Os Brilhantes do Brasileiro
I
AFLIÇÕES SUDORÍFERAS
Em um frigidíssimo dia de janeiro de 1847, por volta das nove horas da manhã, o Sr. Hermenegildo Fialho Barrosas, brasileiro grado e dos mais gordos da cidade eterna, estava a suar, na rua das Flores, encostado ao balcão da ourivesaria dos Srs. Mourões. As camarinhas aljofravam a brunida testa de Fialho Barrosas, como se a porosa cabeça deste sujeito filtrasse hidraulicamente o estanque de soro recluso no bojo não vulgar do mesmo.
Era o suor respeitável da mortificação; o esponjar das glândulas pela testa, quando as lágrimas golfam dos seus poços, e não bastam já olhos a estancá-las. Era, enfim, a dor que flameja infernos em janeiro, e tira dum homem adiposo e glacial lavaredas, como o Etna as repuxa por entre as neves do seu espinhaço.
Sondemos o que se passa dentro daquele corpo, e desinchemos as bochechas do estilo.
Hermenegildo Fialho tinha recebido, às oito da manhã, no seu escritório de consignações e descontos na rua das Congostas, um bilhete da ourivesaria Mourão, convidando-o a entrar naquele estabelecimento, quando pudesse, para negócio urgente.
O substantivo “negócio” abalou-o. O adjetivo “urgente” sacudiu-o.
Pôs o chapéu, revestiu de borracha os pés impermeáveis, afligindo-os; enroscou a cara no “cachenez”, sobraçou o guarda-chuva, e foi impando, costa acima, pelo largo de S. Domingos, resmoneando no íntimo de si: “Negócio urgente!... que diabo de urgente negócio será este com o ourives!?...”
― Então que temos? – perguntou o esbofado Barrosas, e sentou-se na gemente cadeira.
E os Srs. Mourões disseram pouco mais ou menos o seguinte: Que, seis anos antes, ele, brasileiro, lhes havia comprado um adereço de brilhantes, composto de gargantilha, brincos, broche e bracelete, por 6.500$000 réis, com o fim de presentear sua noiva, segundo ele comprador declarara. Que, passados sete meses, pouco mais ou menos, uma mulher desconhecida entrara na loja, e lhes vendera um brilhante desengastado por 250$000 réis. Seis meses depois haviam comprado à mesma mulher outro de igual quilate e valor. Corrido o mesmo prazo, outro lhes fora oferecido e vendido. Que, no fim dum ano, um ourives vizinho lhes tinha negociado um brilhante de cem libras, o qual lhes despertara reminiscência de ter sido vendido em sua casa; mas, por mais que avivaram lembranças, não recordaram a quem. E, volvido pouco mais dum ano, diverso ourives lhes vendera outro brilhante do mesmo preço, dizendo que o comprara a um joalheiro espanhol. Não obstante, insistiam em afirmar que as duas últimas pedras tinham já sido deles; sem todavia desconfiarem de roubo. Acontecendo, porém, que oito dias antes, uma mulher com jeito de criada, a mesma que primeiro lá tinha ido, lhes levasse uma pulseira, para se engastarem pedras falsas no encaixe de outras já desencravadas, a desconfiança inclinou-se logo para roubo. Ficou a pulseira, e depressa reconheceram que era de sua casa, e daí a suspeita de que os brilhantes comprados lhe houvessem pertencido. Os dois maiores ainda existiam soltos. Ajustaram-os nos engastes: frisavam perfeitamente. Recordaram com mais seguras probabilidades, e convieram na presunção que a pulseira era parte das jóias do noivado comprados pelo Sr. Barrosas, seis anos antes.
E, na incerteza, deliberaram prudentemente reter a mulher, quando ela viesse buscar o bracelete, certos de que, a ser a jóia do Sr. Fialho, por força se praticara roubo, sendo improvável que um sujeito notoriamente rico mandasse vender brilhantes e repor minas novas na pulseira de sua esposa...
― Deixe-me cá ver! – atalhou o brasileiro. – Mostre-me isso!
Mostram-lha.
Era a pulseira de Ângela.
Aqui principiou a borbulhar um sumo gomoso e crasso da testa do homem.
― É de minha mulher, acho eu! – tartamudeou ainda indeciso o Sr. Fialho. – Que é da criada?
― Está na polícia porque tentou fugir. Se vossa senhoria quer, vai um cabo buscá-la.
― Bom será, que eu não posso mexer-me... Parece que me arde o interior! Dão-me os senhores um copo de água, se fazem favor... Isto só no inferno! – prosseguiu o Sr. Barrosas, batendo na testa com os pulsos. – Minha mulher não vendia os brilhantes! É impossível! Vendê-los p’ra quê? P’ra quê, não me dirão os senhores?
― Pode ser que estejamos enganados – observou um dos honrados ourives; - mas o esclarecermo-nos é tão necessário para vossa senhoria como para nós. Se nos iludimos, ficamos contentíssimos e sossegados. As nossas suspeitas não ofendem ninguém senão a criada. Enfim, cumprimos um dever.
― Fazem muito bem – obtemperou o brasileiro; - mas minha esposa não vendia os brilhantes... Roubar-lhos a criada? Isso pode ser; mas... Que figura tem ela?
― Baixa, gorda, mais de meia idade, vestida limpamente.
― Os sinais são dela... Tem uma verruga no nariz, assim do feitio de ervilha?
― Não reparei...
― E um dos olhos assim a modo de vesgo?
― Parece que sim... Ela não pode tardar.
― E então os senhores – volveu o brasileiro com outro gesto de cara e tom de voz mais afinado – se os brilhantes forem meus, como há de isto ser?
― Como há de ser?!...
― Perdi-os, hem?
― Isto é outra questão ― Que questão? Eu acho que não há questão nenhuma... Se os senhores compraram uma coisa roubada...
― Provado o roubo, iremos haver a importância dos dois brilhantes ultimamente comprados ao ourives que nolos vendeu; quanto aos que compramos a pessoa desconhecida, posto que já não estejam em nossa casa, restituiremos o seu valor, se vossa senhoria quiser; mas seria justo e honroso que o Sr. Fialho não sacrificasse quem o acautelou, para evitar que lhe roubem as outras jóias. Do contrário, teríamos de nos arrepender dum zelo que nos vem prejudicar...
Neste comenos, chegou a criada com o municipal e cabo de polícia.
― É ela mesma! Cá está a ladra! – bradou o brasileiro. – Com que então roubaste a pulseira de tua ama?!... Diz lá! Não respondes?
A criada abaixou a cabeça, e fechou hermeticamente os beiços, como se receasse que alguma palavra lhe fugisse.
― Que dizes tu, Vitorina? – bradou o amo. – Onde tens o dinheiro dos meus brilhantes? Diz onde está o dinheiro que eu não te meto na cadeia... Declaras ou não? Olhem a ladra que não tuge nem muge! Já viram? Olha que te rebento, mulher! Falas? Roubaste os brilhantes?... E esta! Nem palavra! Justiça com ela! Enxovia, até declarar onde está o meu dinheiro!...
Os circunstantes, espantados do silêncio da criada e talvez suspeitosos dalgum mistério talvez justificativo da inculpabilidade dela, instavam-na a responder.
― Perderia a fala com o susto – aventou o cabo, e sacudiu-a pelos ombros para lhe desemperrar a língua. –
Você não pode falar, criatura? Que fez você ao dinheiro dos brilhantes?
― Gastei-o... – respondeu ela, soluçando.
― Ah! Já confessou? – interveio Hermenegildo. – Cadeia com ela, que eu cá vou a casa ver se me falta mais alguma coisa. Há de ir degredada. II
1.600$000 RÉIS!
Estava Ângela na janela da sua casa na “rua do Bispo”, quando o marido surdiu da esquina da “Praça nova”.
Reconheceu-o logo pela corpulência redonda. Retraiu-se da janela, e disse consigo, assustada:
― Há novidade! O coração bem mo dizia... Meu marido nunca vem a casa a esta hora! E Vitorina sem chegar!... Que seria!...
O resfolegar de Fialho, escada acima, cobria o estrondo dos pés nos degraus que rangiam.
― Ângela! Ângela! – clamava ele.
― Que é?
― Dou-te parte que estás roubada! – bradou o esferóide.
― Roubada! – gaguejou a esposa.
― Sim! roubada, tu! Aqui tens o teu bracelete sem os brilhantes. Conhece-lo? Vê lá que ladra saiu a tua criada favorita! Um conto seiscentos e cinqüenta mil réis de pedras... foi-se! E tu sem dares tino disto, mulher! Viste?
A pulseira tremia nas mãos convulsivas de Ângela.
E o marido prosseguia:
― Aqui tens! Tirou-lhe as pedras boas, e tinha a pulseira nos Mourões para lhas encravarem falsas. Lá está na administração a ladra, e de lá vai p’ra a cadeia, onde há de morrer; mas o meu conto, seiscentos e cinqüenta mil réis, esse é que não torna.
Ângela chorava, soluçante.
― Não chores, menina! – acudiu o Sr. Barrosas. – Olha que isto não abala a nossa fortuna...
― Ó meu Deus! – balbuciou a senhora, com as mãos nas faces.
― Não te aflijas que eu compro-te outra pulseira, mulher... Deixa-me cá por minha conta a criada; que essa, ou eu não hei de ser Hermenegildo, ou ela há de morrer na enxovia.
― Que infortúnio, Jesus, que infortúnio! – bradou ela desafogando-se a custo dos soluços.
― E ela a dar-lhe! Tem ânimo, Ângela! Já te disse que te dou outra pulseira. Sou muito rico, graças a Deus! Da ladra da moça eu te vingarei!
Ângela cobrou alento, ergueu a face, enxugou as lágrimas, e disse serenamente:
― Não prendas a criada que ela está inocente!
― quê?!
― Vitorina não roubou os brilhantes.
― Então quem diabo os roubou?
― Mandei-os eu vender.
― Tu?! P’ra quê? O dinheiro deles que lhe fizeste? – exclamou o marido, fazendo ambos os pés atrás, e tressuando novos repuxos de aflito suor. – Tu mentes, Ângela! Dizes isso para livrar a criada, não é verdade?
― A verdade é que Vitorina está inocente. Castiga-me a mim, se queres, que os brilhantes foram vendidos por minha ordem – tornou ela com admirável serenidade.
― Que fizeste ao dinheiro, tu? – ululou Fialho, sopesando com as mãos o arquejar do abdome.
― Gastei-o.
― Em quê? Não tinhas o que te era necessário?!
― Tinha; mas... gastei o dinheiro...
― Com quem? com quem? – tornou a perguntar. – Com dez milhões de diabos, com quem gastaste um conto e seiscentos e ...
― Não foi em coisas que me desonrassem, nem a ti...
― Então diz em que foi?
― Não posso.
― Não podes? Raios!... pois não podes? Então quem é que pode?
― Não posso.
― Arrebento! Tu não me cegues, mulher! Olha que eu já te não vejo nem enxergo! Com quem gastaste um conto e seiscentos e...
― Mata-me que te perdôo a morte – volveu ela tranqüilamente. – Morrerei sem remorsos nem vergonha. As jóias de minha mãe valem quatro a cinco contos de réis. Faz de conta que estás pago do roubo que te fiz: lá as tens. ― A história não é essa, não é o dinheiro... – replicou briosamente o marido. – O que se quer saber é a quem deste o capital?
― A quem o precisava para não ser infeliz.
― Essa é boa! Então deste um conto e seiscentos e cinqüenta mil réis de esmola?
― Dei.
― Mas a quem? a quem? com dez milhões de...
― Não te posso dizer mais nada, Hermenegildo... A criada está inocente. Não a prendas.
― Há de ir presa até dizer a quem deste o dinheiro ― Ela morrerá sem o dizer.
― Pois há de morrer... – vociferou Barrosas saltando e batendo com os dois pés em cheio no soalho. – E tu...
não sei o que será de ti...
― Mata-me que eu não tenho pena de deixar o mundo... – murmurou sossegadamente, mas debulhada em lágrimas, a pálida senhora.
Hermenegildo rolou a sua pessoa fumegante escadas a baixo. Entrou no escritório do administrador, chamou de parte a autoridade, e contou-lhe o ocorrido com a mulher, insinuando o magistrado a sacar da criada o segredo.
