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Textos para uso geral de domínio público.

Um melodrama em Santo Tirso

I
Estou embirrando solenemente com o título do meu romance. Um melodrama em Santo Tirso, numa terra pacífica e bem morigerada, cujos habitantes mais notáveis pela sua respeitabilidade, lêem o Flos Sanctorum, e suspiram pelo tempo dos frades, desses incansáveis moralizadores e bem-feitores da população!
Eu podia inventar um enredo terrível, e tornar editores responsáveis das peripécias mais criminosas do meu entrecho, alguns habitantes de quem eu tivesse tido razão de queixa, quando estive em Santo Tirso (porque eu estive em Santo Tirso, oh! patrícios alfacinhas) mas naquela boa terra não fui ofendido senão pelas pulgas da estalagem, e, a respeito de pulgas, nem mesmo as industriosas são próprias para personagens de melodrama.
Mas eu não quero inventar, quero apenas ser cronista da muito verídica história (chavão infalível) que passo a contar a quem tiver paciência de me ler, e declaro desde já aos Santo Tirsenses que, se os fatos, que historio, têm uma aparência melodramática, a culpa não é minha... é dos acontecimentos.
Anoitecia; a tarde, apesar do outono ir já adiantado (a ação do meu romance passa-se em novembro), tinha estado linda, e até mesmo quente; mas ao pôr do sol levantara-se um vento fino e glacial que ameaçara os prudentes freqüentadores da botica com um dilúvio de catarros e constipações, e os narizes dos veneráveis minhotos, vítimas dum abuso de confiança atmosférico, tinham obrigado os seus donos a procurarem um abrigo nos lares domésticos, para não apanharem o ar úmido da noite, quando, segundo o seu costume, abandonassem o gamão, para voltarem para casa a horas mortas.
A horas mortas?! Sim, não posso deixar de confessar que a perversão dos costumes tinha chegado a Santo Tirso! Uma roda de jovens extravagantes, todos de menos de sessenta anos de idade, haviam instituído, com grave escândalo das pessoas sérias, o costume de se recolherem às dez horas!!! Às dez horas! Às dez horas, raça degenerada! Quando, ao quintal fronteiro à botica, as galinhas se recolhiam à capoeira, não vos parecia ver passar d’envolta com dias as sombras venerandas dos vossos avós, aconselhando-vos o regresso a casa?!
Netos degenerados, as cinzas dos vossos antepassados tremem de indignação, não vos sentindo ressonar às oito horas da noite... Horror!
Fatais conseqüências do progresso! E por toda a parte vai lavrando este contágio funesto.
Tudo está impregnado de imoralidade; a literatura mesmo está viciada. Ó adoradores do passado, compadecei-vos de nós! Atualmente lêem-se os romances de Alexandre Dumas, filho. No vosso tempo lia-se o Cavalheiro de Faublas, e a Justina do Marquês de Sade. Ó tempos felizes d'outrora! Ó moral das passadas eras!
Começo eu a perder-me em digressões. É um defeito, que confesso humildemente; prometo emendar-me dele, e vou entrar imediatamente na minha narração.
Começava pois a anoitecer, quando à porta de uma das melhores casas de Santo Tirso um moço e esbelto oficial de caçadores se apeava de um cavalo, que mereceria uma descrição especial, se o meu protesto de me deixar de digressões não fosse ainda tão recente. Basta dizer-se que o sendeiro de Nicolau Tolentino era um prodígio d'obesidade, comparado com o ente (rebelde a toda a classificação zoológica), em que vinha montado o nosso jovem oficial.
A casa, junto à qual tinha parado o intrépido rocinante daquele D. Quixote arregimentado, tinha uma aparência sedutora para um lisboeta desterrado na província. Via-se que o proprietário atendera às condições de elegância e conforto, quando mandou construir a casa. Duas senhoras novas ainda, sofrivelmente feias, um tanto pardas, e ambas de luneta, adornavam ou desadornavam uma das sacadas. Os sons dum piano desafinado, (como qualquer piano dum terceiro andar da baixa, e tocado com a mestria com que o poderia tocar em Lisboa a menina da casa, filha dum negociante rico, em função de anos com entusiásticos aplausos dos convidados... se o serviço ao chá foi bom) chegaram aos ouvidos do oficial de caçadores, e vieram demonstrar-lhe que os instintos fildesarmônicos da nova geração feminina se revelavam em Santo Tirso com tanto rigor, como na terra das alfaces.
O nosso lisboeta (o rapaz efetivamente era de Lisboa) cumprimentou aqueles dois exemplares do sexo feminino, tirados em papel pardo, e perguntou:
- V. Exas têm a bondade de me dizer se mora aqui o sr. Bernardo da Fonseca Guimarães, antigo negociante?
- Sim, senhor, respondeu uma das interpeladas, é meu pai.
- Nesse caso tem a bondade de lhe dizer que lhe trago uma carta do seu amigo de Lisboa o sr. Antonio Ricardo de Souza.
- Ó paizinho tornou a rapariga, voltando-se para dentro, está aqui um senhor oficial, que o procura.
- Manda subir, Adelaide.
Ao mesmo tempo abriu-se a porta, e o nosso amigo, depois de ter atado à aldrava a rédea do rocinante (o arrieiro chamava-lhe rédea, com o mesmo direito com que o governo chama barão a um lapuz opulento), subiu a escada, no patamar da qual encontrou o nosso Bernardo Guimarães, em chinelos de moiro, na mão um barrete cônico, em forma de apagador, e pronto a receber diplomaticamente a visita inesperada.
