Os romances da semana
AOS LEITORES
Reunindo em um volume estes ligeiros romances, todos escriptos ao correr da penna, e já publicados na Semana e na Chronica da Semana do Jornal do Commercio, não me seduz a esperança de merecer por isso os applausos e o louvor do publico.
Sou o primeiro a reconhecer a falta de merecimento, a pobreza de acção, e os descuidos e desmazelo de estylo que aniesquinhão estes pobres romances que improvisei.
Comprehendo que com. o mais seguro fundamento poderia alguém observar-me que, pensando eu assim, a razão devia ter-me aconselhado a não arrancar do esquecimento esses — VI —
escriptos sem merito, que não estavão no caso de apparecer á luz da imprensa.
Concordo plenamente com a observação.
Mas... um autor é como um pai: um pai não desama seus filhos ainda os mais feios : um autor não desama as suas obras ainda as mais defeituosas.
Demais, não brigarei com os criticos, e ainda menos me queixarei do publico por amor deste livrinho.
Cheguemos todos a um accordo a respeito delle.
Sabe-se que os artigos de Jornaes participão um pouco da condição dos ephemeros : ficão esquecidos, e morrem portanto um dia depois de serem dados á luz..
Estes romances forão publicados em artigos do Jornal do Commercio, e por consequencia um dia depois o publico os esqueceu e os deixou morrer da fatal molestia que persegue o Jornalismo.
Que póde fazer um pai a seus filhos mortos ?...
ajuntar-lhes os restos para guardal-os em uma urna, que sirva de consolação ao seu amor.
Pois bem : assentemos e concordemos todos em que este livro é a urna, em que determinei guardar estes pobres romances que morrerão.
Deste modo ganho sempre alguma cousa, — VII —
porque ficarei livre dos criticos que hão de respeitar o parce sepultis.
E como é de regra que toda a urna deste genero tenha o seu epitaphio, darei por epitaphio a esta o titulo Romances da Semana, titulo que se explica pelo facto de terem sido, como já disse, todos estes romances publicados na Semana e na Chronica da Semana do Jornal do Commercio.
A BOLSA DE SEDA
INTRODUCÇAO
O tremendo flagello da Asia que, ainda não ha muito annos, Eugênio Sue, personificando-o em uma personagem biblica, pintou estendendo debalde os braços para a America, pois que não podia vencer de um salto o estreito de Bhering, arrojou-se atravez do oceano Atlantico, e desmentindo a imagem do romancista, invadio com horrivel violencia o Impéerio do Brazil.
Em 1855 o cholera-morbus enchia de luto e lagrimas a cidade de Rio de Janeiro; então porém a população illustrou-se por uma firmeza que lhe foi proveitosa e lhe fez honra, e em vez de mostrar-se abatida pelo terror, soube — 4 —
engrandecer-se pela constancia e pela coragem.
A peste flagellava especialmente as classes mais pobres : onde havia miseria se ia encontrar a morte. Esta observação foi como um grito doloroso que despertou a caridade publica, e nunca esta santa virtude se demonstrou mais viva e brilhante.
Todos á porfia corrião a soccorrer os infelizes atacados pelo cholera: multiplicárão-se os hospitaes, as enfermarias, sobrarão os donativos e abundou o ouro para mitigar os soffrimentos da indigencia.
E o empenho da caridade foi tal, que levou-se até á exageração essa sublime virtude, que uma ou outra vez perdeu o seu caracter pela ostentação e pelo luxo com que foi por alguns praticada.
Foi esta consideração que deu motivo ao brevissimo romance, a que dei o titulo de —
Boísa de Seda — aproveitando para a acção d'elle a exposição e leilão de objectos curiosos e interessantes offerecidos por muitas senhoras distinctas,para, com o productod'essa feira philantropica e caridosa, serem soccorridos os po-
— 5 —
bres da freguezia de N. S. da Gloria da cidade do Rio de Janeiro.
Deve-se acreditar que ainda ninguém esqueceu esse interessante e nobre leilão que em 1855 teve logar no edifício da Academia das Bellas Artes.
Esta simples exposição servirá para que mais completamente transpareça o pensamento do nosso romance.
A BOLSA DE SEDA
Era o dia 20 de Outubro de 1855 — um sabbado, e por consequencia a vespera de um Domingo.
Creio que sabeis que é nos domingos que apparece a Semana, o meu folhetim hebdomadario do Jornal do Commercio.
Faltava-me matéria para a Semana : sentia-me incapaz de satisfazer os leitores do Jornal do Commercio no dia seguinte : estava triste, aborrecido de mim mesmo.
Reconheci que não dava conta da mão : roguei pragas ao publico, atirei com as pennas para baixo da mesa, tomei o chapéo, e sahi.
Fui passear.
—8—
Não sei bem onde me achava ; importa pouco para esta minha scena a questão do theatro; pôde representar-se em qualquer rua, em qualquer praça ou em qualquer hotel : é uma scena que serve em qualquer theatro, como ha em certos theatros decorações que servem para todos os dramas.
Ia eu indo e não via nada; tinha a semana pesando-me sobre o coração.
Senti de repente que me batião no hombro.
— Quid cogitas ? disserão-me.
Tinha encontrado um homem que sabia latim, o que não é muito commum no Rio de Janeiro ;
voltei-me para elle ; era o meu amigo Constando, mocetão de vinte e cinco annos, bonito, rico, solteiro, que fuma charutos de Havana, tem bigodes e pera, e tudo, tudo e tudo, menos talvez juizo, o que é muito commum no Rio de Janeiro.
— Quid cogitas ?... repetio-me elle.
— Penso na semana, que já devia estar feita, e que ainda não comecei.
— Pois então alegra-te ! dou-te mais que uma semana.
— Como ?...
— Dou-te um romance.
— Bravo ! o heróe ?...
— Sou eu : está entendido.
— A heroina?...
■tídSS
— 9 —
— Uma moça bonita. Queres?...
— O que?... a moça ou o romance?...
— O romance, está visto.
— Aceito : conta lá isso ; mas, antes de tudo, devemos-lhe um titulo : qual deve ser?...
— A bolsa de seda.
— Bem escolhido ; começa pois. Constando deu-me um abraço, e principiou :
— Conheces minha mãe e minha irmã?...
— Que tem isso com o teu romance ?...
— Conheces minha mãe e minha irmã?....
— Não.
— Pois é pena; minha mãe é uma senhora muito religiosa e cheia de virtudes; e minha irmã uma moça bonita, engraçada, compassiva e boa até não poder mais. Ora, sendo ellas assim, ando desgostoso, desesperado, furioso por ver que em um .tempo como este, quando todas as senhoras se têm tornado notáveis por actos brilhantes de caridade, só minha mãe e minha irmã, apezar de boas e religiosas como são, se deixão ficar em casa, e não levão nem uma camisa, nem um lençol, nem uma esmola á casa de um pobre!...
— Tem paciencia.
— Qual paciencia ! queria ouvir abençoados os nomes de minha mãe e de minha irmã : ainda ante-hontem á noite tive um combate com ellas — 10 —
por isto, mas foi tempo perdido; depois de luctar em vão duas horas, fui me deitar, e sonhei...
sabes o que ?...
— Não.
— Sonhei com o anjo da caridade, vi-o, achei-o bonito, apaixonei-me por elle, epor fim de contas reconheci que o anjo era uma moça, e casei-me com ella.
— Dou-te os parabéns.
— Á hora do almoço contei o meu sonho a rainha mãe e a minha irmã; ellas rirão de mim, e eu, jurando que me havia de casar com um anjo como o que sonhara, sahi de casa.
— E depois ?...
— Passei o dia com un amigo, e á noite dirigime ao theatro; mas, cousa celebre! o meu sonho não me sahia da cabeça; ao passar por uma das nossas ruassinhas estreitas e menos freqüentadas, vejo parar um carro e saltar d'elle uma moça coberta com um véo. A moça não vinha só ;
trazia uma companheira que se deixou ficar no carro, e cujo rosto não pude ver, porque também se cobria com um véo como a primeira.
— Bem; continua.
— Não pude deixar de admirar o corpo gracioso e encantador da moça que descera do carro ; mas o que sobretudo me impressionou foi o seu mimoso pesinho, que de relance apre-
11 ciei á luz do abençoado gaz ; está dito... fiquei doido por aquelle pé ; por signal que era o direito, e por conseqüência posso dizer que a moça entrou-me com o pé direito no coração.
— Pobre coração!
— É verdade : dahi a meia hora eu o tinha completamente aealcanhado.
— Continua.
— O carro ficou parado, e a moça, avançando alguns passos, bateu na rotula de uma casinha de triste apparencia, e um momento depois entrou.
« O carro era de aluguel, e o maldito cocheirou ou era mudo, ou não fallava. A curiosidade sahia-me pelas pontas dos dedos; fui a uma venda da esquina, e informando-me sobre quem morava no pobre casebre, soube que era uma família indigente. Lembrei-me do meu sonho, adivinhei que tinha encontrado a minha bella sonhada, e de um pulo fui bater, e entrei na casa da pobreza.
« Fiz tudo isto com tanta rapidez que a moça quiz, mas não teve tempo, de se esconder, e fui encontral-a sentada ao lado de uma pobre velha :
continuava a ter o rosto coberto com o seu véo longo e impenetrável; não me importei com o véo, e achei-a formosissima : fiz de conta como os poetas, e apaixonei-me como elles.
— 12 —
— Adiante, adiante...
— Fallei-lhe e não me respondeu; não me incommodei com isso, nem por tal esfriou a minha paixão; tentei approximar-me d'ella; mas immediamente levantou-se, e com tal pressa que lhe cahio uma bolsa de seda.
— Ah ! a bolsa de seda...
— É verdade : uma bolsa que sem duvida ella estava tecendo, e que ainda não estava acabada.
— E que mais ?
— A velha apanhou e entregou-lhe a bolsa.; vi a mão da moça... fiquei abysmado.
— E depois ?...
— A moça apontou-me para um quartinho escuro e triste, onde gemia uma creança; corri a ver a infeliz; era um menino de quatro annos:
eondoido de seus soffrimentos e de sua pobreza, começava a examinal-o, quando ouvi rodar uma sege...
— Que logro!
— É certo : saltei para a sala ; mas a velha me disse com triste sorriso ; — é tarde! já partio.
— E quem é ella ?...
« —Um anjo do caridade, senhor.
« — Exactamente, exclamei eu, era isso o que eu procurava ; posso considerar-me casado.
Quando torna ella aqui ?
— 13 —
- Não sei; apparece, como a Providencia, sempre que se faz necessaria, - «_ E que vem fazer?...
- « _ Que vem fazer ?... Ah! senhor, vem vestir a mim e a meus filhos ; vem ajoelhar-se aos pés daquella cama velha, e com suas mãos tão finas e mimosas banhar os pés de meu filho doente ! vem dizer-lhe palavras de amor, e fazel-o tomar remedios sem chorar, nem contrafazer-se; vem animar-nos a fé e accender-nos a esperança, e sempre acha occasião para, sem que ninguém a veja, deixar uma boa somma de dinheiro em baixo do meu travesseiro.
- « — E como se chama?...
- « — Ella diz que se chama minha irmã, - « — Irmã dos pobres ! é.isso mesmo :
estou definitivamente casado.
- « — Ah ! senhor!
- « — Onde mora ella?
- « — Não o quer dizer.
- « — É bonita ?...
« — Oh ! se o è... e que graça,., e que voz... e que olhos !...
« — Exactamente !... eu a sonhei tal e qual.
« — Tal e qual, como, senhor?...
« — Tal e qual como ella é ; boa duvida!
« — E o senhor sabe como ella é ?...
« A pergunta da velha embatucou-me; como não tive que responder, desviei-me da questão — 14 —
« — E vós quem sois, boa mulher ?... contaime a vossa historia.
« — A minha historia é bem simples, disse a velha; moça pobre, tive a fortuna de me casar com um excellente homem ; era um bom carpinteiro que ganhava com a sua incho bastante para sustentar a sua família ; tinha sido voluntario da independencia, bateu-se nobremente por ella, e ganhou a sua medalha da campanha da Bahia ;
ha cinco annos adoeceu, e ficando alguns mezes de cama, acabou mais de miseria do que da molestia; ninguém se lembrou d'elle!.. Se eu tivesse uma bandeira nacional para amortalhalo!... mas não tive : embrulhei o seu cadaver no ultimo lençol que nos restava, e pendurei a seu pescoço a medalha da independencia ; a Misericordia fez o resto, enterrando o corpo do antigo soldado; creio que ninguém reparou na medalha e foi bom isso.
« — Porque ?...
« — Porque os vivos havião de envergonhar-se do morto.
« A velha, apezar de pobre, fallava como um deputado.
« — E depois?... perguntei.
« — Depois, senhor, vivi e sustentei meus quatro filhos como pude : Deus me protegeu até hoje, e continua sempre a proteger-me ; mas, confesso o meu grande peccado : quando -15-
rebentou esta peste maldita, evi dous de meus filhos cahidos, quasi que desesperei!...
Felizmente um anjo de caridade entrou-me em casa, e comsigo me trouxe a esperança e a coragem.
« — E esse anjo ?
« — Sahio daqui, ha pouco.
« _ Sim, bem sei ; mas, boa mulher, eu tenho absoluta necessidade de saber quem elle é, como se chama, e onde mora...
« — Como posso eu dizel-o ?...
« — Oh ! mas se é essencial !... eu devo casarme com aquella senhora ; é uma cousa decidida.
« — E possivel, senhor !...
« — Falta-me só conhecel-a ..
« — A velha olhou para mim espantanda; sem duvida alguma pensou que tinha diante de si algum doido ; receiando porém offender-me com o seu olhar, baixou a cabeça, e apanhando um fio de .seda que encontrara a seus pés, começou a enrolal-o por entre os dedos.
« Bem se diz que ás vezes a fortuna pende de um fio!
« Vi a minha felicidade pendendo d'aquelle fio de seda.
« Lembrei-me da bolsa de seda.
« — Boa velha, creio que o fio que enrolaes — 16 —
nos dedos foi da bolsa de seda, que o vosso anjo de caridade tecia.
« É verdade.
« Então essa bella senhora, quando vera a esta casa, costuma trazer algum trabalho para se entreter, não ?...
« Ah, não, senhor : ella ás vezes demora-se aqui uma, duas, e até três horas, conforme julga necessario, para prestar-nos soccorro; e ha alguns dias apenas traz essa bolsa que está tecendo, segundo diz, para dal-a de presente a uma amiga que faz aimos domingo.
« — Domingo ? depois d'amanhã ?...
« — Sim, senhor.
« — Bravo ! vou saber quem é esse anjo de caridade ; domingo é o dia do leilão a favor da pobreza, e a bolsa de seda. não se destina a outro fim ; já conheço a côr da tal bolsinha... vou encontrar e conhecer minha mulher !
«A velha tornou a olhar-me com sorpresa e talvez piedade; e eu que não tenho nem a delicadeza, nem a graça das senhoras, em vez de fazer escorregar algum dinheiro para baixo de travesseiro da velha, lancei-lhe no collo a minha carteira, e sahi pela porta afora, meio atrapalhado com as bênçãos e com os agradecimentos da pobre mulher.
« Em vez de ir para o theatro, fui logo direito para casa, onde encontrei minha mãe e minha I — 17 —
irmã, que desde que começou o cholera não vão nem á opera lyrica, nem ao baile, e nem saem de noite com medo do sereno.
« Contei-lhes o que me havia acontecido, e ellas, mettendo o negocio á bulha, acabarão, como sempre costumão, por me dar e gracioso titulo de doido.
« Mas amanhã é domingo, e a bolsa de seda virá provar que eu sou um rapaz de muito juizo.
O meu amigo Constando fez ponto final e olhou para mim.
— E que mais ?... perguntei.
— Por ora nada mais : deixarás o romance interrompido n'este ponto, e prometterás concluil-o na proxima Semana.
— Bem ; mas deves ao menos deixar esclarecido um ponto.
— O que?...
— A côr da bolsa de seda.
— N'essa não cahia eu : a côr de bolsa é o meu segredo ; ainda não estou casado, e emquanto não me casar não darei a ninguém os meios de descobrir quem é abella do meu sonho. Espera até amanhã, que é domingo.
— Mas tu contas demais com a tua perspicacia : como poderás descobrir no leilão de amanhã quem teceu a bolsa de seda, se os objectos offerecidos para o leilão não trazem — 18 —
os nomes das dignas senhoras que os offertão?...
— Tudo se sabe no mundo, meu caro : e a diligencia é a mãe da boa ventura. O que eu quero é ver a bolsa de seda no leilão de amanhã;
mais fica por minha conta.
— Bem; mas vê que estás obrigado a dar-me a continuação e o desfecho d'este romance.
— Está subentendido.
— Tu o promettes ?...
— Palavra de honra! disse Constancio, estendendo theatralmente a mão direita.
— E quando ?...
— No dia e ás horas em que tiveres de começar a escrever a tua semana para o próoximo domingo.
— Excellentemente : sabbado ao meio-dia.
Sabbado ao meio-dia : conta commigo.
— 19 —
II
No sabbado seguinte pelas onze horas da manhã já eu me achava ancioso esperando o meu amigo Constancio. Esperei inutilmente uma. hora, e dei um salto de alegria ouvindo o signal de meio-dia dado em uma egreja vizinha.
Era o momento aprazado.
— Até que emfim ! disse eu.
Soou a decima segunda dabalada, e appareceme vivo e alegre, como sempre, o meu amigo Constancio.
— O desfecho do romonce ?... grito correndo para elle.
— Sou um tolo, responde-me o pobre Constancio.
— Ah meu amigo ! o quo eu queria que me desses, era alguma novidade.
— Escuta : comprometti-me a contar-te o fim da minha aventura ; eis-me aqui ; mas não sei se já estou no meio d'ella. — 20 —
— Seja como fôr, refere-me o que houve.
— Fui ao leilão, ou antes á exposição de domingo : corri, examinei um por um todos os objectos.
— E então?... que viste?...
— Nada, porque lá não se achava a minha suspirada bolsa de seda, : o meu anjo da caridade tinha adivinhado o meu plano, e não quiz expor a sua delicada obra : fiquei furioso, e vinguei-me fatiando contra a mesquinhez com que mal corresponderão aos esforços caridosos de tantas e tão respeitaveis senhoras.
— E depois?...
— Esperei até o fim da festa ; esperei ainda muito tempo, até que o porteiro da academia mostrou-me com toda a delicadeza a porta da rua, e sahi emfim ; mal tinha porém dado alguns passos, chega-se a mim uma pobre velha envolta n'uma mantilha. Eu estava de máo humor e voltei-lhe as costas.
— Compaixão, senhor ! uma esmola pelo amor de Deos !
Lembrei-me da minha desconhecida : metti a mão no bolso, e tirei uma moeda de prata.
A velha estendeu as mãos abrindo uma bolsa para receber a esmola.
Oh ! era a bolsa de seda. ! conheci-a immediatamente pela côr : era a minha bolsa ;
agarrei-me a ella.
— 21 —
—A quem, homem ?... á velha ?...
— Não ; á bolsa.
— Ainda bem.
— Quanto quer por esta bolsa ?... donde lhe veio esta bolsa ?... quem a teceu ?... quem lh'a deu?... A velha ficou espantada o respondeu-me a tremer.
— Esta bolsa... foi uma senhora que me soccorre que a deu de presente a uma netinha que tenho.
— Pois eu a quero ; compro-a.
— Esto bolsa não se vende, disse a velha.
— N'esse caso tomo-a de graça.
— Oh ! se é assim, dê o senhor o que quizer por ella; mas olhe que não é vendida, é trocada, como uma reliquia.
Sem ser fidalgo, dei pela bolsa mais do que...
porém vamos adiante ; nada de má lingua.
— Como se chama, e onde mora a senhora que deu esta prenda á sua neta ?...
— Chama-se irmã dos pobres, segundo ella diz ; e deve morar certamente em alguma casa que ella não diz onde é.
— Estou na mesma : e a senhora onde mora?...
A velha disse-me o nome da rua e o numero da casa em que morava, e sumio-se ligeira como um coelho t— 22 —
Eu estava enthusiasmado : não conhecia ainda a bella mysteriosa ; mas pelo menos já possuía a bolsa de seda.
Corri para casa, e cheio de ardor, tendo nos olhos o fogo da felicidade, e no coração o anhelo da mais terna esperança, apresentei a bolsa de seda a minha mãe e a minha irmã.
— Então, que lhes dizia eu ? .. exclamei :
tenho a bolsa ou não ?.., — Mas... que vale uma bolsa ?... perguntoume minha mãe.
— Essa agora é boa !... que vale uma bolsa ?...
pergunte ao mundo, minha mãe ! um homem que tem uma bolsa, tem o segredo da felicidade no amor.
— Vazia assim ?.. disse-me rindo e sacudindo com a bolsa minha irmã.
— Sacrilega ! exclamei.
— Entretanto, deve-se confessar que está bemfeitinha! continuou ella examinando ; eis aqui uma mancha...
— Foi dos meus beijos, acudi eu.
— Vejamos por dentro, proseguio minha irmã que é das Arábias, voltando a bolsa de dentro para fora.
Eu estava em êxtase.
— Oh !... exclamou ella soltando uma risada.
— Então que é isso ?...
— Constancio, perguntou-me a cruel moça ; -23-
a tua desconhecida é costureira de alguma casa de modas da rua do Ouvidor ?
— Invejosa !
— Esta bolsa veio de Pariz : olha aqui no fundo a marca da casa da rua do Ouvidor.
Vi .. vi, e, cousa extraordinaria, não desmaiei !
tive n'aquelle momento pena de não ser mulher;
se eu o fosse, teria arranjado um faniquito á proposito.
Emquanto minha mãe e minha irmã desfaziãose em risadas, sahi e corri desesperado á casa da velha de mantilha. Lembrava-me perfeitamente a rua e o numero ; cheguei deitando a alma pela boca fora, e... tenho vergonha de o o dizer...
— Então que foi !...
— O numero que a velha me tinha dado era de uma casa de vigesimos.
— Bravo ! logrado pela moça e pela velha... E
depois?...
— Ah ! depois ? depois ! é que cinco dias inteiros fui victima das zombarias de minha terrivel irmã, que não cessa de ridiculisar a minha paixão e ainda mais a minha apaixonada !
— Pois tu ainda estás apaixonado ?...
— Sabbado passado estava até os olhos ;
agora estou até os cabellos ! que queres ?... o homem é escravo da mulher que mais martyrios o faz soffrer. — 24 —
— E ficou n'isso a historia?...
— Não : até aqui o ridiculo, até aqui o desespero, a raiva, e não sei que mais ; daqui por diante uma luzsinha de esperança.
— Accende-a depressa aos olhos dos meus leitores, Constancio.
— Fui durante a semana todas as noites á casa da familia pobre onde pela primeira vez encontrara a desconhecida : uma noite fui ás dez horas, outra ás nove, outra ás oito e outra ás sete, desde domingo até quinta-feira.
— E a bella mysteriosa?...
Foi todas essas noites também ; mas sempre sahia dez minutos antes da minha chegada, como se alguém a prevenisse d'ella ! além de formosa, porque o ha de ser por força, é ainda mais feiticeira !...
— Enganão-te n'essa casa também, Constancio: a desconhecida lá não tornou mais.
— Oh se tornou ! deixa sempre signaes da sua visita, disse Constancio, tirando um embrulho do bolso, disse: olha !
Olhei: Constancio desatou o embrulho que estava amarrado com uma fita verde ; vi cinco embrulhos mais pequenos : no primeiro estava escripto — Domingo.
— Eis aqui as petalas de uma rosa que na noite de domingo ella desfolhou ao pé da cama da velha. Aqui está no embrulho da segunda-
-25-
feira uma luvasinha de mão de creança que ella esqueceu sobre a cadeira ; no embrulho da terçafeira uma fita de sapato que se lhe rebentou no embrulho da quarta-feira tres alfinetes e uma agulha com que estivera tecendo ; e no da quinta-feira, emfim, um lencinho bordado, mas sem trazer marcadas as iniciaes do nome de sua dona, que é o que sinto.
— Ah Constancio ! d'esta vez embrulhaste-me a semana toda !
— E o mais é que a bella mysteriosa me conhece; fallou a meu respeito, disse o meu nome, o de minha mãe e de minha irmã, sabe onde moramos, e asseverou que me ama extremosamente desde muito tempo.
— Bravo ! e a bolsa de seda ?...
— Foi um mono que me pregou a velha de mantilha ; a bolsa de seda. ella apenas poude acabar na quinta-feira á noite, e confessou que a destina para a exposição de amanhã.
— Oh ! então, parabéns !
— Mas o peior é que ella teima em não dar-se a conhecer, e jura que eu nunca lhe verei o rosto:
hontem logrou-me como se logra a um tolo ; ao mesmo tempo porém inflam-mou ainda mais as minhas esperanças.
— Conta-me isso.
Um dos filhos da pobre mulher a quem soccorremos, tem estado quasi não quasi a fazer -26-
viagem ; hontem fui fazer-lhe a rainha visita ás sete e meia horas da noite ; até então tinha lá ido ás sete, oito, nove, dez horas certas ; na sextafeira comecei a fazer as minhas visitas ás meias horas, a ver se me encontrava com a bella da bolsa de seda. Entrei, e logo pelo suave aroma que rescendia na sala, conheci que a desconhecida havia epouco d'alli sahíra; não me animei a perguntar por ella, porque vi a pobre mãe chegar á sala e entrar chorando na alcova, levando na cabeça uma bacia de pés com agua quasi fervendo.
— Que ha ? perguntei.
— O meu filhinho mais novo que acaba de cahir com o cholera.
Tive pena da triste mãe ; atirei com a casaca para um lado, arregacei as mangas da camisa e fui dar o escalda-pés á creança. O meu anjo da caridade tinha-me ensinado a ser caridoso.
A mãe resistio, e eu teimei e venci: já estava terminado o pediluvio, quando senti os passos de alguém que fugia : olhei para traz .. era a bella mysteriosa, que sahindo do interior da casa, desapparecia pela porta da rua, atirando sobre mim um papel.
Em mangas de camisa, como estava, não podia seguil-a pela rua ; apanhei o papel suspirando, emquanto a infeliz mãe envolvia o filhinho em colchas de lã.
-27-
O papel continha um cartuxinho com uma violeta, symbolo da modéstia, e duas linhas com lettras escriptas provavelmente com a mão esquerda, que dizião assim : « a caridade não se ostenta; por isso me escondo : tu me vês todos os dias, e não me reconheces, nem me has de reconhecer ; amas-me, e eu te amo. »
Fiquei louco de alegria; não dormi toda a noite : fui obrigado a ouvir os gracejos e zom-barias de minha irmã desde o almoço até ás onze horas da manhã, e fiel á minha promessa ao meio-dia te appareci.
— Mas ficas ainda em divida.
— Sabbado espero pagar-te toda a minha conta.
— Excellentemente ! E amanhã ?...
— Amanhã terei a minha bolsa de seda, e não me fiarei mais em velhas de mantilha.
Dizendo isto, Constancio tomou o chapéo e sahio.
— 28—
III
Confiado na pontualidade do meu amigo Constancio, eu esperava pêlo sabbado ao meiodia para receber a continuação ou a conclusão do romance da Bolsa de seda, quando casualmente encontrei esse namorado da bella mysteriosa dous dias antes d'aquelle em que contava vêl-o apparecer.
Sabe-se que ultimamente alguns observadores curiosos da capital descobrirão no céo uma estrella brilhante áhora em que se parte o dia, e acharão n'esse facto uma novidade, que os encanta.
Uma autoridade competente declarou que a estrella que se via era o planeta Venus, e que não havia nada de extraordinário no pheno-meno;mas a despeito de tal declaração não diminuio o numero dos curiosos, que se entre-gão com vivo interesse á observação da estrella do meio-dia (1).
(1) O facto, a que alludo n'este lugar, passou-se com effeito então no Rio de Janeiro.
— 29 —
E quinta-feira, ao dar o sino de S. Francisco de Paula o signal do meio-dia, passava eu pela Praga da Constituição, e eis que vejo uma columna cerrada de improvisados astrônomos de olhos fitos no céo.
Approximei-me, e qual não foi a minha surpreza, quando descobri no meio dos curiosos o meu amigo Constando !
Cheguei-me a elle e chamei-o ! tempo perdido!... o rapaz estava com o juizo acima do mundo da lua.
— Diabo ! exclamou emfim; atrapalhaste-me no instante mesmo em que Venus começava a brincar com as meninas dos meus olhos !
— Constando ! pois assim te deixas prender pelos encantos de uma Venus que nunca ha de ser tua, e esquecendo talvez a bella mysteriosa?...
Apenas pronunciei as palavras bella mysteriosa, vi o meu amigo Constando mudar de feição e ficar assim com uma cara de noivo logrado, ministro demittido, candidato mamado, actor pateado, que vem tudo a dar na mesma cara, Comprehendi logo que o amante da bella mysteriosa tinha feito fiasco.
— Constancio, disse-lhe eu, adivinho que chegaste ao desfecho do teu romance.
Fez-me com a cabeça um signal affirmativo.
— 30 —
— Pois então faze de conta que hoje é sabbado, e vamos ao caso.
— Infandum, regina, jubes renovare...
Não o deixei acabar o verso de Virgilio.
— Tenho a tua palavra : paga-me o que me deves.
— Pois sim.... estou preso pela minha palavra... não ha remédio...
— Vamos a isso : que tens a dizer-me ?...
— Primeiro que tudo digo-te o que já te tenho dito dez vezes : sou um tolo !
— Sim ; mas tens consciência : é uma consolação ; porém a historia, a historia ?.., — Vaesrir... vaes zombar de mim !
— Como ?... pois a bella mysteriosa não disse á velha e depois não te escreveu n'um bilhete que te amava extremosamente ?...
— Disse, e até fallou a verdade.
— Pois que mais queres, coração insaciável ?
Constancio soltou um suspiro magoado.
— Ah ! já sei : a tua bella mysteriosa é alguma velha feia, e...
— Ao contrario é moça, e bella.
— Já a viste ?...
— Vi-a sim ; e repito que é moça e bella.
— Mas desenxavida... pretenciosa...
— Também não ; é espirituosa e modesta.
— Então agora acertei: depois que a viste e a conheces, a tua razão, que é calculista como — 31 —
agiota, te esta de continuo cantando aos uvidos aquella velha cantiga que acaba assim :
Casar com mulher sem dote é remar contra a maré.
_ Ainda te enganas : ella é tão rica como eu.
— Em tal caso dou as mãos á palmatoria, e confesso que não decifro o enigma.
Constando pensou um momento, e depois disse :
— Visto que sempre terei de te contar o fim da historia, tanto faz hoje como sabbado.
— Digo-te que estás criando juizo, Constando.
— Passeiemos.
Dei-lhe o braço : começámos a passeiar e elle tomou logo a palavra.
— Creio que não preciso dizer-te que domingo não faltei á exposição dos objectos offerecidos pelas senhoras a favor da pobreza.
Eu ! eu, que estou habituado a levantar-me da cama ás dez horas do dia, fui domingo amanhecer á porta da Academia das Bellas Artes: jejuei até e pela primeira vez na minha vida, pois sahi de casa sem me lembrar de almoçar. O amor e a politica, tirando ambos igualmente o juizo ao homem, tem um notavel ponto de dissimilhança: o amor sacrifica a — 32 —
barriga ao coração, e a politica de muita gente é um sacrifício do coração á barriga.
— Não te afastes da questão principal, Constancio.
— Emfim !... estava lá ! ........ descobri finalmente a minha querida bolsa de seda entre os interessantes objectos expostos ! reconheci-a logo... immediatamente : era ella mesma, era a bolsa de seda !
— Que rapaz afortunado !
— Foi minha, e havia de sel-o por força ! eu teria preferido aquella simples bolsa de seda á propria Estrella do Sul, ou á Montanha da Luz !
— Parolas de namorado.
— Em uma palavra, achei-me de posse da minha bolsa de seda, e apenas a vi nas minhas mãos, esquecendo a exposição, e não querendo saber de mais nada, atirei-me para casa a galope.
— A galope ?. . penso que deves retirar a, expressão, Constancio.
— De modo nenhum : a palavra foi admitida ha alguns annos nos mais brilhantes salões; não havia ninguém que pretendesse as honras do grande tom, que não galopasse nos bailes; por consequencia, não retiro a expressão e repito, galopei.
— Perfeitamente ! — 33 —
— Entrei por nossa casa enthusiasmado e delirante, bradando : « eil-a aqui! eil-a aqui!... »
minha mãe e minha irmã acudírão aos meus gritos ; mostrei-lhes a minha suspirada bolsa ;
era de seda verde (tinha a côr da esperança e primorosamente trabalhada. Minha mãe achou-a perfeita , e minha irmã, depois de examinal-a cuidadosamente, depois de vi-ral-a e reviral-a umas poucas de vezes de dentro para fora e de fora para dentro, tornou-me a entregar a minha encantada bolsa de seda, contentando-se com fazer um bico).
— Um bico !...
— Sim, um momo : as moças quando, depois de examinarem uma obra, um trabalho devido á habilidade e delicadeza de outra moça, não lhe põem defeitos, e acabão fazendo simplesmente um bico, é porque não tem nada, nada absolutamente que dizer.
— Bravo ! és um novo La Bruyère.
— Eu tinha jurado não me separar mais nunca da bolsa de seda ; guardei-a pois junto do coração no bolso do peito da casaca.
— E foi muito justo que guardasses uma bolsa por cima do coração; porque o coração dos homens bate de ordinário por baixo da algibeira, e a algibeira não é cousa melhor do que uma bolsa. — 34 —
— Estava emfim senhor da bolsa de seda faltava-me porém ainda saber quem era a bella mysteriosa: na exposição eu havia perguntado debalde e em vão procurado descobrir qual a senhora que tinha offerecido a bolsa de seda verde: perdi o meu tempo: ninguém sabia, ou ninguém me quiz responder. Não desanimei; no meu galope para casa delineei um plano admirável, que me devia fazer penetrar o segredo que me roubava e escondia o nome de minha apaixonada ; jurei a mim mesmo que antes da noite saberia o nome da bella mysteriosa, e decifraria a difficil charada ; mas de que se havião de lembrar minha mãe e minha irmã !
determinarão ir ver o balão aerostatico, e apezar de tudo quanto disse e das observações que fiz, teimarão e declarárão-me em estado de sitio por todo o resto do dia.
— Sim ; mas...
— Fomos ver o tal balão : ás 3 horas achavamo-nos installados nos nossos logares da primeira ordem e o demoninho de minha irmã, que encontrou logo quatro ou cinco camaradas tão demoninhos como ella, ajuntou-se com ao amigas e, fallando todas a um tempo, disserãs cobras e lagartos contra a minha bella mysteriosa; mas eis que de repente cáe a estaca -35-
que suspendia o balão, fura-se este o povo grita e se amotinae... (1) _
— E ficas tu em disponibilidade e aproveitas a tarde.
— Qual! espera : no fervor d'aquella desordem, as moças assustão-se, e minha irmã com as suas amigas, tremendo e gritando, abração-se comigo.
— Feliz Constancio !
— Minha mãe ralha, e eu procuro socegal-as .... mas ellas não me deixão senão quando o ruido serena e o povo se resolve a retirar-se : emfin dou parabéns á minha fortuna ao verme de novo em casa; despeço-me de minha mãe, e vou sahir;
lembro-me porém de minha bolsa de seda, e dáme vontade de beijal-a ainda uma vez : metto a mão no bolso, e...
— E o que?...
— Oh ! tinhão-me furtado a bolsa de seda ...
— Deveras ?...
— É como te digo : aproveitando a desordem que succedeu á catastrophe do balão, uma mão subtil furtou-me a bolsa de seda.! não sei como não morri de desespero !
— E com razão.
(1) Deixou com effeito de effectuar-se essa ascenção de um balão aerostatioo.em conseqüência do desarranjo, a que allude o romance. — 36 —
— E queres saber quem foi que furtou a bolsa?...
— Quem ?...
— Foi ella.
— Ella?
— Sim, a bella mysteriosa, ella mesma.
— Estás sonhando, Constando.
— Ora! ... deixou-me uma prova d'isso.
— Como ?
— Furtando-me a minha querida bolsa, deixou em logar d'ella um bilhete escripto com uma lettra tão habilmente descaracterisada que nem o diabo seria capaz de adivinhar a mãosinha que o escreveu.
— E esse bilhete?...
— Continha estas breves palavras ; « Furto-te a bolsa de seda, que recorda as nossas loucuras, Uma barreira indestructivel nos separa. Adeus para sempre. D'oravante não serei mais a tua bellamysteriosa. »
— E acabou-se a historia.
— Oh ! antes acabasse ahi ! ficaria ao menos sendo um bello sonho da minha vida.
— Pois continua ainda ?...
— Sim ; depois de reflectir um pouco, entendi que o bilhete era um novo logro que me estava preparado, e que a bella mysteriosa pretendia somente, tirando-rae a esperança de tornar a encontral-a, afastar-me da casa da familia po-
— 37 —
bre para ella poder ir lá a seu gosto ; determinei, portanto continuar a fazer tudo por vêl-a e conhecel-a.
— Mas, Constancio, tu já podes desconfiar de quem ella seja : olha, provavelmente quem te furtou a bolsa foi uma das moças que se abraçarão comtigo ; o bilhete falla em barreira indestructivel, o que quer dizer que a bella mysteriosa é casada, e por consequencia...
— Tudo isso pensei eu ; e por fim de contas lembrei-me de que todas as sujeitinhas que me abraçarão, andão doudas por achar marido, o que é o mesmo que dizer que todas ellas são solteiras.
— Continua a tua historia.
« — Com a minha idéa na cabeça, logo que anoiteceu parti para a casa da familia pobre :
entrei e vi a velha e seus íilhinos chorando.
« — Que novidades ha ?... perguntei : o me nino perigou?...
« — Ao contrario, senhor, respondeu-me a velha ; está quasi bom, graças aos seus dous bemfeitores.
« — E então porque chorão ?...
« — Oh! senhor! é a nossa bemfeitora, é o nosso bom anjo, que hontem á noite nos fez as suas despedidas, e que não volta mais.
Senti andar-me a cabeça á roda : disse — 38 —
adeus á velha, e sahi; eu estava suffocado...
precisava de ar. »
— Pobre Constancio !
— Os obstaculos accendião ainda mais a paixão que me devorava; era-me indispensavel tornar a encontrar-me com a bella. mysteriosa, com essa mulher singular, cujo véo eu quizera queimar com o fogo dos meus olhos, com essa mulher poética, romanesca, vaporosa que se fazia amar sem mostrar o rosto! De subito parei, e reflecti.
— Quem sabe?... disse comigo mesmo: quem sabe se as despedidas feitas á velha não são tão mentirosas como as do bilhetinho que me poz no bolso?... quem sabe se não é ainda o mesmo systema empregado para me arredar d'aquella casa?
« Voltei para traz e então mais cauteloso, escolhendo as ruas c os beccos menos freqüentados, e por onde eu nunca passava, tornei a dirigir-me á casada família pobre.
« Quando me achei perto, approximei-me nas pontas dos pés... cheguei-me á rotula, que por signal abria-se para dentro, conforme o disposto nas posturas da camara municipal. »
— Ora, Constancio!... que posturas tão sem pés nem cabeça!... esfriaste a narração com ellas.
— Tens razão : deita fora as posturas. — 39 —
— Pois sim; mio façamos caso d'ellas...
também ninguém faz. Vamos á historia : tinhas chegado á rotula.
__ Cheguei... olhei para dentro... e vi...oh!
— O que ?
— Era ella !...
— Quem ?... a bella mysteriosa ?...
— Sim; não contava mais comigo, e tinha esquecido todas as precauções que costumava tomar. O seu véo estava deposto sobre uma cadeira ao pé da porta; e ella conversava com a velha, sentada com as costas voltadas para a rua.
— E tu?...
— Eu?... que pergunta! eu estava olhando, e por consequencia estava com a cara voltada para dentro.
— Não é isso : que fizeste ?...
— Primeiro tomei uma larga respiração...
depois empurrei a porta de repente, lancei-me para dentro, e apoderei-me do véo, bradando :
— emfim!...
—E ella?...
— Soltou um grito de espanto... Voltou-se para ver quem era... esbarrou-se comigo... e...
— E... o que?...
— E desatou uma risada.
— Uma risada... então?... — 40 —
— Sou um tolo !... sou um pedaço d'asno!
— Mas emfim ella... quem era !...
— Era... sou um pateta!... confesso que sou um bobo!...
— Mas ella... ella...
— Era minha irmã. O FIM DO MUNDO
INTRODUCCAO
O Fim do Mundo em 1856 não é certamente um romance ; faltão-lhe todas as condições para merecer esse titulo : foi um simples artigo de occasião que appareceu publicado no folhetim do Jornal do Commercio de 13 de Junho de 1856, que então por ventura chegou a agradar, e agora não terá merecimento algum ; contemploo porém n'esta collecção, nem mesmo saberei dizer porque... talvez para avolumar com algumas paginas mais o meu pequeno livro.
Como se hão de lembrar muitos ainda, estava -44-
annunciado um cometa, para o anno de 1856, e não poucos terroristas, improvisando-se prophetas, determinavão o dia 13 de Junho de 1856, como o prazo fatal de um horroso cataclysmo, cujo resultado seria nada menos que o fim do mundo.
O famoso conego de Liège celebrisou-se por esse agouro sinistro.
Muita gente acreditou nos agoureiros, e no Brazil não faltarão credulos, que virão com indizivel terror aproximar-se o dia 13 de Junho.
Foi esse o motivo do artigo que então escrevi, e que agora reproduzo n'esta pobre collecção.
Fiz representar como protogonista, ou como narrador, n'esse artigo o senhor Martinho Corrêa Vasques, que é um actor muito conhecido e estimado no Rio de Janeiro. Foi uma liberdade que tomei, e de que elle me fez o favor de não se offender.
Hoje, relendo essas breves e risonhas paginas que em 1856 escrevi, sinto verdadeira tristeza, porque n'ellas encontro de mistura com innocentes gracejos os nomes de pessoas, algumas das quaes a morte já arrancou do -45-
mundo, e entre elles o do meu amigo o commendador Manoel Moreira de Castro, de quem sempre recebi provas de estima e confiança extrema.
O que então nos fez rir, fez-me entristecer agora.
Não importa : ahi vai.
O FIM DO MUNDO
EM 1857 I
Estava reservada ao Martinho a triste obrigação de escrever a lugubre historia do cataclysmo por que passou a cidade do Rio de Janeiro, e por que muito provavelmente ha de ter passado o mundo inteiro no fatal dia 13 de Junho.