― O meu dever é aceitar as declarações voluntárias da criada – disse o administrador. – Não posso incutir-lhe terrores, nem devassar os segredos da vida doméstica de vossa senhoria. Se sua senhora diz que a criada está inocente, a confissão da ré não basta a destruir o depoimento da ama, sendo de mais a mais muito natural que os brilhantes se hajam vendido por consentimento de sua esposa; aliás, desde muito que ela teria dado pela falta. Enfim, sou obrigado a interrogar a ama e a crida, uma na presença da outra.
― Essa vergonha é que eu não quero! – obstou desabridamente o brasileiro.
― O interrogatório há de ser secreto: não há testemunhas que divulguem este ato impreterível de justiça –
contraveio a autoridade. – Se sua senhora disser de modo convincente: “a criada cumpriu as minhas ordens”, é certo que a moça não pode ser pronunciada, visto que obedeceu a sua ama; e os desvios dos bens comuns feitos pela esposa não é roubo, nem a cumplicidade da criada é punível. Se sua esposa foi burlada por algum industrioso, e quiser declarar-se, o meu dever é seguir o fio do enredo; mas o que eu não posso é interrogá-la sobre segredos da sua vida íntima. Isso pertence a vossa senhoria mediante processo de outra natureza...
― Então... afinal diz-me vossa senhoria que... – interrompeu o brasileiro, zangado.
― Que vou mandar chamar sua senhora...
― Pois chame! – bradou ele. – Este negócio há de aclarar-se... Não se me importa a vergonha nem o diabo! Eu sou um homem de bem, Sr. Administrador!
― Quem o duvida?
― Ninhos atrás das orelhas não mos fazem!
― Com razão...
― O meu dinheiro quero saber que fim levou...
― Essas averiguações é que são delicadas, Sr. Fialho, - aconselhou a autoridade. - E parecia-me razoável e prudente que vossa senhoria as guardasse para o secreto da sua casa.
― Mas ela não o diz!
― Se o não diz a vossa senhoria, menos o dirá a mim ou ao juiz...
― Diz que deu um conto e seiscentos e cinqüenta mil réis de esmolas! O senhor acredita isto?
― Acredito;... porque não? Se ela repartisse por todos os infelizes do Porto essa grande quantia, estou em que não chegaria um pinto a cada pobre.
― Mas então a criada que diga a quem levava as esmolas. Dá-me vossa senhoria licença que eu pergunte?
― Sim, senhor – respondeu o administrador, e, tangendo uma campainha, disse o oficial de diligencias:
― Essa mulher que entre aqui sozinha.
Entrou Vitorina.
― Responda ali a seu amo – disse a autoridade à presa.
Hermenegildo assoou-se, fez duas upas na cadeira, roçou no pavimento as espaciosas plantas, e rompeu neste interrogatório:
― quem roubou os brilhantes?
― Fui eu, senhor.
― Mentes! Os brilhantes foi tua ama que tos mandou vender!
Vitorina estremeceu, fitou o administrador, e gaguejou palavras imperceptíveis.
― Foi sua ama que mandou vender os brilhantes? – interveio a autoridade.
― Não, senhor... Fui eu que os... furtei.
E as lágrimas derivavam-lhe pelas faces copiosamente. “Esta mulher está inocente!” disse entre si o interrogador.
― Mentes, desavergonhada! – trovejou o Sr. Fialho, jogando com as catapultas dos braços à cara da criada.
― Levemos isto mais moderadamente, Sr. Barrosas, - admoestou o administrador. – ora diga-me, mulher, foi vossemecê mesma que vendeu os brilhantes?
Demorou-se Vitorina em responder:
― Fui, sim, meu senhor.
― A quem?
Repetiu-se a mesma tardança na resposta.
― A quem os vendeu? Aos ourives Mourões? – repetiu o funcionário.
― Sim, senhor.
― Todos?
― Sim, senhor.
― Está vossemecê mentindo. Os Mourões compraram três pedras a uma mulher, que provavelmente era vossemecê, e duas a um vizinho. Como explica vossemecê esta verdade com a sua mentira?
A mulher abafava com soluços.
― Seja verdadeira; vossemecê não roubou os brilhantes; vendeu-os por ordem de sua ama...
― Não, senhor – acudiu a criada com veemência.
― Não me desminta, que logo vai ser sua ama interrogada na sua presença, e ela mesma já disse ao Sr. Fialho que vossemecê não furtou a pulseira.
― O que eu quero – intermeteu-se o brasileiro – é saber a quem tua ama dava o dinheiro.
― Isso é que eu não quero saber enquanto sua senhora se não queixar de que foi lograda fraudulantamente –
emendou o administrador do bairro. – Já disse a vossa senhoria que esta repartição judiciária não é confessionário, nem entende com a moralidade dos atos domésticos, entre casados, enquanto eles se não queixam competentemente.
Da minha competência é saber como hei de enviar esta mulher ao juízo criminal. Ela teima que roubou os brilhantes;
a esposa de vossa senhoria declara que os mandou vender. O meu juízo está feito; mas...
― Então qual é o juízo do Sr. Administrador? – interrompeu o queixoso.
― É o juízo do Sr. Fialho.
― O meu?!
― Sim: o senhor diz que foi sua esposa quem mandou esta ou outra mulher vender as pedras; eu digo o mesmo.
― Mas quem me há de a mim dizer o caminho que levou o dinheiro? Um conto seiscentos e...
― Sua senhora, se quiser.
― Mas esta mulher sabe-o.
― Vossemecê sabe-o, mulher? - perguntou a autoridade sorrindo.
― O quê, meu senhor?
― Sabe o que aquele senhor deseja saber?
― Sabes a quem tua ama dava o dinheiro dos brilhantes? – perguntou o amo com estrondosos berros.
― Que brilhantes?
― Os brilhantes que ela te mandava vender.
― Não me mandou vender nada.
― Então roubaste-los tu?
― Sim, senhor.
Hermenegildo sobrepôs os braços um no outro, transversalmente apoiados no estômago, e começou a dar com eles de modo que tiravam um som de timpanites das cavernas subjacentes.
― Já viram pouca vergonha deste feitio? – gritava ele. – Veja vossa senhora se isto não é para endoudecer um homem!
E, levantando-se com prodigiosa rapidez, exclamou:
― Vou consultar, os meus amigos sobre o que devo fazer; vossa senhoria faça a sua obrigação. O negócio é muito sério. Hei de sair com honra desta tramóia. Sou um homem de bem. Quem quiser saber quem é Hermenegildo Fialho Barrosas, pergunte-o aí na praça do comércio do Porto.
― Sei que é honrado capitalista, Sr. Fialho! Quem lhe nega as suas excelentes qualidades?
― Vossa senhoria parece que está disposto a favor dos criminosos! – retorquiu o ricaço, esbofeteando uma mosca na testa.
― Quem são aqui os criminosos?
― Não sei! Não entendo esta balbúrdia! ― Sua senhora diz que mandara vender os brilhantes. Quer que ela seja enviada ao juízo criminal com o labéu de ladra? – volveu o administrador agastado.
― Não quero isso! Quero saber quem recebeu o dinheiro.
― Não posso esclarecê-lo.
― O dinheiro gastei-o eu – repetiu Vitorina.
― É o que vamos ver.
Disse, e tangeu de novo a campainha o funcionário, mandando o oficial que intimasse a Sr.ª D. Ângela a comparecer na administração.
― que vem ela cá fazer?! – exclamou Vitorina com aflição. – Minha ama não tem que fazer nesta casa!
― Cá se avenham! – disse o brasileiro, e saiu em cata dos seus amigos.
III
RETRATOS DO NATURAL
Os amigos do Sr. Fialho, àquela hora, estavam em grupo na calçada dos Clérigos, à porta do imaculado capitalista.
Hermenegildo chamou-os à sala do primeiro andar daquele prestante amigo dos brasileiros, e falou deste teor:
― Meus amigos velhos! Srs. Atanásio José da Silva, Pantaleão Mendes Guimarães e Joaquim Antônio Bernardo!...
Interrompa-se a apóstrofe, e desenhemos as proeminências morais características destes sujeitos invocados a conferir e alvidrar num pleito de honra.
O Sr. Atanásio tem quarenta e oito anos, é capitalista, casado, sócio que foi de molhados com o Sr. Fialho, bom vizinho, cidadão pacífico, e aos costumes disse nada. Porém, o povo reza que ele, apanhando em flagrante a esposa numa excursão filarmônica às esferas sonorosas com um caixeiro, tão duro e miúdo tocara o compasso no caixeiro com a batuta de uma tranca, que o rapaz expulso a coices chegou à terra natal e expirou oito dias depois, contando o segredo a sua família.
A esposa de Atanásio, depois de encerrar-se quinze dias no seu quarto, viu abrir-se a porta à força, fez o ato de contrição para morrer cristãmente, e ia expirar de pavor, quando o marido lhe abriu os braços e disse: “Estás perdoada; mas, se fazes outra, escavaco-te”. Desde então o porte desta senhora reduz as Fúlvias e Marcelas a condições indignas dos gabos históricos. Pecadora que passe por ela é visão que a enjoa e adoenta. As filhas, quando a escutam discretar em virtudes, cuidam que sua mãe é uma mulher da Bíblia.
Quanto a probidade mercantil, Atanásio José da Silva é contrabandista, e, algum tempo, ia mensalmente à estalagem da Ponta-da-Pedra, em três carruagens de recreio, com sua família e as famílias dos dois amigos presentes, receber cortes de seda, cambraias, rendas e pelames ingleses. Conforme à justiça e às manhas do Porto, a firma de Atanásio é das mais acreditadas na praça, e as gazetas, quando escrevem Atanásio José da Silva, antepõem-lhe ao nome os adjetivos honrado e probo; e, se acontece ir para Caldas ou praias com a mulher, vai sempre o “honrado capitalista com sua virtuosa esposa”.
Pantaleão Mendes Guimarães, quarenta e cinco anos, capitalista, armador, antigo negreiro e “engajador”
moderno. Há doze anos que uma frescassa loureira, chamada Francisca Ruiva, lhe coou filtros cupidíneos através das enxúndias do peito, e lhe atorresmou os toicinhos da alma. Pantaleão trasladou do bordel às alcatifas de sua casa a Ruiva saudosa do lundum chorado, investiu-a da governança da despensa, e mais tarde esposou-a, no intento de condecorar socialmente a lama que trouxera do alcouce. E, de feito, D. Francisca Mendes, neste ano de 1847, já logrou a satisfação de se ver também caluniada de “esposa virtuosa” nas gazetas.
Joaquim Antônio Bernardo, negociante por atacado de fazendas brancas, quarenta e um anos, estúpido perversíssimo, antigo gandaieiro, que passara uma doce mocidade subtraindo açúcar mascavo das caixas expostas no Terreiro do Paço, e atual irmão da Misericórdia do Porto e fiscal da mesma. Casou com a mais desbragada polha que deu a Maia, e arreou-a de veludos e cetins para a passear nas praças do Porto com a gáudio dum cornaca vaidoso que expõe o seu elefante ajaezado bizarramente. Esta Lais de trapeira, quando passa espeitorada, recende e trescala o fartum das excreções cutâneas.
Não obstante, a sua recâmara não inveja à de Lésbia o cevo de delícias em que a maiata, Circe digna dos javardos que a esfoçam, ganhou renome que bastaria a felicitar três colarejas. Esta dama já se viu, num periódico, em que se dava conta dum seu baile, nomeada de “ilustre e distinta”. Ambos os epítetos lhe quadravam, ocultos os substantivos. Não o tratavam de virtuosa, porque o localista receou que o termo, revendo ironia, lhe fechasse as portas do seguinte baile. Eis aqui muito em escorço esboçados os traços dos três amigos de Hermenegildo Fialho Barrosas.
Deixá-lo falar agora.
IV
TRIBUNAL DE HONRA
― Amigos e senhores – prosseguiu Fialho – a razão desta chamada vão vocês sabê-la!
― Você parece que está aflito, Sr. Hermenegildo?! – acudiu magoadamente Pantaleão.
― Se lhe parece!... É um caso de honra e que me há de atirar à cova!
― Ora deixe-se disso! – sobreveio Joaquim Bernardo. – Então os amigos para que servem? Aqui estamos física e moralmente para tudo que for preciso.
― Meus amigos! – volveu o marido de Ângela – acontece em minha casa o mais extraordinário caso que vocês ouviram...
― Como assim?! – interrompeu o marido de Francisca Ruiva.
― Negócio de mulheres!... Poucas vergonhas de mulheres!... Ainda há quem se case!... – esclareceu Fialho intercortando as palavras com uns suspiros que lhe subiam do estômago à mistura com os arrotos de bacalhau assado do almoço.