- Antão bossenhoria traz-me uma carta do meu amigo Antônio Ricardo? Ora pois, muito estimo, muito estimo. Como está aquele maganão?
- Menos mal!
- Ele dantes padecia muito de calos!
- Ainda hoje.
- Ora bom, entre aqui para a sala... como se chama bossenhoria? Quero apresentá-lo a minhas filhas, a quem dei uma educação, que não a têm melhor as fidalgas de Lisboa! Como é a sua graça?
- Eduardo Augusto d'Almeida Teixeira.
- Vá entrando, vá entrando que eu vou ler a carta do meu Antônio Ricardo.
Eduardo Teixeira entrou na sala, e achou-se em frente das duas pardas, que já tinha visto, e duma terceira, que estava sentada ao piano, bonita falando em absoluto, e formosíssima comparando-a com as outras. Lindos olhos pretos rasgados, um pouco morena, grande a boca, mas não muito desgraciosa, - tal é o retrato da desalmada pianista.
Eduardo cumprimentou-as; elas responderam com um comprimento cerimonioso, e ficaram todos em silêncio.
As raparigas olhavam para Eduardo, como olhariam para um objeto de curiosidade; e o nosso alfacinha, que não gostava de ser contemplado como se fosse um macaco de espécie raríssima, ou um embaixador japonês, entendeu que devia sair daquela posição embaraçosa, lançando mão da primeira banalidade, que lhe ocorresse. Lembrou-se que ao subir a escada tinha ouvido o La dona é mobile desfigurado com a maior bulha possível pela pianista provinciana.
Foi uma idéia salvadora! Eduardo, por conseguinte, puxou os punhos da camisa, torceu o bigode com toda a afabilidade, tossiu agradavelmente, esboçou no sorriso o prólogo de uma fineza, e disse com o tom mais melífluo que pôde encontrar:
- Minha senhora, eu assim que entrei nesta casa, tive uma surpresa muito agradável.
- Sim, então qual foi? tornou a martirizadora de Verdi.
- Ouvi tocar admiravelmente no piano um trecho do Rigoletto.
As três meninas olharam umas para as outras boquiabertas. Finalmente a pianista desfez provisoriamente o ponto d’admiração em que tinha transformado a cara, e exclamou:
- É espantoso! Como conheceu!
- Mas, minha senhora... observou Eduardo.
- Não admira, é de Lisboa, interrompeu uma das pardas.
- Mas, minha senhora... acudiu o lisboeta.
- Freqüenta muito o teatro lírico, tornou a parda n o 2.
- Mas, minha senhora continuou Eduardo já aterrado por aquela insistência.
- Oh! o teatro lírico, acudiu a pianista em tom inspirado, e arregalando muito os olhos, o santuário do prazer. Como deve ser belo! Viu a Lotti, sr. alferes? Tem ouvido o Rigoletto? Como ele conheceu!
Eduardo escandalizou-se; o espantarem-se de que ele conhecesse La dona é mobile era a maior ofensa que se podia fazer aos seus conhecimentos musicais, por isso não pôde deixar de responder:
- Mas, minha senhora, em Lisboa não há um só gaiato, que não conheça este trecho.
- Ah! é vulgar!
- Sim, minha senhora, é do domínio do realejo.
Neste momento entrava na sala o sr. Bernardo Guimarães. Vinha com uma cara prazenteira, óculos no nariz, e sorvendo com delícia uma pitada de simonte.
- Antão já se conhecem, bradou ele, olhem que este senhor é afilhado do nosso Antônio Ricardo. Antão está agora em caçadores 7, e tem licença de um mês? Anda a ver o nosso Minho. Isto para quem em de Lisboa, não tem que ver.
- Ora se tem, sr. Guimarães! é um torrão abençoado. Que deliciosas paisagens, que magníficos panoramas! É realmente uma província muito pitoresca, e muito curiosa até pelas suas recordações históricas. Guimarães possui relíquias arqueológicas importantíssimas, e é pena que as não saibam avaliar devidamente, e que profanem os venerandos monumentos do berço da monarquia, sarapintando de verde e azul, por exemplo, a pia do batismo de D.
Afonso Henrique.
- Ora, não me venha com lérias. Os cônegos fizeram muito bem. Estava a pia suja, que metia medo, e envergonhava a colegiada. Há mais tempo que o deviam ter feito. Vejam como agora está bonita. Ninguém há de dizer que tem oitocentos anos a tal pia. Vão lá adivinhá-lo. Agora nem o mais pintado.
E o bom do negociante confirmava a sua dissertação artística com o silvo estrondoso duma pitada.
- Bossenhoria agora fica conosco alguns dias, tenha paciência. Hei de lhe dar água da fonte da Maria Velha, que tem a virtude de fazer que quem a bebe só com muito custo saia de Santo Tirso. Já tem um quarto preparado, vá descansar um pouco, depois ceia conosco às sete horas, sem cerimônia, sem cerimônia.
- Ó paizinho, observou a mais bonita das filhas, este senhor pode ser que esteja costumado a tomar chá e tostas, veja lá não lhe faça mal cear.
- Oh! não, minha senhora, muitíssimo obrigado; o meu estômago é duma flexibilidade espantosa, presta-se a todos os usos gastronômicos das diferentes terras. Isto para um militar é essencial.