Eu sou o novo Noé que sobreviveu ao novo diluvio! e sou ao mesmo tempo o Moysés do seculo das luzes que deve referir o infausto caso do fim do mundo no anno de 1857.
Não fui d'aquelles estouvados incredulos que — 48 —
zombarão da prophecia do conego de Liège ; tive sempre a maior veneração pelos conegos, e não havia de ser em uma questão de cometa que o Martinho duvidasse da palavra de um conego.
Também não me contei no numero dos terroristas e dos aterrados, que, esperando, pelo fim do mundo no dia 13 de Junho, não pensarão em escapar ao dilúvio, e resolvêrão-se a morrer immoveis e caladinhos como carneiros.
A idéa de acabar como capão, peru, ou leitoa em dia de banquete me revoltava deveras. « Que!
disse eu a mim mesmo, conversando com os meus botões; que! o Martinho, que tinha direito a considerar-se immortalisado pela fama, ha de assim sem mais nem menos perder a sua immortalidade, reduzido a torresmo pelo fogo da cauda de um cometa? »
Dizem que a diligencia é mãi da boa ventura :
a industria humana pôde vencer quasi o impossivel: puz-me a reflectir, a imaginar, a combinar; gastei n'isso mais tempo do que qualquer dos meus collegas em estudar a sua parte n'um drama novo, e por fim de contas dei um pulo, bati palmas, exclamei como Archimedes : Eureka!
Eureka era o meio que eu tinha descoberto para livrar-me das rabanadas do cometa e sobreviver ao cataclysmo.
— 49 —
II
O meu primeiro pensamento foi organisar uma companhia que tivesse por fim fazer construir uma estrada de ferro para o mundo da lua; mas abandonei esse projecto porque com a noticia da nova empreza poderia o banco do Brazil lembrar-se de elevar ainda mais a taxa de juros, e Unhamos o diabo na praça, ainda antes deapparecer o cometa.
Meditei depois sobre a construcção de uma segunda torre de Babel, pela qual pudesse eu subir aos planetas e esconder-me no seio de Venus, ou pelo menos em uma das azas do caducêo de Mercurio : não me faltavão materiâes paraa obra; porque a torre de Babel é torre de confusão, e eu podia consequentemente arranjar muito bons architectos no corpo legislativo ; mas tive também de rejeitar esta idéa, considerando que, publicada ella, encontraria eu logo algum outro pretendente competidor, e dava-se então um caso de duplicata, em que não é de regra que o bom direito seja attendido.
Tornei a pensar, a reflectir, a combinar, e dei emfim o meu salto de alegria, e mesmo de e de gravata ao pescoço (porque isto succedeu exactamente á hora de ensaio no theatro de S.
Pedro de Alcântara, portanto sem estar em menores, ou núsinho em pello, como Archimedes, soltei o meu brado enthusiastico:
Eureka!
Guardei muito em segredo o meu projecto, e esperei ancioso pelo dia 13 de Junho, e para que não me faltassem recursos pecuniários para a minha longa viagem, fiz o meu beneficio no theatro de S. Pedro na noite de 9 de Junho isto é, quatro dias antes do cometa. E fiquei esperando.
50 — — 51 —
III
A noite de 12 de Junho foi clara e formosa, como o rosto das amadas de todos os poetas passados, presentes e futuros.
Em redor das fogueiras de Santo Antônio os rapazes namoravão, os velhos fallavão em conciliação, as moças tiravão sortes, e as velhas com.ião batatas, apezar de serem as batatas a alimentação mais diabólica e ruidosamente indigesta que se conhece. Os sinos devão o signal da meia-noite. Começava desde esse momento o dia 13 de Junho : era o dia do cometa.
Eu estava com todos os órgãos dos meus sentidos, menoso olfato, exclusivamente occupados a esperar o bicho caudato. Não esperei muito.
—52—
IV
A peça de artilheria e as bandeirolas do veterano Gabizo annunciárão incendio.
Erão cinco minutos depois da meia-noite.
O Sr conselheiro Mello officiou a toda pressa ao Sr. ministro da guerra, participando-lhe que avistara a pontinha da cauda do cometa.
Meia hora depois o Sr. Dr. Capanema foi accordado na Estrella pela campainha do telegrapho electrico, e recebeu e transmittiu para Petropolis a tremenda noticia.
A uma hora da noite o Jornal do Commercio publicou e espalhou um supplemento dando conta ao publico da funesta apparição.
O Sr. José Maria dos Reis fez pregar annuncios nas esquinas das ruas, declarando que alugava telescopios a todos os curiosos.
A população começou a sobresaltar-se; as ruas enchèrão-se de gente, as senhoras, como de costume, principiarão a gritar e a fazer matinada.
O ministerio, o conselho de estado, os sena-
—53—
dores e deputados reunirão-se, e celebrarão sessão secreta no imperial observatorio astronomico, cujo director pediu que o dispensassem da presidência da grande assembléa, porque estava todo occupado em admirar o formoso o immenso dragão aéreo.
Estes astronomos parecem poetas !
No meio de toda esta confusão puz eu os pés fia rua, e disse : « Martinho ! é chegada a hora da acção; faze o teu dever. »
E fiz.
-54-
V.
Aluguei um telescopio ao Sr. Reis, e observei o cometa; era um bicho enorme, e vinha-se mostrando do lado do norte, e dirigindo-se para o sul.
Bem, pensei eu ; assim como o capoeira quebra o corpo tratando de livrar-se de uma facada, assim eu escaparei da cauda do comenta, fugindo em direcção opposta áquella que elle segue.
E tratei logo de realisar o meu projecto.
-55-
VI
Não havia tempo a perder.
Cemeçava-se a perceber o cometa sem o soccorro de instrumentos opticos.
Por ordem da policia, que despertara rabujenta, apagárão-se todas as fegueiras, e apezar disso já se sentia calor como no mez de Janeiro.
Deitei a correr.
Entre as companhias de seguros não achei uma de seguros aerios; contentei-me pois com a de seguros Maritimos e Terrestres, e segurei-me deveras : por este lado estava arranjado.
Principiei a minha obra, que devia ser nada menos do que uma escada que me levasse á pequena distancia da lua, contando dahi por diante fazer o resto da viagem em uma bem arranjada machina de balões de crinolina, que com antecedencia preparara. Qualquer outro no meu caso talvez procurasse construir a sua escada de cima do Cornado, da Gávea, ou do mais elevado ponto —56 —
da serra dos Orgãos; mas eu, que tinha calculado tudo, comecei a construcção da minha de cima de montanhas muito mais importantes e das quaes talvez ninguém se lembrasse.
Peguei no Monte-pio, e carregando com elle sobre os hombros, encarapitei-o sobre o Monte de Soccorro ; já tinha portanto duas montanhas uma sobre outra, e dahi foi que comecei a arranjar a minha escada.
Tomei como base ou primeiro degráo da escada o Banco do Brazil ; com a alta de juros, só esse banco valia por mil degrãos ; em cima do Banco do Brazil colloquei o Banco chamado Rural e Hypothecario, e trepei pelas hypothecas como um macaco pelos ramos e raminhos da mais alta arvore ; sobre o Banco Rural puz o Banco Mauá, sobre este o Banco Agricola, sobre o Agricola o Banco industrial e Agricola, sobre o Industrial e Agrícola o Banco do Rio de Janeiro, e em cima de todos elles accom-modei a Caixa Hypolhecaria, que também me prestou um alto e excellente degráo. Banco, sobre banco já eu tinha uma escada enorme : é verdade que os tres últimos bancos ainda precisavão de alguma obra para entrar em serviço activo ; mas a necessidade era urgente, e eu aceitaria mesmo um banco de pé quebrado.
Se não fosse o medo do cometa, creio que -57-
dado muito boas risadas com os furores, raivas e desespero do aristocratico Banco do Brazil, ao ver-se por baixo de tanto banquinho democratico; eu o ouvi bradar dez vezes sem tomar folego : « Vou levantar os juros ! vou levantar os juros ! » mas, sem lhe dar resposta, fui cuidando em salvar-me do cometa.
Em um abrir e fechar d'olhos entrei pelos dormitorios dos prophetas, ou accendedores de caz, ajuntei todas as suas escadinhas, e merce d'ellas fui subindo pelos ares acima.
O medo emprestava-me azas, e eu voava como um passarinho : quando cheguei á ultima escadinha, lembrei-me de olhar para baixo.
Olhei, e nada vi.... um mundo immenso , mas um mundo com um enorme rabo estava entre mim e a terra.
Era o cometa !
Esse monstro horrivel tem um ponto de contacto com os vaga-lumes, que são uns pobres bichinhos da terra ; tanto elle como estes trazem fogo na extremidade posterior do corpo; mas os vaga-lumes são suros, e o cometa desenrola uma cauda tão comprida como o orçamento da despeza geral do imperio quando lhe addicio não os additivos. -58-
VII.
Respirei.
Comprehendi que tinha escapado são e salvo do fatal cometa : o fogo de sua cauda devia estar abrasando a terra, que lhe ficava por baixo ; mas a mim que estava de cima-, apenas me causava uma sensação de calor um pouco forte.
Estive pensando durante alguns minutos no que me cumpria fazer, e vendo que já não corria perigo de morrer queimado, assentei que era conveniente esperar, e não expôr-me a viajar para Venus ou Mercurio nos meus ba lões de crinolina, que ás vezes pregão suas peças a quem os trazem.
Emquanto estive pensando, o cometa continuou a sua derrota, e foi-se !
Mas eu achava-me tão alto que não pude descobrir a terra, nem mesmo cora o auxilio de um binoculo que tinha trazido comigo.
—59—
VIII
Com a retirada do cometa o calor cessou e foi substituido por um frio horrivel.
Constipei-me ; comecei a espirrar, e senti a mais dolorosa impressão, vendo que não havia alli uma alma caridosa que me dissesse dominus tecum ...
O isolamento é terrivel; aquelles que repetem que antes só do que mal acompanhado nunca se virão como eu isolado e a quatro braças da lua.
Porque eu olhei para cima e vi quasi assentada sobre o meu nariz a lua, que por signal estava cheia e tinha uma cara de bolacha de marinheiro.
O frio redobrava : a neve do Franccioni é brasa ardente em comparação da neve que chovia sobre mim alli ao pé da lua.
De repente cahirão-me as unhas : não me incommodei muito com isso; porque nunca tive idéa de vir a ser thesoureiro ; mas aterrei-me pensando que me podia cahir também o queixo, e um homem de queixo cahido não — 60 —
se pôde tolerar, nem mesmo quando é namorado.
Puxei o relogio ; era meio-dia, exactamente a hora dos ensaios do theatro de S. Pedro de Alcântara. A força do habito destruiu todas as minhas hesitações ; não pude resistir, pareciame que me cstavão multando por faltar ao ensaio, e atirei-me pelas escadinhas.
Commetti a incivilidade de não me despedir da lua.
Desci como um raio. É de regra que se desce sempre mais depressa do que se sobe ; até os ministros de estado conhecem a verdade d'este principio de physica, elles que de ordinario poucas verdades conhecem.
— 61 —
IX.
Cheguei á terra ás duas horas menos um quarto, e quasi que me esbarrei no chão, porque encontrei todos os bancos roíos ; apenas se conservara inteiro o Branco do Brazil : é que os monumentos levantados pela sabedoria atravessão os seculos e resistem aos mais formidaveis cataclysmos.
Fiquei portanto sabendo que o mais seguro degráo de escada por onde se pôde subir, é o Banco do Brazil.
Olhei para todos os lados, e vi a cidade do Rio de Janeiro reduzida a um ermo. Todas as suas casas estavão intactas, e apenas havião perdido as vidraças, que o calor excessivo tinha derretido; não havia mudança alguma, nem se ouvia ruido algum, mas não se sentia vida.
O cometa era sem duvida partidista exclusivo do progresso material, porque destruiu todos os homens e todos os animnes, respeitando, porém, e deixando illeso tudo quanto era puramente material, tudo quanto tinha existência sem ter vida.
—62—
O cometa era materialista, vermelho.
Aqui e alli eu encontrava homens e mulheres estendidos nas calçadas, de cócoras ou em pé nas esquinas, ou sentados ás portas das casas ;
mas todos petrificados.
Tive medo d'essa horrivel solidão; gritei, e ninguém me respondeu ; um suor frio correu-me de todo o corpo. Desatei a correr de olhos fechados até o theatro de S. Pedro de Alcântara.
O theatro estava aberto : entrei: no saguão avistei o bilheteiro sentado na sua casinhola privilegiada, tendo as mãos cheias de bilhetes de platéa. Tinha morrido como um heróe no seu posto de honra.
Tres cambistas estendidos na porta do botequim deixavão ver cada um a seu lado uma garrafa vazia: novos heróes que havião passado á eternidade com intrepidez britannica.
Entrei na platéa, e vi no tablado a companhia petrificada ao ensaiar a scena do combate das Minas de Polônia. Tive dó de ver o Manuel Soares, morto e reduzido a estatua, representando em minha falta o papel que eu fazia : coitado ! morreu em meu lugar ! Deus lhe falle n'alma.
O ponto estava com o dedo indicador apontando na peça a nota vai-se e com effeito foi-se !
É o que se chama morrer a proposito.
-63-
X
Sahi desconsolado e affiicto do theatro; mas, apezar da minha afflicção, senti que tinha uma fome de todos os diabos. Entrei na Fama do café com leite : o Braguinha morrera com a penna na mão improvisando versos á gloria do seu botequim : é uma alma que foi parar ao Parnaso, e a esta hora está se banhando na Ilypocrene para se vingar dos ardores por que passou ; os freguezes do Braguinha achavão-se em redor das mesas, e um dos caixeiros expirara deitando manteiga derretida em um pão Napoleão: comilhe o pão, que achei um pouco duro, bebi café com leite que ainda fervia, e não tendo a quem pagar o almoço, e não querendo ficar em divida, rezei um padre-nosso pelo amo e caixeiro já defuntos, e sahi precipitadamente.
—64 —
XI.
Doeu-me o coração ao entrar na Petalogica, que, como se via, tinha acabado em sessão magna. O Paula Brito estava encostado a uma mesa, com os olhos fitos em um numero da Marmoia, em que zombara do cometa; o bacharel Gonçalves morrera com um enorme abano na mão; o meu collega José Romualdo jogando estoicamente uma partida de xadrez com o barão de Tautphoeus, que se achava a ponto de dar chec e mat no adversario ; e o Viegas dando conta das ultimas noticias do cometa. Chorei pelos meus consocios, e fugi.
-65-
XII.
Achei me, sem saber como, no paço da camara municipal; os heróicos vereadores morrerão em sessão aberta, e em discussão calorosa, e exactamente no momento em que o Sr. Lobo pronunciava um discurso ad hoc.
Vi um papel nas mãos do presidente da camara e tive a curiosidade de o ler : era um officio em que os fiscaes declaravão que desde as dez horas do dia tinha seccado toda a lama que havia nas ruas da cidade, e pedião por isso augmento de ordenado. Felizmente não houve tempo de despachar a petição.
— 66 —
XIII.
O cometa encontrara na camara vitalicia os anciãos da patria na mesma posição em que os gaulezes acharão os senadores romanos. Um veterano liberal tinha o braço estendido para um conservador vermelho, e lhe offerecia a mão em signal de paz e conciliação ; o conservador, depois de algumas ceremonias que ainda se lhe notavão no expressão physionomica, estendera também o seu braço ... os dedos d'aquellas duas mãos patrióticas estavão quasi a tocar-se.
quando o rabo do cometa passou entre elles, e ficarão ambos os anciãos petrificados e com a conciliação no ar, entre o polegar de um e o indicador do outro, como se fora uma pitada de tabaco mutua!
Sobre a perna de um outro senador encontrei'
um bilhetinho, convidando-o para uma reunião conservadora, com a declaração de que haveria n'ella sorvetes por causa do calor.
-67-
XIV.
Fatigou-me esse passeio lugubre em que andava, e tive vontade de colher algumas noticias a respeito do cometa e dos seus estragos. Dirigi-me ao Jornal do Commercio.
Penetrei na sala daredacção, e a primeira figura que se apresentou a meus olhos foi a do Dr. Macedo morto, conservando porém derramada no semblante a satisfação que sentira ao ver que estava livre de escrever a Semana do domingo, que era o dia seguinte.
O Emilio Adet passara d'esta para melhor vida no meio dos seus trabalhos, e achava-se estendido entre nuvens de folhas de papel, que continhão uns tres ou quatro discursos de deputados : o Emilio Adet teve um passamento panamentar : morreu coberto de bravos, apoiados e applausos.
O Castro estava sentado na sua mesa, e ainda conservava a penna entre os dedos; os vidros dos seus óculos havião-se derretido com o excesso do calor; mas seus olhos estavão fitos na folha de papel em que escrevia — 68 —
Erão as noticias ou era o boletim do cometa que elle preparava para o Supplemento do Jornal. Foi com lagrimas nos olhos que li o que se segue :
« SEIS HORAS DA MANHÃ. »
« O cometa vem-se approximando com rapidez incrivel; o calor augmenta a cada minuto; os sorvetes e as ventarolas estão por um preço fabuloso. »
« OITO HORAS. »
« Reunirão-se as camaras extraordinariamente;
mas permittiu-se a todos os representantes e espectadores das galerias estar em mangas de camisa. »
« NOVE HORAS. »
« A policia mandou espalhar pelas ruas da cidade todos os folies que encontrou nas ferrarias e casas de fundição : os pedestres e accendedores de gaz occupão-se em tocar folles.
No thesouro publico deu-se ordem par que os empregados entrassem de chapéo na cabeça e casaca abotoada : é uma medida que está em harmonia com a anterior que tinha banido os chapéos.
—69—
« DEZ HORAS. »
« Ha febre na praça : as acções de todas as companhias sobem espantosamente; ha uma alta geral; querem todos morrer, provando que são homens de acções.
»
« ONZE HORAS. »
«O cometa está quasi não quasi sobre nós ; no rua do Rosario vendem-se todos os queijos assados ; das bicas das esquinas e de todos os chafarizes, a agua corre fervendo. —
Conciliárão-se definitivamente os partidos politicos. — As pessoas magras ainda se movem e fallão : o nosso amigo Pitada queixa-se muito do calor, mas ainda se suppõe com forças para resistir. Aquellas que pelo contrario são gordas, já estão prostradas e quasi moribundas ; o Sr.
Camara, que chegara ante-hontem de Petropolis, acaba de morrer. »
« MEIO-DIA. »
« Hoc opus hic labor est, chegou a hora suprema. » -70-
XV
Tudo portanto estava acabado! eu era o unico vivente que se achava na cidade muito leal e heroica; oh! tive vontade de chorar desesperado, como Mario nas ruinas de Carthago!
Via-me prodigiosamente rico : tinha palacios, pertencião-me o thesouro publico, os cofres de todos os usurarios, possuia riquezas incalculaveis: era porém uma espécie de Adão sem Eva, e ainda em cima um Adão, que, em vez de habitar no Paraiso, devia morar em um cemitério descommunal!
Arrependi-me de haver fugido do cometa: mil vezes antes morrer assado do que sobreviver a um tal cataclysmo para ficar em isolamento e na mais completa impossibilidade de ser o tronco de uma nova geração!
Ah Martinho! Martinho! como poderás viver sem aquelle amado e respeitavel publico que te applaudia no theatro, que te encoraja com seus bravos e suas palmas, como ?...
-71-
XVI.
Fazendo estas afflictivas reflexões cheguei á rua do Conde, e por curiosidade entrei na casa da policia.
Triste espectaculo ! O chefe de policia morrera no acto de pagar o subsidio mensal devido a uns dous publicistas independentes, que estavão em pé também petrificados, com os braços estendidos e as mãos abertas para receber os cum quibus. Se houvesse ainda alguém que pudesse olhar para aquellas duas nobres figuras, e reparasse em seus labios entreabertos, adivinharia logo, como eu adivinhei, que os illustrados publicistas tinhão sido torrificados no momento em que dizião : Venha, a nós . -72-
XVII.
Deixei a policia, e para distrahir-me quiz tomar o fresco no campo da Acclamação. O
espirito de classe obrigou-me a penetrar no barracão do Provisorio.
Subi ao salão ; e que scena havia de se offerecera meus olhos?... Ah!... todas as constas da companhia lyrica tinhão morrido no meio de um ensaio! desgraçadas!... liavião feito pausa final... eterna.
Aquellas flores viçosas e bellas ! aquelle formoso grupo de encantadoras fadas !...
aquellas nymphas, ou divindades de belleza arrebatadora e de voz de rouxinol, coitadinhas !
estavão todas prostradas e sem vida; mas nem uma so dellas se esquecera de morrer em posição grave e composta.
E diante d'ellas em pé, como em extasis, porém morto e bem morto, destacava-se a figura do meu amigo Dionysio, de batuta na mão e com o mais terno e suave dos olhares cravado no grupo encantador!
s — 73 —
Ah Dionysio ! foste mais feliz do que eu!
morreste abrasado por dous fogos : fogo do cometa e fogo de amor ! sempre é uma consolação morrer assim. Requiescat in pace.
— 74 —
XVIII.
Quando eu acabava de proferir estas palavras em louvor e honra de meu amigo Dionysio, de subito e inesperadamente, escuto uma voz murmurar:
— Quem falla ahi em amor ?...
Dei um salto : era uma voz humana, o mais apreciavel dos thesouros para mim ; e mais ainda, era uma voz feminina, era a Eva que eu, pobre Adão, ardentemente desejava para bem da humanidade, que não se devia extinguir.
Oh! não se pôde fazer idéa da minha sorpresa, da minha alegria, do meu arrebatamento !
Procurei a bocca por onde havia passado aquella voz, e vi inclinada sobre uma cadeira em um canto do salão, mas quasi moribunda, uma joven corista, e que corista !... a senhora X. P. T.
O., um demoninho tentador que se apaixonara por mim em 1846 em certa noite em que me ouviu canfar a ária do baleeiro.
— 75 —
Corri a ella, abracei-a, suspirei, chorei, e ato cantei-lhe um pedaço da ária predilecta.
— Ainda vive alguém?... perguntou-me com voz sumida a divindade.
— Eu só, eu só ; respondi-lhe ancioso: eu só, que serei o teu Adão, porque tu vas ser a minha Eva.
A corista deu um muxoxo, fez um momo, e fechou os olhos.
— Vive ! vive!... é necessario qui vivas!...
— Para que?... tornou-me ella.
— Para não se acabar o mundo, minha filha;
para arranjarmos um artigo additivo á humanidade, que está em risco de se extinguir de todo.
Olha, minha corista, o destino do globo terráqueo está nas nossas mãos.
— Ora!... nem ao menos eu acharia com quem cantar um coro...
— Cantaremos um duetto, menina!
— Não... não... de que me serviria viver ?...
que poderia eu ser ainda ?...
— Minha mulher, pequena!
— Tua mulher ?... ora essa!... se eu fosse agora tua mulher... como tu és o unico homem no mundo, nem ao menos eu poderia pregar-te um mono!
E inclinando a cabeça... exhalou um suspiro, que me pareceu o ultimo.
— 76 —
XIX.
Abracei-me desesparadamente com a corista :
chamei-a pelo seu nome, ajuntando a este todos os epithetos ternos, amorosos e poéticos, de que se usa nas comedias ; beijei-a dez, cem, mil vezes, beijei-a tanto, e tanto, que por fim de contas a corista abre de novo os olhos, sorri...
suspira... solta uma risadi-nha magana, e...
levantando-se de repente, escapa dos meus braços, e deita a correr pelo salão fora.
Estava visfoTque eu devia correr atraz d'ella:
reuno todas as minhas forças, dou um arranco, e...
Acho-me no chão gemendo com uma horrível dôr nas costellas.
Reconheci que acabava de sahir do dominio de um sonho tão longo como penoso, que me fizera cahir da cama abaixo no momento em que ia correr atraz da corista.
E apezar da dôr que sinto nas costellas, dou graças a Deos ; porque hoje é o dia 13 de Junho, e não ha de acabar-se o mundo.
O MARTINHO.
O ROMANCE DE UMA VELHA
O ROMANCE DE UMA VELHA
I.
D. Violante é uma respeitavel senhora, veneranda Epaminondas do sexo feminino, que a tal ponto leva o seu amor á verdade que nem ao menos encobre que já completou sessenta e um annos de idade. É uma mulher prodígio que não soffre de ataques nervosos quando sòa a seus ouvidos o nome — velha.
Tem havido no mundo velhinhas capazes de abrasar corações, e até mesmo cidades ; por uma velha chamada Helena foi abrasada Troya, e Ninon de Lenclos ainda aos oitenta annos de idade inspirou ardente paixão a um mocetão.
— 80 —
Mas as Helenas e as Ninons são raridades, e D.
Violante também o é, mas de outro genero. D.
Violante aos vinte annos, isto é, na flor da sua mocidade, era uma mumia; aos sessenta e um transformou-se no mais feio bicho : é horrivel!...
A vista d'esta declaração, é positivo que não ha um só homem bastante animoso para lembrar-se de pedir noticias de D. Violante, e para interessar-se por ella : pobre velha !... está condemnada á morte previa do geral esquecimento... talvez repitão já a respeito d'ella um epigrammatico parce sepultis !
Está morta... não ha duvida.
Entretanto essa respeitável senhora, apezar de ser feia como uma fúria, herdou ha alguns mezes uma fortunasinha de trezentos contos de reis !
Surrexit... resuscitou a defunta.
Quantos corações apaixonados não ardem já em desejos de rolar aos pés da boa velha, a ver se ella os levanta carinhosa e os embrulha no papelorio dos trezentos contos !...
Um estudante de dezoite annos, um poeta que nunca poude aprender as quatro operações d'arithmetica, e um artista que sonha com a gloria, estão jurando que nunca se lembrarião de bater palmas na escada da casa de D. Violante.
São tres anachronismos que não podem — 81 —
representar a epocha actual : uma cabeça de estudante, uma cabeça de poeta, uma cabeça de artista fazem tres cabeças que sommadas apresentão em resultado uma grande cabeça cheia de vento e igual a zero.
Trezentos contos de reis!... trinta e seis contos de renda annual cahindo na palma da mão sem usura e sem trabalho !... um homem sentado na sua poltrona e no mais doce farniente, fumando o seu coronel — porque hoje em dia já se fumão coroneis, e o dinheiro a chover-lhe em cima!...
trezentos contos de reis! isto é, boa cama e boa mesa, amigos a fartar, amantes a escolher, um coupé, cavallos de raça, theatros, bailes, uma excellencia de facto, formosura de direito, sabedoria de improviso, nobreza de encommenda... oh ! eis ahi uma realidade sublime!
Vale bem a pena carregar com uma velha furia por trezentos contos de reis !
Mentira ! ninguém pôde ser furia tendo de seu trezentos contos de reis.
D. Violante é um anjo.
Vamos fazer uma visita a essa interessante senhora... contemplemol-a de perto... ouçamos a sua voz, que forçosamente' deve ter a suavidade e a harmonia do tinir do ouro.
Vamos.
D. Violante está com a cabeça mettida em — 82 —
uma touca e o nariz atravessado por uns oculos :
sentada em uma cadeirinha baixa, depuzera sobre a mesa que tem perto de si, um livro, a historia do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, que pela duode-cima vez estava lendo, e conversava com sua sobrinha, a jovem D.
Clemência, que viera passar o dia com ella.
Dezoito annos, belleza, graça, espirito, faceirice, sensibilidade, inexperiencia, credulidade e esperança, eis o que é D.
Clemência. Não póde, apezar de tudo ser uma perfeição, e ha de ter por força seus defeitosinhos ; sobre-sáe porém. n'ella um unico defeitosão ;
não é um dedo aleijado, nem olho vesgo, nem nariz torto, mas é peior do que tudo isso junto, é uma noiva sem dote ; o pai ganha bastante para viver e tratar com decencia sua família ; mas por isso mesmo a sua carteira anda sempre tão magra como os cofres da câmara municipal da corte. Já se vê que é uma carteira ordinariamente affectada de phtisica.
A theoria das compensações estava alli assentada sobre o elegante penteado da moça e entre as pregas amarrotadas da touca da velha.
Achava-se travada a conversação : D. Violante não era impertinente nem severa, D. Clementia não era timida nem hypocrita — 83 fallavão ambas portanto com expensão e liberdade.
A scena passava-se no dia 20 de Setembro, dous dias depois do baile da inauguração do Cassino, e a romanesca joven descrevia com enthusiasmo aquella festa esplendida e brilhante.
— Ah Clemência! disse emfim a velha;
também por uma noite de baile fallas com um fogo que me parece de mais.
— É porque no baile está o maior e o mais bello triumpho da mulher ; é porque no baile a mulher é rainha e conquistadora, avassalla corações,faz dos homens escravos,e esquece horas que passão voando, no meio de hymnos e de suspiros, e de apaixonadas confidencias, que enchem a alma de esperanças e o futuro de flores... em uma palavra, é porque a mulher tem todas a sua felicidade dependente só de amor, e porque em um baile tudo e a cada instante lhe está repetindo — amor ! amor !...
— Que dizes tu ?... amor ?....
— Sim, minha tia, e um amor puro e santo, o amor que realisa os seus queridos sonhos, e assegura o seu futuro, o amor que aperta os laços mimosos do hymenêo.
— Estás muito enganada, minha sobrinha;
esse amor de que fallas, era, sim, o amor do — 84 —
meu tempo ; mas desde muito que fugiu espantado da cidade do Rio de Janeiro... hoje em dia ninguém mais sabe amar... ninguém mais ama n'esta cidade interesseira e prosaica...
— Misericordia, minha tia !
— A civilisáção e o progresso matarão o amor!...
— E um paradoxo...
— Vou demonstrar o que digo.
Uma velha a raciocinar sobre o amor parece talvez uma alma do outro mundo a querer tomar parte nos gozos dos vivos ; não importa :
devemos ouvil-a.
D. Violante pretende provar que ninguém mais ama em uma cidade onde ha moças que contão só de primeiros amores, ás vezes, uma duzia, e homens que têm cada dia da semana destinado para uma namorada, como os pedintes de irmandades, que têm uma opa differente para cada dia da semana.
Já se vê que é injustiça e embirração de velha ;
mas deixemol-a fallar.
— Minha sobrinha, escuta : o amor é uma espécie de systema representativo que sern opposição degenera, e torna-se em agua morna ;
o amor vive de desejos que por muito tempo flammejão debalde, de esperanças que morrem e revivem, de saudades que o alimen-tão na ausencia ; o amor brilha na adversi-
-85-
dade redobra de força diante dos obstaculos, e é todo magia e encanto quando se occulta na sombra e no mysterio. O amor foge da luz sem ser coruja, adora o segredo das negociações pendentes sem ser ministro dos negocios estrangeiros, maldiz da publicidade sem ser chefe de policia, e salta por cima das regras ordinarias, do direito e dos leis sem ser poder executivo.
— E que mais, minha tia ?
— No outro tempo, no meu bom tempo, o amor tinha por seu ninho predilecto a cidade do Rio de Janeiro : e porque?... eu te digo : porque o amante para ver a sua amada esperava um momento propicio roubado á vigilância dos pais e tutores desconfiados ; e para fazer-lhe chegar as mãos um bilhetinho amoroso, vencia mais trabalhos que Hercules. Então havia a distancia, a ausencia, e portanto a saudade : havia um espaço immenso, um muro enorme que impedia que os amantes se fallassem, e amor industrioso dava voz e eloquencia ás flores, e o botão de rosa e o cravo branco, a saudade e a sempre-viva, a flor de laranjeira e a perpetua, dizião mais e melhor do que um discurso de copo d'agua na camara dos deputados. Havia emíim opposição e receios, esperança e temores, sombra e mysterio, e portanto havia amor. — 86 —
— E agora, minha tia ?
— Agora tudo isso acabou ; os pais mandão as filhas fazer sala aos mancebos que os visitão, e os bailes empurrão-as para os braços dos namorados fingidos : d'antes a difíiculdade consistia em aproveitar uma hora de conversação; hoje um moço e uma moça tratão de amor em casa, nos theatros e nos bailes, como dous agiotas que na praça do commercio conversão sobre os lucros prováveis das acções de uma empreza, em cujos resultados elles mesmos não acreditão.
— É demais !
— Qual! é de menos : já não se póde amar no Rio de Janeiro, repito ; a civilisação e o progresso espantarão o amor: a ausencia e a distancia, e portanto a saudade, desapparecerão com a estrada de ferro, que em duas horas põe em frente um do outro dous mal chamados amantes, que vivem separados a dez leguas : já não ha noite, nem sombra, nem pódet haver mysterio na cidade ; a illuminação a gaz dissipou de uma vez para sempre as trevas ; ninguém mais se lembra de escrever uma cartinha de amor, nem de mandar um recado disfarçado em algumas flores ; hoje quem não tem tempo de dizer em alta voz o que pretende á sua namorada, vai a um jornal, e manda publicar nos artigos a pedido tres ou quatro — 87 —
linhas desenxavidas com duas ou tres iniciaes em cima, e outras tantas em baixo, e está escripta a missiva de amor !... minha sobrinha, agora não ha mais amor, ha calculo ; não ha mais amantes, ha calculistas; não ha mais amadas, ha calculadas.
— Então, actualmente o amor...
— É uma operação de arithmetica...
— E o casamento...
— Un negocio ..
— Minha tia vive longe da sociedade moderna, e a julga com uma prevenção que a leva ao erro.
Fuja d'este retiro a que se con-demnou, volte ao mundo elegante e bello, e mudará de opinião.
Resolva-se , minha tia, resolva-se a freqüentar comigo o Cassino, o Club Fluminense, os bailes, os theatros...
— Não... não...
— E porque ?...
A velha desatou uma gargalhada medonha, e respondeu :
— Porque não quero roubar-te os namorados que te requestão.
Por sua vez a moça rio, e rio tanto que D.
Violante enfiou.
— De que te estás rindo, louquinha?...
— Da sua idéa, minha tia.
— Com franqueza, pensas então que seria — 88 impossivel que chegássemos a ser um dia rivaes?
— Com franqueza, penso.
— Quantos pretendentes tens, minha sobrinha?
— Tres.
— É pouco ; mas não importa : ficarás sem um só d'elles.
— E quem m'os ha de tomar ?
— Eu.
A moça tornou a rir, e mais ainda.
— Eu, repetio a velha.
— Vossa mercê, minha tia ?
— Eu mesma : vou freqüentar os teus bailes e os teus theatros, e hei-de ir a elles de touca e de oculos, como me estás vendo..
— E julga que será amada ?...
— Amada, não ; calculada sim.
— Que extravagancia, minha tia !
— Hão-de preferir-me a ti, vel-o-has.
— A mim ?... moça e bella ?...
— Duvidas ?...
— Não duvido, estou segura.
— Pois bem, apostemos !
— Apostar?...
— Sim; aposto que íicas sem um só dos teus apaixonados.
— Pois bem ; aposto. 89 —
— E aquella que perder — Recolher--se-ha ao convento da Ajuda — Coitadinha da freira!... exclamou a velha.
—90—
II.
Era uma noite de baile.
Não diremos onde e quando foi celebrada essa festa profana : devemos respeitar as conveniencias e esconder entre os véos do mysterio tudo quanto possa revelar os verdadeiros nomes das personagens que figurão na historia, cujo fio vamos seguindo.
Estavão no baile a nossa feia velha D. Violante e a nossa linda joven D. Clemencia, e, como satellites d'este bello planeta, achavão-se também no baile os tres pretendentes, que ella chamara os seus tres namorados, e que D. Violante reputava tres calculistas.
Tres namorados !...
Pois então que admira isso?... uma bella moça não vale menos do que uma pasta ministerial, e cada pasta ministerial tem mais de trinta pretendentes que a namorão com desespero.
E que mal vai em que uma moça seja requestada não só por tres, mas ainda por dez ou doze namorados?... a moral fica salva desde que ella não corresponda a mais de um, e é — 91 —
cousa assentada e facto reconhecido que não ha uma unica senhora que attenda aos cumprimentos apaixonados de mais de um, de cada vez.
Vamos á historia.
Mas esperem um pouco : lembra-nos agora que ainda não dissemos uma só palavra a respeito dos taes pretendentes de D. Clemência.
Cumpre-nos conhecel-os.
Um é o socio novo de uma casa commercial, que nascera e vivia por milagre do credito : este namorado chama-se Antônio.
O segundo é um Doutor, mocetão ainda, e com balda de estadista : chama-se Ambrosio.
O terceiro é um elegante do passado, e do presente, e que ainda espera sêl-o no futuro ;
chama-se Claudiano.
O Sr. Antônio é homem positivo ; sente e sabe que tem o coração palpitando por baixo da algibeira onde guarda a carteira ; tem seu geito para a poesia, e pretende escrever um poema heroico á arithmetica, reservando o mais sublime dos seus cantos para a conta de multiplicar;
sujeita tudo no mundo ás regras do deve e ha-de haver, e tem consciencia de que deve uma boa duzia de contos de réis e que ha-de haver uma noiva com um dote sufflciente para arranjar-lhe a vida. O doutor, se é medico não tem doentes, se é — 92 —
advogado não tem clientes, e portanto cheio de patriotismo deseja curar as enfermidades ou pleitear sobre as causas do Estado ; para isso falta-lhe somente uma escada que o leve as altas regiões do poder, e não sendo nem afilhado, nem parente de potestade eleitoral alguma, anda á caça de uma noiva rica bastante para com seu dote tornal-o sabio e benemerito.
O Sr. Claudiano não quer nem quiz jamais saber de commercio nem de política; foi, é, e será um exclusivo adorador das damas, adora todas, adora as ricas e as pobres, as costureiras e as fidalgas ; mas sobretudo morre de paixão por quatro, que são as de páos e de espada, de copas e de ouros.
Aos vinte e cinco annos herdara grandes cabedaes, aos trinta e cinco achou-se sem vintém, e aos quarenta e cinco está coberto de dividas ;
ardendo porém sempre em seu amor pelas damas, trabalha por encontrar uma dotada com quem se case, e que lhe proporcione os meios de continuar a render tributos de vassallagem ás quatro predilectas.
Assim pois a velha D. Violante não andou muito errada em seu conceito; são tres calculistas os tres pretendentes da sobrinha.
Sendo porém tres calculistas, como lembra-
— 93 —
rão-se elles de declarar-se namorados de uma moça pobre?...
A explicação é simples : ha namorar e casar.
Os calculistas, e são tantos... tantos!... não casão com as mulheres que recebem á face da joreja : casão com o dote que ellas lhes trazem; o dote é o essencial, a mulher um annexo que o calculista carrega porque não tem outro remedio ;
tomando a cousa debaixo de um ponto de vista grammatical, o casamento é um período, no qual o dote é a oração principal, a mulher a oração subordinada, e o amor a oração incidente.
Entre os calculistas, quando se trata de algum amigo que acaba de casar-se, nenhum pergunta se desposou alguma senhora virtuosa e bella.
— Casou bem?... pergunta um a outro que lhe entende a giria.
— Menos mal, responde o parceiro; casou com tantos contos de dote.
Então?... digão : quem é a noiva n'este caso ?...
é a mulher ou o dote ?
E a esta pouca vergonha chama-se ter juizo.
Eis ahi o que é casar. Namorar é muito differente. Os calculistas namorão muitas vezes para se divertir. O verbo divertir é n'este caso um ver-
— 94 —
dadeiro insulto feito ás senhoras ; mas quem as insulta é somente aquelle ou são aquelles que se divertem com ellas.
O caso é que este divertimento é muito commum.
Namorão uma moça pela mesma razão porque vão ao theatro, ao jardim botânico, a uma parada da guarda nacional em dia de grande gala;
namorão por passatempo ; e o amor está em tal caso tão longe do namoro, como estão as idéas religiosas longe do espirito do maior numero d'aquelles que açodem a ver passar uma procissão.
Seguindo estas theorias, os calculistas preferem naturalmente namorar uma moça bonita a perder o seu tempo com uma feia, e não receião comprometter-se por isso : acabada a hora destinada ao passatempo, os calculistas ficão frios como o gelo : os olhos mais bellos e mais ardentes do mundo, sendo olhos de moça pobre, por mais settas que dardejem, não ferem aquelles corações. Achilles mergulhado na lagoa Estyge ficou vulneravel pelo calcanhar, porque o calcanhar escapou ao banho ; os calculistas nem pelo calcanhar podem ser feridos, porque sabem viver perpetua e incessantemente mergulhados, totalmente mergulhados no golphão da cubiça, e de um interesse que muitas vezes é sordido.
— 95 —
Eis aqui explicado o segredo do namoro dos tres pretendentes de D. Clemência.
Pobre moça !... está de certo condemnada a entrar para o convenio d'Ajuda.
Basta de explicações : continuemos a historia.
Era, como dizíamos,- uma noite de baile.
Antônio, Ambrosio e Claudiano estavão juntos a conversar perto da porta de um gabinete que communicava com a sala : sem incommodar-se com o furor do ciume, todos tres admiravão as graças e a belleza de D. Clemência, que estava sentada defronte e ao lado de sua tia.
D. Clemência mostrava-se mais formosa que nunca : o seu toilette era simples, mas admivel de bom gosto.
D. Violante destacava-se no meio de todas as senhoras pelo ridiculo de sua figura : trazia n'essa noite oculos de quatro vidros, e uma touca ornada de fitas de todas as cores, e de laços de todos os feitios. Os tres namorados conversavão.
— Realmente, a D. Clemência é sublime !
disse Claudiano, sublime como um trinta e um batido de tres azes!... que mocetona! é pena ser pobre.
— É verdade!... acudio Antônio; é uma flor — 96 —
sem perfume... é como um banco sem fundo de reserva metallico.
— Tal e qual, observou o doutor ; é como um ministério cujo programma é magnifico, mas que não tem maioria nas camaras.
— E que espécie de macaca enfeitada é aquella que está ao lado de D.Clemência?perguntou Antônio.
Os dous em vez de responder desatarão a rir.
D. Clemência acompanhava de longe a conversação dos tres : comprehendeu primeiro que era d'ella que tratavão, e logo depois adivinhou que sua tia era o objecto de crueis zombarias.
Aproveitando aquella opportunidade, convidou a velha a seguil-a, e sahindo da sala, foi entrar no gabinete por uma outra porta.
— Para onde me levas, menina?... perguntou D. Violante.
— Quero mostrar-lhe os meus tres pretendentes.
— Ah! os meus tres futuros namorados...
— Seja assim ; mas venha de manso para que elles não nos vejão logo.
D. Clemência parou junto dos tres amigos que continuavão a conversar, mal cuidando que as duas senhoras os podião ouvir.
— Com effeito, dizia o doutor, é a velha mais feia que tenho visto em minha vida ; sahindo ao -97-
lado de D. Clemência, parecia-me um demonio arrastado por um anjo !
— Devião mandal-a para o musêo como raridade, e arrumal-a na sala das mumias, observou Antônio.
