Violeta
I
Um dia, sumiu-se a pequena Eva.
O pobre marceneiro, seu pai, buscou-a.
Tempo perdido, esforço baldado.
Na pequena povoação de ***, em Minas, não houve um recanto aonde não chegassem as investigações do marceneiro em busca da filha.
Depois que se espalhou a noticia do desaparecimento da menina, ninguém se encontrava com outra pessoa que não lhe perguntasse:
- Sabe da Vevinha?...
- Já ia perguntar isso mesmo...
E não se colhia uma informação que desse luz ao negócio.
Uma senhora velha, reumática, de olhos vivos, mas bons, baixinha e regularmente gorda, que vivia, a alguma distância da povoação, roendo o dinheirinho que lhe deixara o defunto marido, muito camarada da pequena Eva, à tia do marceneiro enfim, abalara-se de casa, contra os seus hábitos, e se arrastara a ver o sobrinho na cidade. Soubera da desgraça e, o que mais é, ouvira do seu moleque uma cousa que... devia contar ao sobrinho.
Foi achá-lo na oficina, sentado sobre um banco de carpinteiro, triste, na imobilidade estúpida de uma prostração miserável. As pernas caíam-lhe a prumo, pendentes acima do tapete de fragmentos de madeira raspada pelo cepilho. Um sol desapiedado, das três horas, caía ardente sobre ele e o cercava de uma poeira dourada de faíscas microscópicas, que flutuavam à toa no ar.
O marceneiro não se apercebia disso.
O suor caía-lhe, escorrendo sobre o nariz, e aljofarava-lhe a barba espessa e negra; toda a pele requeimada do rosto parecia desfazer-se em líquido.
Os cabelos escuros e desgrenhados grudavam-se-lhe à testa; a camisa abria-se e mostrava um peito cabeludo e largo, onde sorriam as ondulações da respiração que lhe fazia arfar o ventre. Estava abatido.
Desde as seis horas da manhã até depois do meio-dia não se sentara um instante; não se alimentara. Sofria. Ao levantar-se, vira vazio o leitozinho de Eva. Que fim levara a filha? Nada, nada: era o fruto de todas as pesquisas.
Quando a tia entrou, o marceneiro não o sentiu.
A velha chegou-se para ele e pousou-lhe a mão no ombro.
- Então não me vês? disse. Não me vês, Eduardo!
Eduardo ergueu a face e respondeu-lhe com um olhar dolorido.
A velha teve pena. As lágrimas chegaram às pálpebras. De mais a desgraça a ferira também.
Como não? Era tão boa e tão linda a Vevinha, gostava tanto dela... chamava-a vovó... Que graça nos seus beicinhos vermelhos, alongando-se como em muchocho, para soltar aquelas duas silabas!... A última doçura da vida é o amor da netinha, os seus estouvamentos de passarinho... Faltava-lhe a netinha. A árvore secular sorri, quando nela chilreia uma avezinha;
voa a avezinha e a ramaria toda parece uma carranca... Ela gostava de ter sobre os joelhos a Vevinha, tagarelando. Perdera isso; era tudo.
Entretanto a dor de Eduardo era maior.
O marceneiro era um desses homens que se chamam fortes, porque encobrem com uma serenidade trágica as feridas da dor. Havia menos de um ano morrera-lhe a mulher, uma mocinha bonita, amorosa e trabalhadora. Uma febre a levara da vida. Este golpe foi duro, mas Eduardo o recebeu em pleno peito, olhando de cima para a desgraça. O segundo golpe foi um requinte intolerável.
A velha voltara o rosto e fitava um sujeito a trabalhar num canto da oficina, quase no escuro.
Era o carpinteiro Matias, português de nascimento, e, como sabe o leitor, sócio de Eduardo.
Media com o compasso uma tábua que ia serrar, no momento em que ouviu a estranha frase da tia do sócio. Ergueu a cabeça, descansando o compasso sobre a tábua, e, com a sua cara pálida, de nariz cortante, queixo pequeno e olhos azuis, atirou a Juliana uma risada tossida, implicante.
A velha incomodou-se com isso. Carregou os sobrolhos e, sem mais nem menos, gritou-lhe asperamente:
- De que ri-se?...
Matias começou a serrar a tábua, sem deixar de rir.
A respeitável Juliana fuzilava-o com o olhar. Em seguida curvou-se para o sobrinho e segredou-lhe algumas palavras. Murmurava apenas, mas energicamente, vivamente.
Eduardo ergueu o rosto. Estava transformado. Havia-lhe no semblante um ar de espanto e mesmo certa alegria tímida.
Era como uma fita de céu claro no fundo de um quadro de tempestade.
Esteve alguns segundos absorto, os olhos cravados na tia.
Na sua atitude, parecia apreender as notas de uma harmonia afastada. Mostrava reanimarse. De súbito, exclamou:
- Como sabe, minha tia?...
- O meu moleque viu...
- Será possível?...
- ... Viu...
Ah! se isto é verdade!
- ... O moleque viu...