- Bem dito, bem dito, tornou o sr. Bernardo, até daqui a pedaço, hein?
- Até já, minhas senhoras; um criado de Vv. Exas.
E Eduardo Teixeira saiu da sala, guiado pelo seu hospedeiro.
II
Vamos nós, amigo leitor, assistir à ceia do sr. Bernardo Guimarães. O digno negociante não se deve zangar conosco; eu pelo menos vou com o propósito firme de não lhe aceitar coisa alguma; porque ao amaldiçoado caldo verde, e ao detestável vinho verde tenho um ódio particular. Venho simplesmente, como grande curioso que sou, espreitar o aspecto da mesa, e ver se pesco a conversa dos convivas que deve estar interessante.
Ao pé do respeitável sr. Bernardo, está sentado o nosso alferes de caçadores, a cair de sono, segundo parece; porque as pálpebras cercam-se-lhe a miúdo, e os bocejos, apesar dos esforços incríveis que faz para os reprimir, tornam-se cada vez mais freqüentes.
À esquerda do nosso Eduardo Teixeira senta-se a veneranda metade do venerando Bernardo. Cinqüenta vezes tem florido a amendoeira desde, que Santo Tirso teve a glória de produzir um dos mais feios espécimes da fealdade humana. Apesar disso, rosnavam os maldizentes que um certo mestre de meninos da vila se encarregara do papel de Cireneu, que ajudasse o sr. Bernardo a levar aquela cruz desdentada ao Calvário matrimonial. Línguas danadas, que não poupam nem a virtude... nem os mestres de meninos.
Defronte estava sentado o sobredito sr. Temudo (que este era o nome do chichisbeo) homem rubicundo, e de proporções hercúleas, capaz de levar trinta cruzes principalmente carunchosas como aquela, ao gólgota mais elevado.
Este senhor estava flanqueado pelas três meninas da casa, e felizmente para o equilíbrio gastronômico, ficava ele desse lado da mesa, porque as filhas do negociante, donzelas vaporosas e ideais, achavam feio comer diante de gente; mas o nosso amigo tratava com muito cuidado do seu estômago, do coração de D. Belisária Guimarães, e da cabeça do exnegociante, porque comia como quatro, deitava olhos ternos à respeitável matrona, e aconselhava o uso do chinó ao marido, que se queixava de freqüentes constipações na cabeça.
No momento em que eu e o leitor começamos a espreitar aquela cena doméstica, tinha um formidável prato de arroz doce entrado em cena, e o nosso Eduardo Teixeira, apreciador desses doçuras gastronômicas, atacava-o com um denodo, que honrava sobremaneira o valor do seu... apetite.
As meninas da casa entretanto apoquentavam-no com perguntas acerca de Lisboa, do casamento do rei, dos teatros, dos literatos, enfim, de todas as casas da capital, desse eldorado das donzelas pretensiosas das províncias.
- Então, diga-me uma coisa, sr. Teixeira, como ia vestida a rainha no dia do casamento?
Eduardo, que em questões de toilettes femininos era perfeitamente um selvagem, e que demais estava saboreando com delícias uma colher d'arroz doce, respondeu com toda a serenidade:
- Ia vestida de verde, branco e escarlate.
- Uma noiva!
- Sim, minha senhora, trajava as cores italianas, para mostrar o afeto que tem à sua pátria!
- Mas os jornais não falavam em tal coisa!
- Ora, os jornais sabem lá o que dizem, - respondeu Eduardo cortando com a colher a questão, e um castelo d'arroz doce, que se formara ao canto do prato, - os jornais estão sempre pessimamente informados.
Ninguém ousou replicar; falara o oráculo lisbonense, emudeciam os profanos da província.
- O sr. Eduardo, exclamou a menina Adelaide, que era uma das pardas, já leu o D. Jaime?
- Já, sim, minha senhora; V. Exa também o leu, segundo vejo. É um bonito poema.
- O que é isso do D. Jaime? perguntou o sr. Bernardo.
- O meu amigo nunca leu aquela sandice, observou o mestre de meninos em tom... de mestre de meninos, fez bem, fez bem; é um péssimo livro; tem um erro de gramática, e meia cacofonia; e de mais a mais é revoltantemente imoral, acrescentou ele, lançando um olhar terno para a mulher do seu amigo.
- O sr. Temudo deve ser muito entusiasta da História da Imperatriz Porcina, observou Eduardo com a maior gravidade.
- Não desgosto, não desgosto; mas lá o D. Jaime, não presta para nada; e aquele pateta do Castilho a elogiá-lo... Ora o Castilho sempre é homem, que quer ensinar as crianças com um método racional! Como se, para ensinar meninos, fosse necessário ser racional! Aqui estou eu para prova do contrário. Ensino os pequenos com a cartilha do mestre Inácio, e no fim de quatro anos estão prontos. Eu cá sou assim.
- Diga-me uma coisa, sr. Teixeira, conhece o Thomaz Ribeiro? perguntou a pianista.
- Se conheço o Thomaz Ribeiro? Perfeitamente, minha senhora, tornou Eduardo, que tinha adormecido quase, ouvindo o discurso do sr. Temudo.
- Então diga-nos como é a fisionomia do poeta?
- Cabelos louros e olhos azuis.
- Ah! Também?!
- Também, sim, minha senhora, estatura ordinária e boca regular!