— Se aquella mulher fosse dama de algum naipe, exclamou Claudiano, eu juro que nunca pegaria em um baralho de cartas.
D. Clemência arrancou a velha do fatal gabinete, e disse-lhe ao ouvido :
— Eis ahi os meus tres pretendentes, minha tia.
A moça tinha sido demasiadamente cruel; mas procurava assim vingar-se das pretenções de D, Violante; esta porém impávida, insensivel aos sarcasmos que ouvira, respondeu á sobrinha, dizendo:
— Prepara-te para ser freira, Clemência.
— Ainda !
— Mais do que nunca; aquelles homens serão meus escravos antes de quinze dias.
As duas senhoras entrarão de novo na sala e forão occupar as mesmas cadeiras que tinhão deixado, e quasi ao mesmo tempo uma filha do dono da casa sentava-se junto dos tres amigos.
— Minha senhora, disse o doutor, será ver dade que V. Ex. quiz, além de extasiar-nos com a magnificencia do seu baile, sorprehender-nos — 98 —
também com a exposição de uma raridade espantosa, de um animal ainda mais feio do que o gigante Adamastor ?...
— Que quer dizer, Sr. Doutor ?...
— Quer dizer, minha senhora, acudio Antônio, que todos nós estamos doudos para saber que bicho é aquelle que está sentado junto de D.
Clemência.
A moça mordeu os labios para conter uma risada.
— V. Ex. convida almas de outro mundo para os seus bailes?perguntou Claudiano.
— Mais respeito, meus senhores, respondeu a joven: aquella senhora é tia de D. Clemência, e se nunca achou marido, foi porque somente ha pouco tempo, e depois de velha, veio visital-a a fortuna, trazendo-lhe de presente trezentos contos de reis.
— Trezentos contos de reis!... exclamarão todos ao mesmo tempo.
D. Violante percebeu a exclamação, e fallando ao ouvido da sobrinha, disse-lhe :
— Repara bem, menina; os teus tres pretendentes vão começar a achar-me formosa.
A musica soou n'esse momento, annunciando uma quadrilha.
— 99 —
III.
— Trezentos contos de reis... tinhão exclamado os tres calculistas, ouvindo a informaçãoque a respeito de D. Violante lhes dera a filha do dono da casa.
E logo depois, embebendo os olhos cubiçosos na touca e nos oculos da velha, todos tres a um tempo e como de ajuste, murmurarão baixinho, suavemente, e saboreando a doçura das palavras que pronunciavão :
— Trezentos contos de reis!...
E cahírão em profunda meditação.
Não ouvirão mais a musica brilhante que soava, não sentirão o doce contacto dos vestidos magníficos que passavão, roçando ás vezes pelos seus joelhos, não se moverão ao ruido gracioso de confidencias mysteriosas que perto d'elles se fazião... nada mais os occupava, nada: os tres grandes philosophos da modernissima escola meditavão profundamente, tendo porém os olhos sempre embebidos na touca e nos oculos da velha.
E a sua meditação era a mesma, era iden-
— 100 —
tica : achavão-se todos abraçados com uma só idéa.
Que admiravel solidariedade... na essencia erão todos tres um só : divergião apenas nos detalhes : erão pouco mais ou menos como qualquer dos nossos ministerios, parlamentares por excellencia, nos quaes os ministros são solidários em tudo quanto diz respeito ao amor do bello, e brigão sempre entre si nas questões do detalhe.
Erão solidarios na paixão ardente que já lhes estava inspirando a velha, e pensavão todos tres como se fossem um só, dizendo cada um comsigo mesmo :
— Uma velha bem velha é preferivel a uma moça bem moça, quando são igualmente ricas, se se trata de casamento : é preferível, porque a velha naturalmente não exclue a moça, e esta naturalmente èxclue aquella. — Sim; uma moça tem uma longa vida diante de si, e não morre nem á força de bailes e de theatros, e nem á força de ceias e de vigilias ; e portanto uma moça quer dizer um casamento sem viuvez, isto é, um dote só !... Chama-se a isto meia fortuna. A uma noiva bem velha carrega-se de brilhantes, leva-se incessantemente ao theatro e aos bailes, e lá dáse-lhe sorvetes quando o calor é mais intenso, trata-se de cercal-a de mil fingidos cuidados ; na mesae de noite prin- — 101 —
cipalmente, pede-se lhe que coma muito, e de muitos pratos, e ás duas por tres vem uma boa indigestão, leva o diabo a velha, fica uma pingue herança, e vai-se procurar então a moça rica :
chama-se a isto dous dotes — uma fortuna inteira. — Não ha nada como uma velha bem velha e bem rica!..
E portanto o bicho, o animal ainda mais feio do que o gigante Adamastor, a alma do outro mundo, a macaca enfeitada, não é isso, não ; não é : pelo contrario é um anjo Até aqui a solidariedade.
A divergencia nos detalhes era muito natural.
O Sr. Antônio pensa que casando com D.
Violante ganhará tanto como se quebrasse duas vezes : vê avultar o seu credito na praça, premedita organisar uma empreza de lucros problematicos para os accionistas, e seguros para si, e suspira, lembrando-se dos gozos e das glorias de capitalista.
O Dr. Ambrosio vê-se deputado ; dá sota e basto na Camara; arranja empregos para os parentes, e duas ou três sinecuras para si; não vota em opposição nem pelo diabo, e com uma consciência em leilão, e com uma bocca aberta e capaz de engulir o mais monstruoso dos pães de ló da mesa do orçamento, alto e bom som de clara que é um homem indepen- — 102 —
dente, porque tem uma fortuna de trezentos contos.
O Sr. Claudino imagina-se jogando o Zansquenet tres noites por semana, e parando contos de reis em todas as damas ; e outras tres noites vê-se cercado de jovens espirituosas que o admirão, que o festejão, que o amão, e que o fazem atraiçoar a sua velha.
E quem paga tudo isto... as glorias do capitalista — a independencia do estadista — as orgias do dissoluto... é a fortuna de trezentos contos de reis de D. Violante.
Ah !... se as velhas tivessem juizo!...
A meditação dos três sublimes calculistas tinha durado meia hora.
Hão-de talvez pensar que foi pouco tempo para tão longas reflexões.
Ora !... em menos de meia hora também um deputado ou um senador escreve em cima da coxa uma emenda ou um artigo additivo, que põe em desordem a administração publica, ou em largo tributo o suor do povo.
Defronte dos tres calculistas, D. Violante cuidadosae attentaos observava, provocando a cada momento a vaidosa sobrinha, que nem sequer tolerava a idéa de uma lucta seria com sua velha tia.
Pobre moça! acreditava mais no seu espelho do que no cofre de ouro de D. Violante.
— 103 —
_ Menina! disse a velha; quem já teria ido dizer aos teus tres pretendentes que eu sou solteira e possuo trezentos contos de reis?...
— Porque, minha tia ?
— Ora porque!... não vês como elles me estão devorando com os olhos ?...
— Estão admirando a sua touca, minha tia, respondeu a moça sorrindo.
— A touca, e também os oculos, embora ; mas qualquer dos três morre já de amores por mim.
Clemência olhou para Violante, e vendo a seriedade com que ellafallava, não poude conter uma risada.
— Ah! tu zombas de mim, infeliz vaidosa?
pois bem : eu queria poupar-te ainda esta noite ;
uma vez porém que me desafias, juro-te que te has de retirar do baile com o desespero no coração.
— Que vai então fazer ?...
— O que tu fazes ; corresponder aos requebros e cumprimentos dos teus tres namorados.
— Minha tia... veja o que faz... não se exponha ao ridiculo...
— Que ridiculo! a riqueza é uma cousa muito seria, minha sobrinha, e ninguém, ri de um cofre de ouro, ainda mesmo que elle faça caretas.
— Já vio algum cofre fazer caretas ?... — 104 —
— Tola, o cofre de ouro sou eu ; e quem te vai roubar os tres namorados não é a velha, é o seu dinheiro.
— Minha tia faz umaidéa dos homens...
— Amais justa que é possível : o mundo ou a sociedade, Clemência, transformou-se em um immenso mercado, onde tudo se compra e principalmente maridos.
— Ah! meu Deus !
— É verdade : não dansas hoje com aquelles senhores?...
— Danso : a terceira quadrilha com aquelle que está calçando as luvas...
Era o Sr. Antônio.
— A quarta com o que está roendo as unhas...
Era Claudiano...
— E a quinta com aquelle que está com as mãos sobre a barriga.
Era o Dr. Ambrosio : o futuro estadista, o homem de bossa politica, que já então afagava a barriga!!!
A velha começou a cumprir a sua palavra e com horriveis tregeitos e mal arrajados sorrisos foi pagando os olhares enternecidos, que sobre ella dardejava cada um dos tres apaixonados de Clemência.
A terceira quadrilha ia principiar.
O Sr. Antônio veio offerecer o braço a CleI
— 105 —
mencia, e aproveitou a occasião para dirigir um eloqüente cumprimento á velha, que lh'o pagou com uma phrase animadora.
Antônio e Clemência collocárão se na quadrilha perto de D. Violante, que ficara sentada : Antônio voltando-se um pouco podia vêl-a e até fallar-lhe : esqueceu-se pois das contradansas e do seu formoso par...
Clemência a principio divertio-se com a contemplação em que estava o seu cavalheiro ;
em breve porém acabou por irritar-se.
O Sr. Antônio perdia pelo menos dous compassos em cada contradansa ; uma vez offereceu a mão a D. Violante em vez de offerecel-a a Clemência, e outra atirou desastradamente com o leque da linda moça no meio da sala.
Clemência, acabada a quadrilha, sentou-se visivelmente incommodada.
— Que tens, menina ?... perguntou-lhe a tia.
— Eu, nada... mas aquella homem é mais grosseiro do que eu podia suppôr...
— Qual grosseiro ! é a paixão que já lhe faz andar a cabeça á roda,..
— Paixão por quem, minha tia !
— Pelo meu dinheiro, está visto : olha, a tua rival não sou eu, nem a minha touca; é a minha fortuna. — 106 —
Clemência voltou o rosto.
Na quarta quadrilha a formosa moça foi ao menos mais feliz : Claudiano, apezar de lançar de vez em quando amorosas vistas para Violante, portou-se como um cavalheiro delicado e cheio de cortezia : também, acabada a quadrilha, Clemência pagou-lhe com, usura concedendo-lhe um longo passeio.
No entanto, a cadeira cm que se sentava Clemência, foi por momentos occupada pelo Dr.
Ambrosio.
— V. Ex. não dansa? perguntou elle á velha.
E, o que é mais, perguntou sem rir.
— Oh! não zombe de mim; respondeu ella, quem se animaria a dansar com uma velha ?...
— Velha!... exclamou o doutor; V. Ex.
calumnia os seus trinta a trinta e cinco annos.
— Tenho sessenta e um, meu senhor.
— Sessenta e um! é incrivel!... mas também Ninon de Lenclos era moça aos oitenta annos, e creio que ainda dansava n'essa idade.
— Ora...
— Conceda-me V. Ex. a honra de uma quadrilha...
— Senhor!...
— V. Ex. deve ser um anjo dansando... e eu julgar-me-hei no paraiso, se tiver a gloria de ser o seu cavalheiro. — 107 —
— Está fallando seriamente ?
— Eu juro pelos seus encantos, minha senhora...
— Pois bem... dansaremos a quinta quadrilha.
Era a quadrilha ajustada com Clemência.
— A quinta... balbuciou o doutor ; se pudesse ser outra...
— Ah! eu logo vi que era victima de uma zombaria...
— De modo nenhum... mas é que eu estava engajado para a quinta quadrilha com...
— Como lhe parecer ; mas já agora, ou ha de ser a quinta ou nenhuma.
— Pois seja a quinta, minha bella senhora, exclamou promptamente o doutor.
Entravão n'esse momento na sala Claudiano e Clemência.
O Dr. Ambrosio levantou-se para deixar livre a cadeira de Clemência.
A velha lançou os olhos Claudiano, e vio-lhe no peito um ramosinho do violetas.
Ora, Clemência tinha na mão um bouquet de violetas : a origem do raminho era pois evidente.
— Feliz de quem passeia n'um baile ! disse a velha quando Clemência sentou-se.
— A felicidade será de quem puder passear com V. Ex., observou Claudiano.
— 108 —
— Pois façamo-nos mutuamente felizes, respondeu Violante, levantando-se e tomando o braço de Claudiano, que estremeceu ao con-tacto da mão da velha.
Os dous sahírão da sala.
O passeio durou cerca de vinte minutos : no fim d'elle Violante veio sentar-se ao lado da sobrinha, e agradaceu com a mais refinada amabilidade a Claudiano, que se retirou enthusiasmado, depois de beijar a mão da velha.
Passarão alguns instantes de silencio :
Clemência não ria mais.
De súbito D. Violante tocou-lhe no braço e perguntou-lhe :
— Gostas muito das violetas, menina ?...
Clemência voltou-se e corou até a raiz dos cabellos, vendo no mão de sua velha tia o raminho de violetas que estivera no peito de Claudiano.
Era a segunda victoria que Violante alcançava n'aquella noite: era a segunda derrota que Clemência experimentava n'aquelle baile.
Mas a musica soou...
— Ao menos agora trata-se de um homem de lettras, disse comsigo a bella moça ; e por tanto o triumpho será meu... Pobre D.
Clemência! esquecia-se de que as lettras se descontão !... O Dr. Ambrosio approximava-se...
— 109 —
Clemência ia já levantando-se para aceitar o braço do cavalheiro, quando vio que sem a menor ceremonia elle offerecia a mão a Vilante.
A moça deixou-se cahir sentada na cadeira como fulminada por um raio.
— Não dansas esta quadrilha ? perguntou-lhe a velha terrivel.
— Oh!... ainda bem que a não danso!
exclamou Clemência; reconheço que me rebaixaria muito se a dansasse !...
— Minha Senhora, disse o doutor Ambrosio a Violante, a musica nos chama... a gloria me espera...
— Não, não, tornou a velha: minha sobrinha está incommodada, e vai de certo retirar-se : não posso deixar de acompanhal-a.
E também por sua vez o Dr. Ambrosio retirouse desapontado.
Era a terceira victoria da velha, e a terceira derrota da moça.
Tres vezes o ouro triumphára da belleza n'aquella noite.
— 110 —
IV.
É facil a qualquer imaginar que noite amargurada e dolorosa passou a pobre Clemência, depois da tríplice derrota que soffrêra no baile.
A sua vaidade de moça formosa tinha sido profundamente ferida, porque nem lhe era dado rir-se e zombar dos triumphos da velha.
Violante, mais habilmente do que se devia esperar, tinha collocado a questão no seu verdadeiro pé, dizendo: « Clemência, a tua rival não sou eu, é a minha fortuna » ou por outra: « a lucta é entre a formosura e a riqueza. »
E a riqueza estava arrancando todos os louros á formosura.
Apenas chegada á casa, Clemência correu a fechar-se no seu quarto, e indo buscar um retrato que tinha de sua tia, e em que o daguerreotypo com a sua reconhecida fidelidade reproduzira a velha com todos os traços feissi-mos do seu semblante, e ainda com a touca e os oculos de que usava, a moça fixou-se de- — 111 —
fronte do toucador, e ora olhando para a sua propria e encantadora imagem, ora para o retrato de Violante, exclamava de instante a instante :
__ E poude vencer-me!... e poude vencer me!
E uma vez que apertou convulsivamente o retrato em suas mãos, sentio maguados os finos e delicados dedos... Olhou, e vio que essa impressão incommoda era devida a uma preciosa cercadura de brilhantes que ornava o retrato.
— Os brilhantes !... disse ella; é isso mesmo !
são os brilhantes que me ferem e que me fazem gemer ; são estas pedras que brilhão mais do que os meus encantos e do que as minhas virtudes !...
Oh ! minha tia tinha razão !
O pranto não pôde correr sempre, a colera e o despeito abrandão-se pouco a pouco, principalmente no coração de uma moça, que nunca deixa de sorrir á esperança.
As dez horas da manhã do dia seguinte, Clemência levantou-se menos afílicta e mais resignada.
— Agora o que cumpre, disse ella gracejando comsigo mesma, é não perder a aposta para não entrar para o convento d'Ajuda : sim, cumpre que minha tia não ganhe a aposta :
porém como ? Ora... sempre hei de achar um meio...
— 112 —
E desatando os seus formosos cabellos, começou a pentear-se e a meditar.
Ah ! uma moça defronte do toucador, quando não tem um theatro, um passeio, um baile que a espere, e que com suaves e carinhosas mãos principia a brincar, a anellar, a alisar, a festejar seus cabellos, que sabe que são bellos, é a mais esquecida e também a mais occupada e feliz das creaturas.
É portanto excusado dizer que Clemência meditou até depois do meio-dia, e quando concluio o seu penteado estava animada, risonha, e com um ar de malícia que tinha alguma cousa de sinistro para a velha tia, ou pelo menos para os tres calculistas.
Quinze dias correrão depois d'aquella noite de baile em que tanto soffrêra a vaidade de Clemência.
Violante havia escripto no fim de umo semana á sobrinha, communicando-lhe que a triplice paixão que a sua fortuna inspirava, ia em muito bom caminho : que em breve contava receber tres pedidos de casamento, e que portanto cumpria que Clemência se dispuzesse a entrar com a maior brevidade para o convento da Ajuda, conforme a condição da aposta feita entre ellas.
A moça não mais se admirou das faceis conquistas realisadas por sua tia, mas também — 113 —
não se incommodou com a noticia : tinha concebido um plano que lhe parecia seguro para não perder, ou pelo menos para não deixar Violante ganhar a aposta, e assim limitou-se a responder a Violante, pedindo-lhe que a prevenisse do dia em que tinhão de effectuar-se os pedidos de casamento.
No fim dos quinze dias cujo correr mencionamos, Clemência recebeu de sua velha tia um bilhete contendo estas unicas palavras :
« Vem jantar comigo amanhã, sem falta. »
É portanto amanhã, disse comsigo Clemência.
E é desnecessário accrescentar que não faltou ao convite.
— Então, minha tia, é hoje o dia feliz do seu triplice e completo trimpho ?...
Sim ; hoje receberei os meus tres pretendentes, que cada um por sua vez, ou todos ao mesmo tempo, me hão de pedir em casamento.
— E n'estes ultimos quinze dias...
— Tenho sido cantada em prosa e verso; já recebi um soneto aos meus oculos, uma ode á minha touca e um discurso em que se demonstra o poder dos meus encantos.
— E gostou ?
— Do discurso principalmente; achei-lhe no entanto um unico defeito: em lugar de encantos, o autor do discurso devia ter escripto — 114 —
em contos. Se assim o fizesse, eu o preferiria aos seus dous rivaes pelo merecimento da sinceridade e da franqueza.
— Espera por conseqüência os seus tres pretendentes hoje...
— Sim, os teus tres namorados...
— ... e para abater-me ainda mais, quiz fazerme testemunha da sua brilhante victoria, e para isso mandou-me convidar...
— Pois não mandaste pedir que o fizesse ?...
— Não, minha tia; eu somente pedi que me previnisse do dia marcado para sua dita: não me queixo porém do que praticou comigo, e antes lhe agradeço.
— Ainda bem.
— E então, casa-se, minha tia ?... casa-se deveras ?...
— Não sei; tu que dizes ?...
— Sou ruim conselheira ; mas, em todo o caso, pretende tomar hoje mesmo uma resolução definitiva ?
— Resolve tu por mim.
— Qualquer que seja a sua decisão, se ella hoje fosse dada, estaria decidida a nossa aposta, e teria de entrar para o convento...
— Assim o penso.
— ..... porque, ainda quando se não qui-zesse casar, nem por isso teria menos roubado os meus tres namorados...
— 115 —
— Exactamente.
— Pois bem : eu não resolvo cousa alguma por isso mesmo, mas vou fazer-lhe um pedido.
— Qual?...
— O de uma dilação...
— Como ?...
— Peço-lhe que hoje receba os pedidos de casamento que lhe vêm fazer os seus tres namorados, mas adie por oito dias a resposta que lhes deve dar.
E com que fim me pedes isso ?...
— Espero por minha vez roubar-lhe os tres noivos nos oito dias que vão passar.
— Louca ! vaidosa !...
— Peço-lhe oito dias...
— Não, oito dias é muito; dou-te por misericordia tres dias.
— Aceito.
— E contas ?. .
— Não entrar para o convento.
— Porque ?
— Porque no fim de tres dias terei a meus pés os tres noivos da minha tia.
N'esse momento as duas senhoras sorrirão, ouvindo o rodar de três carruagens que entrarão na chacara.
O ruido que Violante e Clemência acabavão de ouvir, era com effeito o das carruagens que — 116 —
trazião os tres apaixonados da fortuna da velha.
O Sr Antônio, o Dr. Ambrosio e Claudiano ficarão sorprehendidos ao encontrar-se na mesma casa e a mesma hora, e cada um por sua vez olhou curioso e desconfiado para os outros, procurando adivinhar o motivo que alli os reunia, e bem depressa a sorpresa se transformou em vexame, achando-se todo tres em frente da formosa moça de quem se tinhão fingido namorados.
A sorpresa era facil de explicar.
Emquanto rendião finezas e falsos juramentos de amor a Clementia, os tres calculistas tinhão vivido em perfeita solidariedade ; não havia entre elles ciume possivel, e de accordo commum namoravão a bella moça, como bons amigos que se divertião em sociedade; desde porém que ouvirão a noticia dos trezentos contos da velha, esbarrarão diante da realidade, e cada qual quiz para si a interessante noiva dos 61 annos :
Violante foi para elles o pomo da discordia, e cada um tratou de enganar os companheiros, manejando o seu negocio com o mais profundo segredo.
Qualquer dos tres se havia apressado a fazer o seu pedido de casamento muito mysteriosa e reservadamente; mas a nossa boa velha, que parecia conhecel-os bem, o sem- — 117 —
mazára a todos para o mesmo dia e para a mesma hora, afim de vêl-os e de aprecial-os reunidos.
O vexame é que se torna um pouco difficil de ser comprehendido. O vexame importaria em tal caso pelo menos um resto de pudor, e pudor na desmoralisação não é muito admissivel :
expliquemos pois esse vexame pelo resentimento da hypocrisia d'aquelles tres calculistas, que se vião desmascarados diante de Clemência.
Quem não se sentio vexada e nem se mostrou offendida, foi a sobrinha de Violante, que tinha tomado o seu partido e disposto um plano cujo resultado lhe parecia seguro.
Depois dos comprimentos de recepção e de uma hora de conversação cheia de banalidades, reinou silencio na sala por alguns minutos : era o momento critico que chegava ; os tres pretendentes estavâo em brazas : Violante aprazia-se em vêl-os assim. Clemência tomou a si, precipitar o desfecho.
— Adivinha-se, disse ella, que os senhores vierão aqui para o mesmo fim.
— Para o mesmo fim ?!!! exclamarão os tres a um tempo.
— Sem a menor duvida: pelos vestidos que trajão, pelo ceremonial com que chegarão, e pela emoção que mostrão, é caso grave ;
— 118 —
é pois questão de enterro, ou de baptisado, ou de casamento, e como felizmente minha tia não morreu, como não é casada, e portanto não tem filhos a baptisar, segue-se que cada um dos senhores vêm pedil-a em casamento. Creio que adivinhei.
Antônio olhou para Ambrosio e Claudiano com cara de negociante agiota que encontra na praça em baixa completa as acções da companhia com que contava arranjar-se, e em sua colera nem reparou que Ambrosio tinha cara de politico ganhador que sente estar a ponto de perder a fatia de pão-de-ló que devia alimentar o seu acrysolado patriotismo, e que a cara de Claudiano fazia lembrar a do jogador a quem os parceiros dão o basta, logo depois de lhe ganharem todo o dinheiro.
Mas era preciso salvar as apparencias, e cada um dos tres, procurando fazel-o, suffocou o seu despeito o repetio o pedido de casamento á velha, deixando ouvir sublimes protestos de desinteresse e fervorosas juras de um amor violento e desinteressado.
Emfim, era indispensavel que Violante fallasse.
— Meus senhores, disse ella, eu sou sensivel á paixão que involuntariamente inspirei a tão dignos cavalheiros ; estou resolvida a I
— 119 —
casar-me com um dos senhores : a escolha porém é tão difficil que somente depois de muito reflectir conseguirei fazel-a ; rogo-lhes pois que voltem aqui no fim de 3 dias, na segunda feira:
preciso, além d'isso, d'esses tres dias para tomar algumas disposições.
— Essas disposições, accrescentou Clemência, hão de importar um grande favor que vou dever á minha boa tia, e que eu desde já lhe agradeço.
Violante entendeu como poude ou como quiz as palavras da sobrinha, e os tres calculistas, que não as comprehendêrão, nem por isso deixarão de tomar nota do que acabavão de ouvir.
Os pretendentes, fazendo-se mutua justiça e reconhecendo que nenhum seria deixado só em campo, levantárão-se ao mesmo tempo para retirar-se.
— Os senhores não vão depois de amanhã ao Club Fluminense ? perguntou Clemência.
— Sim, minha senhora,. responderão tres vozes.
— Pois até o club, meus senhores !... Um momento depois estavão a sós Violante e Clemência.
— Menina, disse a velha, pareceu-me que dirigiste um desafio aos meus tres pretendentes.
— 120 —
— Não foi desafio, minha tia, foi apenas um aprazamento.
— E ousas ainda...
— Tudo : minha tia perdeu-se concedendo-me uma dilação de tres dias.
— Estás a ponto de endoudecer.
— Estou era vesperas de triumphar.
— Lembra-te da minha riqueza.
— O credito também é riqueza, e vossa mercê verá como eu vou ter credito na praça.
— Pois bem ; virás jantar comigo na segunda feira.
— Sim; e minha tia irá jantar comigo na terça.
Ao anoitecer, a tia e a sobrinha se separarão.
— 121 —
V.
No dia seguinte Violante recebeu pelo correio urbano tres cartas anonymas.
Na primeira Ambrosio e Claudiano erão postos pela rua da amargura : suas familias, seu caracter e seus costumes erão horrivelmente despedaçados : em metade da carta predominava a verdade, na outra metade a calumnia espalhava veneno Na segunda as victimas erão Antônio e Claudiano, na terceira Antônio e Ambrosio.
Cada um dos pretendentes tinha escripto a sua carta anonyma.
O anonymo nunca é generoso, e muitas vezes é uma indigna mascara que esconde a face abjecta da infamia e da corrupção.
O anonymo é irmão do pasquim.
Mas deixemos observações que não vem ao caso, e prosigamos.
As tres cartas anonymas denionstrão que os tres pretendentes de Violante conservavão-se firmes no seu proposito, constantes no seu amor;
não admira : o amor mais constante que geralmente se conhece é o amor do di-
_
— 122 —
nheiro ; é um amor que não esfria, e que pêlo contrario se exalta cada vez mais Entretanto, o que não se pôde bem comprehender, o que a propria D. Violante com toda a sua experiência de 61 annos não seria capaz de explicar, é a festa, a corte, o agrado, o affecto com que dous dias depois no Club Fluminense foi Clemência obsequiada pelos tres pretendentes á mão da velha.
Não foi um só, fórão todos tres que cercarão e renderão mil finezas á formosa moça, que a principio mostrou-se um pouco resentida, e afinal deixou-se commover por elles.
Dir-se-hia que cada um por sua vez se esforçava por demonstrar a Clemência que nunca deixara de morrer de amores por ella.
Antônio, Ambrosio e Claudiano forão iguaes no proceder, no fallar, e no requestar Clemência:
erão tres homens com a mesma alma e o mesmo coração. Cada um d'elles mereceu da bella moça uma contradansa, uma valsa, e um passeio ; cada um d'elles, como se todos tres se houvessem para isso ajustado, declarou a Clemência, jurando por todos os santos do céo, que pedira Violante em casamento levado pelo desespero de não poder merecer a mão da formosa joven ; e o que esta respondeu muito em segredo a cada um d'elles foi um doce mysterio, que o Sr. Antônio encobrio cuidadoso do — 123 —
Dr. Ambrosio e de Claudiano, que o Dr.
Ambrosio occultou cora o maior empenho de Antônio e de Claudiano, e que Claudiano não diria a Antônio e ao Dr. Ambrosio, nem mesmo a preço de vinte cartadas felizes e consecutivas no lansquenet.
Ainda bem que a velha D. Violante não foi ao Club Fluminense n'aquella noite.
Parece que a moça preparava uma batalha decisiva contra a velha.
Quaes os seus meios de acção ?... o poder dos seus encantos triumpharia em fim da portentosa influencia dos trezentos contos de réis de D.
Violante?... Não é licito acredital-o.
Como então vai Clemência conseguindo operar tão notavel transformação no espirito dos tres calculistas ?...
É um mysterio.
Dizem que as moças não sabem guardar segredo: sabem, sabem : quando lhes faz conta, sabem.
Moças !... Pensão alguns que essas borboletas que adejão ligeiras e inconstantes, são incapazes de forjar planos intrincados e difficeis, e mais incapazes ainda de preparar uma vingança calculada e habil. Engano : quando se trata de amor, ellas todas são mais astutas do que o mais adextrado diplomata, e feridas em sua vaidade sabemvingar-se dextramente, e — 124 —
ás vezes sem piedade. São rosas, sim ; mas por ventura as rosas não têm espinhos ? ..
O dia da segunda-feira chegou, e Clemência não se fez esperar por Violante.
— A que horas devem chegar os seus tres pretendentes, perguntou a moça.
— Pois já te não lembras ?... ás duas horas, minha sobrinha esquecida.
— Ainda bem : temos tres horas diante de nós.
Então conta com elles minha tia ?
— Não ha duvida possível, visto que não me tornei pobre de rica que era. Conto com elles e até lhes mandei preparar um bom jantar.
— Deus queira que não jantemos sós, minha tia — Incredula !...
A despeito das suas esperanças, Clemência estava um pouco receiosa ; Violante porém confiava na sua boa fortuna.
— Já tomou a sua resolução, minha tia ?...
— Caso-me decididamente, respondeu Violante, rindo.
— E qual dos tres prefere ?...
— Na questão de preferencia é que está o meu unico embaraço : creio que o melhor dos tres é o doutor...
Entrou n'esse momento um escravo na sala e entregou umac arta a Violante — 125 —
— Vê o que contem esta carta, disse a velha á sobrinha. Clemência abrio e leu sem hesitar :
« Minha senhora. — Com o mais profundo pezar e cedendo a circumstancias com que não contava, sou obrigado a desistir das minhas pretenções á mão de V. Ex. Não podendo ser o esposo, será sempre o mais obediente escravo de V. Ex. — O Dr. Ambrosio.
— E esta! ..exclamou Violante, tomado a carta da mão de Clemência e lendo-a quasi com incredulidade.
— É um de menos, minha tia : mas ainda lhe ficão dous.
— Sim, e preferirei o negociante que me há de augmentar a fortuna.
O escravo entrou outra vez com uma segunda carta.
Violante não deu mais a carta á sobrinha:
abrio-a e leu : era do Sr. Antônio, e dizia pouco mais ou menos o mesmo que dissera na sua o Dr. Ambrosio.
A velha não pronunciou uma unica palavra :
poz-se a arranjar a touca eos óculos.
— Lá se foi o segundo ! mas ainda bem que ainda lhe resta um ; observou Clemência.
— Sim... o peior de todos... o jogador que esbanjaria a minha fortuna em poucos mezes : — 126 —
está visto que esse não me voltará as costas...
e...
E o escravo entrou na sala pela terceira vez, trazendo uma terceira carta.
— Lê... lê, Clemência, porque eu não acreditaria nos meus oculos.
Clemência abrio a carta e leu : tal e qual como as duas primeiras, essa continha uma despedida formal e as desculpas de Claudiano.
— Todos tres!... exclamou a velha ; todos tres!... mas é inacreditavel!...
— Minha tia, a verdade não é sempre verosimil.
— Porém todos tres !... ah ! sim... adivinho — Adivinha o que ?...
— N'estes ultimos tres dias os calculistas descobrirão uma velha mais rica do que eu sou.
Clemência desatou a rir.
— De que ris ?...
— Da sua derrota, minha tia.
— Tu porém não venceste ..
— Quem sabe ?...
— Falia.
— Ainda é cedo: o seu dia foi hoje, segundafeira : o meu é amanhã, terça-feira.
— Mas então que faremos hoje ?. . — 127 —
— Jantaremos sós, minha tia.
Não é preciso dizer que Violante foi bem cedo apresentar-se no dia seguinte na casa de seu irmão, que aliás a deixou só com Clemência sahindo a cumprir o seu dever de empregado publico.
A velha nem um só instante nutrira a idéa de casar-se : pretendeu dar uma lição á sobrinha;
agora porém estava realmente curiosa para ter a explicação da sua derrota.
Apenas se achou a sós com a sobrinha, apertou-a para que lhe fizesse comprehender a deserção inesperada dos tres calculistas.
— Ao meio-dia saberá tudo, respondeu Clemência.
— Mas até o meio-dia que faremos ?...
— Vossa mercê já leu os jornaes de hoje ?
— Eu não perco tempo lendo jornaes, menina.
— Pois faz mal, ás vezes acha-se a explicação de muitos factos.
— Que queres dizer ?...
— Nada, minha tia.
— Mas eu ardo de impaciencia...
— Porque ?...
— Porque não admitto que falhasse o meu principio.
— Qual?...
— O do poder do dinheiro na epoca actual. — 128 —
— Pois socegue, não falhou.
— Então é certo que os tres calculistas descobrirão outra velha mais rica do que eu !...
— Não, senhora.
— N'esse caso falla...
— Ainda não... mas... está dando meio-dia ;
não ouve ?...
— O que ? os sinos a darem meio-dia ?...
— Não : o rodar das carruagens que párão.
— E então ?
— São elles.
— Elles quem ?
— Os tres calculistas, sem duvida.
— Os tres !... e tu pensas...
— Que elles vem pedir-me em casamento.
— Tal e qual como aconteceu comigo ?...
— Com uma unica differença... disse Clemência rindo.
— E qual é ella ? perguntou a velha.
— E que eu não mandei preparar um banquete para offerecel-o aos meus pretendentes.
Com effeito, o Sr. Antônio, o Dr. Ambrosio, e Claudiano tinhão ao mesmo tempo feito parar á porta da casa do pai de Clemência as carruagens em que vinhão, encontrando-se na mesma escada.
— É celebre ! disse Antônio.
— É incrivel ! disse Ambrosio.
— É inaudito ! disse Claudiano. — 129 —
apresentárão-se na sala já um pouco desapontados, e ainda mais o ficarão esbarrando com Violante, que os cumprimentou com ar sinistro, e emfim perdêrão-se de todo, vendo um sorriso malicioso brincando nos labios de Clemência.
— Meus Senhores, disse a moça, meu pai não se acha em casa ; mas eu posso ouvir e responder ás proposições que me quizerem fazer.
— Hão de ser curiosas ! observou a velha.
Os tres calculistas, fallando cada um por sua vez, disserão, como de costume, absolutamente a mesma cousa. Vinhão todos pedir Clemência em casamento, e cada qual animado por uma doce esperança que ella deixara accender-se em seu coração.
— É verdade, meus senhores : na ultima partido do Club Fuminense autorisei a cada um dos senhores em particular para vir hoje a esta hora que eu marquei, pedir-me em casamento a meu pai; arrependi-me porém de tel-o feito, e isso por uma razão muito simples. Os senhores fazião-me a corte desde algum tempo, e bem que eu nunca houvesse dado a qualquer dos tres direito algum sobre meu coração, vi de subito e com sorpreza que todos me voltarão o resto, e que se declaravão amantes apaixonados de minha tia, e preten-
— 130 —
dentes á sua mão ; outra vez, de subito, os senhores voltarão a curvar-se a meus pés, e fallárão-me todos em casamento ; semelhantes mudanças tão completas e tão rápidas devem ter uma explicação, e sem que os senhores m'a dêem, não receberão da minha bocca resposta alguma.
Os tres calculistas ficarão olhando-se mutuamente e corridos do papel que estavão representando.
— Tenhão a bondade de fallar, tornou Clemência.
Antônio, Ambrosio e Claudiamo explicarão o seu procedimento pelo poder dos encantos e da formosura de Clemência.
— Dizem a verdade?... perguntou ella.
Os tres calculistas jurarão com enthusiasmo que a paixão que sentião era profunda e invencivel.
— E insistem nas suas pretenções?
Elles insistirão mais do que nunca.
Clemência voltou-se então para Violante e disse:
— Minha tia, vou pedir-lhe perdão de um abuso que commetti, e provar-lhe que convém muito ler os jornaes.
— Que queres dizer ?...
— Quero dizer que ha dous dias appareceu nos diversos jornaes diarios da capital a no-
— 131 —
ticia que vou repetir palavra por palavra : eil-a :
« Ainda ha almas bemfazejas e parentes verdadeiramente dedicados. Uma nobre senhora de idade de 61 annos, que possuia uma fortuna de trezentos contos de réis, e tinha uma sobrinha moça, bella, porém pobre, vendo-se ultimamente instada por tres pretendentes á sua mão, e resolvendo-se a tomar um d’elles para marido, determinou antes de casar-se fazer, e de facto fez, doação de duzentos contos de reis á sua virtuosa e linda sobrinha, que ficou por esse modo ainda mais rica do que a tia. Esta boa e nobre parente é digna de todos os elogios. »
— Que significa então isto ?...
— Ah ! minha tia, quer dizer que eu forjei uma noticia falsa; vossa mercê não me fez doação de um só vintém ; mas hoje isso me importa pouco, porque estes senhores amão-me apaixonada e desinteressadamente, e portanto...
— Como está corrompida a imprensa do paiz!... exclamou Ambrosio, eu vou chamar á responsabilidade todos esses indignos jornaes!...
E sahio desesperado da sala.
— Perdão, minha senhora, murmurou Antônio gaguejando; mas quem improvisa noticias destas, nunca poderá fazer a felicidade de um marido!
-132-
E tomando o chapéo, seguio a Ambrosiu.
— Oh! ainda bem que me resta o Sr.
Claudiano! disse Clemência rindo muito.
— Minha senhora, respondeu este, eu sou um companheiro fiel daquelles dous illustres cavalleiros, e visto que elles sahirão, está visto que não posso ficar...
Vendo retirar-se o ultimo dos tres calculistas, as duas senhoras começarão a rir com a melhor vontade.
Emfim Clemência poude conter-se, e perguntou :
— Então qual de nós duas vai para o convento, minha tia?...
— Nenhuma, porque ambas perdemos.
— Diga antes que ambas ganhamos.
— Concordo; mas a minha opinião ficou sempre victoriosa. Hoje em dia não se ama no Rio de Janeiro : já não ha mais casamentos por amor, ha somente casamentos por dinheiro.
— Não, minha tia : em todos os tempos houve sempre homens nobres e generosos, e homens indignos e vilmente interesseiros, e o que toda a senhora deve pedir ao céo é que lhe depare por marido um dos primeiros, e que a livre e guarde dos segundos. UMA PAIXÃO ROMANTICA
UMA PAIXÃO ROMANTICA
I.
Um estudante é um homem excepcional que não se parece senão com outro estudante. O seu viver, o seu pensar, o seu proceder tem pontos de notavel dissemelhança do viver, do pensar e do proceder dos outros homens.
Um estudante reputa-se membre de uma republica independente, na qual o chefe do Estado é o director da escola, e são ministros os lentes e professores, e não reconhece mais autoridade legal abaixo do bedel.
Um estudante é o mais altivo dos aristocratas :
para elle são nobres os seus mestres, no-
— 136 —
bres os outros estudantes; e todo o resto da humanidade vale tão pouco a seus olhos que designa com o nome bicho tanto ao mendigo como ao millionario, tanto ao plebeu como ao mais graduado dos titulares.
Um estudante é poeta, ainda que não faça versos; não é pobre nem mesmo quando não tem um real de seu, e não é bastante rico, embora tenha uma mezada sufficiente para sustentar quatro ou seis estudantes ; nunca lhe falta e nunca lhe sobra o dinheiro.
Um estudante ri de tudo, e de tudo zomba : tem um coração tão grande que lhe chega para guardar dez amores a um tempo; tem uma imaginação tão feliz que engendra dez romances em uma noite, e uma esperança tão lisonjeira, tão bella e tão fallaz que não enxerga no futuro senão felicidade e gloria.
Um estudante é o Gabrion do inspector de quarteirão; é objecto de todas as considerações do subdelegado de policia que não quer graças com elle : é nas platéas dos theatros uma potencia altamente considerada; é sympathico aos olhos de todas as senhoras ainda moças, e.
temido por todas as senhoras já velhas.
Um estudante tem sempre uma declaração de amor á flor dos labios, e um epigramma na ponta da lingua. É franco e leal, mas ao mesmo — 137 —
tempo impertinente e desastrado; é generoso e ousado ; é tão docil que qualquer o domina, e violento e indomavel apenas de leve suspeita a idéa do dominio.
Um estudante é em politica sempre da opposição e em litteratura sempre da escola mais exagerada; em regra quer o que os outros não querem. Ama em primeiro logar a sua independencia, em segundo a originalidade, e em terceiro a todas as senhoras.
Um estudante é o melhor e o mais feliz dos homens; sabe que o é, vive como entende que deve viver, não troca a sua casaca velha pela farda bordada de nenhum ministro, nem a mesa de um collega pelo banquete do mais rico figurão ; tira partido de todas as circumstancias para divertir-se, e nunca se lembra de dar satisfações ao mundo.
Se nem todos os estudantes são assim, não é porque toda regra deva ter excepções, é somente porque ha homens que caminhão em sentido opposto da sua vocação.
Felizmente, o jovem, que é o heróe da historia que vou contar, é um verdadeiro estudante porque estuda, e porque tem todos os defeitos e todas as virtudes da sua classe.
Luciano acaba de ser approvado optime cum laude no quinto anno da escola de Medicina do Rio de Janeiro ; está habituado a esses trium-
— 138 —
phos academicos ; no imperial collegio de Pedro II onde ganhara o titulo de bacharel, tinha sido quatro vezes apontado como o primeiro entre os seus collegas de aulas, e quatro vezes pela mão do imperador havia sido a sua fronte coroada de louros.
E um bello mancebo de vinte-e dous annos :
alto, fronte elevada, onde brilha a intelligencia, pallido, olhos ardentes, imaginação exaltada.
Como o anno de 1860.
Terminados os seus exames, Luciano deixa a cidade do Rio de Janeiro para ir passar três mezes de férias na casa de seu pai, rico fazendeiro do municipio de...
Luciano vai alegre de caminho para a roça ;
leva porém algumas saudades e um receio no coração.