― De mulheres?! querem vocês ver!... – disse com espanto Atanásio José da Silva.
― Temos maroteira? – perguntou Pantaleão.
― Ouçam lá. Minha mulher vendeu cinco brilhantes da pulseira de casamento que eu lhe dei, e não diz o que fez a um conto seiscentos e cinqüenta mil réis sonante que recebeu pelos brilhantes. Aqui está o que eu tenho a dizer.
Os três conferentes levantaram-se a um tempo, cruzaram as mãos sobre os ossos sacros respectivos, e começaram a passear cada um para seu lado.
Quem primeiro parou e falou do seguinte modo foi o marido da maiata:
― Física e moralmente falando, sua mulher, amigo Hermenegildo, vendendo os brilhantes e dispondo do dinheiro, deve dizer o que lhe fez, por força ou por jeito. Eu cá por mim pegava dum arrocho, e dizia-lhe: “Ó minha amiga, você diz o que fez ao dinheiro, ou acaba-se aqui hoje o mundo!”
― Amigo Joaquim – contrariou Pantaleão. – Não voto por esse sistema, e queira perdoar. Vamos por partes. O
amigo Fialho desconfia de sua mulher?
― Eu?
― Sim: parece-lhe que ela doidejou e lhe fez alguma patifaria?
― Eu sei cá, homem!... Vejo isto!... Ah! Esquecia-me de dizer que ela diz que deu o dinheiro aos pobres...
― Bem me fio eu nisso! Essa não amolo eu! – refutou Pantaleão, bascolejando nas queixadas um riso galego. –
Aos pobres!...
― Também eu não a engulo! – concordou o irmão de misericórdia. – Que diga o nome dos pobres! Sim!
queremos saber quem são os pobres. Física e moralmente falando, se ela o não disser, está provado o crime.
― Isso está! – obtemperou Atanásio. – E cá, se a tratantada fosse comigo, era negócio feito, percebe você?
― Você que faria? – perguntou Fialho.
― Eu?! Eu?! Então você ainda me não conhece? Eu cá era dois pontapés, e rua, percebe você?
― Isso não são modos! – obstou Pantaleão Mendes Guimarães. – Amigo Fialho, você averigüe esse caso com vagar.
― Não tenho que averiguar! – recalcitrou o marido de Ângela. – É isto que lhes digo. Gastou o dinheiro e não diz em quê.
― Então, convento com ela! – alvitrou o prudente Guimarães. – Um homem de créditos faz isto. Os amigos digam agora o que entenderem.
― Eu – opinou Joaquim José Bernardo, descascando os rebordos das ventas infectas – física e moralmente falando, também vou para aí, atendendo a que é melhor não dar escândalo. Você administra-lhe de comer e beber no convento, e não quer mais saber dela.
― E se lhe puser demanda a mulher?! – lembrou Atanásio.
― Demanda? Ora essa!... – acudiu Joaquim Bernardo. – Demanda?
― Sim; vamos que ela pede metade da fortuna, ou o dote de trinta contos com que o amigo Fialho a dotou?
― O amigo Fialho não tem nada – respondeu triunfantemente o árbitro. – Tudo que ele tem é nosso por uma escritura de dívida. Você tem procuração dessa mulher?
― Tenho. ― Então que lhe pague com um trapo, física e...
― Pelo que ouço – interrompeu Fialho – vocês, amigos, decidem que minha mulher se porta mal...
― Pois isso! – confirmou Pantaleão. – Nem dado nem de graça! Você inda duvida?!
― Eu, como não tenho desconfiado nem visto nada...
― Pudera ver... – redargüiu o fiscal da Misericórdia.
― E vocês tem ouvido falar de minha mulher? – perguntou Fialho.
― Olhe, isto de falar, fala-se de todas – respondeu o marido da maiata. – Nem a minha tem escapado, cá por certos zunzuns que me chegaram aos ouvidos; mas vêm barrados cá p’ra mim, que eu sei quem tenho...
Pantaleão e Atanásio trocaram uns lances de olhos velhacos, em que Hermenegildo entrou com o seu contingente de fino maroto.
― Isso é verdade – apoiou o marido de Francisca Ruiva. – A gente, se for a dar ouvidos à canalha, está perdida com a sua vida. Um homem tem sempre rabos de palha. Mas eu ando tanto ao seguro cá a respeito da minha honra, que desafio o mais pintado a dizer de minha mulher isto ou aquilo.
Desta vez os olhos de Joaquim encontraram os de Atanásio, enquanto Fialho lá entre si dizia: “Estás arranjado com a virtude de tua mulher...”
― Meus amigos, - disse Atanásio a seu turno – isto é terra de calunias e aleivosias. A inveja vinga-se em nos ferir no mais sagrado de nossas almas. Aqui estou eu que...
O truculento homicida do caixeiro ia fazer o elogio da consorte, quando Barrosas bradou impacientemente:
― Então em que ficamos, senhores?
― Em que ficamos?! – perguntou Atanásio.
― Sim! Os amigos estão aí a palavrear em objetos que não vêm à colação. Ora que tenho eu que as suas mulheres sejam isto ou aquilo? Se são boas e virtuosas, dêem graças a Deus, e tratem de remediar este contratempo.
― Não tem razão de se agoniar, amigo Fialho – contrariou mansamente Pantaleão. – Isto veio ao caso de você perguntar se tínhamos ouvido falar de sua mulher...
― Mas ouviram? – acudiu arrebatado o esposo de Ângela.
― Eu não! – condisseram os três simultaneamente: - mas você bem sabe – ajuntou Joaquim Antônio, ressalvando melhor juízo – que a nós ninguém dizia nada porque sabem que o Fialho e nós somos carne e unha.
― Sim – obtemperou Pantaleão – pode ser que haja alguma coisa; mas pelo que eu sei não perde ela.
― Mas vocês entendem que o dinheiro não foi para esmolas... – repisou o marido incomodado.
― Sim, eu... – murmurou Joaquim.
― A falar a verdade... – disse outro.
― É muita esmola... – concluiu o terceiro.
― Não que o administrador disse que podia ser!... – sobreveio Fialho, casquinando uma risada gosmenta.
― O administrador é um asno! – definiu laconicamente Pantaleão.
― Asno e mais alguma coisa! – obtemperou Atanásio.
― E então dizem vocês – tornou o brasileiro – que eu devo meter já minha mulher num convento?
― Pudera... – apoiou o marido de Francisca Ruiva.
― Deve dar esse exemplo de moral pública! – confirmou o marido da maiata.
― E saber quem lhe comeu os brilhantes para se lhe dar cabo da casta! – adicionou o matador do caixeiro.
― E isto como há de ser? – volveu meditativo o interrogador dos honrados juizes de sua dignidade. – Eu não a quero ver mais diante de meus olhos!
― Também nos parece acertado isso... – conveio um dos três.
― Pois então, é mister que os meus amigos se encarreguem de lhe dizer que se recolha a um convento.
― Não me nego a servi-lo, Sr. Fialho, no que puder ser-lhe útil – disse magnanimamente Atanásio. – Os amigos conhecem-se nas ocasiões, percebe você? Quer então que vamos dizer a sua mulher que é preciso já já entrar num convento...
― Se ela não disser a quem deu o dinheiro, nomeando os pobres um a um... – condicionou Hermenegildo.
― Apoiado! – aprovou Atanásio. – Se o dinheiro se foi em esmolas, então o caso muda muito de figura, acho eu.
― Isso é verdade – consentiu o fiscal da Misericórdia; - mas é necessário que ela não torne a cair na asneira de dar tão grandes esmolas... que eu, amigos e senhores meus, ainda que ela me dissesse os nomes dos pobres, havia de por de quarentena a galga!... Enfim, lá vamos... Amigo Fialho, descanse em nós, e espere-nos aqui.
Saíram os mensageiros, e ficou entregue às consolações do afetuoso dono da casa o agoniado marido. V
CONSIDERAÇÕES PLÁSTICAS
D. Ângela já descia as escadas, encaminhando-se à administração, quando foi intimada a comparecer em juízo.
Pela primeira vez, em sua vida de vinte e seis anos, encarava um oficial de justiça, cujo semblante carregado e voz cavernosa a traspassou de susto. O esbirro caminhava de par com ela, dando ao ato uma solenidade policial que fez espanto nos lojista vizinhos. Alguns enviaram os marçanos na cola da pálida mulher de Fialho, e ficaram conjecturando, com variadas hipóteses, por que iria capturada a vizinha.
O administrador, ao ver Ângela, ergueu-se em respeitosa postura, postergando o estilo costumado nesta ordem de funcionários, cujo lance de olhos é sempre fulminante, denotando, nos vincos da fronte severa, a carranca da justiça que os anima e afeia.
Esta desusada urbanidade do magistrado pode explicá-la a beleza de Ângela. A condição dum administrador de bairro, no exercício de suas funções, não há aí compêndio de civilidade que a pula e amacie tanto como uns olhos meigos que obrigam a respeito e amor quando intentam somente pedir comiseração.
A esposa de Hermenegildo Fialho, se não era formosa para causar assombros, tinha direito a ser considerada uma das mais galantes esposas de brasileiros, os quais, naquele tempo, eram os usufrutuários mais ou menos exclusivos das peregrinas burguesas do Porto.
Ângela não era portuense, como oportunamente se dirá; mas, no rosado sadio da musculatura e redondez das formas, pertencia à espécie de beleza sólida e tanto ou que patriarcal que distinguia e avantajava, sobre todas, as senhoras da cidade eterna de há quinze anos para além. E, como vem de molde, deixarei aqui em estilo lamentoso uma saudade à memória daquela raça forte de mulheres quase extinta, e já hoje representada por suas filhas, dessoradas no ambiente impuro dos colégios, e adelgaçadas por uma alimentação francesa que lhes depauperou a opulência do sangue herdado.
Orvalharam-se-me, há dias, estes olhos, quando, passados anos de ausência do grande confluente das famílias do Porto, volvi às praias da Foz, e reconheci a custo as belas damas da minha mocidade. Fora de lisonja, eram ainda grandiosas reminiscências dos esplendores da formosura antiga, sem impedimento da superabundância de tecidos moles que lhes almofadavam as espáduas e quadris: o que, porém, entristecia era ver as filhas destas sadias mães.
Britânicamente esgrouviadas, delatando a magreza na aderência dos trajos aos ossos escarnados, as filhas das sebáceas belezas de 1850 assustam a alma devotada mais fervorosamente ao ideal; que a palidez e o osso não é o prisma por onde poetas costumam entrever as deslumbrantes coisas do céu.
Além doutras causas deste deplorável estiolamento da geração nova, insisto nas que já argüi: colégio e alimentação. O colégio em que o espírito atanazado pelo suplício lento da geografia, da história e da gramática, perde a seiva nativa, e refaz-se a expensas do corpo; de maneira que a idéia se enriquece ao passo que o músculo deteriora:
questão fundamental de fisiologia, que importa ser estudada nos tratadistas especiais. Quanto à alimentação, é sabido e notório o progresso perigoso da culinária portuense nestes últimos vinte anos. A cozinha tornou-se a antecâmara da sepultura. As intoxicações, causadas pelas especiarias, sobreexcedem a mortandade feita pelo verdete, pelos fósforos e pelo ácido prússico.
Ora é de saber que as mães destas meninas apenas aprenderam o necessário de leitura e escrita para sustentar uma correspondência honesta e parcimoniosa com os sujeitos adequados ao intento lícito da família e da procriação.
De espírito não consumiam coisa que lhes fizesse falta no corpo. A natureza florescia e frutificava desimpedidamente. Pode ser que a mulher ignorasse a forma do Globo e a situação geográfica da Abissínia; mas, em compensação, o rosado das faces e o alabastrino dos ombros pareciam estar pedindo asas para disputar formosura a uns anjos que vos encantam por entre as folhagens e festões dourados das catedrais. Razoável ignorância e sólida nutrição explicam a robustez daquela danosa plêiade de querubins portuenses que levavam os olhos do forasteiro.
Homem de Lisboa, que entrasse no teatro de S. João, recordava-se de S. Carlos como quem se lembra de ter visto aquelas almas brancas e lívidas das formidáveis visões do florentino; ao mesmo passo que os rostos carminados das filhas do norte realizavam o mais vivaz colorido do pincel flamengo.
Pois saibam que vai volatilizar-se da terra portuguesa essa raça de mulheres que nossos filhos já não hão de ver.