- E o nariz, e o nariz?
- O nariz, tornou Eduardo surpreendido em flagrante delito de contemplação diante dum copo de vinho do Porto, que estava observando à luz; o nariz arrebitado!
- Arrebitado, tornaram as raparigas em coro, e depois, voltando-se umas para as outras acrescentaram em reza-voce: O autor das Cenas da Minha Terra tem o nariz arrebitado!
- Já se vê, minhas senhoras, observou Eduardo, nariz de folhetinista! Todos os folhetinistas têm o nariz arrebitado!
- Ora essa, então a mana Emília, respondeu uma das pardas apontando para a pianista, a mana Emília deve escrever folhetins, tem o nariz arrebitado.
- Exatamente, minha senhora, se tivesse o nariz aquilino, aconselha-lhe que escrevesse poemas épicos, ou tragédias de cinco atos!
Eduardo, julgando-se livre de interrogatórios, dispunha-se a pedir licença para se retirar, quando a mana Emília acrescentou:
- Gostou do Prato d’arroz doce?
- Muito, minha senhora, os ovos estavam em muito boa conta, açúcar magistralmente distribuído, e a canela dizia-lhe muito bem!
- Mas eu falo do romance do Antônio Augusto.
- Ah! O romance está muito bem escrito, é uma bela obra!
- Conhece o Teixeira de Vasconcellos!
- Ora essa, nisso nem se fala... sou íntimo amigo dele. Inda V. Exa me pergunta se conheço o Teixeira de Vasconcelos!
- Descreva-nos lá a cara dele. Nós temos muita curiosidade de conhecer a fisionomia dos literatos notáveis!
- Oh! o Antônio Augusto! Tem cabelos louros e olhos azuis!
- Então todos os literatos de Lisboa têm cabelos louros e olhos azuis?
- Todos, minha senhora, excetuando os ultra-românticos, que esses têm olhos verdes. e cabelo ruivo, e se me dão licença, minhas senhoras, retiro-me; porque estou caindo de sono e de cansaço.
E saiu, deixando ficar os seus hospedeiros, como se vê, perfeitamente conhecedores da fisionomia dos literatos lisbonenses.
III
No dia seguinte acordou Eduardo sobressaltado, ouvindo o piano revoltar-se em guinchos desafinados contra os incríveis tormentos com que uma das meninas martirizava o inofensivo teclado.
Eduardo julgou que seria pelo menos meio dia; saltou fora da cama, e correu à janela. Um nevoeiro densíssimo não deixava calcular as horas pela altura do sol. O nosso alferes tinha vindo na véspera com tanto sono, que nem reparara que havia um relógio em cima da mesa;
quando voltava da janela, deu com ele, e viu que ainda não eram oito horas!
Com efeito, pouco depois da aurora ter vindo abrir com os dedos rosados as portas do Oriente, viera a menina Feliciana (parda n o 2) abrir o piano com os dedos cor de cobre, e sobressaltar Eduardo com aquela desafinação matutina.
O nosso herói arranjou-se à pressa, e abriu a porta do quarto. Apenas o ex-negociante o sentiu, veio ter com ele rindo muito.
- Ora viva o nosso mandrião; vá almoçar, ande que lá tem guardado o almoço. Como passou a noite?
- Perfeitamente; eu peço mil desculpas do incômodo involuntário que lhe dei; mas vinha tão cansado e com tanto sono, que, por melhores tenções que formasse, não consegui levantarme a horas, mas protesto que será a última vez, que isto me há de suceder.
- Nada... não incomoda, vá almoçar, ande, e volte depois para a sala ouvir as pequenas tocar piano.
Quando daí a dez minutos o nosso herói fez a sua entrada na sala, a menina Emília, que estava sentada junto à janela em atitude melancólica e romanticamente cismadora, cumprimentou-o suspirando plangentemente; a menina Adelaide fez esforços incríveis para substituir a camada de sécia que lhe cobria as faces, pela camada carmínica indicativa de modéstia; e a menina Feliciana, sacerdotisa do deus Charivari, sacrificou o Míserere do Trovador, para solenizar a entrada de Eduardo Teixeira.
O sr. Bernardo, querendo mostrar ao seu hóspede, que conhecia perfeitamente a música que a filha estava tocando, assobiava ingenuamente o Pirolito. Eduardo, muito longe de supor que aquilo era música de Verdi, inclinava-se para a interpretação musical do honrado negociante.
O nosso alferes foi postar-se ao pé da menina Emília, ouviu primeiro em silêncio o pseudoMiserere, e depois, inclinando-se para a provinciana, que suspirava amiudadamente, disselhe a meia voz:
- Está hoje um dia triste, não acha, minha senhora?
- Ah! Não me fale nisso; dias assim esmagam-me o coração. Estes dias chubosos são horríveis para os sofrimentos interiores!
- V. Exa padece do interior... azias de estômago, talvez?!
- Ah! não, senhor, sou excessivamente nerbosa; o espírito domina o que há em mim de material!
- Há-de-lhe fazer muito mal o café, minha senhora, aconselho-lhe os banhos do mar.
- Para os sofrimentos da alma não tem a medicina valsamos, respondeu a provinciana suspirando ruidosamente.
- Na sua idade, minha senhora, tornou Eduardo, vendo que não havia remédio senão afinar a conversa no tom de Emília, na sua idade, só uma paixão infeliz produz grandes infortúnios.