Vai alegre porque ama extremosamente a seus pais e arde em desejos de abraçal-os e de viver junto delles algumas semanas; vai alegre, porque deve encontrar-se com os seus amigos da.infancia, respirar doces auras na terra do seu berço, tornar a ver os campos, os bosques, os rios e as fontes que lhe lembrão mil gozos, mil travessuras, mil romancesinhos de criança.
Leva porém no coração saudades da escola e dos collegas, dos theatros e das festas, de al-
— 139 —
gumas moças bonitas, a cada uma das quaes jurara um amor eterno, de uma corista da defunta companhia lyrica italiana com quem cantava duetos, e da confeitaria Carceller, onde todas as tardes costumava ir comer pasteis.
O receio que o acompanha, é mais serio ;
desde dous annos seu pai procura convencel-o da conveniencia de um casamento que tem o grande defeito de ser muito prosaico ou poético demais, e Luciano teme com razão que novas instancias o continuem a obrigar a resistir á vontade daquelle a quem deve sempre obedecer.
Mas também é muito exigir !
Eugênio, que assim se chama o pai de Luciano, é intimo amigo de Guilherme, um rico negociante da corte, e possuidor de uma excellente fazenda que confina com a delle ;
desde longos annos existe a mais perfeita intimidade entre ambos : tinhão-se casado no mesmo dia e aos pés do mesmo altar; suas esposas se tomarão tão amigas, como sabião selo os maridos, e por fim, tendo o céo dado um filho a Eugênio, e dous annos depois uma filha a Guilherme,os dous felizes pais, e as duas extremosas maiscompromettêrão-se mutuamente a casar Luciano com Dyonisia.
Esses pais amigos resolverão assim do futuro de seus filhos sem calcular com os caprichos — 140 —
de um coração de moça, com os ardores de um coração de mancebo, e com ura ou dous amores possiveis, que poderião fazer Luciano afastar-se de Dyonisia, ou ambos correrem em direccões oppostas.
Circumstancias imprevistas vierão tornar os dous pretendidos noivos quasi que absolutamente estranhos e desconhecidos.
Luciano só se poude lembrar de ter visto Dyonisia duas vezes : no primeira tinha elie cinco annos de idade, e a menina tres, e ficou furioso contra ella, porque fez-lhe em pedaços um lindo carrinho puxado por dous cavallos de chumho.
Na segunda vez, dous annos depois, o encontro não foi mais feliz ; a menina tinha-se tornado admiravelmente traquinas ; e além de perturbar todos os brinquedos do noivo, fazia-lhe caretas quando o percebia desapontado.
Então, aos. sete annos, Luciano á vista de seus pais, e dos pais de Dyonisia, disse a esta em. um momento de briga e de enfado :
— Deixe estar que eu nunca hei de casar-me com você!
E a menina desatou a rir e a saltar, exclamando:
— Que me importa! que me importa !...
— 141 —
Os dous noivos nunca mais se tornarão a Ver, e até esse tempo Guilherme apenas uma ou outra vez tinha podido vir passar alguns dias em sua fazenda, dahi por diante uma distancia enorme o separou do seu amigo. Negocios da maior importancia o levarão á Europa, onde se demorou quinze annos.
Apezar desta longa separação, nem esfriou a amizade de Eugênio e Guilherme e de suas consortes, nem foi esquecido o ajuste do casamento dos filhos. Os dous noivos mandavão, sem mesmo o saber, lembranças e saudades um ao outro nas cartas dos pais, que parecião namorar-se em nome dos filhos.
A menina tornou-se moça, recebeu em França uma educação esmerada, e talvez se tornou um pouco romanesca ; o que porém se passava em seu coração, e o que pensava do projecto de casamento que seus pais acariciavão tanto, é um segredo que eu não posso descortinar. Quando sua mãi lhe fallava de Luciano, ella corava, sorria e calava-se.
Quem não se calava, era Luciano. A principio e emquanto foi menino, repugnou-lhe a idéa desse casamento, recordando-se das travessuras e das caretas da noiva: depois, quando cresceu em annos e acabou de estudar philoso-
— 142 —
phia, tomou ao serio os direitos do homem, não comprehendeu mais um casamento que não tivesse por base o amor, acreditou que o fatal projecto era um attentado contra a sua liberdade ;
revoltou-se pois, e declarou muito respeitosamente a seus pais que não se casaria com a Sra. D. Dyonisia.
As insistências provocarão dobrada opposi-ção de sua parte, e finalmente Luciano acabou por aborrecer Dyonisia.
A pobre moça era para elle um phantasma pavoroso que o perseguia por toda a parte :
irritava-se só ao ouvir pronunciar o nome de Dyonisia.
E entretanto, e a pezar seu, não podia cha-mala feia : recebera o retrato de Dyonisia, e duas ou tres vezes que olhara para elle, não poude deixar de reconhecer que a moça era encantadora, teve medo de convencer-se demasiadamente dessa verdade, e fez presente do retrato á sua mãi;
nunca mais o quiz vêr, esqueceu a imagem e continuou a aborrecer o original.
Esta revolta não era do coração, era da imaginação, e portanto mais violenta ainda, e tão violenta que levara Luciano a esquecer os deveres da mais simples cortezia.
Um mez antes dos exames do seu quinto anno, Luciano soube com verdadeiro pezar — 143 —
no paquete inglez acabava de chegar ao Rio de Janeiro Guilherme, com a sua familia, e foi bastante fraco para nem ao menos ir fazer uma visita ao primeiro amigo de seu pai; e recebendo deste por isso mesmo uma severa reprehensão e uma ordem terminante para ir abraçar o recémchegado, o estudante independente obedeceu, mas de um modo ainda mais reprehensivel :
procurou Guilherme em sua casa de commercio, e merecendo um convite para ir jantar e passar alguns dias na chácara do negociante, desculpouse com os estudos prolungados do fim do anno lectivo, e nem uma só vez appareceu a Dyonisia.
De sua parte Guilherme pagou a Luciano a visita, e não o procurou mais.
Entrando no gozo de suas ferias e já de caminho fazenda de seu pai, o jovem estudante recebe uma noticia desesperadora : o seupagem que lhe viera trazer os cavallos para a viagem, annunciou-lhe que havia em casa grande alegria;
porque Guilherme e sua familia tinhão na ultima semana chegado á sua fazendo, e que desde então os dous velhos amigos quasi que vivião juntos, vingando-se de quinze annos de separação.
O annuncio era pelo menos desagradavel. O
estudante previo que tinha de entrar em novas luctas, de ser obrigado a encontrar-se — 144 —
com Dyonisia, de fallar-lhe e de tratal-a com a consideração que todo o cavalheiro deve a uma senhora, e finalmente de resistir ao mesmo tempo ás ordens e, mais do que ás ordens, aos pedidos de seus pais, e aos obséquios de uma familia interessada em chamal-o ao seu gremio.
Luciano concebeu mil projectos de opposição e de resistencia: lembrou-se de diversos typos que estudara nos romances e nos theatros; pensou em mostrar-se extravagante como o peior dos libertinos, frio como o mais profundo dos egoistas, grosseiro como um barão que tivesse começado por varredor de armazém ; mas por fim de contas, quando entrou no campo da fazenda de seu pai, desprezou como indignos todos esses planos, e disse cornsigo :
— Nada... nada: hei de mostrar-me tal qual sou, e resistir com um simples — não quero —
que é a expressão da minha vontade, e a prova da minha independencia.
— 145 —
II.
O tempo das ferias ia correndo de um modo inteiramente diverso do que calculara o estudante, que por isso mesmo começava a sentir-se desapontado.
Luciano esperara ter de sustentar uma lucta incessante, oppondo-se aos projectos do seu casamento com Dionysia, e encontrara seus pais quasi indifferentes e semelhante respeito.
É verdade que no dia seguinte ao da sua chegada, Eugênio lhe fallára sobre aquelle assumpto; logo, porém, que ouvira suas primeiras palavras annunciadoras de opposição e de repugnancia, não só deixara de insistir, mas ainda lhe affirmára que não se affligia com isso.
E sua mãi, abraçando-o, lhe dissera ao mesmo tempo: « Não seremos nós, meu filho, que exigiremos jamais de ti um sacrifício doloroso :
um casamento que te repugna, não poderia fazer a tua felicidade, que é tudo quanto no mundo desejamos. »
Luciano receiára também ser obrigado a — 146 —
entrar em estreitas relações com a familia de Guilherme, e ter portanto de cumprir para com Dionysia pelo menos os deveres de cortezia; e no entanto apenas foi com seu pai visitar uma vez aquelle bom amigo, e ainda nessa oceasião não encontrou em casa nem Dionysia nem sua mãi;
depois um incommodo soffrido por esta impedia as visitas que ella poderia fazer á sua amiga, a mulher de Eugênio, que pela sua parte nunca levou o filho em sua companhia quando ia á fazenda de Guilherme.
Por outro lado, o pai de Dionysia encontrandose muitas vezes com Luciano, jamais deixou de tratal-o com estima, e mesmo com carinho ; mas também nunca lhe dirigio uma unica palavra que fizesse lembrar a idéa daquelle mento, que tão afagada tinha sido pelo sentimento generoso da amizade.
A principio Luciano applaudio-se desta situação pacifica, que elle attribuio a uma victoria brilhante alcançada pela força da sua vontade : em breve, porém, começou a sentir-se fatigado de uma paz tão inalterável, e contrariado por não ver uma só demonstração de sentimento pela sua decisão que destruirá um plano de futuro.
Em seu orgulho estava convencido de que pelo menos o pai de Dionysia devia mostrar-se — 147 —
exasperado por não ter podido felicitar sua filha dando-lhe um noivo de tanto merecimento.
O contentamento ou a serenidade das duas familias pareceu-lhe indifferença, e a indifferença amargou-lhe como um insulto.
O estudante incommodou-se, e principiou a aborrecer-se das férias que estava gozando;
queria ouvir dizer que Dionysia estava furiosa contra elle, e ninguém lhe fallava delia ; desejava que seus pais de novo se esforçassem por obrigal-o a casar com a tal noiva da infancia, e seus pais mostravam-se absolutamente esquecidos de semelhante projecto.
Os dias foram parecendo a Luciano pesados e tardos, e o máo humor do estudante tornou-se bastante sensível para que um dia seus pais lh'o fizessem notar, sorrindo.
Esse sorriso foi um tormento novo ; Luciano suspeitou que seus pais adivinhavão a causa do seu mal-estar, e revoltando-se contra essa idéa, que offendia o seu orgulho, resolveu-se a ostentar uma alegria que estava longe do seu coração, e a procurar no movimento e no trabalho uma distracção.
Ganharão com isso os doentes pobres das circumvizinhanças, a quem Luciano prestou com ardor os soccorros da sua sciencia; e com isso perderão os veados e as pacas dos bosques — 148 —
vizinhos, que forão perseguidos pelo estudante, que se tornou em um novo e infatigavel Nemrod.
Mas, pobre orgulhoso! a idéa de Dionysia, a lembrança e o nome da Sra. D. Dionysia forão perseguil-o no meio das suas nobres occupações de medico dos pobres e das suas caçadas fatigadores.
Na caça, as longas horas passadas em solidão na espera erão forçosamente aproveitadas pela imaginação dominadora, irresistivel, que traçava aos olhos do estudante quadros quasi nunca verdadeiros, e onde sempre apparecia a senhora dona Dionysia zombando dos desprezos do estudante, e essa imagem chegava ás vezes a ser formosa, e podia sem inconveniente parecer tal, visto que Luciano já nem de leve se lembrava dos traços physionomicos da sua antiga noiva.
Nas visitas dos doentes pobres a perseguição da senhora dona Dionysia tornou-se muito mais séria: parecia haver um accordo geral para recommendar a filha de Guilherme ao coração de Luciano.
Uma vez, o estudante encontrara abatido pela enfermidade um pobre velho a quem a miseria privava de todos os meios de tratamento, e quando no dia seguinte, ao fazer-lhe a segunda visita, lhe levava todos os soc- — 149 —
corros precisos, achou o velho em um excellente leito, e sem mais experimentar a menor privação.
Quem precedera o estudante naquella obra de caridade?... Dionysia.
Uma infeliz e pobre viuva, que tinha perdido havia dous mezes seu marido e único protector, morrera dando á luz uma menina. Luciano chegara tarde para soccorrer a mãe, e nem pudera depois cuidar da recemnascida, porque esta tinha sido logo adoptada... por Dionysia.
Na humilde cabana a que chegava, o estudante, emquanto procedia cuidadoso ao exarne de um doente, ouvia perto o nome de Dionysia, abençoado pelos rudes, mas agradecidos lavradores, que a chamavão. — O anjo dos pobres.
Dominando-se ainda, o estudante mostrava-se indifferente aos elogios que ouvia; nunca dirigia uma pergunta sobre Dionysia; mas a sua imaginação recolhia pressurosa tudo quanto a voz da gratidão espalhava a respeito delia.
Um dia perguntárão-lhe :
— Tem visto a moça bonita?...
— Quem é a moça bonita. ?...
— Ora ! é D. Dionysia.
— Não, respondeu Luciano rispidamente. — 150 —
— Pois olhe, Sr. doutor, é tão virtuosa como bella : onde ella chega, entra o encanto dos olhos ea felicidade do coração.
— Que me importa!
— Ainda hontem vimol-a passeiar a cavallo !
como estava linda ! levava um chapéo e um vestido... A mulher do Almeida, que sabe de modas como uma franceza, diz que aquella roupa chama-se vestido de amazona ; mas, seja amazona ou não seja, a moça arrancava os olhos da gente ! e como é boa cavalleira! o seu cavallo corre que parece um passarinho que vóa ! ah!
senhor doutor ! V. S. e aquella moça...
O estudante imterrompeu o panegyrista de Dionysia, e retirou-se apressado.
De volta para casa, respirando o ar livre, entregue a si mesmo, e pela primeira vez seriamente reflectindo, consultou o seu coração e estremeceu reconhecendo que não sentia mais a antiga repugnância pela senhora dona Dionysia, e que, pelo contrario, se pudesse ao menos vel-a sem ser visto, fal-o-hia com verdadeiro prazer.
Não amava Dionysia ; mas...
Este mas era o segredo, a historia e a contradicção do seu orgulho...
Luciano teve medo de amar a filha de Guilherme.
— 151 —
Como continuar a desprezal-a, se ninguém mais se lembrava de o querer obrigar a amal-a?...
Agora, porém, como ir procural-a e vêl-a sem o abatimento do seu orgulho?...
E aquelle sorriso de seus pais ? .. confessar-se arrependido e vencido não era fraqueza indigna de um estudante ?...
Luciano ufanava-se de ter sido notavel estudante de logica, e determinou raciocinar sobre o seu estado com todos os preceitos da arte de reflectir : raciocinou pois por duas horas inteiras, e no fim dellas reconheceu espantado que dos mesmissimos principios tinha tirado cincoenta consequencias diversas e oppostas.
O estudante ainda não comprehendia que a logica do coração é mil vezes uma inextricavel meada de inconsequencias.
Assim, pois, descontente de si mesmo e sem ter acertado com o caminho que lhe cumpria seguir, Luciano entrou em casa; mas, ao tocar á porta da sala, parou de subito, ouvindo pronunciar o seu nome e o de Dionysia.
Eugênio conversava com Guilherme e o objecto da conversação era o projectado casamento de seus filhos.
Luciano escutou attento.
— 152 —
— Emfim, meu amigo, dizia Eugênio concluindo ; Deos nos ajude ; mas receio muito que a pertinacia inexplicavel de meu filho acabe por destruir de todo as nossas esperanças.
— E eu não receio nada, respondeu Guilherme; devemos acreditar que Luciano começa já a pensar muito seriamente em Dionyia, e eu aposto que antes de dous mezes morrerá de amores por ella. Temos empregado um systema admiravelmente combinado : o rapaz vai ficar preso na rede qne lhe armámos.
Luciano vio brilhar a seus olhos como uma luz no meia das trevas : o seu orgulho reanimou-se de subito; saudou a lucta que para elle principiava de novo, e ufano e decidido entrou na sala, e, depois de breves momentos de conversação, disse :
— Perdão, meu pai; perdão, Sr. Guilherme :
preciso recolher-me e dormir cedo, pois que me preparo para uma importante caçada amanhã. Dizem-me que o monte vizinho da fazenda do Sr. Guilherme é rico de pacas soberbas, e se não houver nisso offensa do direito de propriedade, protesto que nestes ultimos quinze dias que me restão de ferias na roça, o Sr. Guilherme ouvirá diariamente da sua fazenda nos tiros da minha espingarda os signaes das minhas victorias.
— 153 —
— Sabemos que é um excellente caçador.
— Determinei sel-o e fui : quando me decido a qualquer cousa, nem recuo, nem desanimo.
Luciano retirou-se.
Eugênio e Guilherme olharão um para o outro e puzerão-se a rir.
— Tem uma cabeça de fogo! disse o primeiro.
— E ao mesmo tempo tem a balda de todos os moços, que pensão sempre que enganão os velhos, observou o segundo. — 154 —
III.
O companheiro que nas suas caçadas mais agradava a Luciano, era Baptista, lavrador vizinho e compadre de seu pai, e que com os seus sessenta janeiros não se trocava em vigor, agilidade e destreza por nenhum dos velhos de trinta annos que vivem no seio dos prazeres da cidade.
Baptista era realmente o melhor dos companheiros que poderia ter encontrado o estudante : conhecia todas as florestas, como Luciano o Jardim Botanico e as ruas da capital:
marcava todos os pontos dos bosques por uma arvore mais notavel, por alguma fonte, pedra ou furna que nelles havia : designava com certeza as melhores esperas, e os lugares mais se guros para se fazer uma caçada feliz, e, além disso, era a chronica viva daquellas circumvizinhanças; sabia dez mil historias a respeito da gente da terra, tinha sempre um caso novo que referir, e mordaz sem que fosse naturalmente máo, e somente pelo desejo de parecer engraçado, divertia sempre o estudante na ida — 155 —
e na volta, e nas horas de reunião no fim das caçadas.
Baptista applaudíra muito a lembrança que tivera o estudante de ir cagar na floresta vizinha da fazenda de Guilherme, e mais alegre e fallador do que nunca ia de caminho enterrando vivos e desenterrando mortos.
Já havia dado conta dos nomes e da vida dos moradores de quantos sitios ião encontrando perto da estrada, quando, ao tomarem por um trilho que os levava á floresta, ao chegarem ao sopé do monte que buscavão, disse elle a Luciano:
— Este bosquesinho que nos fica á mão direita separa este monte do campo da fazenda do Sr.
Guilherme, e pôde atravessar-se em um quarto de hora : se lhe aborrecer- a caçada, e preferir a dar tiros nas pacas, armar laços a uma moça bonita, a viagem é curta.
O estudante fez um movimento de máo humor.
— Não vá desconfiar : a cousa não é para isso;
não gosta da filha do Sr. Guilherme eu já sei; são gostos, e se não houvesse máo gosto, o amarello não teria extracção.
— Subamos o monte, ou, se lhe parecer, soltemos já os cães.
— Não : isso ha de ser um pouco mais acima :
veja porém que sitiosinho bonito va-
— 156 —
mos deixar aqui á mão esquerda, e logo á subida do monte : ouve este ruido de agua ? é de uma pequena cachoeira que vem do alto, e cahe no meio de um grupo de arvores formando um formoso lago junto do sitio, — Fico sciente : subamos...
— Sim ; mas o que não sabe é que o sitio pertence ao meu compadre Pereira, que é casado com a minha comadre Antonia...
— A noticia é realmente interessante...
— Mete-me abulha, heim? pois saiba mais que a comadre Antonia tem parentes na cidade...
— Deveras? isso então é extraordinario !
— Morreu-lhe, ha um anno, uma irmã que lá tinha casado com um pobre diabo, e deixou uma filha a quem o pai condemnou a vir morar na roça com a tia, receioso de que a rapariga se extraviasse...
— Uma cabecinha de vento...
— Qual ? uma cabeça de fogo : dizem que é capaz até de ler latim como o Sr. reverendo vigario : falia que parece um advogado, e anda sempre com o juizo por esses ares fora...
— E feia como um bicho, teve a boa idéa de vir esconder-se na roça...
— Bella como uma rosa, perigosa como uma feiticeira, tentadora como o diabo... — 157 —
— Compadre Baptista, quer me parecer que o senhor tem sua queda para poeta ?...
— Então?... improviso meus versinhos quando canto em desafio nas nossas noites de fado...
Eu logo vi : e ainda não se soltão os cães?...
— Agora.
Dous escravos approximárão algumas trclas de cães, estes, soltos, sacudirão as caudas, e por alguns momentos andando em torno a rastejar com os focinhos o cheiro da caça, sahirão logo depois, e desaparecerão.
Os caçadores forão seguindo, e a breves passos achárão-se juntos de um arroio que corria sobre um leito de pedras.
— Fique aqui, disse Baptista, terá uma caçada certa, e para distrahir-se, subindo áquelle ingazeiro, verá á sua vontade a fazenda do Sr.
Guilherme, e o sitio do compadre Pereira. Até logo.
Baptista internou-se na floresta.
O dia vinha apenas rompendo.
Dentro em pouco os latidos dos cães annunciavão a descoberta da caça, e passada uma hora Luciano, disparando o primeiro tiro, alcançou a primeira victoria.
Tres cães chegarão ao mesmo tempo, arfando de fadiga, mas ufanos de seu triumpho :
— 158 —
o estudante deixou-os descançar por algum tempo, e logo depois banhou-os na agua fresca do arroio e outra vez os lançou na floresta.
Ao longe ouvião-se os gritos de Baptista incitando os cães que lhe respondião latindo, como para demonstrar que zelosos proseguião na sua empreza; mas os latidos cada vez se desprendião mais afastados.
— Creio que terei de esperar muito tempo ;
disse comsigo Luciano.
E sem o pensar, lembrou-se do ingazeiro.
Luctou um pouco com a própria consciencia;
vencido porém, olhou cuidadoso em torno de si, e certo de que se achava absolutamente só, dirigio-se para o ingazeiro, e subio a elle.
O sol brilhava ; era a sua primeira hora.
Luciano vio um panorama bello e magnífico dilatando-se a seus olhos ; indifferente porém a todos esses encantos da natureza, embebeu suas vistas na casa e no campo da fazenda de Guilherme, e alli as esquecia involuntariamente, quando estremoceu escutando um canto melodioso entoado por uma voz de mulher.
Olhou... e vio...
O sitio de Pereira estava por assim dizer debaixo dos seus pés, e a mais curta distancia do que havia calculado, e uma mulher, de fi-
— 159 —
gura graciosa, e toda vestida de branco dirigia-se cantando para um bosquesinho, onde a cachoeira formada pelo arroio cahia, espraiava-se e dava lugar a um lago.
Luciano deu um salto do ingazeiro abaixo e sem reflectir um só momento desceu o monte por entre as arvores, desejoso de ver de mais perto a sobrinha de Antonia, que segundo dizia Baptista, tinha cabeça de fogo, era capaz de ler latim como o vigario, fallava que parecia um advogado, e andava sempre com o juizo por esses ares fora...
O canto tinha cessado : succêdera-lhe silencio profundo.
A medida que se ia aproximando, o estudante media cauteloso os passos e procurava fazer o menor ruido possível, empregando para isso toda a sua habilidade de caçador : ás vezes ria-se pensando na decepção por que ia passar esbarrando diante de uma mulher feia, ou pelo menos desgeitosa...
Emfim, chegou á entrada do bosquesinho, e por entre as arvores olhou, e ficou embevecido...
A sombra de uma arvore frondosa, sobre cujo tronco se sentara, estava uma moça talvez de vinte annos, delicada, formosa, encantadora ;
lendo attentamente um livro, que segurava com suas mãos pequeninas e brancas ;
— 160 —
seus cabellos negros cahião em aneis graciosos e immensos sobre uns hombros e um collo admiraveis; seus olhos, que ás vezes levantava para o céo, erão grandes, negros e brilhantes.
Baptista não mentira: aquellamoça era realmente encantadora.
Como porém esta creatura angélica, que parecia ter sido educada com tanto zelo, com tanto extremo, esta moça cujas mãos erão tão finas, e tinhão a cór tão branca, esta menina tão delicada, e por assim dizer de fôrmas tão vaporosas e de espirito que se dizia tão romanesco, viera esconder-se, sepultar-se naquelle obscuro cantinho, na casa de tão pobres lavradores ?
Não era, não podia ser uma infeliz mulher perdida pelo vicio, não : a pureza brilhava nos seus olhos e na sua face.
Como explicar então o mysterio ?...
O estudante não se movia do lugar onde estava, com as mãos no peito comprimia a respiração anhelante : dominava-o sobretudo o receio de ver ao mais leve ruido desapparecer como um sonho aquella mulher encantadora.
A caçada estava de todo esquecida : o compadre Baptista como que não existia no mundo : debalde os cães se tinhão approximado perse-
■
— 161 —
guindo as pacas levantadas... Luciano não ouvia o latido dos cães, nem os gritos descompassados de Baptista.
E duas longas horas passarão rápidas como um instante para o estudante absorto.
Emfim o moça fechou o livro, levantou-se, e com um andar gracioso retirou-se para a humilde casa de seus tios...
Luciano deixou seus olhos irem presos aos pés mimosos da mulher formosa... até que ella desappareceu de todo...
— E as pacas, compadre?... perguntou Baptista rindo e batendo-lhe no hombro.
— 162 —
IV.
Aquella joven que de um modo sem duvida romanesco apparecêra aos olhos de Luciano, era verdadeiramente bella; mas a imaginação do estudante emprestou-lhe ainda encantos indiziveis, e lh'a afigurou mil vezes mais formosa.
Arrancado do seu extase pela retirada da bella incognita e pelas palavras pronunciadas por Baptista, Luciano sentio que uma flamma violenta lhe abrazavaja o coração, e que uma mulher que apenas havia duas horas vira pela primeira vez, devia fazer a gloria ou o martyrio da sua vida.
Pôde ser que houvesse exaggeração nesse subito sentir; um estudante porém raramente se apaixona de outro modo, e trinta vezes que se apaixone, é sempre assim ; se poucos são os estudantes que se casão antes de ser doutores, é porque poucas são as moças que sabem aproveitar-se opportunamente da violencia das paixões que inspirão; o que salva os estudantes de casamentos imprudentes não é a refle-
— 163 —
xão é a duração ephemera de suas paixões: cada um delles, quando deixa a academia, leva no coração a lembrança de cem amores e de cem romances, que acabarão antes de tempo ou ficarão por acabar.
Ora, aquelle novo amor qne começava para Luciano tinha todas as condições de um verdadeiro amor de estudante; porque sobretudo havia nelle o encanto do romanesco e do mysterio, que abrião espaço aos mais arrojados vôos da imaginação.
A bella incognita tinha-se mostrado inesperadamente.
Luciano nem a conhecia, nem ao menos lhe sabia o nome, e a encontrara de subito no seio da solidão e á margem de um lago.
Não era preciso mais para que o estudante morresse de amores por ella.
Baptista, encarregado de colher informações mais positivas a respeito da formosa moça, veio ainda mais augmentar o mysterio que a rodeava, porque soube e declarou a Luciano que a bella incognita não era sobrinha de Antonia, como se suppunha, mas uma menina que ainda no berço fora confiada á sua irmã, e cujos pais devião ser bastante ricos, pois que pagavão com uma avultada pensão os cuidados de sua educação. O
motivo de sua vinda para aquelle lugar do interior da província não ti- — 164 —
nha sido a morte da irmã de Antonia, e sim a necessidade de íurtar a interessante jovem ás pesquizas e talvez á perseguição deparentes inimigos : o segredo da sua vida e do seu retiro era tão profundamente guardado, que nem mesmo Pereira e sua mulher sabião o seu nome.
Decididamente, Luciano não podia escapar a tanta magia. No fim de tres dias amava a sua incógnita, como nunca Petrarca amou a Laura, nem Torquato Tasso a Eleonora.
É inutil dizer que nesses três dias fez elle tres novas caçadas ao monte, donde corria o arroio que ia lançar-se no lago do feliz bosque vizinho ;
cumprindo, porém, entender-se que que ao compadre Baptista ficou reservado exclusivamente o empenho de matar as pacas, emquanto Luciano limitava o seu prazer a subir ao ingazeiro, ver a bella incognita sahir da cabana dos lavradores e dirigir-se para o lago, e, emfim, depois de tel-a contemplado de longe, correr para o lugar ditoso, donde escondido adorava em extase aquella formosa creatura.
A lembrança do projectado casamento com Dionysia já nem sequer por um só instante occupava o espirito do estudante : que lhe importava Dionysia ?... Se outr'ora revoltava-se contra a idéa d'aquelle casamento, sem um mo-
— 165 —
tivo real, desde tres dias nem mesmo admittio a possibilidade de sujeitar-se a um laço, que seria uma barreira eterna e insuperável levantada entre elle a bella incognita.
Dionysia estava positivamente condemnada ao esquecimento e o esquecimento é ainda muito mais fatal do que o odio ; o esquecimento é quasi a morte.
Mas tres dias passados em contemplação e em saudades não podião mais satisfazer o coração do estudante: Luciano precisava inebriar-se, escutando a voz e devorando com os olhos, os olhos d'aquella joven romanesca.
Na manhã do terceiro dia, quando no seu posto de extatica adoração estava elle contemplando a sua incógnita, chegou um momento em que, impellido por uma força irresistivel e sem pensar no que ia fazer, lançou-se de subito para a arvore, a cuja sombra descansava a bella moça, e cahindo de joelhos aos pés desta exclamou :
— Eu a amo !
A incognita deixou ouvir um grito de sor-presa e de susto, e levantou-se para fugir ; mas, tomada de subito tremor nervoso, deu apenas um passo e sentou-se outra vez, dizendo :
— Meu Deus !...
O estudante aproveitou o ensejo, e de joelhos com estava, tremulo também, inspirado — 166 —
porém pela paixão fez mil protestos de ternura e mil juramentos de amor.
Pouco a pouco a moça foi serenando : no ardente discurso que ouvia, o respeito dominava sempre o impeto do amor : reconheceu bem depressa que tinha a seus pés um escravo e não um seductor, e banindo de sua alma o receio, fitou no mancebo um olhar cheio de angelica doçura, e disse:
— Porque vem perturbar a paz do meu retiro ?... onde e como pude eu inspirar-lhe esse amor ?... e esse amor, se um dia eu o tivesse também, que me daria elle ?
Luciano quiz fallar.
— É inutil, continuou a incógnita com voz segura, adivinho tudo quanto quereria dizer-me.
Ama-me, não é assim ?... porém como ? vio-me por acaso algumas vezes n'esta solidão, agradoulhe o meu rosto, achou-me bella talvez, impressionou-o o mysterio da minha vida, e vem cahir a meus pés. Que amor é esse ?... sabe se por ventura sou digna d'elle ?... se victima de um erro ou de um remorso vim aqui esconder o meu opprobrio ? .. sabe se eu mereço reprovação ou piedade ?...
— A pureza brilha no seu angelico semblante :
não me enganei, não me engano.
— E quem sou eu ?
— É um anjo ! — 167 —
_ Também ha anjos decahidos, Sr. Luciano, disse a moça sorrindo-se.
— Sabe o meu nome... conhece-me...
balbuciou o estudante.
__ Oh ! sim... conheço-o, e sei um pouco a historia de sua vida. Sei que desde tres dias procura descortinar o segredo do meu nascimento, do meu passado, e do meu futuro.
— E quem lh'o disse ?... perguntou Luciano sorprendido.
— Dionysia, respondeu a moça sorrindo outra vez.
O estudante levantou-se irritado, ouvindo o nome da sua pretendida noiva.
— Escute, continuou a incógnita : pronunciei este nome para lembrar-lhe um dever que tem esquecido.
— Nunca !
— Mas porque ?...
— Até ha tres dias porque não tolerava a idéa de casar-me com essa senhora, depois de tres dias porque a amo, e nenhuma outra mulher lera o meu nome.
— E seus pais ?...
— Meus pais hão de adoral-a desde o primeiro instante em que chegarem a vêl-a.
— E meus pais ? —168 —
— Oh ! diga-me quem são, e eu correrei a fallar-lhes... quem são ?...
— Não sei, balbuciou a moça abaixando vergonhosa a cabeça.
— Pois bem: terá por seus pais os meus e por defensor, amigo, escravo o mais apaixonado dos esposos.
— Não ; a minha vida está presa a um mysterio que eu mesma não comprehendo : eu nem devo, nem posso animar o seu amor.
— Entendo tudo, disse o estudante exaltandose ; Dionysia adivinhou o meu amor pela senhora, e tratou de perder-me no seu conceito.
— Eu menti ainda ha pouco, senhor, tornou a moça : não conheço a sua noiva... nada lhe ouvi...
vivo longe de todos, e de todos me escondo.
— Como poude então saber que se projectára esse casamento que me repugna ?
— Fallou-me disso a mulher do lavrador em cuja casa me asylárão.
— E com que fim ?... a que proposito ?...
A moça descansou uma de suas mãos sobre o hombro de Luciano, que estremeceu a esse doce contacto : depois encarou o mancebo com um olhar mágico e suavissimo, sorrio com a mais encantadora graça e disse:
— Que lhe importa ?...
— 169 —
— Meu Deos !... exclamou Luciano cahindo outra vez de joelhos.
Ajoven recuou um passo, como se arrependida ficasse da acção que praticara e do tom em que fallára : corou, parecendo sentir que deixara insensivelmente escapar dos labios uma phrase que começava a atraiçoar um segredo do coração; mas logo depois flingindo-se medrosa, disse :
— Sinto rumor... alguém se approxima...
Luciano ergueu-se, pensando que era Bap-tista que o vinha perturbar no momento em que o fortuna lhe concedia um sorriso ainda duvidoso... voltou-se para o lado do monte e ouvio immediatamente o leve ruido dos passos ligeiros da incognita, que fugia correndo.
— Oh ! por compaixão... disse, elevando a voz e estendendo os braços para a fugitiva.
Ella parou : volveu o rosto para Luciano, seus olhos brilharão com divino fogo, seus labios sorrirão de novo com encanto e doçura e murmurarão emfim :
— Até amanhã.
— 170 —
V.
N'aquella simples, mas animadora phrase « até amanhã! » e no olhar e no sorriso que a acompanharão, havia um futuro immenso de esperanças e de amor.
Luciano passou o dia a sonhar mil venturas:
abella incognita fizera-lhe adivinhar o paraiso, pronunciando duas palavras.
Ao meio-dia um pobre lavrador da vizinhança viera pedir ao estudante que fosse ver sua mãi que enfermara no dia anterior.
Luciano apromptou-se depressa para sahir, e emquanto esperava que lhe trouxessem o cavallo, perguntou ao lavrador :
— Suppõe que seja grave o estado de sua mãi?...
— Tenho medo de que venha a tornar-se tal:
hontem cahio com uma febre que parecia fogo, e, bem que ao amanhecer de hoje ficasse livre d'aquella maldita fervura do sangue, diz a senhora D. Dionysia, que foi ver a minha bôa velha, que é provavel ou quasi certa a volta da febre. — 171 —
— Então... a Sra. D. Dionysia...
— Aquillo é um anjo, meu senhor! lá ficou ao pé de minha pobre mãe...
Luciano voltou logo ao seu quarto, e tornando a apparecer ao lavrador, deu-lhe algum dinheiro, e disse-lhe :
— Ha um excellente medico na freguezia : ahi tem com que pagar-lhe até dez visitas, vá chamal-o ; eu não posso ir ver sua mãi.
E vergonhoso da acção que praticara, recusando-se a um serviço de caridade, correu para furtar-se ás vistas do lavrador, que ficara sorpreso e boquiaberto.
Luciano tinha hesitado ante a idéa de encontrar-se com Dionysia; pareceu-lhe que vêla e fallar lhe n’aquelle dia, chegaria a ser uma offensa feita á bella incognita, cuja imagem devia ser a unica que occupasse toda a sua alma e todos os seus cuidados.
O amor suffocou-lhe a consciencia.
A noite, Eugenio perguntou ao filho se pretendia caçar na manhã seguinte.
— Talvez, meu pai, respondeu o mancebo corando.
— Entretanto eu contava poder conversar comtigo alguns momentos amanhã de manhã.
— Meu pai, se quizesse, poderia marcar-me uma hora para...
— As nove da manhã. — 172 —
— Ah! então a minha caçada não será incompativel com a minha obediencia.
— Tens te tornado um caçador incansavel!
observou Eugênio, sorrindo ; mas não importa, aproveita as tuas ferias.
Ao romper da aurora d'esse dia mimoso que fora aprazado pela formosa incognita, Luciano correu, como era de suppôr, não para o ingazeiro do monte, mas immediatamente para o lago do bosquesinho.
A jovem romanesca já alli estava. O estudante affligio-se com razão por ser o segundo a chegar:
um meigo e carinhoso sorriso socegou-o porém immediatamente.
— Eu o esperava, disse com accento commovido a bella incognita, não dormi...
preoccupou-me toda a noite esta hora que vamos passar juntos, e que é uma hora solemne, que vai decidir do meu destino.
Luciano sentio-se fortemente abalado por aquella voz suave e melancolica, que lhe parecia um canto entoado por um anjo.
— Antes de tudo, uma observação que o vai penalisar, mas que a minha franqueza não me consente esconder. Hontem o senhor negou-se a ir ver uma pobre velha doente: fez mal. Sabe rei um dia, em breve, romper este mysterio e mostrar-me na altura da posição que apaixonada ou generosamente me offerece.
— 173 —
O estudante ia fallar; mas a bella incognita como para obrigal-o ao silencio, poz uma de suas mimosas mãos sobre os labios do mancebo, que imprimio n'ella um ardente beijo.
Recolhendo vergonhosa a mãosinha provocadora, a bella incognita tirou do seu seio uma pequena imagem de ouro que representava a Mãi Santissima.
— Eis aqui a imagem da Mãi de Deos, o symbolo do mais profundo amor e de celeste pureza; jura-me, Luciano, que serás meu esposo no dia em que eu provar que sou digna do teu amor, digna do teu nome e da benção de teus pais!
— Juro! disse Luciano, cahindo de joelhos.
A bella incognita beijou nos pés a pequena imagem ; o mancebo depositou no mesmo lugar um outro beijo.
— E quando será esse dia ? perguntou Luciano, cheio de ardor e de esperança.
— Mais cedo do que pensas, respondeu a moça.
— Oh! dize!...
A bella incognita levantou os olhos para o céo, procurando o sol, e de novo olhando para Luciano, observou-lhe sorrindo.
— O tempo correu voando ; devem ser mais de sete horas : não te lembras de que promet-
— 174 —
teste a teu pai estar em casa ás nove horas da manhã ?...
— Quem te poude referir o que hontem se passou entre mim e meu pai ?...
— Esqueces que eu te amo, e que a minha alma te acompanha por toda parte?... Minha alma estava comtigo, quando teu pai te fallava...
ella disse-me tudo. Basta. A hora se adianta : teu pai te espera. Adeus !
E d'essa vez disserão ambos a um tempo :
— Até amanhã.
— 175 —
VI.
As nove horas da manhã Eugênio e Luciano estavão sentados em frente um de outro.
— Foste pontual, meu filho, disse Eugênio.
Luciano sorrio e corou.
— Devo hoje occupar-te com um assumpto que a todos nos interessa, e cuja terminante decisão não pode ser por mais tempo adiada.
O mancebo fez um movimento.
— Ouve-me até ao fim.
— Mas, meu pai, eu creio que posso adivinhar qual seja o assumpto de que pretende tratar, e n'esse caso...
— Não importa ; ouve-me sempre. O
estudante curvou a cabeça.
— Uma antiga e verdadeira amizade ligame a Guilherme ; desejosos de prender-nos ainda mais estreitamente com novos laços, promettemos ambos um ao outro tornar de nossas famílias uma só familia casandote com Dyonisia. Este desejo rebentou em nossa alma quando tu e ella estaveis ainda nos berços.
Sonhámos um futuro de immensa felicidade — 176 —
para todos nós, e o dia chegou era que ou deve realizar-se, ou esvaecer-se para sempre esse bello sonho.
— Senhor...
— Sei tudo quanto mais pretendes dizer ; ouveme porém ainda. Tu não conheces Dionysia :
primeiro, os cuidados de tua educação, depois uma longa ausencia de Guilherme e sua família separárão-te d'aquella que de destinámos para esposa, e que assim ficou sendo para ti inteiramente desconhecida. Sem razão alguma, sem o menor fundamento, demonstraste a mais viva repugnancia a este casamento que projectamos : não foi somente indifferença por Dionysia, foi um sentimento que não tem nome, porque não posso admittir que seja odio o que fez rebentar em tua alma a idéa d'esta união. Um homem de juizo, meu filho, nem ama nem tem repugnancia a uma mulher sem um motivo para isso, e eu não poderia comprehender que amasses como não comprehendo que desprezes afilhado meu amigo.
— Meu pai tem razão n'este ponto, mas eu também a tenho. O casamento é uma alliança perpetua, um laço que só a morte deve romper; e em tal caso é justo que aquelles que assim se prendem, soldem com o amor essas cadeias, que de outro modo se tornarião pesadas e fataes.
— 177 —
— E porque não amarias tu Dionysia?
_ Ah ! meu pai! e porque amal-a-hia eu ?...
O amor não se obriga, rebenta espontâneo do coração.
— Mas esse futuro que faria a felicidade de teus pois e de teus melhores amigos não tem a menor importancia no teu espirito ?. .
— A felicidade de mossos amigos é muito e a de meus pais é tudo para mim : no entanto, eu seria ingrato se desconhecesse que a felicidade de meus pais depende principalmente da minha, e eu seria completamente desgraçado se me casasse com Dionysia.
— E porque ?
— Porque não a amo, nem jamais poderei amal-a.
— Quem sabe?
— Eu sei, meu pai.
Eugênio sorrio.
— Meu pai duvida da força da minha vontade?
O pai tomou pela primeira vez um ar severo.
— Penso que se não trata de força de vontade, e tanto assim que ainda não mais lembrou fazer sentir a minha; não creio que meu filho fizesse o propósito de contrariar-me pelo simples gosto de parecer forte e indomavel.
— 178 —
— Perdão, meu pai; não era isso o que eu queria dizer.
— Ainda bem ! disse Eugênio serenando.
Insinuava eu que era possível que viesses a amar Dionysia; e porque não ?... Affirmo-te que é uma jovem cheia de encantos e de prendas, e duvido que haja quem possa vela sem amal-a.
Ensaiemos pois : tu frequentarás d'ora avante a casa de Guilherme e se, em oito dias, não te sentires dominado pelos encantos da tua noiva, não terei nenhuma palavra que dizer, nenhuma queixa a fazer pela opposição com que procuras tornar impossível este casamento.