O carpinteiro Matias deixara o serrote encravado na tábua e, com um sorriso esquisito, olhava para os dous parentes. Por vezes, os lábios se lhe encresparam, como se ele fosse falar.
Hesitou, porém. Afinal, não se contendo mais, adoçou a voz quanto pôde e perguntou:
- Então acharam a Vevinha? Quem furtou?...
- Quem furtou?... Eh.... Sr. Matias... disse Juliana a modo de ironia.
- Por que fala assim, D. Juliana?... Quem a ouvisse diria que fui eu o gatuno. Venha ver a menina aqui no meu bolso...
- Não graceje, Sr. Matias! não me obrigue a soltar a língua...
O senhor mostra o bolso, mas não mostra a... bolsa...
O trocadilho impressionou ao carpinteiro. No seu canto escuro, Matias empalideceu e, para disfarçar, tomou de novo o serrote e pôs-se a trabalhar, sorrindo sem vontade.
Juliana dirigiu o olhar para o sócio do sobrinho, piscando muito, visivelmente enraivecida com o sujeito. Matias não ousava levantar a cara. Sentia o olhar da velha como o dardo de um maçarico, faiscante, ardente, incomodativo.
- Como diabo, dizia de si para si, pôde esta coruja saber?...
E serrava, serrava, para não dar a conhecer o que lhe ia pelo espírito.
Eduardo veio-lhe em socorro. Dirigiu a palavra à tia:
- ... Mas, tia Juliana, disse, eles partiram há três dias...
- Ah, Sr. Matias!... não sei, falava a velha ao carpinteiro, não sei como o Eduardo o atura!...
Olhe que o senhor!...
- Há três dias... repetia o Eduardo, meditando, com a mão sobre o braço da tia, para chamarlhe a atenção..
- Como?... perguntou-lhe esta.
- Não sei como é possível... Eles não estão aqui há... uns três dias já...
- O moleque viu, já ....... reconheceu-os... Eram dons: o Manuel e aquele negro o... Pedro... O
moleque os conhece muito... O tratante não saia do circo... ensaios, espetáculos...
- Ah! exclamou o Matias, os gatunos são da companhia do Rosas!.. Ah! ah!...
- Olhe, Sr. Matias, o senhor... Já não me contenho... ameaçou Juliana...
- Tenha paciência, minha cara, há de concordar... ah! ah! Ora uma companhia de ginásticos furtando uma criança, fraca, imprestável!...
Eduardo refletia, sem dar ouvidos à discussão dos outros.
- Ahn!... Duvida, não é? Pois, ouça!: O meu moleque viu ontem pela meia-noite dois sujeitos receberem um embrulho aqui... aqui nesta porta!... Era um embrulho grande, de panos enleados... O que foi isso? Pela manhã, falta a menina... Então? o que diz? está aí com uma cara de idiota a fingir...
- Veja que a senhora vai se excedendo... observou o carpinteiro mudando repentinamente de modos.
O que está dizendo é um insulto.
- Insulto! Hipócrita, não admite-se que se possa desconfiar do senhor?
Pois olhe! eu desconfio; e, se não vou mais adiante, é porque não tenho outras testemunhas além do moleque...
- Então, cale a boca... Se o seu moleque...
- ... Mas ainda se há de saber de tudo... O Eduardo vai partir, amanhã mesmo, para ***, onde a companhia está agora dando espetáculos... Ele há de achar a Vevinha...
- Parto! parto! gritou Eduardo, interrompendo a tirada de Juliana. Não vou amanhã... Vou partir agora, neste instante!...
Não me demoro nem uma hora!...
Matias fazia coro à parte com sua risada tossida, mordaz, irônica. Eduardo notou-o. Chamou a tia e desapareceu com ela por uma porta que dava para os fundos da loja.
O carpinteiro cuspiu-lhes às costas o seu riso mofador. Passados instantes, meteu a mão no bolso das calças e tirou um maçozinho de notas do tesouro. Examinou-as e guardou-as depois.
- São minhas! murmurou.
Estas não me escapam!... Aqueles idiotas!... Hão de achar... mas há de ser...
E fez um gesto com o punho cerrado.
II
No dia seguinte perguntava-se pelo marceneiro Eduardo. Ninguém o viu na oficina como de costume; lá estava o Matias sozinho. Era uma cousa curiosa. Depois da filha, o pai...
O que teria sucedido?
Que uma criança desapareça de um dia para o outro... vá; mas um homem e que homem, um carpinteiro e que carpinteiro, o Matias!?...
Ainda uma vez surgiu a perspicácia a dar às tontas com a cabeça pelas hipóteses.
Houve alguém bastante ousado para afirmar que suicidara-se o Eduardo. Este boato romanesco não pegou. Um outro espalhado pela velha Juliana surtiu melhor efeito. Ficou estabelecido que o pobre Eduardo caíra doente.
Três dias depois, soube-se a verdade. O marceneiro Eduardo tinha partido. Para onde, não se sabia inda bem ao certo. Falava-se que fora viajar para distrair-se.
- Ele tem seu cobre... pode fazê-lo, diziam as comadres, palestrando sobre o caso.