Ora V. Exa pode inspirar, mas não sentir uma paixão infeliz, não julgo os santo-thyrsenses tão falsos de gosto, que algum deles recusasse a felicidade invejada por todos. Só se a morte lhe veio truncar nas primeiras páginas algum romance da juventude...
E Eduardo, ufano (com razão) do romanticismo da sua linguagem, recostou-se na cadeira com gravidade igual à dum ilustre orador, que ao acabar um discurso monumental acerca do sino da sua paróquia, é cumprimentado por vários senhores deputados de todos os lados da câmara, e de todas as cores políticas.
- Oh! mas ver as ilusões desfolharem-se pouco a pouco, observou a Sra D. Emília, e ver trocar-se o amor ideal, que sonhamos, pela vil realidade deste mundo prosaico... é atroz, não é?
- Sofrer tormentos horríveis... eis a fatal predestinação das almas privilegiadas, tornou Eduardo, abanando a cabeça lugubremente.
- Diz bem, diz. Ah! não encontrar eu no mundo uma alma irmã da minha, que compreenda e avalie o meu afeto! Oh!
-Ih! que massadora, disse Eduardo com os seus botões; tem curso completo de romances sentimentais. E o caso é que não é feia. Vou-me propor a candidato ao trono do seu afeto.
- Ó Feliciana, dizia entretanto o sr. Bernardo à menina que tocava piano, toca-me aquele bocadinho do Ernani, de que eu gosto tanto.
- Qual é?
O ilustre Bernardo começou a assobiar a Maria Cachucha aproximadamente.
- Ah! já sei, É a cabatina do soprano. Já toco.
- Eu, minha senhora, dizia Eduardo em voz cavernosa à sua interlocutora, também por muito tempo vaguei errante no mundo, sem encontrar a mulher que a Providência me destinava, aquela que devia realizar os sonhos mais arrojados da minha fantasia. Nenhuma compreendeu o amor santo e puro que eu lhe queria ofertar... escarneceram-me e passaram.
- Isto não vai mau, dizia ele lá de si para si; mas eu daqui a pedaço engasgo-mo. - Sim, minha senhora, continuava Eduardo entusiasmando-se, só agora posso dizer: Eureka! achei no mundo o anjo que eu sonhava... achei... sim, encontrei... sim, minha senhora, quero dizer que simpatizei com V. Exa desde que a vi, e que serei o mais feliz dos homens, se corresponder ao meu ardente amor. - Lá estraguei o efeito, concluiu ele em aparte, parece-me que este final é do Secretário dos Amantes.
- Eu, sr. Teixeira, respondeu a menina, procurando corar, eu aceitaria o seu amor, mas os homens são tão lisonjeiros..
- Eu sou uma exceção, creia, minha senhora...
- A mim agradam-me os seus sentimentos, e simpatizei com o senhor também, logo que o vi;
mas...
- O Emiliazinha, bradou o negociante, vem tocar também.
- Lá vou, paizinho. - CaIe-se, continuou ela, dirigindo-se a Eduardo.
- Mas eu desejava tanto falar-lhe mais em particular...
- Pois sim, logo às onze horas da noite, desça ao quintal, que eu lhe falo da janela do meu quarto; que deita para lá.
- Oh! quanto lhe agradeço!
- Silêncio!
- Então, que lhe parecem as pianistas, exclamou o sr. Bernardo, sorvendo uma pitada, há-as melhores em Lisboa?
- Qual historia! Suas filhas tocam admiravelmente! Se as levasse à Lisboa, haviam de ser muito admiradas.
- À Lisboa? Nada, isso é muito longe, lá esteve agora o meu Dionísio; por sinal que há de estar a chegar. Ele é rapaz, pode ir; mas eu e a minha Belizária, já estamos velhos para essas danças.
- É verdade, o mano Dionísio temo-lo cá um dia destes...- muito se divertiu ele por lá provavelmente, observou a menina Adelaide com um suspiro.
- Deus queira que o Dionísio se não esqueça de me trazer a música, que lhe pedi. Ó sr.
Eduardo quer ouvir a ária final da Lucia? perguntou a romântica Emília.
- Pois não, minha senhora, com todo o gosto, respondeu Eduardo aproximando-se do piano.
- Como a música exprime bem os sentimentos da alma! observou Emília, quando o viu sentado ao pé de si - eu adoro as músicas tristes!
- Também eu, minha senhora, também eu.
- Acho prazer em derramar lágrimas, quando ouço algum trecho patético.
- Também eu, minha senhora, também eu.
- Que doce conformidade de sentimentos!
- Também eu, minha senhora, também eu, tornou Eduardo distraidamente.
- Que diz?
- Que também me enleva, emendou ele, essa conformidade de sentimentos. Estou ansioso por ouvir a Lucia.
Neste ponto vejo-me obrigado a estigmatizar o meu herói. Tornou-se cúmplice de um assassínio. Para se salvar da entalação, em que a sua distração o tinha colocado, sacrificou Donizetti, e a sua ópera magistral. É imperdoável!
Quando o crime de lesa-harmonia se consumou, e foi devidamente aplaudido por todos os circunstantes, o nosso Bernardo Guimarães, dirigindo-se ao moço alferes, convidou-o a ir dar um giro pela vila. Eduardo aceitou o convite com o entusiasmo que os seus ouvidos magoados lhe inspiravam.