Eu não deploro este desaparecimento somente por que me sinto levado na corrente em que derivam as graças plásticas do meu tempo: esse egoísmo não cabe na minha alma. Lamento, sobretudo, a sorte dos meus netos, se eles tiveram bastante espírito para se não contentarem com o amor dos puros espíritos. Volvidos cinqüenta anos, neste andar, se a mulher assim continua a sutilizar-se, a conservação da espécie não me parece provável. A meu ver, o fim do mundo está-se anunciando na delgadeza, secura e descarnamento da fêmea. Virá uma geração em que mulher e homem se defrontem, não já para se quererem e amarem, se não para discutirem igualdade de direitos entre espírito e espírito, entre osso e osso. Chegado o gênero humano a essa extremidade, acabou-se este Globo, que me parece ser o mais ordinário de todos.
Não era, todavia, assim quando existiam mulheres como a do brasileiro Hermenegildo Fialho Barrosas.
Alta e refeita; cabelos castanhos; testa larga e escantuda; sobrolhos pretos; pálpebras amortecidas com aquele doce cansaço do sono irresistível; faces que as rosas não deixam ser trigueiras, mas que um primoroso apreciador do belo desejaria menos carminadas; beiços arqueados pelo molde da pequena boca, ainda pequena quando o riso mostra o esmalte dos dentes; pescoço alto, quebrando em ondulações de jaspe e torneios de espáduas e noutras ondulações que o cantor da Ilha dos Amores sabia descrever lindamente colhendo nos pomares as suas graciosas analogias: tal era Ângela. Tal era?! Que presunção! Quem soube aí descrever uma beleza mediana por maneira que vingasse retratá-la no espírito do leitor? E que direi da mulher que, à feição de Ângela, sobrelevava às de mais graças o realce dum suavíssimo colorido de candidez em que transluzia alma sublimada e cheia de poéticas tristezas!
Que admira, pois, que o administrador do bairro cortejasse com afável sombra a esposa de Fialho, sendo que, já de antemão, propendia a protegê-la das iras um tanto brutas do mazorral marido?
― Minha senhora – disse ele, mandando retirar os circunstantes, menos a criada – seu marido acusa esta mulher de lhe haver roubado uns brilhantes...
― Meu marido engana-se – interrompeu Ângela. – Os brilhantes, que a minha criada vendeu, fui eu quem os mandou vender.
― Mas a sua criada confessou ter sido ela quem...
― Já sei que ela confessou; mas não creia vossa senhoria senão o que eu lhe digo. Esta mulher está inocente.
Pode vossa senhoria mandá-la embora sem receio, que estou pronta a declarar por escrito que mandei vender os brilhantes da minha pulseira.
O funcionário sentia sinceramente não ter mais que fazer neste lance, em harmonia com o código administrativo. Quisera ele, com qualquer motivo judicial, prolongar a sua interferência nos negócios domésticos da linda criatura; mas não lhe ocorria coisa que lhe desculpasse a curiosidade, ou, mais exatamente, a fulminante ternura que o alvoroçara. Não obstante o acanhamento natural destas paixões de assalto, o bacharel, que não era já verde, e podia com a gravidade do aspecto honestar o intento, animou-se a entrar no mistério dos brilhantes com a seguinte pergunta:
― Vossa excelência tem bastante confiança no amor de seu marido?
Ângela pôs os brandos olhos no semblante do interrogador, silenciosa e desconfiada do intento de tal pergunta.
O administrador insistiu, esclarecendo:
― Pergunto eu, minha senhora, se, provada a inocência da sua criada, vossa excelência conseguirá explicar a venda dos brilhantes sem irritar o gênio de seu marido, motivando suspeitas...
Atalhou Ângela:
― Mandei vender os brilhantes para fazer bem a uma pessoa infeliz.
O funcionário receava transpor muito além a baliza do seu ofício, averiguando a espécie de filantropia que uma esposa honesta escondia de seu marido; mas o pecado da curiosidade, desculpado pela beleza da interrogada, esporeou-se até à indiscrição de perguntar-lhe:
― E essa pessoa infeliz é... é pessoa de quem seu marido possa... suspeitar... relações... menos louváveis?
Ângela doeu-se, ou, mais ao certo, pareceu corrida da pergunta, corando, e baixando os olhos silenciosa.
O administrador não instou, já convencido da impureza da caridade. Faltava sólida base para tal juízo; mas a malícia humana, se algumas vezes infama, adivinha outras. Desta vez, porém, o magistrado adivinhava apenas que naquele mistério o coração era grande parte.
― Bem – disse ele, violentando-se a respeitar o segredo alheio de sua alçada. – O que tenho averiguado é que vossa excelência mandou vender os seus brilhantes, e que a criada obedeceu às ordens de sua ama.
― Certamente.
― Pode portanto vossa excelência retirar-se, quando quiser, e a sua criada também. E estimarei – ajuntou ele com intencional mas delicada ironia – que vossa excelência consiga conciliar à sua boa ação a complacência do Sr.
Fialho.
Deu ares de o não perceber a pálida esposa do brasileiro. Ergueu-se, e saiu. A criada, limpando as lágrimas, acompanhou-a.
VI
AMIGOS DO SEU AMIGO Já Hermenegildo Fialho estava aflito com a demora dos três parlamentários enviados à esposa. Não cuidava ele que Ângela comparecesse na polícia, ou se havia esquecido de ter concordado com a autoridade sobre a urgência da acareação entre ama e criada.
A paciência dava-lhe empurrões. Caia aquele sujeito sobre as molas das otomanas flácidas e fazia ringir os aços.
Ressaltava com pasmosos saltos dum coxim para outro, e parecia tentar um suicídio por despejo da janela à calçada dos Clérigos, quando enxergou na Praça-nova Joaquim Antônio Bernardo, Pantaleão Mendes e Atanásio José da Silva.
Os solicitadores da honra de Fialho caminhavam à pressa e com ar de embezerrados. O brasileiro pregara os olhos neles, a ver se lhes lia alguma coisa nas fisionomias, cá do segundo andar onde os outros lhe viam a cara grande e escarlate como a lua dos teatros.
― O homem dá-lhe ataque apoplético! – disse Atanásio a Pantaleão.
― Asno será ele se lhe der algum ataque! – observou Joaquim Antônio, empregando a gramática e a filosofia do seu uso.
― Qual ataque nem qual diabo! – corroborou Pantaleão Mendes. – Um homem é um homem, sabe você, amigo Atanásio? E mulheres não faltam, física e moralmente falando. Haja dinheiro e saúde: o mais, regalório!
― Pois sim – redargüiu Atanásio, quando subiam a escada –; mas você não se vá pôr a dizer isto nem aquilo da mulher, percebe você? Conte o que se passou, e deixe obrar a natureza.
― Não me dê conselhos... – resmoneou Pantaleão. – Deixe o negócio por minha conta; que a honra dos meus amigos é como se fosse a minha.
Hermenegildo estava no topo da escada com os braços em cruz no costado, e o queixo debaixo caído e apoiado sobre o papo dos bócios.
― Então que há? – perguntou ele esgazeando pelas caras homogêneas dos três um relance de olhos penetrante.
― Vamos conversar – respondeu Pantaleão, levando-o de braço dado para a sala.
― Vocês tardaram tanto! – volveu o brasileiro.
― Estivemos à espera que a sua mulher se despachasse lá da polícia; depois, palavra puxa palavra, e deitou-nos a conferência a esta hora – explicou Atanásio, encarregando Pantaleão, por um gesto de cabeça, de ser o relator dos casos acontecidos.
O qual tirou do interior umas palavras, cortadas por pausas que davam à narrativa uns toques de seriedade, prejudicando o índole ridícula da cena.
― Senhor compadre – disse o marido de Francisca Ruiva. – Sua mulher não estava em casa; aqui o amigo Joaquim foi-lhe na peugada, e soubemos que ela tinha sido chamada à presença do administrador. Esperamos uma hora e pico. Nisto chegou ela e mais a criada. Estávamos sentados no banco do pátio, quando sua mulher deu conosco, e fez-se amarela como esse colete que você traz vestido. Erguemo-nos, fizemos-lhe as nossas cortesias, e disse eu que lhe queríamos uma palavrinha em particular. Mandou-nos subir, e chamou para dentro que nos abrissem a sala de visitas. Entramos, e daí a pouco chegou ela, assim com modos de quem se não importava muito conosco.
Sentou-se, e perguntou o que queríamos; não foi isto, amigo Atanásio?
― Tal e qual; é como você diz.
― Eu tomei a palavra, e disse que o meu honrado compadre e amigo velho Hermenegildo Fialho Barrosas nos mandara os três a fim de averiguar a quem a senhora D. Ângela deu um conto seiscentos e cinqüenta mil réis de esmola. E vai ela esteve um quase nada a pensar, e respondeu que me não dizia a mim nem a ninguém o que não tinha dito a seu homem, entende o amigo? Depois, aqui o nosso Atanásio tomou a palavra, e começou-lhe a dar práqui-prácolá, porque torna e deixa, a senhora deve confessar o que fez ao dinheiro, quem lho apanhou, que qualidade de pessoa era; porque as mulheres não podem dispor assim dos capitais dos seus homens, aliás ninguém pode contar com o que é seu; e de mais a mais dar um conto seiscentos e cinqüenta mil réis sem dizer a quem, era caso para desconfiar de certas coisas muito feias, etc., etc., etc. Enfim, o amigo Atanásio batalhou com ela, apertou-a por todos os lados, mas respondeu você, compadre? Não respondeu? Nem ela! Vai depois, o amigo Joaquim falou também com toda a prudência e cortesia, discorrendo a respeito da honra dum homem, e também não fez nada.
Enfim, como ela estivesse a ouvir sem responder uma nem duas, eu tomei a palavra, e disse que o senhor seu marido lhe ordenava que se recolhesse sem perda de tempo a um convento. Agora é que são elas! – prosseguiu Pantaleão Mendes batendo nas próprias pernas duas palmadas que soaram como se as ponderosas mãos batessem nas pernas dum Sileno de pedra. – Quem cuida você, compadre, que ela respondeu?! Que...
― Que não ia! – atalhou o brasileiro, careteando com os olhos e boca e nariz uma temerosa carranca de cólera.
― Isso mesmo! – conclamaram os três.
― “Não vou” – acrescentou o relator – “não vou para convento” disse ela. E disse mais: - “Meu marido tomou conta das jóias que eram de minha mãe; que fique lá com o dinheiro dos brilhantes, e que me mande o resto; se quiser mandar; se não quiser, que fique com tudo. Convento é que não”. Há de ir! Gritei eu; há de ir, que seu marido é quem governa na senhora. – “Não vou” teimou ela. Então que quer a senhora fazer, se seu homem a deixar, sem que comer, nem que beber, nem casa? – “Trabalharei para viver; e, se morrer de fome, Deus me dará o céu, porque morrerei honrada e inocente”. Foi o que ela me disse, e nós quedamos a olhar uns p'ros outros. Disse-lhe então o amigo Atanásio que dissesse a quem deu o dinheiro, se estava honrada e inocente.
― E vai ela... – acudiu o brasileiro, ansiadamente.
― Respondeu que só se confessava a Deus, que sabia a pureza do seu coração. Não foi isto, Sr. Atanásio?
― Sem tirar nem pôr.
― Tornei a fazer-lhe outra prédica – prosseguiu Pantaleão. – Disse-lhe tudo quanto me lembrou em termos comedidos, não sei se me entende? Não acreditei que ela fosse honrada e inocente por várias razões. Ouviu-me tudo com má cara, e pôs-se de pé, e disse que, se lhe não queríamos mais nada, que podíamos ir à nossa vida. Veja você que atrevida má criação a da tal senhora! Impor deste modo três amigos de seu marido, que iam ali tratar dum negócio muito sério! Coisa assim nunca me aconteceu na minha vida; e só pela honra dum amigo velho é que se pode tragar destes bocados! À vista disto, a nossa comissão estava acabada. Não tínhamos que fazer ali. Pegamos nos chapéus, e nas bengalas, e saímos. Aqui tem o acontecido. Você fará o quiser, compadre.
Hermenegildo começou a passear na sala, jogando de braços por maneira que parecia ensaiar-se com eles para esvoaçar. Os amigos contemplavam-no com umas caras tristes, quando um criado entrou com uma bandeja, na qual transparecia em cristais a opala de antiquíssimos vinhos, lardeados de marmelada, e outras frutas açucaradas que negaceavam o apetite. O bizarro dono da casa convidou os quatro atribulados a honrarem a sua garrafeira, e sem esforço obteve que todos, exceto Fialho, rebatessem os ímpetos da sua angústia com alguns tragos de licor que investe os ânimos de força reagente, e infunde estoicismo nas mais sandias almas.
