Ponham-lhe duchas! Ponham-lhe duchas!
Fonte:
FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José da. Teatro de França Júnior. Rio de Janeiro : Funarte, 1980. p.181-196 :
Entrei para o Clube Jácome. (Clássicos do Teatro Brasileiro).
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Claudia de Moura Leite Ribeiro – São Paulo/SP
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sejam mantidas.