Era tão razoavel este conselho de Eugênio, que Luciano vio-se verdadeiramente embaraçado para negar-se a seguil-o; no fim porém de alguns momentos de reflexão, levantou a cabeça e disse:
— Meu pai, a minha frequencia naquella casa seria inutil; a alliança que vossa mercê deseja é impossivel.
— Impossivel! e porque?...
— Porque eu amo outra mulher, e opportunamente espero que meu pai approve e abençoe o meu casamento com ella.
Eugênio pareceu desagradavelmente impressionado por aquella franca declaração do filho.
— 179 —
— E quem é essa senhora que deve ser minha filha ?... perguntou elle. Luciano corou e não respondeu.
— Com se chama ella ?
Luciano medio toda a difficuldade de sua situação, e pareceu confundido.
_ Quem são os pais dessa senhora?... qual é o seu passado ?... sabes se é digna de ti ?...
Responde-me.
Luciano ficou atterrado.
— Guardas silencio, meu filho ?... que mysterio é esse ?... Teu pai é o teu primeiro amigo, e deve saber tudo. Que mulher é essa que tu preferes a Dionysia?... Falla!...
— Mais tarde, meu pai, mais tarde!... disse enfim o estudante.
— Meu filho!
— Perdão, meu pai, mas eu não posso ainda satisfazer a sua justa curiosidade; juro-lhe porém que nunca me casarei sem prestar-lhe a obediencia devida, que é para mim ao mesmo tempo uma obrigação e uma gloria.
— Luciano, disse Eugênio ; esse mysterio faria estremecer a qualquer homem prudente e ajuizado. O amor de um pai lê no futuro :
cuiado, meu filho,ou eu mais engano muito, ou te armão uma cilada ou zombão de ti...
— Não, meu pai!
— Sim, meu filho. — 180 —
— Como póde assim affirmal-o ?
— O coração m'o está dizendo : felizmente, essas intrigas não durão quando a victima escolhida tem bastante consciência do seu dever para não esquecer-se da sua própria dignidade.
Luciano, não te fallarei mais de Dionysia.
— Oh ! ainda bem,meu pai!
— Continua em teus loucos amores... vai...
repete todas as manhãs as tuas romanescas e interessantes caçadas....
— Meu pai!
— Sim.... mas eu te asseguro que dentro de poucos dias, em lugar de pedir-me que approve essa paixão imprudente por uma desconhecida que ninguém poude dizer que não seja uma mulher perdida, por uma moça astuta e perigosa que se arma com o encanto do mysterio para accender a imaginação de um mancebo exaltado e ardente, eu te asseguro que, em lugar de vir pedir-me que chame essa mulher minha filha, virás arrependido rogar-me de joelhos que eu me apresse a realisar um projecto que fará a tua e a nossa felicidade.
Eugênio sahio, deixando o filho confundido e envergonhado.
Apezar disso, ao romper do dia seguinte já Luciano achava-se no lago do bosquesinho.
Dessa vez chegou elle primeiro...
— 181 —
Mas o tempo foi correndo... as horas fôrão passando, e a bella incognita não apparecia.
Luciano não sahia como explicar esse esquecimento da promessa que recebera em um doce — até amanhã !
Cansado de esperar, veio-lhe á mente correr á casa dos lavradores; teve porém medo de desgostar á bella incognita procedendo assim.
O dia adiantava-se, e finalmente o compadre Baptista veio lembrar-lhe que era chegado o momento de retirarem-se.
Luciano levava o inferno no coração.
Acabando de descer o monte, os dous caçadores montarão a cavallo e seguirão.
Baptista fallava por dous, e fazia bem porque fallava por si e ainda por Luciano que nesse dia guardava um silencio de finados.
Ao chegarem a um ponto da estrada em que havia uma encruzilhada, um cavalleiro desconhecido que alli estava parado, chegou-se para Luciano, entregou-lhe uma carta e immediatamente partio a galope.
Luciano abrio a carta e leu com avidez e commoção indizivel : « Luciano ! adeus ! Sabem que nos amamos, e sepárão-nos : arrastão-me parabém longe de ti... não sei para onde»
provavelmente para a cidade do Rio de Janeiro.
Embora! um dia, talvez bem cedo, me — 182 —
encontrarás inesperadamente. Adeus! deixo-te a minha alma e levo comigo o teu amor.
Adeus!adeus!»
— Para que lado tomou aquelle cavalleiro?
perguntou Luciano guardando a carta no seio.
— Por alli, respondeu Baptista, espantado do olhar de fogo do mancebo.
Luciano enterrou as esporas no ventre do seu cavallo, que partio á desfilada seguindo a direcção indicada.
Baptista sacudio a cabeça, desatou a rir e continuou o seu caminho, depois de dizer duas vezes, como fallando comsigo mesmo :
— Estes rapazes ! estes rapazes !...
Luciano chegou á casa ás duas horas da tarde, furioso por não ter encontrado o cavalleiro portador da carta da bella incognita.
— 183 —
VII.
Era a terça-feira do carnaval que acabámos de ver passar.
Luciano achava-se já de volta na cidade do Rio de Janeiro, e bem que na companhia de seus pais, que com elle tinhão vindo, conservava-se triste, silencioso e quasi intratavel, como um pequeno gentio que do seio da floresta é á força trazido para o mundo da civilisação.
O estudante aborrecera profunda e terrivelmente a vida do campo e as suas caçadas desde que lhe havião roubado a sua bella incognita: e attribuindo esse facto á influencia ou intervenção de Guilherme, começara a trocar por aversão a repugnância que a principio lhe causara a ideado seu casamento com Dionysia.
Violento como era, esquivou-se a acompanhar seu pai á fazenda de Guilherme, e emfim, tornando á cidade, empregou oito dias inteiros a correr todas as ruas da capital, e atirar informações, que nenhuma luz lhe derão, para encontrar a bella incognita, como ardentemente desejava.
— 184 —
Aborrecido de tudo, afflicto e inconsolavel, perdida a esperança de descobrir o lugar mysterioso onde lhe escondião a amada, encerrou-se no seu quarto, e ahi ficou outros oito dias sonhando com a bella incognita, e amaldiçoando Dionysia.
Alguns collegas que o vinhão repetidamente visitar, procurarão debalde chamal-o de novo á vida da alegria e das festas, e declararão a uma voz que Luciano voltara da roça completamente embrutecido, e que precisava ser de novo educado, passando outra vez pelas provações impostas aos calouros.
Chegou o carnaval.
No domingo Luciano revoltou-se contra os collegas que se esforçavão por arrancal-o de casa, e despedio a todos elles no meio de uma tempestade de injurias.
Na segunda-feira ainda o estudante deixou-se ficar no seu quarto, resistindo aos pedidos de sua mãi que se empenhava por vel-o sahir e distrahirse.
Na terça-feira emfim Luciano, que não cedera nem aos seus collegas, nem á sua mãi, obedeceu ao impulso de um máo pensamento. Veio-lhe á mente que indo ao theatro, e podendo lá encontrar a familia de Guilherme teria occasião de vingar-se em Dionysia das saudades e das afflicções que estava experimentando. — 185 —
Cabeça de estudante! conceber um plano e executal-o é sempre obra de poucos momentos.
Immediatamente mandou procurar duas duzias de trajos e disfarces, e chegados estes, trancouse no quarto, e depois de muito escolher preferio um bello Pierrot.
Apezar de todos os seus cuidados, sua mãi observou tudo quanto el!e fazia, espiando-o cuidadosa pelo buraco da fechadura da porta, e sorrio ao vél-o trajando as roupas preferidas:
sorrio talvez ou por achal-o bonito, ou por ver que o filho se resolvia a ir divertir-se.
As dez horas da noite Luciano entrou no theatro de S. Pedro de Alcântara.
Realmente, era um Pierrot magnifico.
Mas ninguém diria que a sua mascara escondia o rosto de um estudante!
Luciano esteve estúpido, durante duas horas completamente estupido, porque limitou-se a correr as salas e corredores, e a observar todos os camarotes.
O estudante perdera o seu tempo : a familia de Guilherme não tinha vindo ao theatro de S.
Pedro : pelo menos elle não descobrira um só homem que com Guilherme se parecesse A meia-noite lembrou-se Luciano de que bem podia ser que a família que procurava, tivesse preferido ir ao theatro Provisorio, e determinando-se logo a realisar seu plano, descia — 186 —
da terceira ordem dos camarotes, onde então se achava, quando ao chegar á escada da segunda ordem encontrou-se com dous dominós que parárão diante delle.
Os dous dominós erão provavelmente um homem euma senhora, epelo menos assim paredão pela differença da estatura, do andar, e dos modos.
O mais alto dos dous, que era um dominó preto, disse algumas palavras ao ouvido do outro, que era um lindo e gracioso dominó de setim azul, e emquanto o primeiro se deixou ficar immovel no lugar, em que estava, o segundo, o dominó de setim azul, avançou dous passos para Luciano, e tocando-lheno hombro, disse-lhe:
— Conheço-te !
— Pouco me importa isso : respondeu o estudante sem attender ao dominó azul, e sem ao menos contrafazer avoz.
— Vim procurar-te... escuta, tornou o dominó azul, tomando a mão de Luciano.
D'essa vez o estudante estremeceu ao som da voz que lhe fallava.
— Quem és ?... perguntou.
— Prometti que um dia e cedo viria encontrarte inesperadamente : eis-me aqui!
Luciano acabava de reconhecer a voz suave e pura da bella incognita.
— Meu Deus ! exclamou elle, e prendendo — 187 —
entre as suas uma das mãos do dominó, levou-o para o fundo do corredor, onde era menos numeroso o concurso.
— És tu ? és tu ? perguntou elle.
— Sou eu, sim ! respondeu a bella incognita atirando para traz o capuz do dominó, e libertando seu formoso rosto da mascaraque o occultava.
Era com effeito ella mesma, e mais encantadora do que nunca.
Luciano não sabia o que dizer-lhe: apertavalhe a mão, e chorava.
— Falla! conta-me... dize-me tudo quanto comtigo se tem passado! balbuciou elle emfim.
— Não, respondeu a joven : a historia fora demasiado longa, e não nos sobra o tempo.
Ouve-me, Luciano: amas-me sempre?...
— Oh! sempre! sempre! cada vez mais!...
— Escuta : não te lembra quando me juravas que me farias tua esposa, e que me darias o teu nome, a tua familia e teu futuro, que eu te respondi então que seria tua um dia, e breve, e quando pudesse provar-te que era digna de ti e da benção de teus pais ?...
— Sim... sim... e então ?
— Amas-me ainda, Luciano ?...
— Muito... como nunca se amou no mundo.
— Pois o dia afortunado chegou...
— Como?... — 188 —
— O dia, Luciano, é hoje !
— Hoje ?...
— Dentro de meia hora, poderás ver meus pais, saber o meu nome, conhecer o meu passado e decidir se mereço a dita de ser tua esposa.
— Oh é demais ! é muita felicidade n'esta vida de soffrimento e de afflicções !
— Vem !
— Onde !
— A minha casa, á casa de meus pais.Luciano não poude deixar de olhar admirado para a bella incognita..
— Hesitas ?... perguntou ella.
— Não ; mas teus pais quem são ?...
— Sabel-o-has bem depressa...
— E elles sabem...
— Tudo...
— Vamos.
O Pierrot deu o braço ao dominó azul, e ao descer a escala passou junto do Dominó preto que se conservara ainda no mesmo lugar, em que ficara ; mas logo depois sentindo que era por elle seguido passo a passo, lançou-lhe um olhar de desconfiança, e perguntou á sua bella incognita :
— Quem é este dominó ?...
— O teu maior amigo.
— Como se chama ?...
I
— 189 —
— Pois ignoras o nome do teu maior amigo ?...
— Intrigas-me.
_ É uma cousa muito natural em um baile de mascaras.
— E que quer elle comnosco ?...
— Sem a menor duvida seguir-nos.
Os tres mascaras tinhão chegado á porta do Iheatro, e a um signal do dominó preto, que então se adiantou alguns passos, approximou-se um elegante carro.
— Seguir-nos ?... disse admirado Luciano.
— Sim, e entrar comnosco n'esta carruagem.
Com effeito, o dominó preto saltou para dentro do carro logo que vio dentro d'elle a bella incognita e Luciano, que cada vez mais sorprehendido se mostrava.
O carro partio.
— Para onde vamos ?... perguntou o estudante.
— Que te importa, uma vez que me levas a teu lado ?... disse a moça.
— Oh ! mas parece que durmo e que sonho, e tenho medo de accordar.
— Tranquillisa-te : accordaremos todos no seio da felicidade.
— Todos ?...
— Sim : não posso dizer accordaremos ambos; porque estás vendo que já somos tres... — 190 —
— Mas o nosso terceiro companheiro é mudo?...
— Ah ! se soubesses como o seu coração palpita de alegria, ouvindo-nos !...
— Dominó preto, quem és tu ?...
O dominó não respondeu.
— Pergunta-me o que quizeres : eu responderei por elle.
— Pois começa por dizer-me o seu nome.
— Que empenho é esse, se ainda não sabes o meu ?... disse a moça com doçura.
— Quem és então ?... quem és, mulher encantadora ?... perguntou de novo Luciano, beijando com amor a mão da bella incognita.
— Quem sou ? pois não te diz o coração que sou a esposa que elle te escolheu ; que sou a mulher que te prendeu e conquistou-te ?...
— Sim ! sim ! é isso mesmo !
— Ves? disse a moça com um tom de irresistivel magia ; eu sou a soberana, e tu és o escravo...
— Sempre!
— Ninguém te obrigou a amar-me, e tu amaste-me, e amas-me ; ninguém te arrastou para junto de mim, e tu offereceste os pulsos ás minhas cadeias !... és meu! és meu escravo; não é assim ?...
— Oh! e como é doce poder sel-o ! ..
O carro parou n'esse momento á porta de — 191 —
uma vistosa casa de campo.
Luciano nem tinha reparado no caminho por onde fora trazido.
O criado abrio a portinhola da carruagem, os dous jovens apearão-se, e logo após elles o dominó preto.
Luciano vio a casa brilhante de luzes, como para uma noite de festa.
— Vem! disse-lhe a bella incognita, tomando lhe o braço.
O estudante não hesitou : o que se estava passando, começava a parecer-lhe um conto das Mil e uma Noites, e sua imaginação exaltada o impellia para ver o fim d'esse romance, em que elle tinha uma parte tão notavel.
Entretanto o seu coração palpitou mais fortemente, quando sentio que chegavão á porta da sala.
— Emfim ! disse em alta voz a moça antes de entrar.
— Quem é?... perguntou alguém, que na sala estava.
— Sou eu, meu pai; sou eu que trago o rebelde vencido, e para sempre encadeiado!
Luciano soltou um grito de sorpreza encontrando-se face a face com Guilherme, a esposa d'este, e sua própria mãi, que o vierão receber com os braços abertos.
192 — Meu Deus! exclamou o estudante chorando de alegria ; e meu pai!. . onde está meu pai?...
— Disfarçado em um dominó pela primeira vez na sua vida !... disse o dominó preto, arrancando a mascara.
Luciano cahio de joelhos.
— Que queres ? perguntou Eugênio sorrindo.
Luciano não poude fallar; mas apontou para aquella que fora a sua bella incognita, e que acabava de ser incognita, continuando sempre a ser bella e encantadora.
— Não te dizia eu, observou-lhe Eugenio ;
não te dizia eu que dentro de pouco tempo tu me pedirias de joelhos que abençoasse o teu casamento com Dionysia ?...
Adivinha-se o resto. O casamento de Luciano com a filha de Guilherme vai em breve effectuarse, o estudante, maldizendo o seu louco orgulho que o fazia voltar o rosto á felicidade, reconhece e diz a todos que a bella incógnita não perdeu nenhum dos seus encantos por chamar-se Dionysia.
INNOCENCIO
INNOCENCIO
I.
Na manhã do dia 24 de Janeiro do anno corrente de 1861 estava passeando á entrada da estação da estrada de ferro, no campo da Acclamação, á espera do trem que devia a todo instante chegar, um homem de 50 annos de idade, de estatura regular, um pouco gordo, nem bonito nem feio, mas que á primeira vista logo se fazia notar por um sorriso constante que lhe morava nos labios, sorriso que nem exprimia bondade, nem toleima ; muito claramente porém uma ironia cruel, e, talvez, insolente.
— 196 —
Esse homem chamava-se, ou antes chama-se Geraldo ; mas porque muito a miudo dá ao seu sorriso habitual as proporções de gargalhada, é, ainda mais do que pelo seu nome de baptismo, conhecido na cidade do Rio de Janeiro pela alcunha de — Risota.
Geraldo-Risota ri com effeito de todos e de tudo ; mas o seu rir é triste e desconsolador : é um rir que faz mal. Uma longa e dolorosa experiencia, uma série de desgostos e decepções, uma disposição natural do seu espirito, uma mania talvez, ou o quer que fosse, tinha alterado profundamente o caracter d'aquelle homem, tinha-o tornado tão descrente das cousas d'este mundo, que de todo se lhe apagaram a fé e a esperança no futuro da vida, da sociedade e do paiz ; mas essa descrença, em vez de tornal-o melancolico e rude em seu parecer, emprestáralhe esse rir de mofa, e o fazia soltar gargalhadas a respeito de tudo : era um Democrito grosseiro, que parecia feliz e devia ser desgraçado.
Geraldo-Risota passeiava, pois, esperando a chegada do trem de ferro, que emflm annunciouse por aquelle sibilo bem conhecido.
Alguns minutos depois, um homem e uma senhora, que erão sem duvida marido e mulher, e uma bella moça, provavelmente filha d'elles, sahírão da estação e saudarão amiga- — 197 —
velmente a Geraldo, e logo em seguida appareceu um elegante mancebo, que correu para este com os braços abertos.
Geraldo-Risota abraçou o mancebo sem entusiasmo, sem ardor, mas com apparencias de interesse, e, tomando, immediatamente um carro de aluguel, partio com elle para sua casa.
— Pensei que te demorasses mais tempo na tua provincia, Innocencio, disse Geraldo.
— Não, meu padrinho ; eu estava ancioso por voltar á capital do Imperio ; brilhantes esperanças, nobres ambições, e agora quiçá também o amor marcão aqui o meu lugar.
O Risota soltou uma gargalhada.
— Que é isso, meu padrinho ?...
— Foi uma gargalhada muito longa, confesso;
mas era preciso que fosse assim, visto que devia valer por tres, pois que a um só tempo me fallaste em tuas brilhantes esperanças, nobres ambições, e em amor.., tres cousas que me fazem sempre morrer de riso.
Innocencio não respondeu ; pôz-se a olhar para a rua, e dahi a pouco disse :
— Quando eu observo o desenvolvimento e progresso que teve a cidade do Rio de Janeiro nos oito annos que gastei estudando na Europa, sinto verdadeiro enthusiasmo imaginan- — 198 —
do o que será a nossa capital d'aqui a vinte ou a trinta annos !...
O Risota achou no que acabava de ouvir motivo para rir tanto que o mancebo desapontou e não disse mais palavra.
O carro parou finalmente á porta da casa de Geraldo, e este, depois de conduzir o seu afilhado ao aposento que lhe destinara, disse-lhe:
— Procede comigo como dantes, Innocencio :
faze de conta que é tua a casa de teu padrinho ;
almoça, descança; que eu tenho que fazer, e vou tratar da vida.
Innocencio ficou só : pedio almoço ao escravo que veio pôr-se ás suas ordens, e logo depois achou-se sentado á mesa.
Emquanto elle almoça, aproveitarei o tempo dizendo o que convém para tornar conhecido o afilhado de Geraldo.
Innocencio era filho de um honrado fazendeiro da provincia de... e tendo mostrado desde tenra idade muita disposição para a carreira das lettras, seu pai o mandou educar.
Geraldo, que era parente afastado, mas também padrinho de baptismo de Innocencio, recebeu em sua casa o afilhado, que fez no Rio de Janeiro os seus estudos de humanidades com applauso geral dos mestres, que ad- — 199 —
mirarão a sua intelligencia, e não menos o seu caracter honestissimo.
Aos dezoito annos Innocencio partio para a Europa, e lá, em vez de passear e divertir-se empregou oito annos em estudos assiduos e conscienciosos, de modo que em 1860 voltou para o Brazil, rico de sciencia e de illustração, podendo ufanar-se de ser um mathematico habil, um engenheiro pratico e um litterato brilhante.
Innocencio perdera seu pai quando estava na Europa, viera porém encontrar uma doce consolação no amor da mais carinhosa mãi.
Também tendo, de volta do velho mundo, chegado ao Rio de Janeiro em Junho de 1860, apenas se demorou oito dias nesta capital, e logo partio para sua provincia, onde ficou ao lado de sua mãi até o fim do anno, epoca cm que tornou para o Rio de Janeiro, chegando á cidade no dia 24 do primeiro mez de 1861, como se acaba de ver.
É certo que elle poderia ter chegado alguns dias mais cedo ; encontrando porém na fazenda de um velho amigo de seu pai, fazenda pouco distante da cidade, uma família da corte que alli fora passar a festa do Natal, deixou-se captivar e prender pelos encantos de uma interessante moça, amou-a, e não seguio a concluir a sua viagem senão quando aquella -200-
família teve também de retirar-se, cabendo-lhe a dita de embarcar-se com os pais da sua amada e com esta no mesmo trem e no mesmo carro do caminho de ferro de D. Pedro II.
Creio que se adivinhará facilmente que a familia de que se trata é aquella mesma que saudou com signaes de amizade a Geraldo ao sahir da estação do campo da Acclamação.
Agora que fica já referida a historia do passado de Innocencio, é justo dizer duas palavras sobre o seu physico, e alguma cousa mais sobre o seu caracter.
Innocencio vai fazer vinte e sete annos; é alto, delgado, pallido, e sympathico; tem sobretudo uma fronte elevada, onde se lê claramente uma bella intelligencia, e olhos pardos e cheios de doçura, em que transluz a bondade.
Disse que Innocencio vai completar vinte e sete annos, e devo accrescentar que a certos respeitos parece não ter mais de quinze ou dezeseis ; une a um enthusiasmo de poeta a inexperiencia de um menino.
Bom até ao extremo, honrado como os que mais o são, de consciencia a mais escrupulosa, severo sempre para comsigo mesmo, indulgente sempre para com os outros, era sobretudo credulo como a infancia, e não cal-
— 201 —
culava jamais nem com a hypocrisia, nem com a perfidia dos homens.
Ate á idade a que tinha então chegado, vivera constantemente afastado das luctas e das agitações do mundo, e só occupado com os seus estudos, cultivando apenas a sociedade oenqrosa e leal de alguns dos collegas das aulas.
Entrava agora finalmente no mundo social com a cabeça cheia de utopias e o coração cheio de amor. Era enthusiasta do bello, da virtude, e escravo do dever : amava com ardor a patria e desejava servil-a ; amava os homens e desejava ser-lhes util.
Embora fosse modesto, Innocencio tinha consciencia de que valia alguma cousa, e ufanava-se dos conhecimentos e da illustração que possuía, porque podia com a sua intelligencia esclarecida prestar serviços ao seu paiz.
E emfim, para remate completo e perfeito desta natureza tão propria para ser objecto e victima das zombarias e dos enganos do mundo, Innocencio era poeta, e podia, se quizesse, brilhar como tal aos olhos dos homens.
Desculpem-me se deixo em silencio os deeitos deste mancebo : os seus defeitos sem difficuldade se adivinhão, porque naturalmente — 202 —
devem corresponder á exaggeragão das suas boas qualidades.
Deixei Innocencio ainda ha pouco á mesa do almoço; agora vou encontral-o no seu quarto.
Está deitado, mas não dorme, nem descança;
medita: em que medita ?... Elle lá o sabe; sonha talvez, sonha com um futuro de flores, com triumphos, com amor, com a gloria: sonha com illusões : não é assim que sonhão todos os poetas?...
Levantou-se, e foi sentar-se a uma mesa, abrio a sua carteira de viagem, delia tirou papel, pennas e um pequeno tinteiro, e pôz-se a escrever.
Escreve no seu diario as lembranças e impressões do dia, a cujo termo ainda não chegou.
Realmente, ha n'esse cuidado pressa demais.
Sorrio e suspirou escrevendo um nome; esse nome é Christina.
É provavel que se chame Christina a moça com quem elle veio no carro do trem do caminho de ferro ; não é provavel, é certo, porque sem necessidade já escreveu três vezes o mesmo nome, e o repete docemente dez vezes de cada vez que o escreve uma.
Melhor! esqueceu a prosa, e compõe versos: é um canto que improvisa, e com tanta facilidade e promptidão que no fim de duas horas — 203 —
escreve o ultimo verso da vigesima e derradeira estrophe.
Mas nesse momento rebentou aos ouvidos do mancebo uma gargalhada homeryica.
Innocencio voltou a cabeça e vio seu padrinho encostado á sua cadeira.
— Estava ahi, meu padrinho ?...
— Sim, e li o teu canto, que me fez rir.
— Porque?... achou-o máo?
— Pessimo, porque me parece excellente.
— Não o comprehendo.
— Pois é facil: quem escreve versos como esses...
— Está apaixonado, não é isso?... confesso que tem razão.
— A paixão é o menos, porque a paixão apaga-se.
— Conforme...
— Apaga-se.
— Admitíamos isso ; e que mais então ?...
— É que quem escreve versos camo esses, ainda que nunca mais escreva outros, nem por isso deixará de ser sempre poeta pela cabeça e pelo coração, e está por conseqüência destinado a ser uma alma de outro mundo desterrada neste, onde não encontrará nunca nem o que pensa, nem o que sonha.
— Meu padrinho confunde este mundo com o inferno. -204-
— Não, meu afilhado ; eu não confundo, digo somente o que elle é : és tu que pretendes arranjar o mundo a teu modo, e transformal-o em paraíso.
E o peior foi que dessa vez Geraldo-Risota não rio.
— 205 —
II.
A capital do Imperio do Brazil compõe-se, por assim dizer, de duas cidades distinctas, mas habitadas pela mesma população : a cidade da manhã e a cidade da tarde, a cidade do trabalho e a cidade do descanço. A primeira é aquella que especialmente se estende do campo da Acclamação para os diversos bairros commerciaes, que fórmão o que ainda se chama a cidade velha : a segunda é immensa, variada e pittoresca, e comprehende todos esses suburbios elegantes, amenos e saudáveis, que se chamão Cattete, Botafogo, Laranjeiras, Santa Theresa, Engenho-Velho, Rio-Comprido, S. Christovão, Andarahy, Tijuca, e outros ainda.
De manhã, negociantes, capitalistas, funccionarios publicos, advogados, e homens de de todas as profissões, correm a povoar a cidade do trabalho ; chegada porém a hora em que o trabalho cessa ou escassêa, voltão apressados a passar a tarde e a noite na cidade do uescanço. É verdade que a grande maioria da — 206 —
população fica sempre na primeira cidade ; mas também a grande maioria é composta d'aquelles que não podem ter uma casa para a manhã e outra para a tarde e a noite : habitão constantemente a cidade do trabalho pouco mais ou menos pela mesma razão por que os prezos habitão na cadeia.
Geraldo-Risota pertencia ao numero dos felizes, que podem ir jantar e dormir na chacara, e, muito zeloso d'esse direito, logo que terminou a sua tarefa no dia da chegada de Innocencio, partio para a sua casa de campo, levando comsigo o afilhado.
Jantarão ambos como bons amigos, e, acabado o jantar, fôrão tomar o fresco passeando pelo jardim.
Alli estão elles, o padrinho e o afilhado, sentados em frente um do outro, em dous bancos de relva.
Innocencio acabava de enunciar-se não sei a respeito de que assumpto com o seu ardor costumado, e Geral-Risota havia lhe respondido com uma gargalhada.
Ficarão depois em silencio por algum tempo ;
mas Geraldo outra vez encetou a conversação.
— Conversemos, Innocencio; mas falla-me em prosa se queres que eu te entertda.
— Fallar-lhe-hei do modo que chama prosa, — 207 —
meu padrinho, isto é, sem mostrar interesse, e ainda menos enthusiasmo, que é o que lhe narece poesia; fallar-lhe-hei pois assim, mas ha de ser com uma condição.
— E qual é ella ?
_ Que vossa mercê não me interromperá com as suas risadas, que me desapontão.
— Oh diabo !
— Sim ou não, meu padrinho !...
— Mas se és tu que me fazes rir !
— Vossa mercê ri de tudo.
— Foi o melhor partido que pude tomar depois que reflecti seriamente sobre os homens e as cousas da nossa epoca.
— Em tal caso não direi mais palavra, nem em verso, nem em prosa.
— Está bem : por tua causa suffocarei o riso e tornar-me-hei sério e grave como um desembargador quando veste a beca. Ora pois, conversemos.
— Conversemos, meu padrinho.
— Principia tu, pondo-me ao facto dos teus projectos e esperanças ; pôde ser que eu te dê algum bom conselho, porque emfim sou teu parente, teu padrinho, e teu amigo.
— Com o maior prazer.
— Vamos lá: acceode outro charuto, e falla ;
mas falla sem fogo, falla frio, desenxabido e positivo como um deputado ministerial. — 208 —
Innocencio accendeu um segundo charuto e fallou :
— Meu padrinho, tres grandes esperanças me animão, tres bellos pensamentos me occupão actualmente.
— É muito : tres são demais ; devia ser uma só, e ainda assim não seria difficil o desencanto.
— Mas as minhas esperanças baseão-se em seguros fundamentos.
— Vamos a ellas.
— Espero no dia 30 de Janeiro ser eleito deputado pelo meu districto, na provincia onde nasci.
— Oh lá!
— Espero que o governo me confie uma commissão importante, na qual servirei bem ao meu paiz, e darei uma provados meus recursos intellectuaes.
— Excellente!
— Espero emfim casar-me com uma jovem que fará a felicidade da minha vida.
— Tres sortes grandes sem comprar bilhete!...
desconfio de tanta cousa junta : olha que eu desato a rir, Innocencio !
— E eu calo-me.
— Não : estás vendo que conservo inalteravel a minha gravidade de desembargador de beca.
Tornemos ás esperanças, e estudemos — 209 —
cada uma por sua vez. Como arranjaste a deputação?
—Muito simplesmente : reuni em minha casa os eleitores do meu municipio, expuz claramente a todos elles as minhas idéas politicas e administrativas, mostrei-lhes quaes erão os meios mais racionaes e capazes de preparar um brilhante futuro á nossa pátria, marquei o procedimento que eu teria se fosse eleito deputado, e conclui dizendo-lhes : eu não vos peço os vossos votos ; pergunto-vos se os mereço : se os mereço, deveis dar-m'os : a eleião não é uma questão de favor, e sim de interesse geral e de consciencia. Ora, os eleitores respondêrão-me que as minhas idéas erão excellentes, e que me suppunhão muito digno de uma cadeira na camara temporaria ; por conseqüencia, não posso duvidar do resultado da minha eleição.
—Mas quem toma a peito a tua candidatura ?
—Creio que todos os eleitores.
— Porque?...
— Já o não disse?... porque todos eíles applaudírão as minhas idéas, e reconhecerão que erão sãs, conscienciosas e utilissimas.
— E o presidente da provincia protege-te ?
— Que tem que ver o presidente da provincia com a minha eleição ?... eu rejeitaria um — 210 —
diploma que fosse arrancado aos eleitores pela intervenção do governo.
— Mas alguma potencia eleitoral ao menos...
— A unca potencia eleitoral deve ser o merecimento do candidato ; uma eleição não é um favor que se ande mendigando : hei de ser eleito sem empregar esses meios que reprovo.
— Só depois de vèr esse milagre acreditarei n'elle. Desconfio muito que não serás nem o immediato em votos. Rapaz, tu pensas que a eleição é uma bella realidade politica, e ella não passa de uma comedia ou fantasmagoria constitucional. Mas vamos á segunda esperança :
a tal commissão...
Soube, antes de partir para a minha provincia, que o governo ia nomear um commissario encarregado de examinar trabalhos importantes, que se referem á especialidade que foi objecto dos meus principaes estudos : requeri ser escolhido para essa commissão, documentando o meu requerimento com todos os meus attestados acadêmicos, declarando-me prompto para exhibir provas da minha capacidade em um exame publico, e, visto que sou ainda pouco conhecido, apontando diversos cavalheiros considerados d'esta capital que podem affiançar a minha probidade. Ora, a commissão é difficil e espinhosa, não creio que -211-
muitos a desejem, e portanto espero ser escolhido para ella.
— E quem é o teu patrono n'esta pretenção ? _ O meu patrono?...
— Sim ; quem se empenha a teu favor ?...
— Meu padrinho é maniaco pelos empenhos!... eu não pedi, nem peço a pessoa alguma que se interesse por mim : offereci-me a sujeitar-me a um exame publico, lembrei homens conceituados que podem responder pela minha probidade, e é o que basta.
— Fallaste ao ministro respectivo ?...
— Procurei-o, e respondêrão-me que elle estava muito occupado, o que é bem natural, porque um ministro tem a seu cargo uma tarefa onerosissima ; deixei pois o meu requerimento documentado na secretaria, e espero socegadamente o resultado.
— Innocencio ! disse Geraldo; uma de duas :
ou tu te resolveste a passar a tarde divertindo-te á minha custa, ou és o maior tolo que eu tenho conhecido no mundo.
— Porque, meu padrinho?...
— Pois tu já viste nomeações sem patronos e sem empenhos?...
— Oh senhor ! exclamou Innocencio, não fallo agora de mim, que pouco valho: quando porém se apresenta pretendendo um emprego — 212 —
um homem illustrado, honesto e capaz de preenchel-o com proveito do paiz...
— Em regra não arranja nada, é posto de lado, e morre pagão, se não tem padrinho.
— Que blasphemia, meu Deos!...
— Innocencio! conheces o direito constitucional do teu paiz ?...
— Um pouco.
— Quantos são os poderes do Imperio ?...
— Ora, meu padrinho !
— Responde.
— São quatro.
— São cinco.
— Eu respondo com o direito constitucional.
— E eu com o direito consuctudinario. O
patronato é o quinto poder do Imperio : ainda não houve ministro que o confessasse em alta voz ; mas também nenhum houve ainda que deixasse de reconhecel-o e dobrar-se a elle.
— Então o Brazil...
— O Brazil está no caso das outras nações :
mais miseria, menos miséria, mais ou menos desmoralisação, todas ellas andão assim.
— Portanto...
— Aposto que ficarás sem a commissão.
— Veremos.
— Vamos á esperança do casamento.
— Meu padrinho, não vio aquella familia que — 213 —
chegou hoje comigo em um carro do trem da estrada de ferro?...
__ Ah! trata-se da formosa D. Christina, filha do meu amigo Fagundes... uma bella moça de apparencias sentimentaes, mas fria como uma pedra de gelo, e positiva como um bilhete do banco.
— Meu padrinho ! eu a amo...
— E ella ?
— Corresponde ao meu amor.
— E os pais?
— Não podem deixar de sabel-o.
— Entendo : o nosso amigo, em cuja casa estiveste, deu-lhes noticias tuas e de tua familia, e elles ficarão sabendo que tens uma fortunasinha de cincoenta a. sessenta contos de reis.
— E que vem isso ao caso ?
— Vem muito : vais por ahi melhor do que pelas esperanças de deputação e de emprego.
— Creio que não se refere ao meu dinheiro...
— Refiro-me ; é mesmo justo que um pai deseje para sua filha um marido que tenha com que tratal-a convenientemente : é verdade que o meu amigo Fagundes não é pobre :
mas nem por isso calcula menos com um genro que seja rico. Anima-te pois : a tua — 214 —
terceira esperança realisar-se-ha, comtanto que....
— Acabe !
— Ora! comtanto que ainda a tempo não appareça algum outro pretendente que, mercantilmente fallando, represente uma somma mais avultada do que tu podes representar.
— Isto é de mais !
— Não é de mais nem de menos, é exacto.
Entretanto approvo a tua idéa de casamento, e amanhã á noite iremos tomar chá á chacara do Fagundes; quero apresentar-te como meu afilhado.
— Aceito, meu padrinho.
— E não tens mais que confiar-me ?
— Nada mais.
Ouvindo isso, Geraldo-Risota começou a soltar tantas e tão continuadas risadas que esteve o ponto de cahir do banco onde se achava sentado. Innocencio susteve-o, e pedio-lhe que se lembrasse da promessa que fizera.
— Deixa-me rir ! deixa-me ! não sabes quanto me custou estar sério por tanto tempo ;
mas disseste cousas que hão de fazer-me rir durante um anno.
— 215 —
III.
No dia seguinte, das seis para as sete horas da tarde, Geraldo e Innocencio dirigirão-se á chácara de Fagundes.
Era curta a distancia que tinhão de vencer, mas ainda assim o padrinho e o afilhado aprveitarão o tempo conversando.
— Innocencio, disse Geraldo, preciso que meprevinas do papel que pretendes representar para com a familia de Fagundes.
— Que papel pretendo representar ! essa é boa, meu padrinho ; eu quero e hei de sempre apparecer e mostrar-me tal qual sou : dir-se-hia que vossa mercê suppõe que se trata de representar alguma comedia!
— Rapaz, o mundo é um theatro immenso onde os homens, quer em relação á politica quer em relação ás suas profissões, ás sociedades que frequentão, e até á propria religião, são comicos mais ou menos habilidosos. Todos representão, e muitos ou quasi todos o fazem até mascarados.
— E com que fim ?
— 216 —
— Com o fim de ver quem mais engana os outros e mais se aproveita da credulidade alheia.
— E meu padrinho queria então que eu também por minha vez voltasse as costas á verdade, esquecendo o dever da lealdade e da franqueza, e me desfigurasse com a mentira?...
— Eu não disse que o queria; apenas perguntei o que pretendias fazer : não te aconselho a que te deixes corromper e te des-moralises, mas também se te visse já enfeitado com uma certa perfídia e desmoralisação elegante, que tanto aproveitão aos grandes e poderosos da terra, não trataria de corrigir-te, porque vejo que é com esses enfeites que melhor se arranja a vida e se passa bem no mundo.
— E meu padrinho pratica também assim ?...
— Eu não, mas eu já não sou desse mundo ;
ou mesmo quem sabe se as minhas repetidas gargalhadas não são uma espessa mascara com que escondo o pezar de mil decepções e desenganos ?... Está dito :. eu também represento o meu papel de Democrito.
— Ah!
— Mas ainda ha pouco disseste uma grande asneira perguntando-me se eu queria que te desfigurasses com a mentira : as mentiras do — 217 —
bom tom não desilgurão, esmaltão, e era possivel que te quizesses esmaltar com algumas dessas mentiras aos olhos da família do meu amigo Fagundes.
— Por exemplo...
— Por exemplo, podias querer passar por fidalgo, e em tal caso inventarias dez historias a respeito da sublime procedência de teus avós :
para um moço que deseja recommendar-se á sua noiva e aos pais della, isso não era de todo novo nem mal pensado. Actual-mente, a fidalguia vai creando azas e tomando uns ares que fazem medo; o que vale é que os nossos fidalgos arranjão-se ás duzias e apresentão-se tão caricatos que fazem rir. Podias também, e isso era mais importante ainda, querer passar por herdeiro futuro de uma riqueza colossal, dizendo em tal caso que tua mãi possue dez fazendas em vez de uma só : em questão de casamento uma mentira deste gênero esmalta admiravelmente um noivo e impressiona de um modo indizivel os pais da moça.
— E depois?...
— Depois de arranjado o negocio, os illudidos que engulírão a pílula, calão-se porque se se animassem a fallar e protestar...
— Que aconteceria?... — 218 —
— O mundo rirse-hia delles, e eu, mais que todos, soltaria enormes gargalhadas.
— Pois eu nunca me servirei da mentira nem da perlidia para alcançar o que desejo.
— Farás bem e farás mal ; alcançarás uma coroa no reino do céo, mas has de levar muita pateada nos reinos da terra.
— Então a virtude já fugio espantada e corrida deste mundo ?...
— Não : ainda se sustenta nelle, resistindo ao triste espectaculo da prepotência, do patronato, da traição, da infidelidade, e do vicio, que muitas vezes campeião triumphantes; ainda resiste e resistirá sempre, e é por isso que é virtude.
— Ainda bem ! meu padrinho já acredita em alguma cousa!
— Pois eu deixei algum dia de crer na vir tude, na honestidade e na honra ?... O que eu digo é que, sendo poucos os virtuosos, ando sempre a rir e sempre desconfiado, ao ver a multidão de gente que anda a toda hora impondo de virtuosa.
Geraldo e Innocencio chegarão nesse momento ao portão da chácara de Fagundes, e dahi a pouco baterão palmas á porta, e o primeiro exclamou :
-219-
_ Licença para um padrinho que traz comsigo o seu afilhado !
É inutil dizer que Geraldo e Innocencio fôrão recebidos com a maior alegria.
— O Sr. Innocencio não precisava de apreentação, disse Fagundes, é já nosso amigo e deve-nos muita estima.
— Mas folgamos bastante por saber que é seu afilhado, accrescentou Carlota, a mãi de Christina.
— E além de afilhado, parente, disse Geraldo.
— Parente chegado?... perguntou com interesse a boa mãi da menina.
— Não ; tenho outros mais próximos, respondeu Geraldo, desatando a rir.
Bem depressa a conversação tornou-se geral, sendo Innocencio objecto de extraordinarios elogios da parte de Fagundes e de Carlota.
Quem menos fallava era Christina.
O rosto desta moça era regular e bonito;
attrahia porém a attenção ainda mais por uma certa expressão de suave melancolia do que pela suabelleza; seus olhos principalmente, seus olhos negros ehumidos, erão cheios de um languor que captivava ; sua voz parecia um canto harmonioso, cada um de seus sorrisos um triumpho de amor : a graça morava nos labios de Christina.
— 220 —
Innocencio devorava cora olhos ardentes a sua encantadora amada.
Fagundes e Carlota conversavão cora Geraldo de modo a deixar ao mancebo tempo e occasião de sobra para fallar era liberdade a Christina.
Mas os dous namorados entendião-se ainda mais com os olhos e cora os suspiros do que com a palavra.
— Canta alguma cousa, disse emfim Carlota a Christina.
A moça fez-se rogar um pouco, e acabou por levantar-se, sendo acompanhada por Innocencio ao piano.
— Permitte que eu tenha a honra de acompanhar o seu canto?... perguntou o mancebo.
— Com muito prazer, disse corando e tremendo a moça.
Escolhião a musica... folheavão-se os livros...
os dedos côr de rosa de Christina encontravão-se com os de Innocencio, e ao doce contacto ambos sorrirão.
Emfim Christina preferio entre outras a aria de Eleonorado Torquato Tasso, e cantou-a com sentimento e paixão.
Acabado o canto, os dous namorados ficarão conversando junto do piano.