― Compadre, beba deste – disse Atanásio sobpondo ao nariz do amigo aflito o cálix aromático.
― Tire isso p’ra lá! – refusou Fialho, sacudindo a cabeça, e fechando os olhos, talvez, à tentação. E
resmoneou, entre trágico e cômico:
― Se fosse veneno, metia-o no corpo...
― Não seja asno! – acudiu com hombridade Joaquim Antônio Bernardo – Pois você ainda está nessa!... Matarse por causa de mulheres! Está a ler o nosso homem! – ajuntou o marido da maiata, gargalhando com aplauso dos circunstantes, que bascolejavam o vinho e o riso entre as mandíbulas. – Engula esse nó que tem nas goelas, e beba, amigo Fialho! Mulheres!... Com que então você, com amigos e fortuna, era capaz de tomar veneno p’rá mor duma desaustinada de mulher que se portou mal! Ela que se mate, se quiser; e você viva regaladamente com cento e noventa contos que tem. Faça de conta que ela morreu, e trate de arranjar outra...
― Ou duas, que é melhor – emendou Atanásio.
― Ou três, que é mais peitoral – ampliou Pantaleão, pondo a mão suavemente nos gorgomilos por onde ia passando um damasco.
O dono da casa, invejoso do espírito dos seus amigos, acrescentou:
― Quatro, quatro, para não ser pernão... O dado é sete fêmeas para cada macho.
― Macho será você! – replicou Atanásio com a boca a disbordar de marmelada.
Eis aqui o caixilho lutuoso em que enquadrava a agonia de Hermenegildo. Por pouco não descambava em orgia o tribunal de homens congregados para julgar a desonra de Ângela e salvar a dignidade do marido. Falavam todos a um tempo, alvitrando planos tendentes a evitar que a esposa infiel tivesse parte nos haveres do brasileiro. Para poder entrar nesta seção importante com energia, Fialho sopeteou duas bolachas americanas num cálix do de 1805, e pôs a mão instintivamente no bucho aquecido, e capaz de competir em calor com o coração vizinho. Os amigos, fazendo-o beber segundo cálix, aplaudiam o seu triunfo, e juravam que, ao terceiro, a honra do seu amigo ficaria lavada como as goelas.
Após longos debates, em que todos falavam à mistura, convieram em que Fialho, como comerciante que era, se obrigasse por escritura a dividas excedentes ao valor dos seus bens imóveis, e desde logo alienasse os títulos bancários, e se cozesse com o dinheiro. A soberana razão que pôs os cinco alvitristas neste acordo, deve-se a Atanásio, o qual raciocinara desta laia:
― Amigo e compadre Fialho, não há que duvidar: sua mulher tem um homem a quem deu do dinheiro. Este homem há de aconselhá-la a separar-se de você para se dividirem os bens, percebe você? Se você os tiver, que remédio há senão reparti-los? O maior logro e castigo que você pode pregar a ela e mais ao patife é não ter nada que repartir. Hem?
A resposta geral foi um brado uníssono. E logo, no afogo do entusiasmo, sacrificaram a Quarta garrafa e uma bandeja de pastéis de Santa Clara.
― Mas se ela não quiser sair de casa? – perguntou Barrosas, acalmado o barulho.
― Você já não tem casa. A sua casa está vendida. Um de nós, quando o compadre quiser, vai tomar posse, e sua mulher recebe intimação judicial para despejo, percebe você? – respondeu enfaticamente Atanásio. ― Diz você bem, compadre – obtemperou Fialho – que eu tenho procuração dela em branco. Faz-se escritura da venda da casa. E nesse caso é preciso avisá-la que se mude quanto antes. Vamos ver se ela sai ao bem.
― Duvido; - atalhou Joaquim Antônio Bernardo – aquilo é mulher finória e soberba. Sem ser por justiça, não a põe o amigo fora de casa.
Continuaram debatendo questões jurídicas ao propósito, em que as sandices se disputavam primazia, até que, chegada a hora de jantar, Hermenegildo foi hospedar-se em casa do compadre, reservando para a reunião do dia seguinte o plano definitivo.
VII
REVELAÇÕES CÔMICAS
Às onze da noite daquele dia, Hermenegildo Fialho rebolava-se no enxergão de penas, e gemia uns gemidos que soavam como regougo de raposa. A comadre foi escutá-lo à porta, e veio dizer ao marido que o compadre estava a gemer de saudades da indigna mulher. Ajeitou-se à esposa escandalizada boa ocasião de cortar nas mulheres desleais; o marido, porém, que tinha, às vezes, conscienciosas brutalidades, tapou-lhe os respiradoiros da ira, murmurando:
― Cala-te, cala-te; e não me cantes tretas a mim...
A esposa encolheu-se; odiou mais do intimo o marido, e gozou o néctar dos deuses, o prazer da vingança antecipada, e a prelibação da vingança por vir. Ah! Atanásios, Atanásios!...
Ergueu-se o verdugo de caixeiros desonestos (Veja o cap. III) e foi ao quarto do hóspede.
― Que tem, compadre? – perguntou ele. – Não pode dormir? Estranha a cama, ou que é?
― É uma dor de barriga – respondeu o triste, apanhando nas mãos a parte dorida, e acocorando-se. – Fez-me mal o empadão das ostras. Dá-me você um bocado de Holanda, a ver se esmoo este diabo de marisco?
Fialho sugou na botija, e daí a pouco tinha esmoído o empadão, e rebentava-lhe tanta saúde pela cara fora que parecia desafiar todas as ostras do Sr. Bocage e perturbar-lhe o sono.
Mas o compadre, sentando-se-lhe na cama, perguntou:
― Quer você cavaco? Ainda agora deram as onze.
― Vá lá; vamos conversar, que eu estou espertinado.
― Você nunca desconfiou de sua mulher?
― Eu nunca.
― Não ia lá por casa ninguém...
― Nem alma viva, a não ser a costureira. Visitas foi coisa que nunca me entraram das portas p’ra dentro, afora você e mais a sua patroa.
― Mas no teatro...
― Teatro! tó carocha! Foi lugar onde nunca a levei...
― E na missa?
― Missa!... não era moda lá em minha casa... Você bem sabe que a gente lá no Brasil perde o pêlo. Logo que casei, disse-lhe que isto de missa era uma história. Ela ao princípio ficou estarrecida; mas foi-se afazendo. Compreilhe um oratório e dei-lho para que rezasse em casa, se quisesse. E o caso é que ela e mais a criada, aos domingos, fechavam-se no quarto duas horas a rezar ladainhas. Ora fiem-se lá nas mulheres rezadeiras!... Olhe você, compadre, se a religião não é uma patranha!
― Patranha! E que grande patranha!
― A sua mulher reza?
― Nem se sabe benzer, acho eu.
― Faz ela muito bem; mas vai à missa dos Congregados ao meio-dia, que eu já a tenho visto entrar na igreja.
― Vai por dar um passeio, e mais os pequenos, percebe você? Ora diga-me cá, compadre – continuou o previsto Atanásio, sem dar lugar a que o hóspede averiguasse coisas tendentes a provar que a mulher de seu amigo conciliava a pureza dos costumes com a ignorância do sinal da cruz – eu ouvi dizer, e sei com certeza, que você tinha seus amores fora de casa. Nunca lhe perguntei nada a tal respeito por se não oferecer ocasião; mas eu sei que você tinha em S. Roque da Lameira uma moçoila da sua terra, chamada Rosa; e outra na sua Quinta da Cruz da Regateira, chamada Benedita.
― Não lhe mentira. Confesso o meu pecado; mas dou-lhe a razão. Minha mulher não me tinha amor de casta nenhuma. Tratava-me como se trata um tio. Entrava e saía a semana sem me dar um beijo, nem se lhe importava que eu comesse ou não comesse. Você sabe que eu sou atreito a moléstia de fígado, e que só me sinto aliviado com papas de linhaça; pois ela mandava-me pôr as cataplasmas pelo galego! Diga-me se uma boa esposa consente que alguém ponha as cataplasmas em seu marido!... Um homem, quando anda pelos cinqüenta, precisa ser afagado, não é verdade?... É p’ra isso que eu me casei com uma rapariga pobre, apesar de ser fidalga, formando tenção de a deixar rica. Imagine você que ela nunca me fez um carinho. À minha beira estava sempre triste com a noite. Nunca se ria de chalaça que eu lhe dissesse; e depois que eu me deitava ficava ela duas horas a costurar, mais duas horas a rezar, e via-se mesmo que me aborrecia. Aqui tem você a razão por que eu trouxe da minha terra duas raparigas boas e bonitas que me amam com todo o afeto e choram quando se passam três dias sem eu lá ir.
― E sua mulher desconfiava?
― Sabia tudo, por que um brejeiro dum caixeiro, que eu pus fora, lho mandou contar numa carta.
― E ela que fez?
― Deu-me a carta, e disse que não tornasse a fazer os meus caixeiros sabedores dos meus desvarios.
― E não se zangou?
― Nada.
― Ora essa!...
― Pois se ela não me tinha amor nenhum!... Você não entendeu ainda?
― Agora percebo... Mais uma razão para termos a certeza de que ela fazia outro tanto.
― Pois isso é claro como a luz que nos está aluminando... Chegue-me daí a genebra, que estou com azia.
O brasileiro embocou a botija, gorgolejou três bons tragos, e prosseguiu:
― Se ela me tivesse amor, fazia o diabo em casa, logo que soubesse das minhas asneiras, não é verdade? Pois nunca me jogou a mais pequena chalaça a tal respeito!...
― Então não há que duvidar: – evidenciou Atanásio Mendes – sua mulher tinha com quem se distrair; e agora percebo eu como é que ela está inocente. Quer dizer na sua que está tão inocente como você, seu maganão!
Atanásio riu-se do chiste do próprio remoque.
― Pois sim – refletiu judiciosamente Fialho – mas você bem sabe que nós, os homens, não somos mulheres.
Elas tem outra casta de obrigações. Se a mulher for igual ao marido, então não há honra nem vergonha neste mundo, não acha?
― Diz bem, compadre; mas é que elas abusam do exemplo que os homens dão, percebe você?
― Isso também é verdade – concordou Hermenegildo, fechando o olho esquerdo.
― Você parece que quer dormir... – notou o hóspede.
― Sim, ele agora parece que chega – resmungou Fialho, fechando o olho direito.
Minutos depois, esta vítima deplorável da perversão dos costumes... roncava.
VIII
REVELAÇÕES TRISTES
Àquela hora alta da noite, Ângela, ajoelhada diante do santuário, pedia à Virgem que lhe inspirasse o melhor meio de cumprir os seus deveres na apertada situação em que se via.
O ar inocente desta mulher, que se ajoelha como infeliz sem culpa, deve tocar o ânimo de quem vai lendo isto, e já desde o começo do livro pende a desconfiar da virtude da esposa do brasileiro. É, pois, tempo de antepararmos da involuntária aleivosia a mulher pura.
Na margem direita do Lima, ergue-se por entre árvores seculares o antiquíssimo paço de Gondar, cujo décimooitavo senhor, no tempo da invasão francesa, era Simão de Noronha Barbosa, capitão de cavalaria, gentil e valente, em anos florentíssimos.
Ainda não tinha dezesseis quando amou a filha de um seu caseiro, com quem queria casar-se. Os parentes e o tutor debalde lhe antepuseram os estorvos da lei e ainda ordens expressas da regência. A mulher humilde chegou a ser-lhe arrebatada e presa; mas a passagem da onda revolucionária socavou às portas ferradas da cadeia de Ponte do Lima, e remessou-lhe aos braços a formosa encarcerada. Certo general de Napoleão mandou a um vigário que os casasse em sua presença e galardoou assim a devoção, talvez forçada, de capitão português ao leão de Austerlitz.
Simão de Noronha foi ferido mortalmente no recontro de Amarante. A esposa, que o acompanhava, quando o viu acutilado e moribundo entre as garras dos patriotas, que cevavam suas iras mais encarniçadamente nos jacobinos, morreu de puro terror, sufocada por um golfo de sangue. Era uma fidalga alma a daquela filha do povo!
A piedade dalguns populares salvou o capitão de ser arrastado nas ruas de Amarante.