E, depois de ter trocado um olhar amoroso com a romântica donzela, saiu para ir admirar a vila de Santo Tirso, e o seu convento.
Nessa mesma noite, pouco depois das onze horas, estava Eduardo Teixeira colocado no quintal da casa do sr. Guimarães, ao pé de uma janela pouco elevada, janela que servia de tribuna, onde a jovem provinciana, declamava enfaticamente os seus discursos sentimentais.
Infelizmente para a romântica oradora, a noite estava fria e úmida, o que tinha por tal forma congelado a pouca dose de sentimentalismo, de que Eduardo podia dispor, que respondia a uns protestos d'amor ardentes, com uns queixumes sobre a frialdade dos pés, e a um trecho sublime acerca da lua argêntea, da rainha da noite, com um espirro acompanhado por uma dissertação científica sobre o perigo das constipações desprezadas.
Estavam pois aqueles dois entes poéticos embebidos em tão suaves colóquios quando de repente no quintal se sentiram passos apressados.
- Que será? bradou Emília bastante assustada, retira-se depressa, não quero que ninguém o veja aqui.
- Nesse caso é impossível safar-me, porque estão interceptadas as comunicações!
- Mas como há de ser isto, meu Deus!
- Como quem quer que for não se dirige ao seu quarto, conceda-me V. Exa por um instante licença que me esconda nele, porque lhe dou a minha palavra de honra, que saio, apenas o perigo tenha cessado.
E, juntando a ação à palavra, Eduardo lançou as mãos ao parapeito da janela, e num pulo se achou dentro do quarto.
Com grande espanto dos dois, um outro vulto apareceu junto da janela, e, repetindo a manobra de Eduardo, entrou logo atrás dele no quarto da Sra D. Emília Guimarães.
- Dionísio! bradou aterrada a romântica donzela.
- Querem ver que é o irmão, murmurou Eduardo.
- Enbiou-me a Probidência, regongou o recém-chegado com entonação irrepreensivelmente melodramática, é grande o crime, Sra D. Emília da Fonseca Guimarães; a vingança há de ser tremenda, senhor desconhecido!
IV
Os meus leitores, se forem imparciais, hão de confessar, que nunca leram cena de tanto efeito, nem de interesse tão palpitante.
O sr. Dionísio, tirano interino, tipo de janota portoense (vide romances de Camilo Castelo Branco) vinha embuçado num capote de camelão. Ora sabido é, que todos os embuçados, mesmo em chales-mantas, são terríveis; mas os embuçados em capotes de camelão atingem as raias da sublimidade melodramática!
A vítima masculina é Eduardo Teixeira, que um defluxo, complicado por uma grande frialdade de pés, torna duplamente interessante aos olhos de todos os leitores compassivos.
A vítima feminina é D. Emília Guimarães, a qual, compreendendo a situação num abrir e fechar d'olhos, elevou-se rapidamente à altura do seu papel, caindo artisticamente em cima duma poltrona, à falta de confidente, a quem dissesse como nas tragédias clássicas:
Desmaiar vou! Recebe-me em teus braços.
- Então quem é bossenhoria? Que fazia o senhor neste quarto? perguntou o Sr. Dionísio, tirando o chapéu desabado dom gesto majestoso, e armando-se de luneta, à falta de punhal.
- Eu... senhor... eu, tornou Eduardo, convencido que era o irmão, e cônscio por conseguinte do direito que ele tinha para fazer a pergunta.
- Dionísio, juro-te que sou inocente, exclamou a menina Emília, levantando-se rapidamente, e correndo a ajoelhar-se aos pés do homem de capote de camelão, acredita-me Dionísio.
- Levantai-vos, senhora, vós não sois culpada; mas o infame sedutor.
- Oh! senhor eu não seduzi ninguém.
- Calai-vos.
- Dionísio, peço-te justiça, e não indulgência. Eu não traí os meus deveres, juro-o perante o céu, que estende sobre as nossas cabeças o seu manto azul, puro como a minha alma.
Exageração de metáfora. Sobre as suas cabeças estava apenas o teto, que nem era azul, nem puro; porque estava muito sujo das moscas.
- Pode acreditar o que sua irmã lhe diz, atalhou Eduardo, posso asseverar-lho debaixo da minha palavra de honra.
- Minha irmã? As filhas da casa de Val-de-Camellos portam-se dum modo mui diferente do desta menina, indigna mesmo de ostentar o nome honrado de seu pai, o sr. Bernardo Guimarães.
- Não lhe admito mais insultos, sr. Dionísio Antunes de Val-de-Camellos, tenho a honra de lhe apresentar meu marido, o sr. Eduardo Augusto d'Almeida Teixeira.
- Perdão, perdão, minha senhora, interrompeu com vivacidade o moço alferes, eu não hesitaria um momento em a chamar minha esposa, se devesse a V. Exa. uma reparação, mas não há coisa alguma que a isso se assemelhe, e, visto este senhor não ser seu irmão, vou ter com ele uma explicação mais corrente. Direi pois ao sr. Dionísio de Val-de-Camellos, que está perfeitamente equivocado a meu respeito. Esta senhora lhe explicará, se a isso quiser descer, o modo porque entrei no quarto dela. Poder-lhe-ia eu perguntar também o motivo porque veio cá meter o nariz. Contudo, dir-lhe-ei unicamente que não tenho que lhe dar satisfações, a não ser num sítio mais conveniente do que este a explicações da natureza, das que hão de ter lugar entre nós. O modo insolente com que me tratou a princípio, merece um a correção, e há de tê-la. Estou às suas ordens.