_ 221 __
— Gosta muito d’aquella musica, minha senhora ?..-
— O mais que é possivel.
__ Tem razão; a musica do Torquato é um verdadeiro triumpho da arte.
__ Talvez que a arte seja o que menos influe na minha predilecção por esta ária.
— Então...
— Arrebata-me o pensamento que alli domina, arrebata-me aquelle amor que faz esquecer a distancia que separa o poeta da princeza: o sentimento transborda alli com a mais sublime pureza. É um amor que não parece da terra, e que é no emtanto o único que eu posso reputar verdadeiro e santo.
Innocencio teve desejos de ajoelhar-se aos pés de Christina e adoral-a como um anjo.
— Oh ! tem havido tantos sacrilegos, ousando emprestar o nome sagrado de amor a sentimentos ás vezes tão baixos !... o interesse tem tantas vezes manchado esse nome bello e puro, envolvendo-se com eíle, que...
— Acabe...
— Senhor.... estou dizendo loucuras...
— Oh! não.... está fazendo ouvir a lição da virtude, da generosidade, do amor do céo !
— Pois bem : tantas vezes tem-se observado aquelle sacrilégio abominável, que pela minha parte eu preferira ser victima delle a parecer _ 222 __
suspeita de haver pensado em commettel-o! Oh!
eu desejara que o homem a quem eu amasse.... e que tivesse de ser meu esposo, fosse tão pobre, tão completemente pobre que somente me pudesse dar o thesouro do seu coração. Então eu ostentaria o meu amor profundo, desinteressado, virgem, divino pela sua essência, divino ainda pela sua duração sem termo... porque o meu amor, eu o sinto, não poderá acabar nunca!
Com uma commoção violenta, Innocencio agitado, nervoso, tremulo e receioso de atraiçoar-se, correndo com os dedos pelo teclado de piano, executou alguns compassos de uma musica estridente, ao mesmo tempo que Christina, commovida também, mas observandoo cuidadosa e disfarçadamente, vio cahirem-lhe dos olhos duas grossas lagrimas.
— Incommodei-o ? chora?... perguntou ella.
— Não ! não! estas lagrimas que cahírão de meus olhos, são mais doces do que todos os risos da felicidade, Christina.... Christina... o seu amor é como o amor que eu sinto, e o seu... eu o quero para mim... é meu... pertence-me... Ah! diga-me ainda uma vez que me ama...
A moça deixou cahir sua mão esquerda sobre as mãos de Innocencio, e apertando com a outra o coração, murmurou docemente :
— 223 —
— Amo-o !
O chá começou a servir-se naquelle momento.
Às dez horas da noite Geraldo e Innocencio despedirão-se e retirárão-se.
— Então ! aproveitaste bem o teu tempo, não é assim ?... perguntou Geraldo.
— Meu padrinho, respondeu Innocencio, Christinaé um anjo!
— Mas repara que não me asseguras que não seja algum daquelles anjos decahidos que se revoltarão contra Deos e cahírão do céo no inferno.
— Não zombe ; é um anjo de virtude e de amor!
— Qual! é uma moça bonitinha, que tem mais defeitos do que pensas.
— Meu padrinho, peço-lhe que respeite aqúella que deve ser minha esposa.
— Não digo mais palavra sobre ella; creio porém que posso fallar sobre os pais.
— E que tem a dizer a respeito d'el-les ?...
— Pouca causa : digo que se interessão por ti.
— Ah!
— Não houve pergunta que me não fizessem :
ficarão sabendo a quanto montou a legitima que te tocou por morte de teu pai e a — 224 herança que te caberá, por morte de tua mãi...
— Meu padrinho !
— Não acharão máo o que eu lhes disse e que foi a pura verdade, mas ficarão menos contentes quando eu os informei de que não podias esperar ser herdeiro de mais parente algum...
— Sempre a mesma idéa!...
— É muito natural; os pais devem pensar no futuro de suas filhas ; e assiste-lhes o direito de ser muito positivos.
— Tem razão.
— E Christina ? que te disse ella?
— Vossa mercê zomba de tudo........
— Não, tomarei este negocio ao serio.
Innocencio contou palavra por palavra tudo quanto se passara entre elle e Christina, e o enthusiasmo com que esta lhe fallára do amor da princeza Eleonora, e do amor desinteressado e santo, unico que ella comprehendia. Ouvindo isso,Geraldo-Risota pareceu fazer um esforço sobre si mesmo, e de repente.começou a assobiar muito desatinadamente uma musica que ninguém seria capaz de dizer o que era.
— Que faz, meu padrinho ? perguntou Innocencio.
— Assobio, meu afilhado; assobio para não rir — 225 —
IV.
Foi tão lisonjeiro ou tão animador o acolhimento que Innocencio recebeu dos pais da sua amade, que não deixou mais passar uma única noite sem ir pagar tributos de amor e colher suaves esperanças na chácara feliz onde habitava Christina.
Visitas tão freqüentes poderião oífender certas considerações que sempre se devem respeitar ;
mas Innocencio olhava já Christina como sua noiva, e embora ainda não a tivesse pedido formalmente em casamento, já com tanta clareza manifestara as suas intenções a este respeito, a Fagundes e sua esposa, que sem vexame e quasi que com uma presumpção de direito ia todas as noites passar duas ou tres horas ao lado daquella que devia ser em breve a sua companheira de toda vida.
Também de sua parte Fagundes e Carlota recebião sempre com o maior agrado Innocencio, e Christina nunca se despedia delle que, ao apertar-lhe a mão, não lhe dissesse :
— Até amanhã!
— 226 Tudo isso era muito natural e explicavel.
A um namorado não faltão jamais pretextos e nem mesmo razões que lhe parecem muito solidas para freqüentar assidua e até diariamente a casa daquella a quem ama.
Os pais de uma menina que já tocou á idade de casar-se, acolhem sempre com estudado favor o mancebo que se lhes afigura em boas condições de ser um marido extremoso e capaz de fazer a felicidade da filha.
O que porém menos natural poderia parecer, era a incançavel solicitude com que GeraldoRisota mostrava auxiliar os amores e os projectos de casamento de Innocencio.
Geraldo não deixava de acompanhar o afilhado uma só noite á charara de Fagundes, nem de informar-se na volta a respeito do estado das relações dos dous amantes.
Uma vez, Innocencio chegou a agradecer ao padrinho os signaes do vivo interesse que lhe devia.
— Nada de agradecimentos, respondeu Geraldo ; não quero que te enganes comigo; o empenho que tomo em informar-me dos teus amores com Christina, nasce somente do juizo que faço do coração da tua noiva, e da admiração que me causa a sua constancia.
— Já vê, meu padrinho, que lhe cumpre —227—
reformar o seu juizo e pedir perdão a Cristina — Ainda não: deixa primeiro soprar o vento.
— Que vento ?
— Um certo vento que ás vezes faz mudar de rumo a muitos homens, e do mesmo modo a muitas senhoras.
— Meu padrinho ! já lhe pedi.. .
— Mudemos de assumpto.
— É melhor.
— Como vais de esperanças eleitoraes?...
— Nada posso dizer além do que já lhe disse;
não tenho recebido carta alguma da provincia.
— Máo signal!
— Não : estou perfeitamente tranquillo : a minha eleição é indubitavel.
— E a commissão do governo ?...
— Fui já três vezes procurar o ministro, para entender-me pessoalmente com elle, e não consegui uma só vez fallar-lhe.
— Talvez o procurasses em horas mal escolhidas.
— Por pensar também assim, mudei sempre de hora.
— E sempre infeliz, heim ?
— A primeira vez fui ás onze da manhã: S.
Ex. estava almoçando. — 228 —
— Bom!
— A segunda fui ás cinco horas da tarde ; S.
Ex. estava jantando.
— Melhor !
— Exasperado ou pelo menos contrariado, á terceira vez fui ás oito da noite, e S. Ex. estava ceiando !...
— Optimo, sempre comendo !
— Não volto mais ao ministro, — Mas a commissão ?...
— Ha de vir a seu tempo : o meu requerimento está de tal maneira concebido que, ou o governo ha de attender-me, ou escolherá para o desempenho da commissão um homem mais habil e mais digno do que eu, e nesse caso não poderei queixar-me.
— E se escolher uma pessoa sem capacidade nem habilitações ?...
— Nao admitto semelhante hypothese.
— Podes contar com a salvação eterna, Innocencio.
— Porque ?
— Porque dos innocentes é o reino do céo.
Na noite que se seguio áquella em que teve logar este breve dialogo, Innocencio e GeraldoRisota encontrarão na chácara de Fagundes quatro outros visitantes.
Erão elles : Antônio Cubas, um ancião com-
— 229—
endador e trimillionario, e Anselmo, Victorio e Carlos, todos tres também Cubas, pois que erão filhos do rico capitalista.
Antonio Cubas é um bom velho mas orgulhoso, porque orgulhoso o tornarão os aduladores da sua fortuna...
Dos seus tres filhos, Anselmo era atilado, astuto, ambicioso e dotado das melhores condições para fazer fortuna depressa : seu pai o amava muito, depunha nelle a maior confiança, e o escolhera entre os outros para ajudal-o a dirigir os seus negocios.
Victorino e Carlos tinhão estado em Pariz, onde havião encontrado por vezes Innocencio.
Victorino fora estudar a sciencia do direito, e Carlos a engenharia ; divertirão-se ambos o mais que puderão, e voltarão pouco mais ou menos com a instrucção com que tinhão sahido do Brazil.
O doutor em direito ainda não distinguia bem os diversos systemas de governo por que são regidos os povos, e sustentaria que a Inglaterra e a Rússia têm identicas fórmas de governo. O
engenheiro não sabia desenhar nem seria capaz de construir uma ponte ; ambos porém tinhão os seus diplomas muito regulares.
Entretanto, Victorino e Carlos havião sem-
— 230 —
pre aproveitado alguma cousa em Pariz : nada se podia notar na perfeição com que retorcião as pontas dos seus bigodes ; no tom com que se vestião; na amabilidade com que fazião a corte ás senhoras e no ar de solemne desprezo com que olhavão para quem não tinha pelos menos um cavallo inglez, um phaetonte, e uma duzia de historias de conquistas e de seducções de que se ufanar.
Innocencio olhou com indifferença, e Geraldo-Risota com muita attenção para os quatro Cubas.
A noite não correu inteiramente ao gosto de Innocencio. Os novos hospedes tinhão vindo perturbar os gozos innocentes e suavissimos do seu coração.
Christina, obrigada sem duvida pelas exigencias de uma perfeita cortezia, a obsequiar a todas as pessoas que em sua casa se achavão, não poude como até então occupar-se exclusivamente de Innocencio ; mas pelo menos olhou mil vezes, mil vezes sorrio para elle, e mil vezes ainda tornou a olhal-o corando, e certamente afflicta por não poder escapar de um modo conveniente ás insistências de Victorino, que especialmente lhe fazia a corte.
Ás dez horas da noite leventarão-se Antônio Cubas e seus filhos, para se retirarem, e logo — 231 —
depois Innocencio e Geraldo-Risota despedirãose também.
— Até amanhã, disse Christina a Innocencio, apertando-lhe como sempre a mão.
Aquelle doce — até amanhã — foi para o apaixonado mancebo uma indizivel consolarão.
O padrinho e o afilhado voltavão para casa caminhando em silencio.
Mas Geraldo não podia conservar-se por muito tempo em silencio.
— Não dizes nada,Innocencio! observou elle, um pouco maliciosamente.
— Nada tenho que dizer, meu padrinho.
— Pareces-me um pouco pensativo.
— Quasi sempre ando reflectindo.
— Um pouco melancolico....
— Creio que não.
— Sou capaz de jurar que esta noite voltaste da chacara do Fagundes menos satisfeito do que das outras...
— Talvez.
— Porque ?
— Não sei.
Geraldo sorrio ; mas conteve-se, para que o afilhado não se apercebesse disse.
— Conhecias já aquelles Srs. Cubas ?...
— Conheci em Pariz os dous mais moços.
— Victorino e Carlos...
— 232 —
— Esses mesmos.
— Que me dizes delles?...
— Não convivi com elles ; nada posso informar das suas qualidades.
— Aproveitarão muito na Europa ?...
— Não estou no caso de responder affirmativa nem negativamente. Ignoro.
— Muito bem, Innocencio ! muito bem ! gosto ainda mais de ti quando não me fazes rir.
— Não o comprehendo, meu padrinho.
— Comprehendes....comprehendes: como não te é possivel elogiar aquelles dous petits-maitres, preferes guardar silencio : isso é generoso ; eu porém que sou máo e fallador, direi o que tens e escondes na consciencia. Victorino e Carlos forão para França, demorárão-se por lá cinco annos, gastarão cincoenta contos de reis ao tolo do pai, voltarão com dous diplomas que mandarão comprar na Allemanha, e chegarão ao Rio de Janeiro sabendo de menos a propria lingua e somente sabendo de mais uma lingua, nova e desconhecida, que se parece um pouco com a franceza : mas que, em ultimo resultado, não o é. Acertei ou não ?...
Innocencio sorrio e não respondeu.
— Sabes que mais ? disse Geraldo : gosto muito de fallar; mas aborreço-me de o fazer quando não me respondem : se eu fosse musico, — 233 —
detestaria as arias, e só cantaria duetos. Tu hoje estás intoleravel, Innocencio.
— Porque, meu padrinho ?
__ Queres que te diga o que te tornou assim silencioso e aborrecido de tudo ?...
— Diga.
— Foi o vento.
— Que vento?...
— O vento que começa a soprar, meu afilhado;
aquelle que ás vezes faz mudar de rumo a muitos homens e a muitas senhoras. É um vento que os marinheiros não conhecem, vento que tem um nome geral que eu agora não quero dizer, e que póde também chamar-se por todos os nomes que tomão os homens : desta vez o vento chama-se...
— Como ?...
— Victorino. — 234 —
V.
O mez de Fevereiro ia correndo e approximando-se do seu termo.
Ninguém ignora que o mez de Fevereiro de 1861 foi no Brazil um mez cheio de alegria para alguns e de tristeza para muitos, conforme trouxe a satisfação ou o desengano das esperanças que em Janeiro sorrião a quasi todos os pretendentes de cadeiras no parlamento.
Innocencio andava triste desde muito dias, mas convém saber que não era a sua tristeza a conseqüência de uma derrota eleitoral. Distava muito da corte o Circulo por onde elle esperava ser eleito; não tinha ainda recebido noticias da eleição, e continuava, pois, como até então, a contar como seguro e indisputavel o seu triumpho.
Também não era a demora da nomeação que do governo esperava, que o fazia mostrar-se melancolico : maldizia das delongas com que a administração publica atrazava a decisão e despacho do seu requerimento, mas insistia sempre em que o governo o escolheria — 235 —
para desempenhar a comraissão de que se tratava ou escolheria para ella alguma outra pessôa de merecimento bastante para não lhe dar motivo de queixa.
O que entristecia Innocencio, era unicamente a situação em que se achava a respeito do seu amor e suas pretenções de casamento.
Depois daquella noite em que encontrara os quatro Srs. Cubas em casa de Fagundes, continuara durante uma semana a freqüentar com a mesma assiduidade o tecto querido onde vivia a sua amada, tendo sempre o desprazer de achar ao lado de Christina ou o velho Cubas e seus tres filhos, ou pelo menos o pretencioso Victorino, que não cessara de fazer a corte áquella que elle já considerava sua noiva.
A principio julgou aquellas visitas apenas impertinentes; logo depois, porém, incommodou-se muito seriamente com ellas.
Por mais que quizesse cerrar os olhos á luz da evidencia, não poude deixar de reconhecer que Christina, em vez de procurar furtar-se aos comprimentos demasiado significativos de Victorino, parecia antes excital-os e corresponder a elles.
Innocencio teve pejo de mostrar-se ciumento, mas não lhe foi possivel disfarçar o seu desgosto.
Christina ou não comprehendeu oufingio não — 236 —
comprehender o sentimento que despedaçava o coração de seu amante.
Geraldo-Risota, que era o companheiro infallivel de Innocencio, ria muito do que se estava passando, e repetia sempre ao afilhado :
— É o vento que está soprando.
Na ultima noite daquella semana, que foi a derradeira de assiduidade, Christina, apertando a mão de Innocencio no momento da despedida, limitou-se a dizer-lhe « boa noite !» e não lhe disse mais, como d'antes « até amanhã ».
O nobre mancebo resentio-se, e passou tres noites sem voltar á chácara de Fagundes.
Na quarta noite não poude vencer-se e correu aos pés de Christina.
A bella e desinteressada joven estava sentada junto de Victorino, e, cortejando com sensivel frieza a Innocencio, nem lhe perguntou se estivera doente.
Era muito : era claro, era evidente : o vento estava soprando.
O filho do riquissimo Sr. Cubas fazia voltar a cabeça á jovem romanesca, que uma noite dissera com enthusiasmo a Innocencio que desejava que o homem a quem amasse e que tivesse de ser seu esposo, fosse tão pobre, tão -237-
completamente pobre que somente lha pudesse dar o thesouro de seu coração.
Innocencio retirou-se da chacara de Fagundes uma hora depois de ter lá chegado, e arrastou oito noites seguidas sem voltar a ella. Amando sempre Christina, procorando desculpal-a, desgostoso de si mesmo, gastou dias inteiros a procurar um pretexto para tornar a vêl-a, e a descobrir um meio que puzesse um termo honroso á situação melindrosa em que suppunha achar-se.
Está visto que acabou por fazer a desejada descoberta de um e outro.
O pretexto foi a inconveniência que resultava, do seu subito e inexplicavel desapparecimento de uma casa onde fora constantemente bem recebido e obsequiado. O meio foi a necessidade de ter uma explicação decisiva com Christina.
Tomada esta dupla resolução, Innocencio, desejando por um lado não encontrar-se com Victorino, e por outro escapar ao menos uma vez á companhia de seu padrinho, sahio uma tarde ainda cedo, e sósinho dirigio-se á chácara de Fagundes, Christina estava no jardim e vio o mancebo aproximar-se della: não avançou um passo para encontral-o, nem recuou um passo para — 238 —
fugir-lhe ; ao menos porém sorrio ao vêl-o chegar.
Innocencio abrio o coração para receber aquelle correio.
— Até que emfím voltou ! disse Christina.
— Suppunha então que eu não voltaria ?
perguntou o mancebo.
— Não sei, respondeu a moça; quem comprehende o coração de um homem ?
— Tem-se feito mil vezes essa pergunta, minha senhora, mas sempre a respeito do coração da mulher.
Christina tornou a sorrir.
— Sim, minha senhora, continuou Innocencio: é somente o coração da mulher que se reputa incomprehensivel; eu porém via em V.
Ex. uma bella excepção a essa regra pouco lisonjeira para o sexo amavel.
— E mudou de opinião ?
— Não mudei ainda, mas é possivel que mude.
— E porque ?...
— V. Ex. o pergunta?... Se quer zombar de mim, é uma crueldade e um sacrilegio, porque atormentaria o amante e ridiculisaria o amor.
— Que amor! que amor é esse tão forte e irresistivel que pode dormir oito dias ?...
Innocencio sentio brilhar de novo a seus — 239 —
olhos a mais suave esperança: daquellas palavras transpirava uma queixa, e essa queixa era para elle a felicidade, a gloria.
O credulo mancebo não sabia que Victorino não apparecêra na chacara de Fagundes nas duas ultimas noites.
— Sentio então a minha ausência ? perguntou Innocencio.
— Senti e chorei: senti, porque a sua ausencia me parecia um desengano cruel; chorei, porque suppuz que ella podia ser aconselhada por um resentimento infundado, e, ousarei dizel-o, por um ciúme injusto.
— Christina!...
— O senhor é máo para mim ! disse a moça, levando o lenço aos olhos, — Oh ! não chore ! não ! exclamou Innocencio : é verdade... o ciume torna-me injusto ; eu porém venho hoje merecer o meu perdão, pedindo-lhe licença para dar um passo decisivo, que deve ser o principio da nossa felicidade.
— E qual ?...
— Se o permitte, pedil-a-hei hoje em casamento a seus pais. Christina estremeceu e corou.
— Permitte-o ?...
A moça tinha os olhos no chão e meditava.
Innocencia tremia por sua vez.
— Permitte-o ?..
-240-
Escute, disse Christina commovida : o senhor vem me offerecer uma dita que desde muito desejo ; mas de hoje a tres dias eu faço annos, e ser-me-hía ainda mais agradável que o seu pedido fosse feito no meio da festa do meu anniversario natalicio :concorda ?.,.
— Oh ! Christina ! a felicidade não se adia aproveita-se no mesmo instante em que se mostra.
— Nega-me isso ?... Talvez seja um capricho, mas eu lh'o peço.
— Pois bem : de hoje a tres dias virei pedir a sua mão a seus pais.
Innocencio retirou-se ao anoitecer, não completamente tranquillo, um pouco porém mais socegado.
Se se tivesse demorado até mais tarde, poderia ter apreciado devidamente a influencia de sua entrevista com Christina, porque nessa noite Victorino veio acompanhado de seu pai e de seus irmãos á chacara de Fagundes.
Innocencio dormio mal : a insistencia com que Christina lhe rogara que adiasse o pedido de casamento, causára-lhe desagradavel impressão.
No dia seguinte, logo depois de deixarem a mesa do almoço, Geraldo-Risota levou Innocencio para a saio de visitas, e, sentando-se em frente delle, perguntou-lhe:
— 241 —
— Onde foste hontem á tarde?
— Á chacara do Sr. Fagundes.
— Adivinho que tiveste uma explicação com a tua namorada.
— É exacto.
— E então ?...
— Pedil-a-hei em casamento depois de amanhã. Geraldo-Risota fez uma careta.
— Diabo !... querem ver que o vento deixou de soprar !
— Meu padrinho !...
— Não fallemos mais nisso,'por ora. É a terceira decepção, que poderá chegar mais tarde.
— Como ?...
— Já leste o Jornal do Commercio de hoje ?
— Ainda não.
— Pois lê; toma-o.
— Innocencio recebeu o Jornal, abrio-o e leu a Gazetilha.
— E possivel!... exclamou o mancebo :
Anselmo Cubas deputado pelo meu districto eleitoral!...
— Se não acreditas, esfrega os olhos e lê outra vez.
— Mas Anselmo Cubas nunca foi áquelle districto, e nenhum dos eleitores o conhece !... — 242 —
— E o elegerão sem saber se é vegetal ou mineral ? Que novidade !
— É incrivel !...
— E quantos votos tiveste ? ......
— Dous, meu padrinho ! somente dous !
— Eu não esperava tantos.
— Mas a palavra daquelles homens ?...
— Em tempo de eleições suspendem-se as garantias da honra e da probidade.
Innocencio deixou cahir das mãos o Jornal.
— Apanha o Jornal, disse Geraldo-Risota;
apanha-o depressa, e lê a parte official ; anda.
Innocencio leu.
— Esta é ainda melhor!... Carlos Cubas nomeado pelo governo para a commissão que eu pedia !...
— E que tem isso ?...
— Carlos Cubas é de uma completa incapacidade... é quasi um idiota...
— Pateta! já viste algum filho de millionario que não seja sábio ?...
Geraldo-Risota rompeu em gargalhadas estrondosas, emquanto Innocencio lia e tornava a ler o acto official e a Gazetilha, como duvidando ainda dos seus proprios olhos.
Nesse momento baterão na escada, e logo depois um escravo apresentou uma carta a Geraldo e outra a Innocencio.
— 243 —
Geraldo apenas abrio a carta que lhe era dirigida, renovou as suas gargalhadas com tanta força que ficou quasi suffocado.
Innocencio tinha no rosto apallidezda morte.
As cartas erão assignadas por Fagundes, que participava aos seus amigos o proximo casamento de sua filha Christina com Victorino Cubas.
— Foi o vento que tornou a soprar, disse emfim Geraldo.
— Oh ! tres desenganos, tres decepções n'um dia !... Povo, governo e mulher... todos me emganárão !...
— Vai aprendendo, rapaz, vai aprendendo: has de acabar, como eu, não acreditando em cousa alguma desde mundo.
— Não, meu padrinho ; não : o scepticismo é a morte do coração, é a sua gargalhada, é o pranto da alma desfigurado em uma risada de escarneo lançado á face de todos os homens ; o scepticismo é uma luz do inferno que conduz o homem ao desespero ou ao vicio : eu nunca serei sceptico; apezar do povo, do governo e da mulher, nunca serei sceptico.
— Pois em tal caso, meu pobre afilhado, volta para a roça e occupa-te em fazer versos : arranja um mundo a teu geito com o encanto da poesia, e vive nelle para sempre, que é esse o unico recurso que resta aquelles que a des-
— 244 —
peito de todos os desenganos, ainda têm esperanças e ainda acreditão nos homens.
Geraldo-Risota soltou de novo uma gargalhada homerica.
Mas Innocencio não se confundio; antes levantou com toda aquella nobreza que nasce de uma sã consciencia e da virtude.
O VENENO DAS FLORES
INTRODUCÇÃO
Dizeis que o suicidio é um acto de loucura?...
a vossa opinião tem incontestavelmente um duplo merecimento : o da reprovação dessa horrivel offensa das leis natu-raes e divinas, pois que somente a admittis no homem,., cuja razão se aliena ; e o da caridade pelo suicida, porque, reputando-o louco, o tornais objecto apenas da nossa commiseração.
Também eu creio que muitas vezes o suicidio é um acto de loucura; mas quem póde assegurar que em todos os casos o seja?... raciocinaes, apoiando-vos no grito da natureza, que é ouvido e obedecido pelo ins-
— 248 —
tincto?... Mas vós chamais a educação uma segunda natureza, e sabeis que ella tem a força e poder de domar, de corrigir, e de corromper o instincto.
Os musulmanos são homens, e a facilidade com que se vião alguns delles recebendo o cordão fatal que lhes era mandado pelo sultão, apertar com as proprias mãos o nó assassino, e a placidez com que alguns outros se suicidarão muito voluntariamente, explicão-se menos por uma cega obediencia, e por um acto de loucura do que pelas idéas do fatalismo e pelas esperanças daquelles gozos sensuaes e eternos que a sua falsa religião estabeleceu e promette.
Lastimais a repetição dos casos de suicidios que ultimamente se têm observado?... Não ha lastima que mais justa seja; não sei porém o que mais se deva lastimar, se os suicidas, se a sociedade.
Lastimemos pois a sociedade, além de lastimarmos os suicidas : lastimemol-a, menos ainda pelo funesto exemplo que estes lhe deixão, do que pelos vicios profundos — 249 —
a corrompem, e que são os preparadores do desespero que determina o suicidio.
Admittindo mesmo em hypothese que o suicidio seja sempre um acto de loucura, é facil de provar que a depravação dos costumes e uma educação defeituosa e ruim podem levar o homem, por ura caminho em cujo termo não poucas vezes a razão chegue a alienar-se, e o abysmo do suicídio abra-se para receber o desesperado.
Porque a corrupção e a educação mal regrada não hão de produzir, embora por idéas e principios diversos, o mesmo resultado que produz a religião dos mahometanos?...
Fallarei especialmente a respeito do que se passa entre nós ; limitar-me-hei por agora a uma unica, mas sem duvida principal consideração.
Como preparamos nós a mocidade de ambos os sexos ?... O Estado e os pais de familia cuidão um pouco em dar instrucção aos meninos e jovens ; mas da sua educação e particu-
— 250 —
larmente da educação religiosa tratarão elles tanto como devião ?...
Ornão-se os espiritos e estragão-se os corações !...
Saltamos de um para outro extremo. Outr'ora preparavão-se os meninos para serem padres ou frades, e quando o menino, tornando-se homem, não conseguia ser nem padre nem frade, ao menos ficava quasi sempre sendo fanatico.
Gorrigio-se o erro ; corrigio-se porém de mais :
hoje, em vez de fanaticos, estamos fazendo incredulos.
Esta verdade sente-se a cada momento, todos os dias, e no emtanto em lugar de se applicar um remedio capaz de melhorar a situação, nem se attende á educação da mocidade, nem ao menos se trata de fortalecer a religião, regenerando o nosso clero pela intelligencia e pela moralidade.
Quem sabe?... talvez se conte muito com o potente auxilio dos frades barbadinhos e de certas corporações que vão lançando raizes no paiz e que não podem senão levar-nos outra vez aos tempos do fanatismo : quem sabe?.,, talvez se esteja sonhando e desejando a volta dos — 251 —
Jesuitass ao Brazil, como se fossem precisas suas roupas negras para que ainda mais negro se nos mostre o horizonte do futuro da patria. Entretanto, é positivo que a falta de educaçãoreligiosa, e religiosa sem fanatismo, deixa submergir-se a juventude nas sombras uma incredulidade fatal.
Essa incredulidade, esse scepticismo apaga a fé, e mata a mais suave e a única infinita das esperanças: a fé e a esperança em Deos.
Sem a luz da fé, sem o conforto da esperança era Deos que tudo póde, como não ha de o homem enfraquecer, desesperar, ou, se quizerem enlouquecer quando esbarra diante de uma desgraça que lhe parece irremediavel e irresistivel?...
Sem a luz da fé, sem o conforto daquella esperança illimitada, infinita, o homem em taes e tão horriveis circumstancias, não se podendo voltar confiadamente para Deos, volta-se para o suicidio ; não acreditando no céo, arranca-se violentamente da terra.
— 252 —
Como então vos sorprenderá, vendo avultar o mappa sinistro dos suicidios?...
Não vos admireis; a arvore está dando os seus fructos ; a desmoralisação e a depravarão dos costumes não podião nem podem produzir outros resultados.
Tende paciencia : a historia de cada suicida é a historia intima dos vicios que corrompem a sociedade.
A recordação e o estudo desses horríiveis casos são tristes e profundamente dolorosos ;
podem fazer-vos chorar, eu sei ; mas deverão por isso deixar de ser referidos ?
Chorai, embora : não ha lagrimas estereis senão as da hypocrisia.
Vou contar-vos uma dessas historias.
Tenho-vos feito ler não sei quantos romances alegres e brincões; em compensação, permitti que eu agora vos offereça um outro de um genero absolutamente diverso.
Será um romance triste ; mas tão simples como breve : tolerai-o : e se nem com a — 253 —
tolerancia quizerdes animar-me, não o leais. O
titulo deste romane é O Veneno das flores: porque o intitulei assim?... lêde-o, se desejais sabel-o.
O VENENO DAS FLORES.
I.
Cândida festejava o anniversario natalicio de sua querida filha, a bella Juliana.
O brilhantismo das luzes, as ondas de mil perfumes entornados pelas flores, a viva alegria do saráo, a harmonia dos cantos não explicavão a magia indizivel que dava animação e enlevo a essa festa que o amor maternal forjara.
O segredo desse encanto estava na idéa suave de uma aurora que presagiava um formoso dia, na idéa do despontar do décimo setimo anno de uma menina de sorprendente belleza, na admiração da graça arrebatadora — 256 —
que enchia de fulgor e de fascinação os traços angélicos do rosto, e as fôrmas puras e maravilhosas do corpo de Juliana.
Ella brilhava no meio de trinta lindas gentis e faceiras jovens, como Venus no seu esplendor matutino : não tinha rivaes ; era uma princeza formosa cercada de sua corte magnifica.
Seus cabellos erão negros, longos e ondeados, seus olhos da mesma côr de um fixar irresistivel, seu rosto de um perfeito oval e de côr morenoclara finissima; o seu sorrir , era um prodigio de elevadora graça ; seu collo admirava pela magestade; seu peito, como suas espaduas, arrebatava pelas flammas voluptuosas que accendia : a sua voz era cheia de uma celeste harmonia; e emfim toda ella ostentava formosura como a dos anjos, delicadeza como a das flores, frescura como a do orvalho, ligeireza como a dos passarinhos, alegria como a da infancia.
Juliana estava vestida com uma simplicidade magistralmente calculada. Seu vestido de gaze branco, cujo corpinho degollado e liso concedia a vista de encantos que o pejo não veda, e desenhava encantos que elle resguarda, na saia ampla afigurava nuvem fantástica e dava á formosa moça um não sei que de aéreo e vaporoso, que lhe requintava a magia da belleza.
-257-
O motivo da festa era um feliz pretexto para uma preferencia que ninguém se lembrava de dissimular.
Juliana via-se incessantemente abysmada em um diluvio de felicitações e de flores.
— 258 —
II.
Cem vezes naquella noite de festivo culto a bocca mentirosa da lisonja tinha pronunciado aos ouvidos da bella moça o nome — anjo.
Mas Juliana nem tinha as virtudes que emprestão na terra o nome de anjo á mulher, nem as condições para esperar na vida o gozo da felicidade, que pôde fazer do mundo um reflexo do Paraiso.
Ella era o que a educação que lhe havião dado a tinha feito.
Filha unica, foi objecto de uma idolatria para seus pais; desde criança, sua vontade e seus caprichos forão leis de amor no seio da familia ;
desde criança soube que era formosa, mas não aprendeu que alguma cousa ha preferivel á belleza.
Seu pai deu-lhe mestres que abrilhantárão-lhe o espirito, e ensinárão-lhe bastante para que ella aos quinze annos se pudesse reputar mais instruida do que em geral o são as senhoras.
-259-
completárão-lhe a educação com os encantos das bellas-artes.
O pai de Juliana era um homem illustrado, mas discipulo da escola de Voltaire, e enthusiasta do patriarca de Ferney, não querendo comprehender que esse gigante demolidor misturou em suas doutrinas grandes verdades com funestos erros ;
que em sua gloriosa guerra contra o fanatismo foi em arrojo fatal atacar também a pureza da religião ; que no seu facho de civilisador incendiario havia fogo do céo e fogo do inferno; o pai de Juliana enregelou o coração de sua filha com um horrivel septicismo que nelle plantou, e morrendo quando ella tocava o seu terceiro lustro de idade, escapou ao castigo de ver o fructo de seus principios no tremendo futuro que esperava Juliana; mas nem por isso deixou de ser punido;
pois , que embora seu cadáver fosse molhado pelas lagrimas da pobre orphã, sua alma não subio ao céo nas azas puras da oração de sua filha.
Passado um anno de luto, Cândida levou Juliana ao seio ardente do mundo elegante.
As sociedades abrirão em par suas portas á nova e esplendida belleza que vinha encantal-a;
os thuribulos da adulação queimarão incenso embriagador aos pés da donzella ; a sensualidade civilisada derramou no coração da — 260 —
menina o seu activissimo veneno misturado com o mel suave e deleitoso das mais odorosas flores.
E Juliana, moça engraçada e lindissima, foi o que a sua educação a tinha feito, caprichosa altiva, temeraria, vaidosa, acreditando inexperiente nos homens, incredula, sem fé em Deus, tudo esperando no mundo, nada esperando do céo.
— 261 —
III.
Entre os mancebos que mais ardentes e cubiçosos devoravão com olhos avidos a encantadora jovem, distinguia-se Fábio, tanto pelo seu enlevo, como pelo respeito affectuoso que lhe enfreiava a paixão.
Fábio era um moço pallido, de olhos bellos e penetrantes, ecuja fronte alta dava testemunho de uma intelligencia feliz.
Camarada da infancia de Juliana, começou a amal-a em menina, ama-a ainda mais em sua esplendida mocidade, e amal-a há toda a vida.
Não desconhece os defeitos da mulher que adora, não pôde porém dominar seu coração;
ama-a, como também o marinheiro ama o oceano, apezar de conhecer-lhe a inconstancia, as tempestades e o perigo.
Anima-o aluz de alguma esperança?.... sim;
mas luz tão fraca e duvidosa, como a flamma extrema e moribunda de uma lampada que prestes vai apagar-se.
Fábio é pobre ; conta porém enriquecer pelo trabalho, e então correrá aos pés de Juliana, e — 262 —
lhe offerecerá a posição faustosa que ella aspira, e que sem um esposo rico não conseguirá jamais, pois que a fortuna de sua mãi é apenas mediocre.
Dóe ao mancebo apaixonado a idéa de que é essa ancora de ouro a única a que se poude prender seu amor para não ser levado pela corrente do mais triste engano.
Dóe-lhe ; ama porém ainda e sempre, e zeloso como um infeliz, da duvidosa esperança que lhe sorri no futuro, Fábio estremece ao ver algum cavalheiro approximar-se cubiçoso da bella Juliana, e geme de afflicção escutando as palavras que o galanteio entorna no ouvido vaidoso da donzella, que as recebe ás vezes simulando uma indifferença que não desanima.
São onze horas da noite : o saráo está na sua hora de mais vivo fervor.
Um novo convidado entrou na sala: é Jorge de Almeida.
Ao vêl-o apparecer, Fábio empallideceu e acanhou-se ; Juliana corou e sorrio.
— 263 —
IV.
Jorge de Almeida era um jovem de 22 annos de idade, alto, bem feito e de physionomia insinuante e sympathica, apezar da ousadia do seu olhar magnetico e da expressão sensual de seus lábios eroticos. Tinha o rosto claro, já porém um pouco desbotado pala fadiga e pelos excessos de uma vida toda passada em ardentes prazeres e levada pelo caminho que ensinarão os falsos interpretes das doutrinas de Epicuro.
Nada haveria que notar na extrema elegancia desse mancebo ; nas suas maneiras, no seu fallar, nos seus vestidos apreciava-se esse esmalte da boa sociedade ; não perdia pela affectação nem pela incuria.
Infelizmente, o coração de Jorge era frio como o marmore e arido como um solo esteril.
O pai de Jorge era um abastado e importante fazendeiro do interior ; mandára-o para a corte afim de preparal-o para entrar em alguma das academias scientificas do Imperio ; cego porém pelo amor mais extremoso, deixando-se levar Pelos caprichos do filho, facilitando-lhe todos — 264 —
os gozos e todas as distracções com o ouro que fazia chover sobre elle, surdo ou prestando de má vontade o ouvido aos prudentes avisos de amigos dedicados, acabou por carregar a sociedade com o peso de um novo e elegante libertino, em vez de offerecer-lhe um cidadão util e honesto.
Que outro resultado podem esperar os pais que abandonão os filhos aos seus proprios impulsos, e que, ainda mais, os trazem fartos de ouro na idade em que a inexperiência é um véo que esconde o mal, a paixão um fogo em que os desejos refervem, e a imprudência a sinistra aconselhadora que sempre lisonjea e precipita ainda os mais loucos anhelos ?...
Jorge de Almeida aprendeu pouco ou quasi nada nos livros, alguma cousa na boa, muito na má sociedade.
Os livros derão-lhe apenas em uma lição incompleta e nunca meditada aquellas noções vagas e insufficientes que antes perturbão do que esclarecem o espirito, á semelhança dos raios vacillantes da lampada nocturna do templo, que deixão afigurar-se quadros chimericos, e imagens fantasticas nos espaços onde não chegão com a sua luz.
A má sociedade chegou-lhe aos labios o nectar da concupiscencia e de todos osgozos sensuaes, nectar envenenado que elle bebeu até a sacieda-
— 265 —
de; lançou-lhe no coração o germen do vicio, desmoralisou-se emfim.
E a boa sociedade armou-o com as exterioridades que seduzem ; além de máo que era, tornou-o perigoso, porque deu-lhe um parecer de perfeito cavalheiro, e ornou-o com o sorrir que mente, com o olhar que enreda, com o agrado que atraiçíia, com a palavra que perjura.
Em sua vida tumultuosa e desregrada, em suas relações naturalmente muitas vezes mal escolhidas, Jorge tinha já contado vinte falsos amigos e outras tantas pérfidas amantes : em breve aprendeu a rir de uns e de outras, e não sabendo distinguir as fezes da nata da sociedade, nem os seus espinhos das suas flores, descreu della e só acreditou no poder e na influencia da riqueza, que lhe abria todas as portas e lhe proporcionava mil deleitosos prazeres.
— 266 —
V.
Jorge entrou na sala, dirigio-se logo a Juliana, e inclinando-se respeitosamente diante delia, offerceu-lhe um formoso ramalhete de violetas.
— Porque tão tarde ?... perguntou docemen te Juliana.
— Ah ! praza ao céo que eu me tivesse feito desejar ! respondeu o mancebo, cravando no rosto da jovem um olhar atrevido e cheio de fogo.
— Se foi esse o seu desejo, tornou, ella abaixando os olhos, realisou-o cruelmente.
— Em tal caso receba eu um generoso perdão dessa felicidade que me custou um doloroso sacrificio de metade de uma noite ditosa!
Juliana offereceu a mão a Jorge, que a beijou cora respeitosa cortezia para os olhos de todos, e com um ardor que somente a donzella sentio.
Jorge foi comprimentar a mãi de Juliana, que o recebeu com amizade e confiança.
— 267 —
O ramalhete de violetas era mais um depois , tantos que bem pudera passar quasi despercebido ; ficou porém em todo o resto da noite na mão- de Juliana, que aspirando suavemente e a cada momento o doce aroma das flores, parecia querer passal-o todo para o coração.
Amava Juliana as violetas de preferencia a todas as outras flores, ou o encanto daquelle ramalhete provinha do mancebo que o offerecêra ?,.. Era facil adivinhal-o.
Todos o adivinhavão talvez, porque os homens murrauravão segredos, observando Juliana, e as senhoras sorrião olhando para ella.
No eratanto, a donzella radiava de prazer e felicidade, e tão preoccupada ou embevecida se achava que estremeceu ouvindo a voz de Fábio que se approximára, sem que fosse sentido.
— 268 —
VI.
— Fábio ! tu me fizeste mal, disse Juliana.
O mancebo suffocou no seio um gemido pungente, e ficou alguns momentos sem dizer palavra, olhando cora tristeza indizivel para a formosa moça.
— Que me queres ?... dize.
— Um passeio, Juliana, balbuciou Fábio.
— Não : tu és exigente de mais : já contradansámos, já valsámos, já passeamos :
hoje não tornaremos a passear.
— Um passeio, Juliana: um passeio ainda menos por mim, do que por ti.
Fábio estava tão triste que a sua camarada de infancia, delle se compadecendo, levantou-se e tomou-lhe o braço.
— Vamos, disse ella sorrindo ; mas confessa que faz máo ver.
— Não, Juliana ; todos sabem que somos como dous irmãos, e que também, como irmãos nos amamos.
— Como irmãos só !... tornou ella rindo outra vez. I
269 — Juliana, tu zombas de mim como a creança atormenta aquelle que por amal-a muito deixa por ella escravisar, e cede sempre aos seus caprichos...
— Julgas-me pois creança, Fábio?...
— Oh ! muito ! muito creança és ainda, e precisas bem de um amigo devotado que vele por ti !
— E esse amigo... provavelmente...
— Serei eu, e nenhum outro o seria como eu, tu o sabes.
— Fábio, esse nosso passeio começa um pouco melancolico, o que não é muito admissivel em uma festa.