Juliana, que fizera correr o boato da moléstia do sobrinho, tinha resolvido deixar transparecer o que havia, sem, contudo, dizer claramente os motivos da viagem de Eduardo. Queria apenas saciar a curiosidade pública, que podia comprometer, com o rumo das indagações, o segredo necessário à empresa que se propusera o sobrinho.
Não se tratava de matar a serpente Piton, nem se exigia para a tarefa a robustez dos Hércules.
Eduardo, passada aquela espécie de loucura que o inutilizara por algum tempo, formou pensadamente um plano de descobrir a Vevinha.
Tinha a certeza de que a filha fora roubada pelos saltimbancos. Empregar os recursos legais fora-lhe talvez infrutífero e com certeza dispendioso. Nem todos podem usar dos instrumentos caros. O mais útil, portanto, era entrar em campo ele próprio.
Habilidade não lhe faltava, força de vontade, ele a tinha inexcedível; com alguma paciência e algum dinheiro tudo se havia de levar a cabo.
Convencionou pois com Juliana que deixaria a oficina ao seu sócio, dissolvendo a sociedade;
para a liquidação das contas com o Matias, passaria procuração a um amigo; e partiria a encontrar os saltimbancos, a tomar-lhes a sua Vevinha.
Isto se devia fazer em segredo, a fim de não se prevenirem os criminosos: E fez-se... O
Matias, o único sabedor desses planos, guardou silêncio, e sorria apenas, ironicamente; o leitor depois saberá, porque... Nada transpirou até a revelação de Juliana.
- O Eduardo partiu...
Estava dito tudo. Só queria a curiosidade pública que lhe informassem que fim levara o homem. Os motivos da partida não preocupavam-na muito.
Espalhou-se que o pai da Vevinha fora fazer uma viagem, aconselhado pela tia que, temendo pelo juízo dele, desejava distraí-lo.
Pouco e pouco se foi deixando de falar no acontecimento. Era época de eleições. Os votantes (do antigo regímen) preocuparam a atenção do público. Não se falou mais em Eduardo.
Qual o verdadeiro móvel, porém, da resolução de Juliana? Seria unicamente acalmar aqueles que, não dando crédito à invenção de moléstia, procuravam sequiosamente o marceneiro?
O móvel era este: o segredo absoluto tornara-se cousa inútil.
Juliana recebera uma carta, que damos em seguida, feitas pequenas modificações na forma:
"Querida Juliana."
"Que desgraça! Não encontrei a Vevinha! Os ladrões esconderam-na.
Ah! meu Deus! nunca supus que se sofresse, fora do inferno, dores como as que me afligem neste momento. Não sei como não me lanço ao rio. A água me afogaria, mas ao menos havia, de extinguir o fogo que me desespera o coração...
Não chore, porém, minha tia: a Vevinha não morreu... E é isto que mais me tortura... Eu sei que ela vive e não posso, abraçá-la... Ainda mais, sei que está sofrendo; sei que, neste momento, onde quer que se ache guardada, torcem-lhe os musculosinhos fracos, deslocamlhe os pequeninos ossos.
Querem transformá-la em artista de circo, a custa de martírios. Coitadinha! Tem só cinco anos!...
Oh! eu bem sei qual a vida dessas desgraçadas crianças que se exibem como prodígios para divertir o público. Torcem-nas como varas; pisam-nas como sapos, maltratam-nas, supliciamnas e levam-nas ao circo, os ossos deslocados, as vísceras ofendidas, vivendo de uma lenta morte, as infelizes! a mendigar para si uns aplausos chochos e alguns tostões para os seus algozes.
Desespera-me o pensamento de que nunca mais a pobre Vevinha terá um daqueles sorrisos tão bons que faziam o meu encanto e a alegria de sua vovô...
A pele fina e rosada do seu corpozinho tenro se vai cobrir de vergastadas, de manchas roxas, vai sangrar!... e eu sou forçado a conter-me para não me impossibilitar de salvá-la algum dia, de vingá-la talvez!... Eis porque tenho a covardia egoísta de querer fugir aos meus sofrimentos, matando-me. Que desespero!
Tenho sofrido tanto nestes dois dias, que só hoje consegui arranjar estas linhas para mandarlhe; também só hoje tenho notícias positivas a dar-lhe a meu respeito.
Cheguei a *** às primeiras horas da madrugada. As doze léguas de estrada passaram-me como o raio por sob as patas do pobre cavalo que me tr9uxe. Deu-me cômodo agasalho o teu compadre Fonseca. O bom velho ainda é o mesmo. Levantou-se da cama para me receber e tratou-me como a um filho.
Acabo de entrar para a companhia do Rosas. Meti-me na quadrilha dos ladrões! Custou-me um pouco, mas graças às recomendações do compadre Fonseca que me apresentou ao diretor da companhia como um bom mestre no meu ofício o tal Manuel Rosas admitiu-me como carpinteiro armador do circo, ou, conforme diz-se na companhia factor de circo. Não se ganha muito, porém o dinheiro que recebo é demasiado para o que eu queria fazer dele, esfregá-lo na cara do raptor de minha desgraçada filhinha."