Após seis meses de curativo, recolheu-se ao seu paço de Gondar, e levou consigo o esqueleto mal escarnado de sua mulher. Dias depois entrou num mosteiro, e amortalhou-se no hábito de noviço beneditino. Antes, porém, de findo o noviciado, Simão viu casualmente sua prima D. Maria d’Antas. Era uma senhora de formosura rara. Não direi que o rasgar o noviço o hábito fosse um preito digno desta notável dama; nem me espantaria que toda a congregação beneditina despisse as túnicas, e os frades se esmurraçassem por amor dela.
Mulheres assim aluiriam conventos, se lhes fosse consentido visitar os primos. Por um de seus cabelos arrastariam comunidades, e dum volver de olhos consumariam a empresa que não bastaram séculos a vingar.
D. Maria d’Antas, filha dum desembargador da suplicação, trouxera de Lisboa, aos vinte e cinco anos, o coração já derrancado. Os seus costumes e manhas não edificavam ninguém; mas endoideciam os mais guapos e galhardos fidalgos do Alto Minho. Além de bela e palavrosa, a fidalga d’Antas era guapa cavaleira, monteava lobos, matava patos bravos, e tinha de mulher, apenas, a cara, que ficaria bem num anjo, e as fraquezas que venceriam a rebeldia dos demônios.
Simão de Noronha, em 1812, já morava nos eu solar das margens do Lima. O esqueleto da esposa e o hábito de noviço eram apenas umas lembranças de infortúnios remotos. A casa ameada de Gondar recebia a luz e os aromas das Primaveras novas pelas rasgadas janelas onde, às vezes, aparecida uma mulher alta vestida de branco. Era D.
Maria d’Antas, não já esposa, mas prima, título respeitável com que ambos se abroquelavam da infamação. É, porém, de notar que nenhum se preocupava dos rumores públicos acerca daquele viverem sós e desligados doutros parentes sob o mesmo teto.
Devolvido oito anos, a calúnia já tinha mais onde morder. Maria d’Antas, sem pejo nem resguardo, aparecia com uma criança dum ano nos braços.
Mas esta criança, antes de perfazer dois anos, ficou sem mãe. As janelas do paço de Gondar fecharam-se outra vez. Simão de Noronha desapareceu, enquanto na igreja paroquial se entoavam os responsos à volta da essa de D.
Maria. A criança foi levada a Viana, onde vivia casada uma irmã do fidalgo. E o espanto geral dos vizinhos não desistiu de cavar na sepultura da formosa desvairada até descobrir que ela, numa vertigem de ciúme, fora estrangulada. Isto de cavar na campa da morta vem aqui figuradamente. Ninguém profanou a sepultura de D. Maria.
O caso execrando soube-se quando um morgado dos Arcos de Valdevez contou aos seus amigos, não sem fatuidade, que Simão de Noronha matara sua prima, instantes depois que encontrara entre moitas de roseiras um punhal com a firma dele revelador, que também era primo. Ora este punhal lhe saltara da algibeira da véstia castelhana, quando o fugitivo pulava da janela ao jardim Doze anos depois, Simão de Noronha desembarcava no Mindelo com a patente de coronel. Quarenta e seis anos teria: mas representava adiantada velhice.
Finda a guerra e reformado em general, o senhor de Gondar foi viver no seu arruinado palacete de Ponte do Lima, e não voltou à casa solarenga.
De longe a longe, parava à porta do general uma liteira, donde apeava, juntamente com sua criada já idosa, uma menina que contaria entre catorze e dezesseis anos. As pessoas, que tinham conhecido D. Maria d’Antas, decidiram logo que a bela hóspeda do general era filha daquela malograda dama e de Simão de Noronha. De feito, era a criança que treze anos antes havia, talvez, sido arrebatada dos braços de sua mãe pela mão que lhe afogara o nome no sangue da garganta.
Era Ângela.
Demorava-se a hóspede um dia em Ponte do Lima, e voltava com sua criada para Viana, onde residia querida extremosamente da irmã de seu pai.
O general não dava nem recebia carícias. A presença da filha não descondensava de sobre a alma dele as trevas da consciência que lhe escurentavam tudo. Às vezes quedava-se a contemplar Ângela largo espaço. Marejavam-selhe os olhos, e afundavam-se-lhe as rugas da fronte.
E que via Maria d’Antas na filha, e em si o algoz. Depois, afastava-se dela carrancudo e desabrido; por maneira que Ângela não visitava seu pai sem ser compelida. Cobrara-lhe medo antes de sentir no coração a ternura de filha.
E a do general por ela raros instantes entreluzia nas sombras do rosto carregado. De natural um tanto selvagem, piorado por infortúnios que endurecem a condição, o senhor de Gondar parecia-se com todos os pais que não viram crescer hora a hora os filhos, tanto mais entranhados n’alma quanto lá pungiu o susto de os perder. Deixar uma filha com dois meses, e voltar a tê-la de catorze anos, é como adotar uma criatura doutrem, é ter perdido o direito à consolação de amar ardentemente o ser que se formou ao calor de nossos beijos. Nesta compensação entra benefício de Deus: a não ser assim, bastaria o sangue para encher de súbito amor o coração. O sangue! Retrocede cem anos quem faz conta do sangue – extrato útil do bolo alimentar – no vínculo espiritual de pai e filho, aliança sacratíssima, que se faz de lágrimas e não de sangue.
Ângela, já suposta herdeira do general Noronha, era amada em dobro: formosa e rica. Amavam-na, pediam-na uns morgados que ela nunca tinha visto nem conhecido de nome. As solicitações por escrita ao misantropo velho não recebiam resposta. Ninguém ousava dirigir-se em pessoa a um homem que dizia aos criados; “não conheço ninguém”. D. Beatriz, a irmã do general, tinha sido a medianeira dos primeiros pretendentes. O pai de Ângela, no propósito de cortar futuras negociações, ordenou secamente a sua irmã que mudasse Ângela para a companhia de outra tia professa nas beneditinas de Viana, se a não queria solteira em sua casa.
E Ângela abençoava a resistência do pai. Não conhecia uns, e não amava nenhum dos fidalgos que três séculos antes porfiariam em merecê-la acutilando-se reciprocamente. Os mais destros e insofridos o que faziam era chover cartas de empenho a D. Beatriz de Noronha, e presentes ao agresso confessor daquela distinta beata.
Temos, portanto, donzela invulnerável? Ângela desmentirá a exuberante sensibilidade de sua mãe? Ou, namorada das visões beatíficas do cristianismo, suspira pela soledade do cenóbio?
Muito longe disto, e muito adentro das raias da natureza humana estava a peregrina Ângela.
IX
AMORES FATAIS
Amava um que se habituara a contemplá-la como o espírito devoto contempla uma escultura da Virgem Maria, e com respeitoso temor imagina que os olhos da imagem fixos nos seus tem raios de luz viva e transluzem amor e misericórdia do coração divino.
Era um estudante que se habilitava para cursar a escola médico-cirúrgica do Porto. Era cunhado do merceeiro que provia a casa de D. Beatriz. Era irmão da mulher que costurava os vestidos das fidalgas, e ensinara a bordar D.
Ângela. Chamava-se, curta e plebeiamente, Francisco José da Costa, e sabia que seu avô paterno tinha sido carpinteiro, e seu avô materno cozinheiro de um iate.
Ora um homem assim “mal-nascido” alguma jóia devia trazer preciosa dos inexauríveis tesouros de Deus.
Se nos ele sair bom e honrado coração, desculparemos a baixeza de instintos com que nos alvorece Ângela no seu primeiro amor.
A inocente não se escondia de D. Beatriz. Ensina a experiência que a candura e a indiscrição andam muito íntimas. A inocência ombreia com a inépcia. Não pode uma menina amar inocentemente senão as suas bonecas.
Amores doutra espécie, desajudados de esperteza e finura, desfecham em escândalo ou sandice.
D. Beatriz, devotíssima de S. José, que carpintejava, e de S. Pedro, que pescava, e de S. Marcos, que mesinhava enfermos, e de S. Lucas, que pintava, e de S. Mateus, cobrador de impostos, e de S. Cassiano, mestre-escola, e de S.
Teodoro, taverneiro – cristã a extremos de lavar os pés aos pobres em quinta-feira santa, - tranziu-se de horror frio quando teve a denúncia de que sua sobrinha amava o irmão de Joana Costa. A denúncia vinha justificada com uma carta dele, significativa de não ser a primeira, nem talvez a décima; porque o tratamento dado a uma filha de Simão de Noronha e de D. Maria d’Antas era... um tu!
D. Beatriz pôs as mãos convulsas nos olhos quando leu tu na primeira linha, tu a primeira sílaba da carta, uma entrada assim suja e escandalosa numa missiva de caderno numerado de uma a dez páginas! E não leu mais do que aquele tu, porque em seguida apanhou-lhe o flato as potências da alma, e ela ficou a escabujar tão-somente com a potência de braços e pernas.
Ângela acudiu; Vitorina, aquela criada que o leitor já conhece, lá estava, e, nas mãos desta, a carta.
― Veja isto, menina, veja isto! – murmurou Vitorina. – Tanto lhe pedi que não lhe escrevesse...
Ângela sumiu a carta no seio, e tomou nos braços a tia. Chamou-a, beijou-a, pediu-lhe perdão, desbulhou-se em lágrimas, e deu graças a Deus quando a velha mandou fazer uma infusão de erva cidreira para aplacar a tempestade dos nervos.
Depois do que D. Beatriz obrigou a sobrinha a contar-lhe pelo miúdo a origem da sua correspondência com o irmão da costureira. Via-se a menina enleada para referir o mais singelo da história, que era a origem; mas a velha insistia em perguntar:
― Como foi o princípio disso?
― O princípio... foi... foi... eu vê-lo... – respondeu Ângela muito apertada.
Este começar a história dum primeiro e talvez eterno amor tem a sublimidade simples da origem do Universo, referida por Moisés: “No princípio era o Verbo”; com a diferença que o principiar de Ângela entende-se melhor.
― Então tu... – objetou a tia entre irônica e severa – viste-o, olhaste para ele, e mais nada... ficaste apaixonada!... Com efeito!... Eu ainda não me infirmei bem na cara desse sarrafaçal; mas, pela idéia que tenho, ele tem uma figura muito reles! Tu não sabias – continuou D. Beatriz, espiritando-se com uma pitada de vinagrinho –
não sabias que ele é irmão da Joana, e cunhado do Zé tendeiro? E que o pai dele era sacristão da Senhora da Agonia, e que a mãe trabalhava com os bilros? Sabias isto?
― Sabia... ― Sabias?! Quem to disse?
― Foi ele.
― Foi ele mesmo?! O tal Francisco?
― Sim, minha senhora.
― Então tu falavas-lhe?
― Não, minha senhora... Escrevia-me ele.
― E contou-te de quem era filho!... É extraordinária a sinceridade!... E para que fim te contava ele essas coisas que deviam fazer-te cair na razão da tua indigna escolha?
― Contava-me estas coisas para que ninguém mas contasse antes dele.
― Então o rapazola tinha orgulho em ser filho do sacristão?... Bem sei... são as idéias que cá trouxe a liberdade... Deus perdoe a teu pai, que também ajudou a fazer gente os netos dos carpinteiros e dos cozinheiros dos iates... Oxalá que ele não pague... Vamos ao caso... E tu, apesar do Francisco da Joana te dizer quem era, não mudaste de idéia?
― Não minha senhora...
― Continuavas a querer-lhe...
― Sim, minha tia.
― E com que fim? Querias casar com ele?
― Se me deixassem, casaria.
― Ora não sejas infame! – bradou a tia, cerrando os punhos, e resfolegando tão irada que o tabaco lhe espirrava em granizo das ventas arquejantes – não sejas infame, Ângela! – repetiu ela, resistindo ao flato que já lhe emperrava a língua. – Não és minha sobrinha, não és filha de Simão de Noronha... De Maria d'Antas creio eu bem que sejas filha...
A última espécie do insulto foi vociferada com rancoroso sarcasmo: Ângela não o percebeu.
― Com que então, se te deixassem, casarias com o cunhado do Zé tendeiro!... – repetiu a velha acentuando com crispações de riso aspérrimo aquele Zé, elidindo a primeira silaba para engrandecer a ignomínia do nome.
Ângela ouvia em silencio e lagrimosa as invectivas da velha, cortadas de frouxos nervoso. De súbito, D.
Beatriz, circunvagando pelo sobrado o olho direito armado da luneta, exclamou:
― Que é da carta que eu tinha aqui? Que é da carta?
― Aqui está – disse mansamente Ângela, apresentando-lha.