— Mas, indispensavel é que assim seja ; es-
]cuta, Juliana: tu estás ameaçada de um grande perigo ..
— Aqui ?...
— Aqui mesmo, e em toda a parte: na tua mão estou vendo um annuncio da desgraça que presinto...
— Na minha mão ?... será este ramalhete de violetas ?... perguntou a moça, comprimindo uma risada.
— Sim, e não rias: tu aspiras com insaciavel deleite essas flores, e não te lembras de que as flores ás vezes têm veneno e ás vezes matão.
— 270 —
— Oh ! a violeta é uma flor sem espinhos tem um perfume suavissimo...
— Juliana, os perfumes das flores podem matar.
— Não creio — Já se tem visto amanhecer morta a pessoa que dormio em uma sala fechada onde se deixarão flores odoriferas.
— Agradecida; dormirei com o meu ramalhete de violetas, deixando aberta a porta do meu quarto.
— Ha porém nas flores venenos de outra especie ; ha o veneno de seducção, Juliana, o veneno que lança nellas o homem perigoso e fatal que as offerece a uma donzella inexperiente.
— Fábio !...
— Jorge de Almeida te faz a corte, e tu o amas...
— Que te importa ?...
— Que me importa !... meu Deus !... Juliana, não é ciúme, é o proprio amor sem esperança que me inspira, e me obriga a fallar. Foge desse homem, repelle-o, porque é indigno de ti; não o conheces : é um libertino, um miseravel estragado, corrompido pelo vicio, que não respeita nem a família que o recebe, nem a honra da mulher pura que o ama. — 271 —
— Fábio, disse com seriedade Juliana, comprehendo o ciume que despedaça o coração: não comprehendo porém a calumnia que mancha os labios de um amante infeliz.
—Juliana!
— Estou fatigada ; leva-me á cadeira que deixei.
— Deus permitia, minha amiga, que não te lembres nunca chorando do que me ouviste nesta sinistra noite !
— Sim... farei por esquecer-me, para estimarte como d'antes.
— Juliana !... atira para longe de ti esse ramalhete de violetas ! acredita no que te digo :
ha flores que envenenão e matão.
— Deve ser uma morte deliciosa !... uma morte de flores !...
— Creança ! louca !
— Se um dia resolver-me a acabar com a vida, matar-me-hei com o veneno das flores.
— Desgraçada ! desgraçada !...
Fábio e Juliana entrarão na sala do baile, e puzerão termo á sua conversação ; quando porém ella sentou-se e agradeceu ao mancebo este lhe repetio ainda com um tom prophetico :
— Teme o veneno das flores !
272 VII.
Nos bailes a hora mais propicia para os namorados é aquella em que a fadiga começa para os indifferentes; então estes olhão e quasi que não vêm, ouvem e quasi que não escutão. É a hora da solidão no seio da multidão, hora em que o espaço se abre pára o amor, que vôa audacioso de coração em coração.
Jorge de Almeida conhecia perfeitamente a theoria dos bailes, e foi portanto quando sentio que tinha chegado aquella hora, que foi offerecer o braço a Juliana, convidando-a para um passeio.
— Dei-lhe, quando chegou, a minha mão a beijar, disse Juliana depois de alguns minutos de conversação apaixonada ; diga-me : foi um premio ou um castigo ?...
— Um premio que mereci, respondeu Jorge.
— Porque ?...
— Porque cheguei tarde ao seu baile pelo cuidado do nosso amor e de minha ventura.
— Longe de mim?...
— 273 —
— Apezar disso.
__ Ecomo ?...
— Recebi cartas de meu pai e de minha mãi, tive de entreter o portador que é um bom amigo da nossa familia.
— E as cartas ? perguntou Juliana anciosa.
— Como as desejava.
— Então seus pais convém no nosso casamento ?...
— Meus pais approvão a minha escolha ; já se informarão a respeito de sua familia, e dentro de um mez chegarão á corte para abençoar sua nova filha.
Juliana reteve uma exclamação de prazer; não poude porém abafar um suspiro.
— Suspiras, Juliana ?...
— Oh ! sim! e este suspiro sahio-me do fundo do coração.
— Amas-me, então ?
—Ainda o perguntas ?...
Jorge apertou o braço de Juliana contra o peito, e a donzella commovida e feliz inclinou a cabeça e quasi que a encostou no hombro do mancebo, que sentio em sua face o brando contacto das madeixas de sua amada.
Tinhão ambos entrado em um terraço que dominava um bello jardim : as auras da noite sopravão suaves, e o aroma das flores embalsamava a atmosphera.
— 274 —
— Oh ! Juliana ! disse Jorge; como está formosa a noite, e como é deleitoso o aroma das flores respirado junto de ti !...
Juliano sorrio.
— De que te estás rindo ?...
— De uma lembrança que tive: passeei ainda ha pouco com um cavalheiro que me deu uma lição sobre o veneno das flores, e que me aconselhou a que tivesse medo dos seus perfumes que podem matar.
— Sacrilego! maldizer das flores ao pé de ti é um sacrilegio, e além do sacrilegio, elle mentio.
— Mentio?...
— Mentio ; as flores são os thuribulos do céo;
junto das flores ninguém poderá ser máo, Juliana! uma idéa poética e dulcissima, embora ousada.
— Dize...
— Uma prova de confiança e de amor...
— Qual?...
— Dá-me uma hora, em que só comigo, sem receio de indifferentes nem de importunos, passes ouvindo innocentes juramentos de amor no meio daquellas flores...
— Jorge !
— Sou teu noivo... não o podes mais duvidar :
eis aqui as cartas de meus pais que - 275 -
deixo nas tuas mãos, autorisando-te a apresental-as á tua mãi.
Juliana recebeu as cartas tremendo.
__ Dá-me uma hora ! repetio Jorge.
— Oh ! não !...
— Dá-me uma hora. ou ficarei com a certeza de que não confias em mim.
— E o dever, Jorge ?...
— E o amor, Juliana ?...
— Não ;julgar-me-hias indigna.
— Eu sou teu noivo, Juliana !
— Embora, ainda não és meu esposo.
— Duvidas ao mesmo tempo da tua e da minha virtude. Tens razão... eu desejei mais do que podia merecer... deixemos este terraço...
— Jorge ?tu te affliges ?... pois nesta noite queres entristecer-me ?...
— És tu que me entristeces, que me offendes, Juliana ; és tu que julgas o teu noivo indigno de um innocente favor, e capaz de uma infamia; és tu que me abates e me injurias !...
— Jorge !... murmurou ternamente Juliana, apertando a mão do amante.
— Dá-me uma hora !
A moça não respondeu.
— De hoje em diante não deixarei de visitar-te um só dia ; virei todas as tardes, e amanhã ou depois, quando as circumstan- — 276 —
cias mais nos favorecerem, collocarás sobre o teu piano esse ramalhete de violetas, que então estarão murchas, e que ainda assim me parecerão lindissimas ; porque me darão o signal de que me esperas no jardim ás duas horas da noite.
E Juliano nem respondeu, nem se lembrou do veneno das flores.
-277-
VIII.
A vaidade tinha tornado Juliana ao mesmo tempo loureira e ambiciosa de riquezas.
Era loureira, pelo desejo de ser incensada e adorada, pela vangloria de se ver cercada por uma numerosa corte de submissos namorados, como uma rainha por uma multidão de lisonjeiros cortezãos ; pelo maligno prazer, emfim, de encher de inveja os corações de cem rivaes, jovens vaidosas como ella, e aquém se ufanava de humilhar com o quadro de seus triumphos e de suas conquistas.
E ambicionava riquezas, porque são as riquezas que pagão o luxo, a ostentação e as festas em que ella almejava brilhar, e ser idolatrada ainda depois de casada.
E a louca de vaidade não comprehendia que fessa ambição de riqueza tendia a rebaixal-a, porque a levava a vender o coração, e as mais puras e suaves affeições, aviltando-se desse modo aos olhos de sua própria consciencia.
E a loureira nem via que thesouros que facilmente se prodigalisão, são desestimados de-
— 278 —
pressa ; que sorrisos de amor e galanteios que se concedem a muitos, perdem o encanto da sua pureza, e ficão sendo antes os brincos das fantasias do que os enlevos dos corações daquelles que de passagem os vão recebendo.
A moçaloureira, por mais formosa que seja desmerece progressivamente e na razão directa das conquistas de que se vai desvanecendo :
suas victorias são, como as de Pyrrho, derrotas reaes para a vencedora ; que importa que ella desdenhe em um dia do amante que animara na vespera?... é elle,sim,que rejeita o culto dos escravos e vencidos que já servirão bastante para o esplendor dos seus triumphos ; cada vencido, porém, e cada escravo que se retira desprezado, leva comsrgo um despojo de amor, embora fingido, uma historia de galanteio finalmente, que depõe contra a virgindade do coração da conquistadora.
Bem cedo nenhum mais a ama deveras, e todos a galanteão por insultuoso entretenimento de horas; e fazem dajoven loureira o recreio dos olhos, a zombaria do amor, a rosa interessante que mil borboletas festejão um momento , e abandonão sem saudade logo depois.
E succede ás vezes que a moça loureira, no meio dos seus vôos de inconstância e do galanteio, sem o pensar e sem o querer, deixa-se — 279 —
captivar de um homem mais habil e astuto, e de ordinario de um homem desapiedado, que, illudindo-a com traiçoeiras finezas, prepara-lhe não um altar em que a adore, mas uma pyra vergonhosa em que a sacrifique.
E a vaidosa perde-se em um casamento infeliz, ou ainda peior, em um desengano aviltante, e depois vêm as lagrimas, o arrependimento, os remorsos ; lagrimas, arrependimento e remorsos, provindos daquelles gozos loucos de funesta vaidade... veneno das flores emfim.
— 280 —
IX.
Juliana aspirava com voluptuosidade e confiança o perfume daquellas flores, e ainda não sentia os effeitos do seu veneno.
Mas o caminho em que ia, era o caminho do abysmo e da perdição.
Como tantas outras, deixára-se prender pelas azas no seu adejar continuo e irreflectido de borboleta galanteadora.
Vio uma noite Jorge de Almeida, achou-o elegante, suppôl-o talvez pretencioso, e quiz encadeial-o ao seu carro de conquistadora:
irritou-se porque o mancebo ousou ou fingio resistir : soube depois que elle era rico, e teve um pensamento de ambição ; provocou-o e exultou, porque chegou a acreditar que o tinha domado.
A lucta porém se havia prolongado por alguns mezes, em que a simulada indifferença de Jorge de Almeida inflammára a vaidade da formosa moça : e quando Juliana soltou dentro do coração o grito de victoria, o coração respondeulhe com uma confissão de derrota.
— 281 —
Juliana amava pela primeira vez.
O seu amor era puro, não se nodoava nem com um leve pensamento de ambição, nem com o desejo de humilhar seus rivaes ;. Todas essas idéas tinhão passado ; o seu coração estava exhalando o virginal perfume de um sentimento goneroso, nobre, santo.
Se Jorge de Almeida fosse pobre como o obscuro artesão que tem de seu o fructo do seu suor no trabalho de cada dia, Juliana ainda assim o quizera, ou talvez assim o preferira.
A vencedora estava pois vencida ; a conquistadora que procurava ainda um escravo, tinha encontrado um senhor, e dobrava-se contente aos ferros do seu captiveiro.
Mas a lembrança do passado, que era um recente passado de hontem, fazia mal a Juliana.
Quem poderia acreditar na sinceridade do amor da moça loureira ? Duvida-se ainda mais da mulher do que se duvida do homem.
Jorge de Almeida, libertino e incredulo, desejava o posse de Juliana : não a amava porém; descria da paixão de que ella parecia possuida ; attribuia ao encanto da sua riqueza a fortuna daquella nova conquista, e fingindo-se também abrazado nas flammas de um amor — 282 —
irresistível, promettia-se não perder a felicidade brutal que se lhe antolhava provavel.
Uma grande desgraça annunciava-se portanto imminente : gotta a gotta já se estilava o veneno das flores ; era horrivel, era porém uma consequencia filha legitima dos principios : era cruel, mas era logico.
— 283 —
X.
Jorge de Almeida tinha pedido a Juliana uma entrevista no jardim ás duas horas da madrugada.
Dous dias havião passado depois da festa dos annos de Juliana e nas tardes de um e outro Jorge de Almeida não se esquecera de vir fazer a corte á sua amada e noiva.
Cândida recebera e tratara o mancebo como a um filho ; tinha lido as cartas dos pais de Jorge, e não podia mais duvidar do próximo casamento e do brilhante futuro de sua filha.
Juliana saudava a chegada do seu noivo com um sorriso que se abria em seus labios, e que aos lábios chegava partindo do coração.
Ficando ás vezes na sala a sós com a formosa moça, Jorge de Almeida reiterava suas instancias, pedia de joelhos, queixava-se e maldizia-se por não merecer a entrevista, que era o sonho querido do seu amor.
Mas em um e outro dia Jorge de Almeida teve de despedir-se e de retirar-se, sem ver o suspi-
— 284 —
rado ramalhete de violetas descançando sobre o piano.
O angelico sentimento do pejo defendia a virtude da donzella.
Juliana apaixonada e amante violentava-se para resistir aos instantes pedidos, ás lagrimas e ás queixas amargas do homem que ia em breve ser seu marido ; mas o santo pudor dava-lhe forças para a lucta ; e quando no combate reconhecia-se quasi vencida, escapava ao vencedor accendendo-lhe uma esperança.
— Amanhã, dizia ella.
E assim o disse na primeira e na segunda tarde.
E ainda no terceiro dia ella repetio tremendo:
— Amanhã.
— 285 —
XI.
Essa esperança do dia seguinte concedida ao amante era uma sinistra ameaça que á sua virtude fazia a donzella.
Porque não comprehendia Juliana que ainda mais do que o seu pudor, devia a sua razão oppôr uma barreira indestructivel ao pedido reprehensivel e indigno do seu amante?
Amanhã era uma evasiva inspirada pelo pudor.
A resposta única da razão devia ser nunca.
Porque não respondia Juliana com a razão ?...
E que a razão desampara a jovem dominada pelo amor que se desmanda elevando-se á paixão, e só o escudo celeste do pejo íica para impedir....
ou retardar a perda da donzella a quem o seductor procura arrastar para um abysmo.
E para quem poderia voltar-se Juliana, pedindo conselho, protecção, auxilio e luz ?...
Para sua mãi ?... não se animaria nunca ;
temeria vel-a justamente irritada lançar fora 286 —
o homem insolente que dirigira proposição tão injuriosa á sua filha.
A Fábio ?... era um rival e ura inimigo de Jorge de Almeida, pois que o reputava indigno até de entrar no sacrario de uma família.
— Então a quem ?...
Quando os nossos olhos não achão rocurso na terra, levantão-se naturalmente para o céo, e procurão o auxilio de Deus.
Falla-se a Deus com a esperança, com a fé, com a oração, e Deus responde, serenando a tempestade que agita o seio do afflicto, e illuminando o seu espirito.
Mas Juliana era incrédula ; não tinha fé, e zombava, pobre infeliz, do recurso da oração.
— 287—
XII.
Fábio não tinha mais apparecido na casa de Cândida depois daquella noite de saráo para elle tão triste; no quarto dia porém, a saudade, o amor, e um nobre interresse o levarão ao tecto querido. Era de tarde, mas ainda cedo. Juliana estava no seu quarto acompanhada de sua mãi, e ahi mesmo recebeu o mancebo a quem a confiança quasi fraternal dava direito a semelhante liberdade.
Cândida estimava Fábio, adivinhara o amor que elle tributava a Juliana, sentia não poder abençoar a união dos dous jovens ; mas por isso mesmo e no ponto em que se achavão as cousas, entendeu que lhe cumpria apagar logo e para sempre a debil flamma da esperança que por ventura se conservava ainda accesa na alma do desgraçado amante.
Assim, depois de breves momentes de conversação, Cândida deu parte a Fábio do ajuste de casamento de Jorge de Almeida com Juliana.
-288-
O mancebo, ao receber a cruel noticia tornouse pallido, como se o véo da morte por seu rosto se houvesse estendido : seus olhos cerrarão-se, e duas lagrimas, expressão eloqüente de uma dôr profunda abafada com esforço no coração, vierão rolar por suas faces.
Cândida não poude resistir sem abalo ao aspecto daquelle mudo e immenso padecer, e sentindo-se fortemente commovida, levantou-se e sahio.
— Fábio ! disse Juliana; meu amigo... meu irmão, que é isso ?...
— Tu o perguntas, Juliana?... murmurou o mancebo, quando poude fallar.
— Não podíamos ser um do outro e...
— Oh ! exclamou Fábio ; pois bem ! mas não devia ser delle ! devias fazer a felicidade e a gloria de um homem extremoso e honrado;
nunca porém ser o prêmio concedido á libertinagem e ao cynismo !
— Senhor!
— Ainda é tempo de salvar-te, e ninguém me impedirá de dizer a verdade, Juliana . Jorge de Almeida é um infame, e procura seduzir-te.
— Envergonha-te, Fábio, e arrepende-te da calumnia que proferiste ! disse Juliana, correndo ao seu toucador, e tirando delle as car-
— 289 —
tas dos pais do Jorge, que ella entregou ao mancebo.
— Embora ! tornou este depois de ler as cartas e de vencer um primeiro movimento de surpreza : estas cartas me confundem ; mas ainda assim eu desconfio das intenções desse homem, embora, sim ! elle é sempre um infame.
— Fábio, tu ousas insultar diante de mim aquelle que em breve será meu marido ?
O mancebo respondeu a estas palavras com um gemido surdo e pungente ; não se submetteu porém, nem guardou silencio. Um pouco exaltado pelo ciúme, e realmente muito inteessado pela sorte de Juliana, referio um por um todos os factos escandalosos que tornavão a vida de Jorge de Almeida uma longa historia de orgias, de seducção e de desmoralisação.
Juliana, perdendo emfim a paciência, ferida no seu amante, como uma mãi em seu filho, levantou-se irritada :
— É de mais ! bradou, e pois que a con sciencia do dever não lhe ensina a respeitarme, ensine-o o meu solemne desprezo !
E sahio, voltando as costas a Fábio, que indo precipitar-se em seguimento delia, passou por diante do toucador, e vio sobre elle o ramalhete de violetas que Jorge offerecêra a Juliana na noite do saráo.
— 290 —
— Oh ! exclamou elle, o ramalhete infernal!...
E apoderando-se das flores já murchas correu como um desvairado, e atravessava impetuoso a sala, quando parou a um grito de Juliana.
— O meu ramalhete !... ah! Fábio? o meu ramalhete!...
O mancebo voltou-se arrebatado, e vendo diante de si Juliana lacrimosa e supplicante, lançou sobre ella um olhar de commiseração terrivel, e atirando o ramalhete em cima do piano, desappareceu.
HH§
— 291 —
XIII.
Juliana estava ainda profundamente commovida e immovel, no mesmo logar em que Fábio a deixara, quando Jorge de Almeida entrou na sala.
A presença de seu noivo socegou em breve a donzella que, receiosa de alguma rixa entre os dous mancebos fez um segredo da scena que acabava de passar-se.
Jorge vinha radiante de prazer, e com indizivel satisfação entregou a Cândida uma carta de seu pai e a Juliana outra de sua mãi, em que ambos manifestavão a sua approvação ao casamento do filho, e promettião estar na corte no fim de dez dias.
O resto da tarde e o principio da noite forão de suave embriaguez e de encanto para os dous noivos.
Juliana embevecida não podia arrancar os olhos do rosto de Jorge ; nada mais via nem sentia. Jorge nunca se mostrara mais carinhoso nem mais terno.
— 292 —
Ás dez horas da noite levantou-se para sahir, e aproveitando um momento em que Cândida, por calculada casualidade, se dirigira a janella, aproximou-se do piano, beijou tres vezes com apaixonado fervor o ramalhete de violetas, e logo depois retirou-se.
Juliana deixou-se cahir quasi desmaiada em uma cadeira, soltando um triste gemido.
— 293 —
XIV.
Era meia-noite.
Juliana estava só e velava anciosa em uma sala contígua á do seu toucador e afastada daquella onde no interior hora, dormia tranquillamente sua mãi.
A sala em que se achava a donzella, tinha uma porta que se abria para o salão principal, e que estava trancada; outra pela qual se passava para o terraço, donde se descia ao jardim por uma bella escada de pedra: essa porta estava também fechada; tão de leve porém, que seria facil abril-a sem ruido; uma janella finalmente olhando para o jardim, e que se deixara apenas cerrada e com a vidraça erguida.
Uma vela ardia solitária na sala do toucador e derramava fraca e escassa luz pela extensão daquella em que Juliana se conservava mysteriosamente velando.
Sentada junto de uma pequena mesa, sobre a qual descançava um dos braços nus, com seus cabellos soltos em multidão de bastos — 294 —
aneis que cahião sobre as suas espaduas magnificas, trajando um vestido branco que fazia lembrar a mortalha de uma virgem Juliana esquecida de si mesma no seio daquella meia sombra de uma sala mal esclarecida ; muda e só, pensativa e agitada, e apenas exhalando de momento em momento dolorosos e profundos suspiros, podia comparar-se ao cysne que, abandonado no lago, adivinha a aguia ainda distante, solta o seu grito pungente, mas não foge, e, como resignado, espera a hora do terrivel sacrificio.
Com os olhos fitos em uma pêndula que distinguia a alguns passos diante de si, não podendo apreciar o movimento regular e progressivo dos ponteiros annunciadores da marcha incessante do tempo, ella escutava aquelle monotono tic-tac, que parecia responder a cada palpitar do seu coração, como se o pêndulo vibrador pudesse estar lendo em sua alma, e marcando de momento a momento uma accusação da sua consciência.
E de cada vez que o sino da egreja vizinha, perturbando o silenco da noite, dava signal de um quarto de hora já passado, um estremecimento nervoso agitava o corpo delicado da donzella, e uma gotta de suor cahialhe pela fronte sobre o collo.
Pela janella que ficar entreaberta, entravão — 295 —
as auras da noite, que ião cubicosas brincar com os aneis de madeixa da formosa moça, e perfumal-os com os aromas roubados ás flores, e como thurificadores incensando uma victima prestes a sacrificar-se.
E o sino se fez ouvir ao perto quatro vezes seguidamente e logo depois, com o dobre mais grave, ainda uma vez.
Juliana estremeceu com mais violência do que até então, e balbuciou convulsa:
— Uma hora!...
— 296 —
XV.
Juliana esperava Jorge de Almeida.
Um successo imprevisto e não calculado tinha favorecido os projectos audaciosos do seductor, e determinando a concessão involuntária dessa entrevista nocturna, em que a virtude da apaixonada donzella ia ficar exposta aos maiores perigos.
Fábio havia, sem o pensar, arrojado Juliana naquelle abysmo, atirando o ramalhete de violetas sobre o piano.
A donzella vendo chegar o seu noivo, esquecera o fatal ramalhete, e somente delle se lembrara quando Jorge de Almeida o fez apparecer a seus olhos, beijando-o tres vezes.
O gemido que então escapou do seio de Juliana, foi o grito supremo de sua innocencia terrivelmente ameaçada.
Juliana não tinha concedido a entrevista já tantas vezes pedida pelo seu amante; reconhecia porém que este devia contar com ella e aproveitar-se do afortunado signal.
Se por instantes ella desejava que Jorge — 297 —
de Almeida perdesse a lembraça de uma concessão para elle tão lisonjeira, logo depois sua vaidade despertada tremia, receiosa de um esquecimento que chegaria a parecer um desprezo.
A virtude offerecia a Juliana um unico recurso, e determinava-lhe não descer ao jardim á hora aprazada, faltar absolutamente á entrevista, que realmente não fora concedida, e no dia seguinte explicar ao seu noivo com franqueza e verdade a causa dessa falta, e o motivo daquelle qui-proquó, que era tão offensivo da sua honestidade e da sua pureza.
Mas, preciso é repetil-o, o que tinha até então defendido a donzella não era a razão, era o instincto; não era a consciencia do dever, era o sentimento do pudor ; e essa barreira que se oppunha á satisfação do empenho criminoso de Jorge de Almeida, tinha desapparecido com o concurso involuntario de Fábio.
O pudor soffrêra apenas uma angustia rapida e instantanea quando Jorge beijara o ramalhete de violetas : a angustia estava passada, a grande difficuldade vencida.
E diante da consciência do dever, Juliana apadrinhava-se com um pretexto, dizendo a si mesma que não fora ella a culpada da concessão da entrevista.
— 298 —
A paixão inventava ainda outros sophismas para escusar um passo que era uma falta gravissima, um erro que ganhava já cora um previo remorso a alma de quem o commettia.
Juliana lembrava-se de que não tivera tempo de esclarecer Jorge de Almeida sobre o caso imprevisto que lhe dava logar a suppôr que seria esperado no jardim naquella noite, e contando que elle viesse ao encontro tão almejado, receiava que Jorge, se inutilmente a esperasse, resentido e afílicto, pudesse chegar a fugir-lhe e a esquecel-a.
E demais aquelle extremoso mancebo, que pouco antes viera, tão contente e feliz, apresentar as cartas em que seus pais abençoavão a escolha do seu coração, e se apressavão a manifestar taes sentimentos á própria familia pela sua amada, aquelle mancebo que assim se prendia pela sua honra e pela honra de seus pais, não deveria alcançar também uma prova immensa da mais completa confiança?...
A donzella sophismava perante o tribunal justissimo da sua consciencia, como uma delinqüente que treme aos olhos do seu juiz.
Juliana não comprehendia que uma mulher exaltada por um amor violento e ameaçada pela seducção precisa defender-se ainda mais dos impetos de sua mesma paixão do que dos laços — 299 —
que lhe arma a habilidade e a experiencia sinistra do seductor.
E elle ahi estava só, attenta e muda, escutando o som monótono do pendulo que vibrava, calculando os minutos que passavão, e ouvindo com abalo e commoção o dobre do sino que marcava na egreja vizinha, de quarto em quarto de hora, a medida do tempo que se adiantava.
E ahi ficou immovel, mas anhelante, cheia de anciedade, de receio e de temores, até que finalmente ouvio o signal da hora aprazada e suprema.
— Duas horas!
— 300 —
XVI.
Aquelle dobre de um sino lugubre, que annunciava um prazo de amor desvairado, fez Juliana levantar-se a cahir de novo na cadeira como ferida por um choque electrico.
Logo depois commovida e tremula foi a uma porta da sala do seu toucador encostar o ouvido temeroso para assegurar-se de que sua mãi dormia, e, voltando logo, encostou-se cuidadosa á janella que deixara meio aberta, e esperou agitada e inquieta.
Não esperou muito tempo.
No silencio da noite distinguio-se o ruido de uma chave com que uma cautelosa mão abria o portão de ferro do jardim, procurando abafar o estalo da fechadura.
Juliana nem ao menos reflectio que essa chave estranha que facilitava a entrada para o jardim da sua casa era o indicio vehemente de um projecto premeditado com um desvelo minucioso, que tinha sabido preparar todas as condições para a sua facil execução.
— 301 —
Um momento depois de aberto o portão, a areia gemeu sob os passos de alguém que de manso vinha aproximando-se do terraço, e em breve uma voz meiga, mas contida pelo receio, murmurou baixinho :
— Juliana!...
Jorge de Almeida tinha visto a janella entreaberta, e adivinhou que a sua imprudente noiva o esperava naquella sala.
Juliana, temerosamente ainda, como porém se sentisse irresistivelmente attrahida pela voz terna que a chamava, deixou a janella, abrio devagar a porta do terraço, deu um passo para tora, e vio em baixo e junto da escada o vulto de um homem embuçado em uma capa negra.
A donzella não poude reprimir um movimento de temor.
— Sou eu, Juliana! disse Jorge com amor; vem ! vem, minha bella noiva!
Juliana agarrou-se ao corrimão da escada e desceu com passos mal seguros, parando de degráo em degráo para respirar e alentar-se.
Jorge de Almeida ajoelhou-se, e beijou com respeito a mão que Juliana deixara livre.
— Juliana ! minha Juliana !... balbuciou elle.
Em vez de responder, a donzella chorou.
— 302 —
Oh! não derramava ainda lagrimas de acerbo arrependimento; era a sua innocente pureza de virgem que se resentia daquelle primeiro e violento sacrificio.
Era a mimosa flor do valle que, tocada pelo primeiro tufão da tormenta que rugia ao longe dobrava já sua haste delicada, embora não tivesse murchado ainda.
— Oh! Juliana! disse Jorge com ternura;
o teu pranto é provavelmente uma injuria que fazes á minha honra! No branco céo de tua alma de donzella innocente e pura expandio-se talvez a nuvem escura e feia ]de um temor que me avilta! Quem sabe se confundes um amante respeitoso e dedicado com um seductor infame!
Juliana!...
A voz de Jorge de Almeida era como uma suave harmonia, e, penetrando deleitosa na alma apaixonada da moça, estancou-lhe pouco a pouco as lagrimas e dissipou-lhe o medo.
— Oh! minha bella noiva! continuou elle, sempre de joelhos ; tranquillisa-te, e confia em mim : tu serás como a imagem de uma santa que se tira do altar para se adorar de mais perto e beijal-a nos pés com religioso fervor, e que outra vez se colloca em seu sagrado throno, intacta e pura como tinha delle sahido.
Oh! amaldiçoado fosse eu por meus pais, se um instante só ousasse levantar olhos sacrile-
— 303 —
gos para o anjo que deve ser a guarda da minha felicidade futura! tu és minha noiva, serás em breve minha esposa, e a tua honra é a minha honra!...Juliana respirou.
— Juliana!...
A donzella ergueu a fronte abatida, olhou com olhos de amor para Jorge de Almeida que estava a seus pés, e pousando suas mãos brancas e leves sobre a cabeça do mancebo, murmurou docemente :
— Jorge !...
A confiança entrara no seio da victima inexperiente.
A seducção acabava de alcançar a segunda victoria contra a innocencia e o pudor.
— 304 —
XVII.
A lua brilhava no céo clara e formosa; as flores exhalavão suavíssimos aromas ; a viração soprava brandamente, ciciando nas folhas das arvores ; a hora era de mysterioso silencio, o jardim uma poética e deleitosa solidão.
— Juliana, disse Jorge; abençoado seja a confiança que renasce em teu seio de anjo, e que em mim depositas, levantando-me até á altura da tua virtude!...
— Tu és meu noivo, Jorge, e eu confio em ti, como no protector desvelado que um destino amigo me vai outorgar.
— Ainda bem, minha formosa noiva! apoia-te pois no meu braço, e passeemos por entre as flores...
— Oh ! porque não ficaremos aqui!...
— Porque o sussurro das nossas palavras, embora murmuradas quasi ao ouvido um do outro, poderia talvez provocar a curiosidade de alguém que ainda não dormisse, e que o percebesse ; porque através das grades do jardim alguém que pela rua passasse, poderia — 305 —
ter-nos; porque emfim um acaso infeliz é possivel, e se te vissem comigo a esta hora, padeceria o teu credito, que depois do teu amor é o meu maior thesouro.
— Não, Jorge ; nós estamos seguros neste logar ;
não o deixemos, eu t'o peço !...
— Ainda tens medo do veneno das flores, Juliana?... perguntou Jorge sorrindo.
— Talvez, respondeu sem pensar no que respondia, a bella moça.
— Oh! Juliana! dir-se-hia que é a desconfiança que de novo apparece no teu espirito.
— Jorge!
— Paciencia; não insisto mais, tornou o mancebo com uma voz sentida; devo contentarme com o que já fizeste por mim : abrindo a porta daquella sala, descendo a escada deste terraço, déste-me muito mais do que eu podia merecer.
Juliana sentio-se commovida pelas palavras melancolicas do seu amante, arrependeu-se da resistencia que oppuzera ao convite que elle lhe fizera, e, tomando-lhe o braço, disse com doçura:
— Vamos, Jorge! vamos!
—306 —
XVIII.
E os dous amantes passearão por entre as flores, ao clarão do luar, que cada vez mais brilhante parecia mostrar-se, e no seio daquella solidão deliciosa, em que respiravão perfumes embriagadores, e em que o silencio era somente interrompido por seus juramentos de amor.
Juliana ia pouco a pouco banindo de sua alma todo o instinctivo receio que determinara suas fracas hesitações ; ia pouco a pouco e sem sentir quebrando os laços do delicado pejo, que ao mesmo tempo a acanhava e defendia; e pouco a pouco ia abandonando-se a uma segurança imprudente, que a tornava cega ao perigo que corria, e surda ao clamor da virtude que se alvoroçava resentida.
Jorge procedia com habilidade consum-mada:
não querendo comprometter-se por precipitado, mantinha-se dentro dos limites do mais escrupuloso respeito em suas acções ; não tinha ousado tocar com seus lábios nem as faces, nem os cabellos de Juliana, nem com — 307 —
um leve movimento do seu braço procurara apertar ao peito a mão formosa e leve da encantadora moça.
Fallando á sua noiva, não lhe dirigira uma só proposição que não pudesse repetir aos ouvidos de todos, ou enunciar em alta voz no meio de uma assembléa; discorrendo porém sobre o amor, e como se deixasse levar por uma inspiração arrebatadora, encadeiava sophismas graciosos que produzião consequencias que parecião verdadeiras, e erão apenas erros perigosos e lições disfarçadas de um senualismo vergonhoso; pintava o quadro do amor com as tintas de uma luxuria dissimulada, de modo que se fizesse contemplar e ap-laudir sem temor e sem desconfiança pela donzella, que sem o perceber abria o coração á voluptuosidade e deixava accender-se nelle uma flamma traiçoeira e infernal.
E assim ião os dous amantes passeando e conversando tão esquecidos do mundo e do tempo, que Juliana sorrio ouvindo o signal de três quartos depois das duas horas, e disse:
— Oh ! como passou voando esta meia hora de passeio, Jorge !...
— Malditas sejão pois as azas do tempo que vôa, quando devia arrastar-se preguiçoso ! e gloria ao amor que sabe aproveitar as horas, que fogem rapidas ! passemos... — 308 —
— Sinto-me um pouco fatigada : voltemos, vamos sentar-nos em um dos bancos do terraço.
— Juliana ! temos diante de nós um caramanchão que nos ofierece um banco de relva !
Juliana deixou-se levar como uma pobre cega pela mão do perfido conductor.
wsw — 309—
XIX.
O caramanchão era aberto por tres lados, e tinha o outro lado e o tecto coberto por um tapete de verdura formado por trepadeiras de flores odoriferas. O banco de relva que havia no caramanchão estava molhado do orvalho.
Jorge tirou do braço a sua capa, desdobrou-a, estendeu-a, sobre a relva, e fazendo sentar Juliana a seu lado, disse pela vigésima ou trigesima vez :
— Ah! como tu és formosa, minha querida noiva!...
— Eu quizera parecer sempre formosa a teus olhos, Jorge ; formosa porém não sou eu :
formosa é esta lua tão brilhante e serena! for moso é este céo tão limpo de nuvens ! formoso é este jardim tão coberto de flores que embalsamão os ares ! formosa é esta noite tão rica de encantos! formosa emfim é esta solidão tão cheia de amor innocente e puro !
— Juliana! a tua alma se abre finalmente, livre de vãos temores, ás emoções enlevadoras e — 310 —
fervidas do mais nobre dos affcctos !... falla mais, falla ; porque tuas palavras me parecera os echos que respondem ás fallas que do meu coração têm rompido para os meus labios !
— Jorge ! Jorge ! o mais que eu sinto não se diz, porque é impossível; eu te amo! Eis tudo.
O sino do templo vizinho dobrou annunciando tres horas da noite.
Jorge sentio como um brando choque, pois estremeceu ligeiramente; não dando porém a perceber a impressão que recebera, disse logo:
— Juliana, não te esfrie esse entusiasmo pela solidão : dentro em pouco serás minha esposa: tu és o encanto das mais brilhantes sociedades, és a flor mais bella de jardim ele gante da nossa capital; eu não ousarei roubarte á admiração e ao culto das nossas assem-bléas, não te privarei das festas em que és sempre a rainha, não; mas hei de pedir-te algumas vezes o sacrifício de breves dias em que eu te leve a uma solidão propicia e deleitosa, em cujo seio eu te adore, e ninguém perturbe o meu culto, e ardente e apaixonado eu me farte de beijar os teus olhos que me tornarão escravo, e o teu peito, onde tenho meu thronode amor !...
— 311 —
Jorge fallava com vehemencia calculada ;
alguma cousa porém devia preoccupal-o não pouco; porque uma ou outra vez sua cabeça se voltava de leve, e o seu ouvido como que procurava um som estranho e longinquo.
Juliana muito enlevada para poder notar naquelles ligeiros signaes de uma impaciencia inexplicavel, respondeu ao seu noivo :
— Jorge ! d'ora avante eu quero ser bella somente para ti, quero a solidão comtigo não para um dia, mas para sempre; porque a minha vida, o meu futuro, e a minha felicidade dependem só e exclusivamente do teu amor !
— Juliana!... exclamou o mancebo com paixão e apertando entre as suas uma das mãos da donzella; Juliana!... minha Juliana !...
A moça não retirou a mão que o mancebo apertava, e nesse momento soou não muito longe um canto que pouco a pouco veio-se approximando.
Um sorriso quasi imperceptivel passou pelos labios de Jorge de Almeida.
— 312—
XX.
A voz que cantava era de homem, suave porém e melodiosa, tão cheia de sentimento que passava dos ouvidos ao coração de quem a escutava.
E o canto, quebrando o silencio das deshoras, tinha alguma cousa de irresistivel encantamento.
Juliana disse :
— Alguém passa cantando, Jorge !
E Jorge respondeu apertando a mão da donzella:
— Escutemos, Juliana.
A voz dizia assim no seu canto :
Esta lua tão formosa, Esta noite deleitosa, Este céo de lactea côr, Este silencio profundo, Este repouso do mundo, É tudo encanto de amor.
O canto parou por momentos.
— 313 —
— Como é bello este canto ! disse Juliana suspirando.
— É porque exprime os puros sentimentos do coração, respondeu Jorge.
E o mancebo levou aos labios a mão que apertava, e beijou-a muitas vezes.
A voz continuou a cantar com dobrada suavidade:
Emquanto dura este enleio, Triumphão de um vão receio Os que se amão cora ardor, Vencem do pejo os rigores, E vão no meio das flores Trocar protestos de amor.
— Juliana... minha noiva ! exclamou Jorge.
Juliano não respondeu, antes procurou afastarse do apaixonado mancebo, que a reteve junto de si, segurando-a pela mão que continuava a beijar, e abraçando-a docemente pela cintura, que o braço atrevido não abandonou mais.
O canto ouvio-se ainda:
A lua é discreta e nobre, E da noite o manto cobre Beijo roubado ao pudor ;
As flores o beijo ouvirão, As auras d'elle sorrirão, Mas ganhou um beijo amor. — 314 —
O canto cessou, e ao mesmo tempo Jorge do Almeida abraçou ainda mais ternamente Juliana, e ousou depor nos labios da donzellaum beijo ardente e voluptuoso.
—315—
XXI.
Erão onze horas da manhã.
Juliana estava pallida e melancolica;
esforçava-se por encobrir a tristeza que a abatia, mostrava-se por momentos alegre e satisfeita ;
mas logo depois cahia em nova e sombria meditação.
Cândida sentada em frente de sua filha observava-a cuidadosa.
Ao meio-dia, recebeu Juliana um bilhete em que Jorge de Almeida lhe repetia os seus juramentos de amor e de constancia.
O bilhete dissipou em parte a melancolia de Juliana.
Cândida retirou-se mais socegada, vendo a filha dirigir-se serena e quasi contente para a sala e dalli sentar-se ao piano.
Mas Juliana tocou apenas durante alguns minutos,porque de súbito seus dedos ficarão immoveis sobre o teclado, e seus olhos afogárão-se em pranto.
Logo depois ouvirão-se os passos de alguém que subia a escada.
— 316 —
Juliana enxugou as lagrimas, e, enfeitando o rosto com um mentiroso sorriso de alegria levantou-se para receber a pessoa qui ia chegar.
Fábio entrou na sala.
— Como vem risonho hoje! disse-lhe Juliana.
— Sim, Juliana, respondeu o mancebo; venho contente e feliz, porque achei um meio seguro para salvar-te do perigo que estavas correndo, — Salvar-me!... exclamou a moça aterrada.
— Eu não me enganei, continuou Fábio; Jorge de Almeida procurava seduzir-te.
— Seduzir-me !
— Juliana, vai buscar as cartas que esse miseravel te entregou, dizendo que erão escriptas por seu pai.
— As cartas ?.,. e para que ?...
— Para demonstrar-te que são falsas.
A moça correu como louca para dentro, e em breve voltou, trazendo as cartas.
Fábio examinou a lettra e repetio com segurança :
— São falsas.
— Oh! é impossível!... bradou a infeliz moça.
Fábio tirou do bolso algumas cartas que trazia, e mostrando as a Juliana, continuou;
r — 317 —
— Estas sim são do pai de Jorge ; eu as obtive de um negociante que foi correspondente delle, e que deixou de o ser, aborrecido das exigencias e das indignidades desse mancebo.
Juliana, comparando as cartas, reconheceu á primeira vista a mais completa differença da lettra.
— E não é só isso, Juliana; ha mais alguma cousa.
— Que mais?... que mais'?... perguntou a moça, torcendo com força as suas mãos delicadas.
— Jorge de Almeida, proseguio Fábio, deve dentro de dous mezes casar-se com a filha de um rico capitalista desta cidade, e logo depois partir com a sua noiva para a Europa.
— Fábio! Fábio ! bradou Juliana com desespero ; dize-me que estás mentindo !...
— Não, respondeu Fábio ; não menti; affirmote que é exacto tudo quanto acabaste de ouvir.
A moça ajoelhou-se aos pés de Fábio, levantou para elle mãos supplicantes, e disse chorando :
— Oh!... assegura-me que mentiste!... é indispensavel que tenhas mentido, Fábio!...
essas cartas que me apresentaste não são ver-
— 318 —
dadeiras ; este casamento de que me fallas é uma falsidade.... Oh!.... dize-me que estás mentindo, Fábio!...
— Juliana, eu juro pela minha honra e pela salvação das almas de meu pai e de minha mãi, que te disse a verdade e somente a verdade.
A misera jovem fitou um olhar desvairado no rosto de Fábio.
— E agradeço a Deus, continuou o mancebo, agradeço a Deus o ter-me concedido a gloria de descobrir tudo isso ainda a tempo de salvar-te.
— É tarde ! murmurou Juliana, mas em voz tão baixa que Fábio não poude ouvil-a; é tarde !
agora é muito tarde ! E cahio desmaiada.
— 319 —
XXII.
Juliana estava arrastando longos dias e tormentosas noites de arrependimento e de remorso.