- Um duelo, e por minha causa, bradou Emília, despenteando-se e procurando arranjar um olhar desvairado, oh! não façais com que o sangue venha manchar as minhas vestes virginais.
- Vamos embora, sr. Dionísio.
- Vamos lá, respondeu o homem de capote de camelão, em tom um pouco menos arrogante.
- Suspendei! Dionísio, Sr. Eduardo, horror! Meu Deus, valei-me!
E desmaiou.
“Bravo!” - diria um espectador do teatro normal, entusiasta da Dama de S. Tropez.
Eu e o leitor aplaudimos silenciosamente, e vamos seguir os nossos dois heróis, que saíram pela janela, perdendo-se assim todo o efeito de uma saída solene pela porta de fundo, cujos batentes de papelão se abrissem de par em par.
Dionísio e Eduardo atravessaram o quintal silenciosos; chegando a uma portinha que deitava para a estrada, o Sr. de Val-de-Camellos tirou uma chave que trazia na algibeira, abriu a porta, e os dois contendores saíram.
- O sangue de um de nós há de ser hoje derramado, vociferou o ilustre janota do Porto, com tétrica entonação.
- Está dito; mas, a propósito, parece-me que não temos remédio senão jogar o soco; porque não temos armas, nem padrinhos, de sorte que o nosso duelo tem todas as condições d'irregularidade.
- Ora diga-me uma coisa, tornou Dionísio, descendo das regiões melodramáticas ao terreno das explicações prosaicas, isto não se poderia conciliar amigavelmente?
- Oh! homem, isso é impossível, o senhor descompôs-me atrozmente, abusando da identidade do seu nome com o do irmão d'Emília, e realmente eu não vim ao Minho para receber descomposturas.
- Oh! senhor, tenha paciência, a Emília gosta dessas cousas, e eu não tive remédio senão fazer aquela cena. Eu não tinha intenção ofensiva. Mas que relações tem o senhor com a rapariga?
- Um simples namorico.
- Olhe; tornou Dionísio coçando a cabeça, a D. Emília Guimarães é uma senhora muito estimável.
- Não duvido.
- Muito prendada!
- Apoiado.
- Formosíssima, continuou o sr. de Val-de-Camellos animando-se pouco a pouco.
- Pois não!
- Espirituosa! bradou o homem encaixando a luneta majestosamente no rubicundo nariz.
- Oh!
- Senhora, a quem amo delirantemente!
- Muitos parabéns, sr. Dionísio, muitos parabéns!
- Única mulher, que me pode tornar feliz.
- Oh! sr. Dionísio, não me comova!
- Adoro-a, senhor, adoro-a corno a uma estrela, que reluz nas trevas do meu viver.
- Bravo, ia-me arrancando lágrimas.
- E tem um dote de vinte contos de réis! concluiu o homem do capote de camelão com sublime expressão d'entusiasmo.
- Muito bem, sr. Dionísio, muito bem. Permita-me que o abrace. Que rasgos de sentimento!
Comoveu-me profundamente. Foi o coração quem lhe ditou essas frases entusiásticas. Esse argumento dos vinte contos revela claramente a pureza dos seus sentimentos. Ó patriarcal Dionísio, cedo-vos Emília. Não serei eu quem vá perturbar a felicidade conjugal, tão solidamente baseada. O amor, fugindo das grandes cidades, vem, segundo vejo, aninhar-se à sombra de vinte contos nos corações desinteressados dos jovens provincianos. Sr. Dionísio Antunes de Val-de-Camellos, não servirei de obstáculo à sua felicidade. Adeus, seja venturoso!
- Oh! muito obrigado, generoso desconhecido! volveu Dionísio, que estava decididamente infectado de romanticismo sombrio.
- Amanhã parto para o Porto. Deixo-lhe o campo livre.
- Espero que me perdoe a involuntária ofensa.
- Não falemos nisso. O que lá vai, lá vai. Adeus.
- Adeus. Disponha do meu fraco préstimo.
Se os nossos dois amigos estivessem em Lisboa, tinham ido juntos a uma ceia no Mata, ceia, que (se eles fossem bem conhecedores dos costumes portugueses em matéria de duelo)
deveriam ter encomendado antes do desafio.
Assim, Dionísio embuçou-se simplesmente no capote de camelão, e voltou para a cama, onde ressonou pacificamente o resto da noite, sonhando que tinha comprado, com o dote de Emília, uma junta de bois, e dois pedaços de terra, em que semeara milho, obtendo uma colheita formidável, e granjeando deste modo tal consideração em Santo Tirso, que tinha sido nomeado por unanimidade de votos... juiz eleito.
Eduardo meteu-se na cama, aqueceu os pés, transpirou muito, e no outro dia estava quase livre do defluxo teimoso, que o apoquentara tanto.
Apesar de ter tido a felicidade de se curar com rapidez, o nosso alferes, que era um rapaz prudente, jurou nunca mais ter namoro com raparigas românticas em noites de novembro!
V
Ainda que as intenções madrugadoras de Eduardo Teixeira fossem as mais sinceras deste mundo, passou segunda vez pelo desgosto de não assistir ao almoço da família. O nosso alferes chegou a convencer-se de que o almoços em Santo Tirso, como a tremenda nos conventos dos monges negros, era lá por alta noite.