― Querias lê-la, não é assim?! – gritou a velha, tirando-lha da mão com arremesso. – Vai perguntar à criada que ma trouxe se ela quereria casar com o Francisco da Joana...
E, abrindo-a em tremuras de raiva, pôs a luneta e bradou:
― Tu!... Olha isto, filha de Simão de Noronha! Tu... O neto do cozinheiro dá tu à filha do décimo oitavo senhor do paço de Gondar!... Não te envergonhas, Ângela!... Consentiste em semelhante insulto a tua mãe, que era das mais distintas famílias de Portugal?
Como a filha de Maria d’Antas não respondesse, D. Beatriz gesticulou de ombros e cabeça em ar de assombrada, repôs a luneta no olho fundo e mirrado, e leu mentalmente, fazendo esgares com os queixos, ao passo que um novo tu lhe descompunha o aparelho nervoso. Muito é, porém, de notar-se que da leitura da segunda página em diante o rosto da velha denotava espanto sem ira, sem carrancas, sem intermitências de suspiros e ais. Um período especialmente a impressionou de feição que voltou terceira vez a lê-lo, compassando o entendimento de cada frase com um gesto afirmativo de cabeça. A passagem dizia assim:
“Não nos iludamos, minha boa amiga. Pode ser que Deus aproximasse as nossas almas; pode ser; mas, se elas houverem de se encontrar e unir, há de ser na presença de quem as criou, - no céu. Neste mundo, é impossível; e, se fosse possível, a sociedade te obrigaria a chorar rios de lágrimas, e eu mesmo chegaria a sentir o tormento do remorso por ter assassinado as alegrias do teu destino, e destruído as modestas aspirações do meu. Desde que comecei a adorar o que em ti há divino, nem uma hora só entrou em minha alma o pensamento de te ver minha esposa. Era escusado que minha boa irmã estivesse sempre a medir a distância que nos separa. Bem viste que eu ta mostrei na segunda carta que te escrevi; e Deus sabe que eu chorava quando parecia rir da humildade de meu pai, que era um respeitável velho muito pobre, muito resignado, e muito feliz. A grande herança que ele me deixou foi a certeza de que há pobres felizes. Conheço que minha mocidade já não vai encaminhada pela trilha da de meu pai. Ele ignorava tudo, exceto os artigos da fé que atam as tristezas transitórias desta vida aos eternos contentamentos doutra:
eu estudo há seis anos, penso e aflijo-me em terríveis dúvidas; e, se creio nalguma coisa santa, é porque comparo a felicidade de meu ignorante pai com as dolorosas inquietações do meu espírito. Mas a ti que importa isto, minha adorada amiga? Que impertinentes cartas te escrevi nestas noites tão compridas e veladas! E que pesar me fica se elas te enfadam, cuidando eu que tens lá também noites sem dormir, e amizade bastante para aceitar as confidências do pobre solitário!...” D. Beatriz deixou cair o braço que sustinha o papel, desarmou o olho cansado, e perguntou:
― Ele é quem ditou isto?
― Isto quê, minha tia?
― Esta carta... Não creio que ele saiba dizer estas coisas... Não pode ser... Alguém lhe faz as cartas... Nada... O
Francisco da Joana, com aquela cara de bruto que tem, não ideava assim umas idéias tão discretas. Aqui anda sancadilha armada à tua inocência, Ângela. Há velhaco escondido neste negócio!... Sabes o que é, tola?... O rapaz pensa que te prende com a confissão da sua humildade. Pouco mais ou menos aconteceu isso comigo, quando eu era da tua idade; e mais o meu pretendente era um doutor, filho do juiz de fora de Ponte. Também me veio com estas cantigas da desigualdade dos nossos nascimentos; e eu, a falar-te verdade, ia-me deixando levar, e não sei onde chegaria a minha loucura, se teu avô do pé p’rá mão não me escolhe marido conveniente. Casei, e daí a quinze dias já nem me lembrava o outro; só quando o vi passados anos, muito gordo e nédio, é que me lembrei do palavreado dele.
(D. Beatriz contava o caso expedindo uns espirros de riso gosmento). Dizia o velhacório que o seu último dia seria aquele em que me visse ligada a outro coração; e, ainda na véspera de me casar, me fez verter grossas bagadas sobre o papel em que me escrevia que o sangue lhe saía em borbotões pela boca. Depois, quando o vi muito barrigudo, casado com outra barriguda de feitio e da casta dele, pegou-me uma vontade de rir, que ainda agora não posso ter mão que me não doam as ilhargas!...
E casquinava de modo a humorística velhinha que Ângela ria também do irresistível grotesco de sua tia recordando tão comicamente os seus virginais amores.
― Pois convence-te, menina – volveu a fidalga, revertendo a custo à seriedade do ato – que estás passando pelo que passei; mas este cá me quer parecer mais manhoso do que o outro. Tem mais lábia. Vem cá com estas coisas dos artigos da fé, que rezava o pai... Pudera não! Ou ele não fosse sacristão!... Aposto eu que o filho não sabe o Padre Nosso! Se o pai era feliz na sua baixa posição, porque não vai ele para o lugar do pai? Eu já disse ao Zé tendeiro que se deixasse de o mandar estudar no Porto; que o metesse num ofício. E ele quem lhe deu dinheiro para seguir os estudos de cirurgião, ou médico, ou lá do que é? O cunhado quanto tem quanto me deve. Emprestei-lhe um conto de réis, a juro há três anos, e paga-me em arroz e bacalhau. Nem daqui a vinte anos me tem pago. Ora não há!
– continuou a credora do merceeiro aguçando a voz em iracundo falsete – se eu via minha sobrinha casada com um lapuz, que ainda há anos andava por aí a jogar a pedrada no cais! Onde foi ele aprender este palavreado!... Nada...
isto é dalgum finório que esperava ganhar alguma coisa se caísse o raio na minha família. Não há de cair! – bradou ela batendo com os ossos do pulso no capacho de palha em que encruzara as pernas. – Não há de cair, enquanto eu for viva! Teu pai não te quer casar? Eu te casarei! Escolhe. Tens cinco pretendentes. Um da casa de Paço-vedro;
outro da Passagem; outro de Aborim; outro de Aguião; outro de Azevedo; outro de... quem é o outro?
― Não sei, minha tia; nem quero saber, porque não caso com nenhum.
― Não casas com nenhum?! – assobiou a velha erguendo-se duas polegadas de salto acima do capacho.
― Não, minha senhora.
― Não?!... Vou escrever a teu pai! Ele te obrigará!
― Meu pai não quer que eu case com algum desses que a tia nomeou.
― Não? Mas eu vou dizer-lhe que há um pretendente mais moderno: o Francisco do sacristão. Pode ser que ele queira este. O negócio vai arranjar-se. Queres que lhe de parte do novo arranjo? Responde: isto é pedir de boca. Teu pai deve querer que o décimo nono senhor do Paço de Gondar seja neto do sacristão da Senhora da Agonia. Tem vergonha! Tem vergonha! – rebramiu a velha, erguendo-se de ímpeto, e bradando a Vitorina que lhe trouxesse mais chá de cidreira.
X
O POETA
D. Beatriz injuriara cruelmente Francisco José da Costa; mas não conseguira envenenar com a dúvida a coração de Ângela.
A corajosa menina, livre da velha, que adormecera quabrantada de insultos nervosos, fechou-se a ler as cartas do moço, e a escrever-lhe a noticia das tribulações daquele dia. Atraiçoada pela medianeira da correspondência, suplicou a Vitorina que fizesse entregar aquela carta, prometendo-lhe ser a última. Condoeu-se a criada, movida também pela esperança de ver terminado o funesto namoro, prenúncio de maiores desgraças. Foi ela propriamente entregar a carta, e pedir a Francisco da Costa que saísse de Viana, se não queria que a menina perdesse o amor de sua tia, e, pior ainda, a proteção do pai. Ainda assim, os dizeres da carta desdiziam dos rogos da criada. Ângela pedia-lhe amor e animo, paciência e esperança, jurando morrer antes de sucumbir a um casamento violentado. O estudante esperou alguns minutos que as lágrimas o desafogasse, e, escrevendo, pedia perdão a Ângela da sua covardia. “Sou covarde – escrevia ele – porque fujo; covarde porque me não atrevo a ver o rosto da infelicidade que te ameaça. Vou sair de Viana. Quando souber que o meu nome passou do desprezo ao esquecimento de tua tia, voltarei. Se te encontrar tranqüila, não perturbarei o teu sossego. Para eu te adorar, como até aqui, em todas as situações estarás bem, minha amiga. Ainda ligada a outro homem, eu saberei separar o anjo da mulher. O que eu não quero, nem posso, é tirar-te o nome, o prestígio, o amparo e a honra que só é visível enquanto a consideração pública a proclama ou finge reconhecer...”
― Ele não me ama! – disse, entre soluços, D. Ângela a Vitorina. – Não me ama, e eu hei de ser muito desgraçada por amor dele!...
A criada louvava-se a si do conselho, e agradecia a Deus a honrada determinação do estudante, dando como terminado o lance em que o belo e rico futuro da sua menina corria perigo. Ângela, todavia, asseverava que tudo estava perdido para ela, e que só lhe restava reduzir-se à extrema pobreza e desvalimento do pai, a ver se assim o homem pobre e plebeu a queria para esposa.
Este plano, se viesse a realizar-se, era original, a meu ver; mas não sei que fados esquerdos se atravessam aos projetos épicos em matéria de casamento, se a poesia depende de uma casinha colmada, à ourela de um regato, com seis pés de couve na horta, e por cima lua, sol, estrelas e ar à discrição. A culpa de se malograrem estes sublimes intentos quem na tem é a sociedade, esta prosa derreada do gentio comum que assim que vêem pomba a librar-se três metros acima da lama, apedrejam-na, desasam-na, dão com ela em terra. É desgraça! Mulheres distintas com amores distintos é mister inventá-las. E maior desgraça ainda: as heroínas que se admiram e aplaudem no romance e no drama, seriam assobiadas, se tal gênero de pensar e viver se encarnasse em sinceras heroínas na vida real.
Ângela seria capaz de descer até nivelar-se com o irmão da Joana costureira; mas não a deixaram. Privaram-na de estremar-se do vulgar. Compeliram-na por maneira as circunstancias que não há aí maior rebaixamento onde pudesse ir sopesada uma alma primorosa em finezas de amor.
Vamos ver o que este mundo faz das mulheres que transcendem a craveira comum.
D. Beatriz, aconselhada pelo seu confessor, escreveu ao irmão precavendo-o contra a inclinação amorosa de sua filha, sem esconder o nome e a geração vilíssima do inquietador de Ângela. Por sua parte, a fidalga declinava de si a responsabilidade de alguma conseqüente ignominia de família, admoestando o general a que levasse Ângela para sua casa, e lhe insinuasse com o preceito sentimentos de dignidade e faro mais senhoril na escolha dos maridos. Esta linguagem metafórica devia ser do frade confessor. Só um egresso, descassado das boas práticas de sala, daria a uma senhora faro na escolha de maridos, assim à guisa de perdigueira de dois narizes que fareja a volataria.
Simão Barbosa não se assanhou. Respondeu placidamente que transferisse Ângela para o convento, e lhe fizesse saber que a rebeldia lhe redundava em passar da condição de senhora à de criada. “eu não sei bem de quem ela é filha. Apenas lhe conheci a mãe”. Este homem, escrito isto, devia acrescentar: “Eu deveras não sou pai dessa mulher, porque pude escrever esta resposta sem sentir o mínimo abalo de ódio ou de piedade. Se me dissessem que ela tinha casado com o filho do sacristão, daria ordem a um lacaio que os enxotasse da minha porta com um tagante”. Era o ermo, o tédio, a doença, a irreligião, a covardia em aniquilar-se, que empedravam o coração do general.
Uma hora, em certa noite, dezassete anos antes... hora negra foi essa que lhe enoitou a vida inteira. Ululava-lhe desde essa hora nos ouvidos um grito de garganta abafada. Nenhum rir de festa, nenhum gemer de infelizes, nenhuma aurora de paz vingou mais distraí-lo daquela noite, e do som final de uma corda de vida que lhe estalou entre os dedos.
Quando Ângela recebeu as ordens de seu pai, já Francisco da Costa ia caminho do Porto.
Mas que homem é este? Que idade tem? Que figura? Que despropósito de coração é esse que se escusa com feminil pavor a fazer rosto à desgraça, raras vezes vencedora, se a paixão braveja e se esbraseia num formidável “quero”?