Toda a esperança de felicidade e de futuro se apagara de uma vez para sempre no coração da infeliz moça.
As lagrimas que ella chorava escondida começavão a abrir um sulco em suas faces mimosas e bellas.
Seus labios não sorrião mais senão com um fingimento que a ninguém illudia.
Juliana sentia que era desgraçada, e que a sua desgraça era irremediavel.
Fábio tinha-lhe dito a verdade.
Depois da impressão terrivel que produzira em Juliana a noticia do proximo casamento de Jorge de Almeida, e a demonstração de falsidade das cartas que este apresentara em nome de seu pai, a moça concebera uma duvida consoladora, e abraçára-se com a idéa de que Fábio, inspirado por um vil e indigno ciúme, procurava enganala.
— 320 —
Em breve porém teve Juliana de reconhecer que fazia uma nova injustiça ao seu pobre mas honesto e extremoso amante, Jorge de Almeida appareceu aos olhos da sua noiva, e delia ouvindo tristissimas queixas de mistura com a relação da sua perfídia e do seu crime, jurou que era victima de uma negra calumnia, e sahio precipitado, asseverando que voltaria antes de duas horas com as provas irrecusaveis de sua innocencia.
E, Juliana esperou duas horas, e depois dous dias inteiros inutilmente, porque Jorge de Almeida não voltou mais, e só em logar delle chegou no terceiro dia o desengano.
Jorge de Almeida escreveu uma carta a Cândida, mostrando-se resentido das suspeitas injuriosas de Juliana, e retirando por isso a palavra de casamento que lhe tinha dado.
O seductor não ousou escrever uma unica palavra a sua victima.
A despedida e desenganos erão feitos com selvatica rudeza; mostravão-se porém dignos da moralidade do algoz.
Cândida, acabando de ter a insolente carta, levantou colerica os olhos para o céo e imprecou vingança.
Juliana, que ouvira a leitura daquella horrivel sentença que a condemnava, curvou a — 321 —
cabeça, e embebeu os seus olhos na terra, como se quizesse esconder á sua vergonha.
— Levanta a cabeça, minha filha, disse emfim Cândida, concentrando a sua cólera; anima-te, consola-te : esse miseravel não te merecia :
levanta a cabeça!
Juliana ergueu a fronte, e olhou tristemente para sua mãi, sem lhe dizer palavra; mas sua consciência lhe estava respondendo que não podia mais levantar a cabeça diante de Jorge de Almeida.
— 322 —
XXIII.
O projecto de casamento de Jorge de Almeida com a bella Juliana fora por alguns amigos sabido ; a noticia do triste desenlace da intriga infame forjada por um vil seductor correu logo de bocca em bocca, soffrendo muito por isso a reputação da victima.
As murmurações e as injurias levantadas pelas mais terríveis suspeitas marcavão já com o sello da reprovação a infeliz moça.
Cândida e Fábio comprehendêrão que era indispensavel que Juliana tornasse a apparecer nas sociedades e que assoberbasse a horrivel tormenta que contra ella se desfechava.
A situação era realmente tão dolorosa e difficil como positiva e irrecusavel.
Voltando ás assembléas que costumava frequentar, Juliana protestava ao menos com a sua presença e com a sua placidez contra as indignidades que a seu respeito erão espalhadas, e, no caso contrario, fugindo ao mundo elegante e ás festas, e escondendo-se em um — 323 —
retiro, procurando um esquecimento que não estava nos seus habitos, deixava em pé e vigorando as suspeitas que lhe despedaçavão a coroa e o véo branco da pureza.
Juliana attendeu aos conselhos de Fábio e de sua mãi, e voltando aos bailes, ás festas e aos theatros, abraçou-se com a mentira.
Com a mentira, sim ; porque erão mentiras o brilho do seus olhos, o sorriso dos seus labios, a alegria do seu rosto e o encanto da sua conversação.
A verdade guardava-a ella no seio : a verdade era o arrependimento, era o remorso.
A mentira acompanhava-a ás sociedades, aos passeios, aos saráos, aos theatros : a verdade, que aliás não a deixava nunca, erguia-se terrivel no silencio da noite e na solidão do seu quarto ;
erguia-se, e abrazava-lhe a face e os labios, lembrando-lhe beijos impuros ; erguia-se, e cantava-lhe aos ouvidos horas inteiras, e incessante e desesperadamente aquelle canto sinistro que marcara o momento da sua perda e do seu opprobrio.
E Juliana, que tinha horror a essas noites de indizivel martyrio, ainda mais se arreceiava de que viesse alguma vez sua mãi observal-a, temendo que por acaso então adormecida revelasse em um sonho traidor o segredo fatal da sua vergonha.
— 324 —
A misera jovem, que em horas de imprudencia e de loucura tinha calado aos pés os preceitos do dever e da virtude, já estava pois sendo severamente castigada.
Recebia um castigo, nas justas murmurações de um mundo sempre desapiedado da mulher que se avilta.
Recebia outro castigo nesse desassocego e medo que incessantemente sentia.
E mais que tudo a consciência, que é como um écho da voz de Deus, a castigava com as torturas horriveis do remorso.
—325 —
XXIV.
O caracter de Juliana era capaz de emprestarlhe a audacia necessária para resistir á silenciosa, mas palpitante reprovação com que ella era recebida nas reuniões em que se apresentava.
Sua vaidade dava-lhe forças para impôr-se.
Quando ás vezes via suas rivaes sorrirem maliciosamente olhando para ella, encarava-as atrevidamente, ou dardejava sobre as inimigas um olhar de fingido desprezo, que chegava a confundil-as.
Sem tremer, sem corar e sem empallidecer, Juliana resistia aos olhos perscrutadores dos homens, que parecião querer penetrar em seu coração e ler ahi um segredo cruel e sinistro.
E apezar daquelles sorrisos, daquellas vistas dos olhos insolentes, apezar do murmurar injurioso que ás vezes sorprendia de passagem, a pobre moça dansava, ria, folgava como d'antes, trazendo no rosto o céo e na alma o inferno.
— 326 —
Em duas noites de reunião, porém, teve emfim Juliana de enfraquecer.
Em uma dellas, era um baile, ostentava a pobre moça toda a sua alegria artificial, e no momento em que acabava de levantar-se para aceitar o braço de um cavalheiro com quem ia dansar, vio de subito apparecer na sala Jorge de Almeida, que fixou sobre ella um olhar cheio de cruelissima ousadia.
Juliana estremeceu violentamente, recuou um passo, deixou-se cahir sentada na cadeira de que acabava de levantar-se, e desculpou-se com o seu cavalheiro, dizendo-lhe a tremer :
— Não posso... é impossivel.
Esta impressão tão forte e profunda, que recebera Juliana ao ver entrar na sala Jorge de Almeida, foi interpretada pelos curiosos e observadores de um modo muito maligno para a infeliz moça, quo logo depois retirou-se do baile.
Passados alguns dias, em outra e muito numerosa e brilhante reunião, depois de algumas horas dedicadas á dansa e á musica, estava Juliana com algumas jovens, não tão bellas, mas tão vaidosas como ella, descançando e conversando em uma pequena sala que communicava com o toucador.
Fallavão sobre musica.
Juliana sinha sido muito applaudida pouco — 327 —
antes cantando um romance, que pela primeira vez fora ouvido.
Uma das moças mordêra-se de inveja por que não pudera agradar tanto quanto esperava, executando uma aria já cem vezes cantada no theatro italiano.
Depois de longo conversar, a invejosa, cançada de ouvir elogios ao romance de Juliana, disse sorrindo ironicamente :
— Sei um romance muito mais bonito do que esse que cantou D. Juliana.
— E qual é ?...
— Não tem nome ainda; posso porém repetir uma das tres estrophes de que consta a sua poesia.
— É novo ?...
— Para quasi todos, mas talvez que D. Juliana já o conheça, pois que é tão apaixonada de romances.
— Conta-o.
E a invejosa cantou baixinho :
Esta lua tão formosa, Esta noite deleitosa, Este céo de lactea cor, Este silencio profundo.
Este repouso do mundo, É tudo encanto de amor.
Um gemido pungente interrompeu o canto da invejosa. Juliana acabava de desmaiar.
— 328—
XXV.
A miseria victima de um infame seductor não poude combater por mais tempo contra a sociedade que a repellia e que no emtanto continuava a abrir o seio ao seu algoz.
Voltando daquelle ultimo baile em que desmaiara ouvindo um canto injurioso, Juliana adoeceu gravemente.
Durante oito dias luctou com a morte, venceu-a emíim e talvez a pezar seu ; ficou-lhe porém uma profunda e acerba melancolia, contra a qual não houve recurso que aproveitasse. Os medicos aconselharão distracções. Juliana não se prestou mais a voltar aos bailes e ás reuniões, e apenas condescendeu em passeiar fora da cidade com sua mãi e Fábio.
Os passeios repetião-se inutilmente e sem o menor proveito : a melancolia de Juliana era invencivel, e fazia tremer a Cândida e ao seu sempre fiel e extremoso amante. Um dia Fábio chegou á casa de Cândida ■
— 329 —
ainda mais commovido do que nos anteriores.
— Que tens, Fábio ?... ha alguma novidade ?...
perguntou Cândida.
— Sim, mas é preciso não deixal-a perceber a Juliana.
— Então...
— Jorge de Almeiada casa-se amanhã.
— Silencio, Fábio! pelo amor de Deus silencio!
Dahi a pouco partião em um carro Fábio, Cândida e Juliana, para um dos bellos arrabaldes da cidade do Rio de Janeiro, e apeando-se em um excellente hotel, que não é necessario nomear, seguirão a pé passeiando durante uma hora, no fim da qual voltarão para jantar.
Fábio e as duas senhoras acabavão apenas de entrar para a sala que havião tomado, quando em outra que a essa íicava contígua, soarão as vozes alegres e ruidosas de muitos mancebos, e no meio dellas, bem distincta entre todas, a de Jorge de Almeida.
Um caixeiro do hotel, que veio receber as ordens de Fábio, descobrio o segredo que se occultava a Juliana, declarando que Jorge de Almeida vinha dar a alguns amigos o seu ultimo jantar de moço solteiro, e despedir-se ruidosamente de sua vida de extravagante.
Juliana pareceu ouvir aquella noticia sem — 330 —
abalo nem commoção ; pedio porém que se trancasse a porta da sala.
O jantar de Jorge de Almeida transformou-se bem depressa em uma bacchanal, a que só faltavão, para ser mais completa, essas mulheres loucas e perdidas cujas relações vergonhosas poucos homens se atrevem a confessar.
Os vinhos exaltavão os convivas, que suppunhão fallar do amor fallando de devassidão e de crimes.
Juliana tremia ouvindo confidencias feitas em gritos e inspiradas pelo vinho.
E no meio daquelle ruido e daquellas fallas immoraes,o nome de Juliana foi pronunciado ao som de risadas.
Acabavão de contar Juliana no numero das victimas de Jorge de Almeida.
Fábio levantou-se inflammadode colera, mas sentio-se preso nos braços de Gandida e de Juliana, que choravão desesperadamente.
Um dos exaltados convivas interpellou a Jorge de Almeida a respeito de Juliana.
A interpellação era uma infâmia.
Jorge, em vez de responder logo, soltou uma gargalhada indecente.
Os convivas instarão com decompassados gritos.
Jorge de Almeida obedeceu, fallou, e o que disse foi ainda mais infame.
— 331 —
Fábio fez um esforço violento, e deixando Juliana cahida semi-morta nos braços de sua mãi, abrio a porta, penetrou na sala do banquete, e avançando para Jorge de Almeida exclamou levantando o braço com evidente ameaça :
— Mentes, miseravel !...
Jorge de Almeida empunhou uma faca, e ia bradando :
— Repito...
Mas não poude acabar porque Fábio irritado imprimio-lhe no face o maior insulto que pôde um homem receber.
Jorge cambaleou e cahio atordoado no assoalho.
Vinte adversários levantárão-se para vingar a offensa recebida por Jorge de Almeida, mas ao mesmo tempo, a sala encheu-se de gente que acudio ao estrepito,e que conseguio impedir uma lucta desigual e terrivel.
— 332 —
XXVI.
O esquecimento de um grande insulto e de uma injuria vehemente pôde ser aconselhado por uma santa virtude ensinada por Jesus Christo, e então é digno da admiração dos homens, porque aquelle que sabe tanto perdoar se eleva pela sua humildade a uma altura que o aproxima do céo.
Mas também muitas vezes esse esquecimento é apenas a expressão do aviltamento e da miseria moral do homem corrompido pelos vicios; porque a corrupção mata o pundonor e o brio.
Jorge de Almeida não se atreveu a vingar-se da enorme affronta que recebera de Fábio ; a sua colera porém não foi desarmada pela virtude da humildade : elle não perdoou, teve medo.
Entretanto, era-lhe necessário salvar as apparencias, e suppoz salval-as, representando uma comedia que nem ao menos teve o merito da originalidade.
Fábio foi provocado a um duello, e uma — 333 —
hora depois a policia tinha já conhecimento do prazo e do logar do encontro, que assim ficou sem resultado, tornando-se impossivel o duello, esse crime que debaixo de certo ponto de vista pôde bem dizer-se um crime civilisado.
O pai de Jorge, temendo por seu filho unico, o pai da noiva deste receiando ver também compromettido o credito de sua filha, apressarão o casamento que fora adiado por alguns dias, e que se effectuou promptamente.
Assim, pois, uma familia honesta abrio o seio, e nella recebeu o homem indigno, o libertino que acabava de seduzir uma donzella e de tornal-a para sempre desgraçada.
Um pai que se ufanava de ser extremoso, entregara sua filha bella, innocente e pura, a um miserável que fora o algoz de outra mulher bella, innocente e pura.
Muitas e respeitáveis familias correrão a cumprimentar os noivos e a pedir as relações e a amizade de Jorge de Almeida.
As mais, as esposas, as donzellas estenderão suas mãos, e apertarão nellas a mão do mancebo corrompido e corruptor que trouxera para o leito nupcial, ainda fresca a lembrança de uma seducção infame.
Todos sorrião para Jorge de Almeida, todos o festejarão, todas as casas se abrirão — 334 —
para recebel-o, e ninguém se lembrou de pedir-lhe contas do seu crime.
E no emtanto Juliana, a victima de Jorge de Almeida, vivia escondida em triste solidão e gemia ferida pelo desprezo publico.
As sociedades a enxotavão do seu meio com a injuria, que nem mais procuravão disfarçar. Os pais e as mais tinhão recommendado ás suas filhas que fugissem da companhia de Juliana.
Os màncebos atrevião-se a olhal-a de um modo que equivalia a um insulto.
E a infeliz recuara diante dessa manifestação terrivel, e, não tornando mais a apparecer no mundo das festas e dos prazeres, escondia a sua vergonha no interior do lar domestico.
— 335 —
XXVII.
Juliana recebia o castigo de uma grave falta.
Uma sociedade moralisada, que se respeita e que se estima, não pôde receber a mulher que se deixou seduzir, pondo-a em contacto com as donzellas e com as senhoras honestas, cercandoas dos mesmos respeitos.
A distincção entre uma e outras é um justo premio devido á virtude.
Mas não pode haver seducção sem que haja seductor, e se a seducção é um crime, o seductor não é menos, ou ainda é mais criminoso do que a mulher seduzida.
Na seducção a seduzida é uma victima, o seductor é um algoz.
E entre uma victima e um algoz, a equidade, a generosidade e a moral não podem hesitar.
A victima de uma seducção delinquio diante da virtude, calcou aos pés um dever, merece uma punição ; seja punida pois.
A bao sociedade rejeita a mulher seduzida, a victima ; ainda bem.
— 336 —
Mas o seductor ?... mas o algoz ?...
A sociedade que se chama boa, a sociedade que pune a victima, abraça o algoz; a sociedade que repelle a mulher seduzida, festeja o seductor!...
Não é moralisada uma tal sociedade; não, e não.
É uma sociedade injusta e cruel, escrava da tyrannia dos homens, corrompida e ignobil.
O crime é sempre um crime, seja elle praticado por um homem, como por uma mulher.
Como se explica a contradicção de se ostentar uma justa severidade com a mulher que é fraca, e uma inexplicavel condescendencia com o homem que é forte ?...
Não; tal sociedade não é moralisada, e para que o seja, deve estender o castigo das seducções aos seductores e ás seduzidas ; deve repellir os algozes como repelle as victimas; deve também trancar suas portas aos libertinos que sacrificão ao seu infame sensualismo a reputação, a felicidade e a vida inteira de pobres jovens que por elles se deixão enganar.
Mas a nossa brilhante e ufanosa sociedade não somente tolera, como chega a parecer que applaude os seductores, ouve as historias dos seus horriveis triumphos, e sorri ouvindo-as; não se envergonha da companhia dos algozes, e aperta-lhes a mão !...
— 337 —
E o pai que acaba de dizer á sua filha — não te sentes ao pé daquella mulher, não lhe falles, porque está manchada pela seducção ! — vê logo depois, e não acha que dizer, vendo sua filha dansar ao lado do seductor, e ser por elle levada em prolongado passeio pelas salas do baile !...
E chama-se moralisada uma sociedade que assim procede !
— 338 —
XXVIII.
Emquanto Jorge de Almeida brilhava no meio das festas, alegre e ufanoso, a sua victima experimentava todas as afflicções de um opprobrio irremediavel.
Juliana ia definhando aos poucos, tal como a flor que vai murchando, depois de ter sido ferida pela tempestade.
Todas as embriagadoras esperanças da belleza e da mocidade tinhão-se apagado no coração da infeliz moça.
Aquella que pouco antes era a donzella vaidosa que se suppunha a mais bella de entre as mais bellas das suas rivaes, reconhecia agora que lhe era impossivel collocar-se a par da menos bonita das jovens, que apenas a olhavão com inveja nos seus dias de triumpho.
E, torturada assim na sua vaidade, Juliana sentia que lhe entrava no coração o desespero, vendo que ás adorações e ao culto suave e deleitoso de que tinha sido objecto, succedêra o desprezo de muitos e a compaixão de alguns.
— 339 —
Que podia ella esperar ainda?... Todo o futuro de uma moça acha-se exclusivamente ligado ao seu casamento ; mas haveria no mundo um homem não indigno e que fosse bastante generoso para arrancar Juliana do abysmo da vergonha em que tinha cahido, dando-lhe a sua mão e o seu nome ?... e se um homem desses lhe apparecesse, Juliana, ainda mesmo depois de ser sua esposa, não teria de côrar de cada vez que levantasse para elle os olhos?...
Tudo pois estava acabado : nada mais de festas e de alegria, nada mais de adorações de culto, de perspectiva de felicidade, nada mais que sonhos de brilhante futuro; tudo estava acabado : havia só uma realidade terrivel, inevitavel, perpetua :
era o opprobrio !...
A moça que sacrifica o seu pundonor e a sua honra torna-se como uma leprosa no meio da sociedade, em que todos lhe voltão as costas.
O mundo era um inferno para Juliana; o mundo rejeitava-a, ou só a aceitaria para impôrlhe um papel ainda mil vezes mais vergonhoso.
A situação era horrivel.
E a misera, a misera, a quem uma falsa educação fizera incrédula, nem ao menos tinha a doce consolação de voltar os olhos para o — 338 —
XXVIII.
Emquanto Jorge de Almeida brilhava no meio das festas, alegre e ufanoso, a sua victima experimentava todas as afílicções de um opprobrio irremediavel.
Juliana ia definhando aos poucos, tal como a flor que vai murchando, depois de ter sido ferida pela tempestade.
Todas as embriagadoras esperanças da belleza e da mocidade tinhao-se apagado no coração da infeliz moça.
Aquella que pouco antes era a donzella vaidosa que se suppunha a mais bella de entre as mais bellas das suas rivaes, reconhecia agora que lhe era impossivel collocar-se a par da menos bonita das jovens, que apenas a olhavão com inveja nos seus dias de triumpho.
E, torturada assim na sua vaidade, Juliana sentia que lhe entrava no coração o desespero, vendo que ás adorações e ao culto suave e deeitoso de que tinha sido objecto, succedêra o desprezo de muitos e a compaixão de alguns.
— 339 —
Que podia ella esperar ainda?... Todo o futuro de uma moça acha-se exclusivamente ligado ao seu casamento ; mas haveria no mundo um homem não indigno e que fosse bastante generoso para arrancar Juliana do abysmo da vergonha em que tinha cahido, dando-lhe a sua mão e o seu nome ?... e se um homem desses lhe apparecesse, Juliana, ainda mesmo depois de ser sua esposa, não teria decôrar de cada vez que levantasse para elle os olhos?...
Tudo pois estava acabado: nada mais de festas e de alegria, nada mais de adorações de culto, de perspectiva de felicidade, nada mais de sonhos de brlllante futuro; tudo estava acabado : havia só uma realidade terrivel, inevitavel, perpetua :
era o opprobrio !...
A moça que sacrifica o seu pundonor e a sua honra torna-se como uma leprosa no meio da sociedade, em que todos lhe voltão as costas.
O mundo era um inferno para Juliana; o mundo rejeitava-a, ou só a aceitaria para impôrlhe um papel ainda mil vezes mais vergonhoso.
A situação era horrível.
E a misera, a misera, a quem uma falsa educação fizera incredula, nem ao menos tinha a doce consolação de voltar os olhos para o — 340 —
céo e de encorajar-se com a fé e com o amor de Deus.
No coração do crente nunca se apaga de todo a esperança; o coração incredulo é um negro abysmo, em cujo fundo mora o demonio do desespero.
Esse demonio começava a fazer-se sentir no coração de Juliana.
A scena repugnante e vergonhosa passada no hotel viera naturalmente redobrar os soffrimentos da pobre victima.
A noticia do próximo casamento de Jorge de Almeida, que ella recebera sem manifestar notavel commoção, porque conseguira com um esforço violento suffocar a mais pungente dôr, esgottára todos os recursos da sua vontade.
O que depois e em seguida se passara, abateua, aviltou-a aos seus próprios olhos de modo a fazel-a considerar-se a ultima das mulheres.
Desde então a infeliz vivia a chorar dia e noite, incessantemente.
Juliana tinha chegado a amar apaixonadamente a Jorge de Almeida, e vendo-se tão ultrajada por elle e já tão repellida pelo mundo, tocara o extremo de aborrecer o mundo e de aborrecer a si propria.
O seu padecer era tão acerbo e tão profundo, havia em seu olhar ás vezes desvairado, em —341 —
suas palavras ás vezes insensatas, em seus modos ás vezes singulares um não sei que de tão sinistro, que Cândida começou a receiar as mais fataes consequencias.
A infeliz mãi seguia e observava cuidadosa sua filha; desejava consolal-a, não sabia que dizerlhe, e limitava-se a chorar com ella.
Fábio era o único amigo que não tinha desamparado a triste moça; era o companheiro unico que vinha diariamente tomar uma parte naquelle viver de lagrimas, que estavão passando Cândida e Juliana Fábio era mais do que um mancebo generoso e nobre, era o typo do amigo dedicado ; tinha um coração cheio dessas grandes virtudes que tornão o homem capaz dos maiores sacrificios ou da abnegação mais completa.
E naquellás circumstancias ella não esquecia que o pai de Juliana fôra o seu protector desvelado, que em Cândida achara uma segunda mãi, que Juliana era a sua amiga da infancia.
E ainda mais: Fábio tinha amado extremosaamente Juliana.
O que se passava na alma desse mancebo, ninguém o poderia explicar : era uma lucta horrivel, e um soffrimento que excedia as mais despedaçadoras torturas.
Fábio fingia duvidar do opprobrio de Ju-
— 342 —
liana ; mais acreditava nelle : comprehendia que a situação era intoleravel, e não se podia sujeitar á idéa de ver morrer Juliana, nem de vêl-a carregar o peso de uma vida ignominiosa.
Uma noite, Fábio chegou á casa de Cândida quando já não o esperavão.
Erão 10 horas da noite.
Cândida estava só na sala, e nem procurou esconder as lagrimas que derramava, quando vio aproximar-se omancebo.
— Onde está Juliana?... perguntou elle.
— Está no terraço e pedio-me que a deixas-sa em liberdade.
— Como passou ella o dia ?...
— Peior do que nunca ! exclamou a pobre mãi! Fábio !... aquelle homem matou minha filha; nós vamos perder Juliana !...
— O amor maternal ás vezes exaggera os perigos que receia.
— Oh ! não ! é a pura verdade: esta noite, e já muito tarde, fui observar Juliana... ella tinha adormecido, escrevendo... cheguei-me de manso e li... Ah! tinha escripto a historia dos seus soffrimentos do dia que passara, e as suas ultimas idéas erão uma horrivel saudação ao suicidio !... cahi de joelhos, soltei um grito, accordei-a, e pedi-lhe chorando que vivesse para mim!... — 343 —
— E ella ?...
— Perguntou-me de que me servia a sua vida!... Oh ! Fábio ! uma filha pôde fazer tal pergunta á sua mãi ?...
— E depois?...
— Acabou promettendo me que não se mataria; mas disse-me isso sorrindo, com um desses sorrisos que só se vêm nos lábios de um louco !
Ah ! ella vai morrer, Fábio ! aquelle homem matou minha filha!
— Aquelle homem casou-se hoje, balbuciou Fábio.
— E hoje ella está pensando em matar-se !
repetio Cândida soluçando.
Fábio passeou ao longo da sala durante meia hora, parecendo engolphado em profunda e dolorosa meditação ; parou emfim de subito ouvindo um longo gemido, que fizera estremecer a afflicta mãi.
— Que é isto ?...
— Um gemido de Juliana ! exclamou Cândida desatando a chorar; é minha filha que vai morrer... aquelle homem matou minha filha!
— Juliana não ha de morrer, disse Fábio : eu vou fallar-lhe... não me acompanhe : quero conversar a sós com ella.
E com ar grave e solemne, Fábio dirigio-se para o terraço.
— 344—
XXIX.
A noite era formosa ; a lua plena e formosa brilhava no céo branco e bonançoso ; as auras sopravão brandas e suaves : o jardim era como um thuribulo immenso que enchia de deleitosos perfumes o templo da natureza.
Era pois uma noite como aquella noite de loucura, embriaguez e de conseqüente arrependimento.
E vestida de branco, também como naquella noite, mas com os seus admiraveis cabellos negros soltos e em desalinho, Juliana estava debruçada sobre o parapeito do terraço e mar com as suas lagrimas a lembraça do seu grande erro e do seu cruel infortunio.
Seus olhos estavão fitos no caramanchão, que divisava ao longe, e que por entre o pranto consideravão com uma expressão indeflnivel de angustia.
Dir-se-hia que Juliana era então como a alma de um suppliciado que em deshoras vinha contemplar o patibulo, onde ao golpe do algoz se separara do corpo que animara.
— 345 —
Naquelle logar e naquella hora, como devião ser tormentosas as reflexões da pobre moça !...
Ella chorava sempre, e se durante breves momentos não chorava, succedia nos seus olhos ás lagrimas um brilho infernal, que era o reflexo de um pensamento sinistro e criminoso.
A moça vaidosa revoltava-se contra a sua desgraça, e não queria por modo algum sujeitarse a ella.
E o recurso único que lhe suggeria o espirito exaltado, era horrivel.
Juliana estancava o pranto somente quando sorria para a morte.
A idéa do suicídio preoccupava-a desde alguns dias, e se a principio a fizera estremecer, acabara bem depressa por não aterral-a mais.
Juliana chegara ás consequencias fataes da sua infeliz educação.
Acreditara no mundo, contara com os gozos da vida transitória ; o bello mundo trancá-ra-lhe as suas portas, a vida não lhe offerecia mais do que um futuro negro, feio e afflictivo.
Para Juliana, viver era gozar : de que lhe servia pois uma vida em pranto, em soffrimentos e torturas ?
A sepultura era pelo menos um descanço.
— 346 —
Além da sepultura nada mais havia para ella.
Tinhão-lhe ensinado que a eternidade era uma illusão.
Juliana sabia demais que o arrependimento não podia regeneral-a diante de Deus.
A infeliz não acreditava que na paciencia e na humildade tinha as chaves com que lhe serião abertas as portas do céo.
Ferida pois pela desgraça , e repellida pelos homens, sem crenças religiosas, sem amor e sem temor de Deus, que não lhe tinhão ensinado a conhecer, com o desespero na terra, e sem a fé no coração, como recuaria ella ante a idéa do suicidio ?
O suicídio era pois a consequencia da educação que a misera tinha recebido.
E ás vezes a pobre moça luctava contra as falsas doutrinas que a impellião ao crime : ás vezes pensava na eternidade, no céo, em Deus;
era porém tarde; a luz passava quasi imperceptivel por diante dos olhos da infeliz cega.
O onda impetuosa da descrença arrancava das mãos da desgraçada naufraga a providencial taboa de salvação que ainda podia conservar-lhe a vida.
Juliana não estava louca; era incredula.
m — 347—
XXX.
Quando Fábio entrou no terraço, Juliana chorava, e tanto e tanto que nem vio approximarse della o mancebo.
Fábio esteve por alguns momentos junto della, contemplando-a em tristissimo silencio, até que, sentindo que por demais se estava commovendo, e que precisava poupar as forças do proprio animo, tomou-lhe uma das mãos e murmurou :
— Juliana !...
A moça estremeceu ; logo porém voltou-se e respondeu perguntando :
— És tu, Fábio ?... que queres ?...
— Padeces muitos?...
Juliana sorrio com um desses sorrisos que despedação corações.
— Minha irmã, disse Fábio, é necessario deixar de soffrer e de chorar...
— Eu?...
— Não ha mal que não tenha remédio ; Deus é grande e omnipotente.
— Deus?... — 348 —
— Sim, Deus.
— Oh Fábio! Fábio! faze-me crer... faze-me crer!... olha : o que eu tenho na alma é horrivel;
mas vejo bem que muito menos o seria se eu pudesse crer!...
— Juliana!...
— Sou muito desgraçada, Fábio.
— Podes porém ser feliz ainda,...
— Nunca.
— E se o homem que te illudio se apresentasse de novo ?
Juliana fez um movimento de horror.
— Não o amas então mais ?... perguntou Fábio, hesitando.
— Aborreço-o ! murmurou Juliana com uma profunda expressão de verdade.
— Pois bem, disse Fábio ; sabe que Jorge de Almeida casou-se hoje.
Juliana estremeceu tão violentamente que Fábio teve de suste-la em seus braços.
— Estremeceste, Juliana!...
— Fábio ! disse a moça com voz sentida; o criminoso que conta com o patibulo, ainda assim estremece quando ouve o annuncio da sua sentença de morte.
— Então...
— Nada, Fábio; não concluas cousa alguma. — 349 —
— Juliana, uma barreira eterna te separa desse homem.
— Estávamos já eternamente separados antes de levantar-se a barreira de que fallas.
— O teu coração está portanto livre e pôde dar-se a um outro homem que te mereça e te faça feliz...
— Um outro homem...
— Sim, Juliana.
— E que outro homem se abaixaria até á posição em que me acho ?...
— Aquelle que te amou sempre: eu, Juliana.
— Fábio!...
— Juliana, eu te offereço a minha mão e o meu nome.
Juliana deixou-se cahir de joelhos, e levantada nos braços de Fábio, tomou-lhe uma das mãos, e cobrio-a de beijos e de lagrimas.
— Aceitas, Juliana?...
A moça ficou por muito tempo sem poder fallar; quando porém os soluços não lhe embargarão mais a voz, respondeu resolutamente:
— Não.
— Oh Juliana! sê minha esposa.
— Não : tu és o mais generoso dos homens :
eu tenho porém consciencia,de que sou indigna de ti.
— Juro-te que não te lembrarei nunca uma — 350 —
paixão funesta e louca que tantas lagrimas tem feito correr dos teus bellos olhos ! amo-te como d'antes, e quero que sejas minha : aceita-me, Juliana, aceita-me!...
Juliana commovida, tremula, e vivamente agitada, tomou entre as suas uma das mãos de Fábio, levou-o para um das ângulos do terraço, onde brilhavão menos os raios da lua, e alli, curvando a cabeça, balbuciou com voz lugubre :
— Fábio.., o que Jorge disse no hotel era verdade... Fábio... Jorge de Almeida deshonroume...
E Fábio com voz ainda mais tremula e mais lugubre respondeu :
— Ainda assim...
E encostou-se á parede para não cahir — 351 —
XXXI.
Juliana levantou a cabeça, fixou seus olhos no rosto de Fábio, e comprehendeu toda a immensidade do sacriicio que o generoso mancebo se offerecia a fazer para salval-a.
As lagrimas, a confusão, a dôr profunda que sentia a infeliz moça, parecerão dissipar-se como por encanto; mas a tranquillidade que ella affectou subitamente, era ainda mais tremenda e ameaçadora.
— Sim, Fábio, disse ella; a noite não póde mostrar-se mais formosa ; a lua brilha, as flores rescendem odorosas.., é uma noite de magia...
vem, Fábio, desçamos ao jardim...
E, tomando o braço de Fábio, desceu a escada do terraço, e adiantou-se com o mancebo pelas ruas do jardim.
Fábio estava triste, mas sentia-se ao mesmo tempo dominado pelo irresistivel poder daquella mulher formosissima.
De repente, Juliana parou diante de um massiço onde abundavão as violetas, e, depois de contemplal-as por alguns instantes, disse :
— 352 —
— Tu tinhas razão, Fábio ; as flores têm veneno : as violetas envenenárão-me ! aquelle ramalhete de violetas foi o principio e a causa da minha desgraça.
— Ainda te lembras disso ?...
— Sempre .. mas lembro-o com horror ; o que porém me lembra ainda mais, Fábio, é a lição que me deste sobre o veneno das flores, e que então loucamente não quiz ouvir...
— Esqueçamos o passado, Juliana, disse Fábio, obrigando-a a continuar o passeio.
— Não posso : a sua lembrança é mais forte do que a minha vontade. Sobretudo desde tres dias ouço incessantemente repetidas pelo meu coração as palavras que me disseste na noite da festa dos meus annos.
— Juliana !
— Tu me dizias : — Juliana, os perfumes das flores podem matar... — E eu ousei responder-te:
— Deve ser uma morte deliciosa!... — uma morte de flores !...
— Que queres dizer ?
— Que eu era uma louca, Fábio !
— E hoje que dizes tu, Juliana?...
— Que és um homem generoso... mais do que isso, que és meu anjo, Fábio ! o meu anjo de amor e de consolação; e que eu hei de mostrarme digna de ti.
Os dous jovens tinhão chegado ao caraman-
— 353 —
chão ; e, Juliana quasi arrastada por Fábio, fora sentar-se ao lado do amante, no banco de relva.
— Sim ! exclamou Fábio ; eu serei o teu protector, o teu amigo, o teu esposo ; e tu has de viver para minha felicidade... Juliana! jura que serás minha esposa !...
— Eu disse que seria digna de ti, Fábio...
— Sê-lo-has sempre, eu o sei ; jura-me, porém, que serás minha esposa !... eu o exijo !
— Jurar que serei tua esposa ?... aqui ?
perguntou Juliana aterrada.
— Sim... aqui... aqui mesmo !
— Oh, Fábio ! tu sabes o que me estás pedindo ?
— Jura .. eu o exijo !
— Aqui?... neste logar ? perguntou de novo Juliana com uma expressão de dôr profunda, cuja causa Fábio não comprehendia.
— Sim ! aqui mesmo, repetio o mancebo.
— Nã, não... só á face dos altares prestarei o juramento que me pedes : aqui... não; aqui...
oh!... aqui eu juro-te somente que me mostrarei digna de ti.
— Faz-se tarde, Fábio ; e eu quero dormir esta noite o melhor e o mais bello dos somnos, para que amanhã venha o meu noivo encontrar-me digna delle ; voltemos pois.
A voz de Juliana tinha-se tornado tão doce — 354 —
e tão terna, o seu rosto tão sereno e apenas cheio de uma melancolia alias naturalmente explicavel, que Fábio ia pouco a pouco socegando.
De volta do jardim, os dous jovens demorárão ainda os passos para conversar mais algum tempo, Fábio procurando accender suaves esperanças no coração de Juliana, esta manifestando-se reconhecida a um amor tão generoso, e teimando sempre em dizer que se mostraria digna delle.
Ao entrar na sala, encontrarão Cândida que os esperava anciosa :
— Minha filha! exclamou ella.
— Minha mãi, disse Juliana, amanhã mandará apromptar o meu vestido de noiva.
Cândida olhou para Fábio.
— Peço-lhe sua filha em casamento, disse o generoso mancebo.
A pobre mãi apertou Fábio nos braços.
— Estás contente, minha filha ?...
— Oh ! muito ! respondeu Juliana ; e agora abençôe-me, minha mãi! ha longo tempo que não sei o que é dormir, e hoje dormirei muito...
— Oh ! ainda bem !... Juliana ajoelhou-se e repetio :
— Minha mãi, abençôe-me !
— Que é isto ? de joêlhos ?...
— Sim, esta hora é solemne... Fábio veio dar — 355 —
uma nova direcção ás rainhas idéas, tornou-me outra... minha mãi, abençôe-me !
Cândida abençoou Juliana, e levantou-a em seus braços.
— Agora, Fábio, tu, disse a moça, tu és o meu noivo... beija-me, Fábio, beija-me...
Fábio aproximou-se de Juliana, e beijou-lhe a fronte.
— Oh ! beija-me ainda na face, e beija-me nos lábios para que eu te beije também !
Os dous jovens beijárão-se ternamente.
— Agora... bóa noite... adeus! disse Juliana, e retirou-se apressada para seu quarto.
— Estará louca?... perguntou Cândida confundida.
— Não, respondeu Fábio; Juliana está salva. — 356 —
XXXII.
Reinava silencio profundo em casa de Cândida.
Fábio, antes de se retirar, tinha referido á extremosa mãi quaato se passara entre elle e Juliana, excepto somente a confissão que recebera do segredo fatal ; e Cândida, illudida como o mancebo pela tranquillidade da infeliz moça, concebera também por sua vez uma esperança de felicidade.
Fábio retirára-se pouco depois de meia-noite, e, passada uma hora, Cândida, indo observar sua filha, achou-a já no leito e dormindo um profundo somno. Satisfeita, alegre, feliz, a pobre mãi retirou-se para o seu quarto, e adormeceu abençoando Fábio, o anjo que salvará Juliana.
A noite adiantava-se.
As duas horas da madrugada Juliana ergueuse, e cautelosa foi assegurar-se de que sua mãi dormia, e logo de volta desceu pressurosa ao jardim.
Juliana não tinha dormido um só instante, — 357 —
e apenas simulara habilmente um somno tranquillo e pesado quando vira entrar sua mãi para observal-a.
Agitada por um tremor nervoso, com um olhar ardente e desvairado, com a respiração anciosa, a moça adiantou-se pelo jardim, colheu com tanto cuidado como rapidez, grande cópia de rosas odoriferas, de angélicas, de re-sedás, e de quantas flores encontrou notáveis pelo seu perfume activo e forte.
Quando vio que tinha já colhido tantas flores que serião de sobra para vinte ou mais ramalhetes, e que ella ia depositando no banco do caramanchão, tratou de conduzil-as em porções para o seu quarto.
Sem pronunciar uma palavra, sem soltar um gemido, sem derramar uma lagrima, Juliana recolheu-se emfim e vio-se no meio de uma enchente de flores.
Então com a mesma rapidez e com o mesmo zelo,cobrio de rosas, de angelicas, de bogaris, de jasmins de Cabo e de resedá francez todo o seu leito, encheu do ramalhete o seu toucador, e espalhou o resto das flores pelo assoalho ;
sentou-se depois e escreveu duas cartas.
Levantou-se emfim a pobre moça, fechou cuidadosamente e trancou as portas do seu quarto, deitou-se vestida como estava sobre — 358 —
as flores, apagou a luz, e desatou a chorar.
Erão lagrimas acerbas e não de piedade ; era o ultimo pranto do desespero de uma moça formosa que tinha amado loucamente os prazeres e os gozos da vida.
Breves minutos depois, o ar viciado pelos aromas activissimos que exhalavão as flores, começou a produzir os seus effeitos...
Juliana teve medo ; mas, fazendo um esforço supremo, deixou-se ficar immovel no seu leito, e como para animar-se e ainda mais desejar a morte, foi cantando baixinho :
Esta lua tão formosa, Esta noite deleitosa, Este céo de lactea côr, Este silencio profundo, Este descanço do mundo É tudo encanto de amor.
Cantou as tres estrophes do canto da seducção, repetio-as ainda tres vezes... quiz repetil-as ainda quarta vez, mas parou no meio da primeira estrophe, como se tivesse adormecido.
— 359 —
XXXIII.
No dia seguinte, Cândida achou trancada a porta do quarto de sua filha, e debalde chamou por ella em altos gritos.
Fábio acudio immediatamente á um recado instante da mãi afflicta e aterrada, e logo que chegou, comprehendeu que uma horrivel catastrophe tivera logar.
A porta do quarto foi arrombada, e Cândida e Fábio virão Juliana vestida de branca e morta, estendida no seu leito e no meio de um diluvio de flores.
O ar que se respirava, ainda era uma atmosphera de perfumes.
Juliana estava pallida; a morte porém não tinha ainda ousado desfigurar seu rosto encantador e formoso.
Cândida cahio desmaiada sobre o cadaver de sua filha.
Alguns momentes depois, Fábio encontrou sobre a mesa as duas cartas escriptas por Juliana;
uma era dirigida a elle, outra a Cândida.
A carta de Fábio dizia assim :
« Fábio, querias sacrificar a tua reputação e o teu futuro para salvar-me, e eu jurei — 360 —
mostrar-rne digna, de ti ; cumpro esse juramento matando-me. Lembra-te d'aquella noite da festa dos meus annos, em que me fallaste do veneno das flores ?... eu te disse então : — Fábio, se um dia resolver-me a acabar com a vida, matar-mehei com o veneno das flores. — A prophecia verificou-se, Fábio. Eu morro, e... morro amando-te. Adeus. »
Na carta que deixara á sua mãi, Juliana assim se exprimia :
« Perdão, minha mãi! é preciso que eu morra:
não ha no mundo regeneração possivel para a mulher que se deixou seduzir. O mundo que tolera e talvez affaga o algoz, não perdoa a victima. Não ha para mim esperança, nem mesmo aceitando a mão e o nome do jovem que generosamente se avilta, pretendendo salvar-me.
A morte anniquila tudo : a morte é o meu unico recurso. Adeus, minha querida mãi, adeus para sempre ! »
Cândida, ouvindo a leitura desta carta, exclamou desesperadamente :
— Oh ! minha desgraçada filha teve um accesso de loucura.
— Não teve um accesso de loucura, disse Fábio: sua filha era incredula... a descrença levou-a ao desespero, e o desespero levou-a ao suicidio.