Quando entrou na sala achou a menina Emília sozinha sentada ao piano. O vestido branco, que tinha envergado apesar do intenso frio, o cabelo muito de propósito em desalinho, as olheiras, que suponho tinham origem idêntica à das do Silvestre da Silva, de Camilo Castelo Branco, mostravam que Emília se tinha caracterizado convenientemente para representar a última cena de um melodrama.
Quando viu Eduardo, levantou-se, e caminhou a encontrá-lo, hirta e vagarosa. O jovem oficial estacou à porta pasmado.
- Qual dos dois morreu? perguntou ela solene e lugubremente.
- Fui eu, minha senhora Seguiu-se um curto silencio.
- O senhor está zombando de mim? tornou Emília.
- Não, minha senhora, estou respondendo à pergunta de V. Exa. Com efeito, morri para o seu amor, Sra D. Emília. Interroguei o meu coração, achei-o frio demais para sentir uma dessas paixões ardentes, que V. Exa deve inspirar. Não acontece o mesmo com Dionísio. Minha senhora, vim descobrir um vulcão em Santo Tirso, desmentindo por esta forma a geografia.
Esse Vesúvio desconhecido é o coração do Sr. de Val-de-Camelos... Ontem os discursos de Dionísio, se não me aqueceram os pés, que tinha muito frios, como V. Exa sabe, pelo menos aqueceram-me... o coração. Na lava candente, que brotou espontânea do peito daquele jovem, acendi eu o lume pronto da generosidade. Entendi que devia aconselhá-la a visitar essa cratera de paixão. Asseguro-lhe que se há de abrasar. Digo-lho eu.
- Não zombe tanto de mim, sr. Eduardo. Se tive ligeiro namoro com esse rapaz, o amor verdadeiro, que sinto agora, dissipou completamente esse frívolo galanteio.
- Mas, minha senhora, V. Exa deve fazer a felicidade dum Dionísio. Atenda, por amor de Deus, à influência dos nomes nos destinos dos indivíduos. O nome de Dionísio dá logo a conhecer que o possuidor deve ter um caráter patriarcal. Ora casem, casem, meus pombinhos, tenham muitos filhos, e sejam muito felizes.
- Assim me despreza, sabendo que o amo!
- Não, minha senhora, não creia tal. Hei de ser sempre o maior dos seus admiradores.
- E mais nada?
- E de V. Exa o mais atento venerador.
- Ingrato, pérfido! Disse-lhe que o amava, menti-lhe, detesto-o!
E a romântica menina ia aproveitar a situação, e a proximidade duma poltrona para desmaiar, quando felizmente entraram as duas manas.
Acabados os comprimentos preliminares:
- Que pena tenho, minhas senhoras, de as ter conhecido, disse Eduardo; os momentos deliciosos, que aqui passei, servem apenas para tornar mais pungente a saudade, que me vai atormentar.
- Por que, deixa-nos? bradaram em coro as três provincianas.
- Sim, minhas senhoras, recebi ontem notícia de ter obtido passagem para um regimento da capital, de forma que hoje mesmo tenciono partir para o Porto.
- Partir, quem fala aqui em partir? bradou o sr. Bernardo que entrava nesse instante.
- Eu, sr. Guimarães, replicou Eduardo, que, depois de lhe agradecer imenso o modo amabilíssimo com que me recebeu, lhe peço agora as suas ordens para o Porto e para Lisboa.
- Mas por que não se demora pelo menos alguns dias?
- Sou militar, sr. Guimarães, e devo cumprir à risca a ordem que recebi.
- Esta é que eu não esperava!
- Ingrato, e eu amava-o tanto, murmurou Emília, recostando-se na poltrona.
- Então, minha senhora, cá fica Dionísio para a consolar. É um belo rapaz, dum caráter excelente, e com alguma aplicação pode-se tornar-se um herói de romance. Dê-lhe V. Exa vinagre todos os dias, e receite-lhe uma dose forte de Visconde d'Arlincourti e verá como faz do sr. de Val-de-Camellos um rapaz ideal. Vou para Lisboa formar votos pela sua felicidade.
........................
Nessa mesma tarde, Eduardo Teixeira empoleirado no seu fiel rocinante, dizia adeus a Santo Tirso, depois de ter aturado uma cena patética de despedida, tal como a poderia imaginar o mais lamuriento autor de melodramas.
O sr. Dionísio Antunes de Val-de-Camelos, veio com grato coração, e com um jumento chibante, em que montara, acompanhar o nosso herói à Travage; onde se despedia de Eduardo, protestando-lhe eterno agradecimento, e amizade constante.
Dionísio Antunes continua serenamente o namoro com Emília, sujeitando-se contudo a uma dieta rigorosa, a ver se abate um pouco a sua nutrição anti-romântica.
O sr. Temudo cada vez embirra mais com o D. Jaime; e quando, em doces colóquios amorosos com D. Belizária Guimarães, interrompe a conversação íntima para falar da depravação do século, cita o enredo do D. Jaime, e vela o rosto pudicamente com uma toalha de mãos. Belizária sorve com indignação uma pitada de simonte.
Eduardo Teixeira, diz-nos pessoa fidedigna, que passa bem de saúde, sendo contudo muito sujeito a ataques de nervos, que o assaltam sempre que ouve... um piano!...
FIM


Domínio Público Gov.BR


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