Francisco José da Costa, vai em vinte e dois anos. Não se recomenda por gentileza, posto que lhe sobejem graças estimáveis. Basta-lhe os olhos negros e a tristeza, a palidez e o nunca sorrir-se. É poeta; mas as suas estrofes não se imprimem; são lágrimas; e desconhecidas, porque ninguém o viu chorar. Estuda desde os treze anos com inteligência precoce. A mente de seu pai era faze-lo frade em ordem pobre; mas o mocinho esperava que o seu estudo lhe valesse formatura gratuita em Coimbra.
Mudadas as instituições políticas, e falecido seu pai, Francisco aceitou as sopas oferecidas por seu cunhado, merceeiro escasso de posses, e sempre infeliz nas empresas comerciais. José Maria dos Santos, como não tivesse filhos, prometia cortar pelas precisões domésticas para formar o cunhado na escola médico-cirúrgica do Porto. Esta dependência mortificava o estudante, não por índole rebelde à gratidão, senão que via sua irmã afadigada no labor da costura para auxiliar as despesas no Porto.
Joana era a mais doce e resignada criatura que ainda a Providência deparou no seio de uma família mal sorteada dos bens deste mundo. Seu marido tinha quarenta e seis anos, e ela vinte e três. Não distinguireis entre a filha extremosa e consorte desvelada. Acariciava-o e respeitava-o como a pai. Não sabemos que grau marcava a temperatura do seu amor de esposa: o certo é que José Maria, golpeado de reveses no seu negócio, dizia que Deus o compensava sem medida, premiando-o com o oiro do coração de sua mulher, em exemplo de paciência, suprema riqueza do pobre, moeda sagrada com que se negoceia o céu.
Francisco adorava sua irmã; todavia, para estar triste, escondia-se dela. Joana queria que todos agradecessem a Deus, quando se levantavam com saúde, e se ajuntavam à volta da mesa do almoço. Se via triste o marido ou irmão, dizia: “Sois ingratos ao Senhor. Se um de nós adoecesse, e a doença fosse mortal, com que saudades nos lembraríamos destes dias tão quietos, tão felizes! Pensai na tristeza da família onde morreu um irmão; pensai na casa onde há fome e frio, e dizei-me se não é ingratidão e pecado uma tristeza causada não sei porque!”
Quem primeiro revelou a Francisco o amor de Ângela foi Joana. Acabou de lhe contar a confidencia da fidalga, e disse:
― Agora, Francisco, é necessário que vás para o Porto, embora a aula se abra em outubro. Deixa que o tempo desfaça esta criancice da D. Ângela. Eu disse-lhe o que devia: mas ela respondeu-me que havia de ser tua esposa, se a tu amasses. Já viste inocência assim? Eu fiquei espantada a olhar para a menina, e de repente passou-me pelo espírito uma nuvem negra. Deus me livre que tu, meu querido irmão, não pudesses vencer-te, se chegasses a imaginar possível casar com a filha do general Noronha, com a sobrinha de D. Beatriz, tão soberba da sua fidalguia!
Francisco escutou sem assombro e sem interrompê-la a extensa revelação de Joana. Passados momentos de serena reflexão, disse:
― Eu sabia isso...; ainda assim, dás-me uma triste novidade.
― Sabia-lo? Por quem?!
― Por mim. Tinha-mo dito a minha alma. Eu pensava nela... – vê que doidice! – pensava em Ângela imaginando a felicidade do homem que ela amasse. Era uma inveja que me envergonhava, por isso ta não confessei.
Até de mim a quisera eu esconder; mas o absurdo lutava com o absurdo, e não sei quem venceu... Um dia sonhei que a via chorando, e acordei a chorar. Deste este momento, senti que adorava Ângela. Isto foi há três anos, lembras-te?
Fui para o Porto, e lá fiquei todo ano. Quando voltei e a vi, desejei morrer. Um dia entrou-me no coração a certeza de que era amado... Por quem? perguntas tu, Joana; e bem vejo que estás sorrindo da vaidade do teu pobre irmão!... eu te digo como foi... Estávamos na igreja matriz, nas trevas do sábado santo. Eu sabia em que teia de altar ela tinha ajoelhado; mas entrevia-lhe escassamente o vulto. Ao tanger da campainha, fez-se a claridade súbita no templo, e vi os olhos dela cravados nos meus, que se abaixaram respeitosos. Sabes tu que delírio de piedade me assalteou?
Ajoelhei, quando todos se levantavam e davam boas-festas. Ajoelhei no maior sombrio da nave... e chorei. Aqui tens a revelação que os olhos de Ângela ensinavam à minha alma... Que pensas tu agora de mim? – prosseguiu o moço, após longa pausa de reconcentração. – Receias que eu apareça diante de Ângela com o colo erguido pela vaidade de ser amado? Cuidarás que eu principiei a acastelar ilusões por esse céu além, e a descer delas para o paradoxo dum casamento? Mal me conheces então, Joana! Vê se me compreendes isto... Acho sempre o teu espírito aberto a certas coisas confusas que eu digo, e não sei dizer mais inteligivelmente. Olha, minha irmã, eu não sei se o estudo envelhece o coração; figura-se-me que sim. A alma não; que essa é imortal, inalterável e inviolável à destruição do tempo. Em mim conheço o coração atrofiado, e a alma viventissima. Como homem de alma adoro Ângela, ilumino-a à luz que radia das minhas crenças em Deus. Como homem de coração não a sacrificaria, nem me sacrificaria.
Impulso que me arroje a querê-la ouvir dizer que me ama não o sinto; desejo de encontrar aquela bela imagem, no silêncio do espaço em que a tenho visto nas minhas noites de vigília, entender os murmúrios que ressoam o seu nome, vesti-la das aéreas roupagens que sonhou a exaltada poesia do oriente, é isso, é isso o meu amar, o meu delirar, a minha inofensiva vertigem, que não tem nada que ver com o nascimento, nem com os haveres de Ângela.
Não sei quem é, não conheço, não quero conhecer a filha do general Noronha, a rica herdeira, a fidalga que tem no seu paço de Gondar retratos de avós que fundaram a monarquia portuguesa. Quem eu conheço e adoro é uma mulher que se chama Ângela, que tem no rosto uma luz celestial, e essa luz ma representa de geração divina. Ali há sinal de origem mais alta. Eu vou buscar-lha no céu; não a procuro na fundação da monarquia. Porque receias tu, então, que eu perturbe o sossego da fidalga opulenta, se eu não lhe quero nem os brasões nem o oiro? Pode ela dar-me a alma sem lesar os seus pergaminhos nem declinar o direito de suceder nos castelos dos senhores feudais seus avós? Pode.
Então, minha irmã, deixa ao pobre sonhador a sua inocente felicidade, e faz de conta que o defensor de Ângela não é o anjo da guarda, sou eu.
XI
SONHOS E ESPERANÇAS Como foi que a vigilância dos dois anjos-custódios de Ângela deixaram passar a primeira carta?
Denunciaremos à moral pública certa fragilidade do estudante.
O escrever-lhe não constava do programa; nem isso era mister para homem que se abastava com o ideal encontro no silêncio das noites estreladas. E, de feito, ele não escrevia cartas à imitação de umas que o vulgo mais seleto escreve, e suja e profana nas mãos encodeadas dum aguadeiro.
Francisco, no calado da noite, voltava contemplativo e vagaroso da costa marítima, ou descia dos pinhais cerrados de Agra. Aquelas noites estivas da gentilíssima Niana, que se reclina à beira-mar, sob um pavilhão de verdura, e se remira no espelho do seu Lima, são noites para poetas, e poetas se fazem ali súbito inflamados por tantas maravilhas da natureza, raro cumuladas num só paraíso. Debaixo de céu tão inspirativo, e terra tão espontânea de murmúrios, de músicas, de perfumes, de silêncios que se entendem e ouvem no coração, ali, onde não se faz mister a forma para adorar a idéia, é que o poeta de Ângela adorava idéia e forma também, apesar dos seus incorpóreos devaneamentos.
Na volta da montanha ou das ribas do mar, continuava os sonhos, à lâmpada do seu quarto, e escrevia-os, justamente num caderno com frontispício que dizia SONHOS.
O merceeiro viu, uma vez, a costaneira com o estranho título; abriu-a, leu duas linhas, fechou-a como os filólogos modernos em consciência deviam fechar os códices coptas, e disse à esposa:
― Teu irmão está ali, está doido. Escreve de dia os sonhos que tem de noite. Pobre moço!
Joana foi ver também. Leu e entendeu muito pela rama.
Aconteceu perguntar D. Ângela à sua mestra de bordar o que fazia o irmão, quando não lia.
― Escreve num grande livro em branco uma coisa chamada SONHOS – respondeu Joana.
A fidalga pediu, rogou e suplicou à costureira que lhos deixasse ver.
Joana hesitou muitos dias em denunciar a sua curiosidade a Francisco; todavia, importunada por Ângela, referiu ao irmão a sua imprudência.
Fraqueza congenial do homem! Teve o rapaz uns assomos de júbilo com os rogos de Ângela! Releu os seus SONHOS, deu o manuscrito à irmã, e disse-lhe:
― Pede-lhe que rasgue esses papéis depois de os ler.
Ângela pairava em regiões sobpostas à do seu espiritual adorador. Adivinhou mais do que percebeu. Decorou até o que não entendia.
Vem de molde o encher-se um vácuo importante desta história. A educação literária da filha de D. Maria d’Antas era igual à do capelão que lha transmitira. Escrevia com a ortografia do padre, quase nunca racional. Lia os livros de sua tia, que se prezava de perceber a Recreação filosófica do padre Teodoro de Almeida, e relia todos os anos o Feliz independente do mesmo congregado, o Belizário de Marmontel, e outros livros, cujas passagens notáveis andavam de memória na família.
Que montava isto? O amor de Deus infundiu a máxima ciência nos apóstolos ignorantes. O amor do homem arroteia e enfrutece, a súbitas, o mais maninho entendimento de mulher. Fenômenos do amor. O divino, florejando e aromatizando mártires e santos, ala os amados à glória. O humano com seus relâmpagos que abrasam, e perfumes que embriagam e asfixiam, despenha-se nos recôncavos do inferno, que neste mundo se chama o desesperar.
Ângela sentiu destecer-se o escuro de sua ignorância ao compasso da leitura noturna que fazia dos SONHOS.
Aquele livro não lhe ensinava história, nem gramática, nem geografia, e outras coisas que, não sabidas, constituem a ignorância humana. O que ela aprendia era o Verbo, não o verbo que se conjuga; mas a palavra, o som que vibra, a corda virgem, a translucidação do sentir inexpressável, o definir da idéia confusa, a linguagem um tanto mística desta religião do amor que precisa revelação dos iniciados. Enfim, o Verbo.
Ora, muito era para ver-se a afoiteza com que a menina começou desde logo a escrever em um livrinho em oitavo, brochado por suas mão, uns pensamentos curtos e singelos, com o título de ESPERANÇAS! Mal emplumada ainda para librar-se a remontados lirismos, Ângela apenas avoejava de arbusto em arbusto, colhendo todas as suas imagens das flores, como a abelha a dulcidão dos seus favos.
Quando já tinha escrito algumas laudas, pediu, com adorável simplicidade, a Joana que entregasse o livrinho ao irmão, e acrescentou:
― Quando ele rasgar esse, eu rasgarei o que me ele mandou. E diga-lhe que se ele SONHA, eu ESPERO.
Joana satisfez o pedido com repugnância, e mormente quando viu Francisco por tanta maneira banhado de consolação que lhe batiam as artérias das fontes, colando o livrinho aos beiços.
Agora é que vai começar o período epistolográfico destes amores.
Joana, receosa de ser solicitada para medianeira em tão arriscada correspondência, evitava o ensejo de estar a sós com Ângela, e raramente, sem necessidade extrema, ia a casa de D. Beatriz.
Ângela, doida deste desafeto, granjeou imprudentemente os serviços duma criada, a quem entregou carta fechada para Joana. O conteúdo eram puerilidades, senão antes umas espertezas inocentes. Enviava ela duas folhinhas no formato das suas Esperanças, e pedia que fossem reunidas às outras. O dizer deste suplemento era já triste e queixoso: chamava-lhes ela aos pensamentos; Esperanças que fenecem. Se Francisco não estivesse presente, a irmã esconderia os papelinhos e iria pedir misericordiosamente à fidalga que se esquecesse de seu irmão, e empregasse amor onde lhe fosse permitido esperar felicidades.
Francisco mandou esperar a criada, e escreveu a primeira carta. Depois, a Segunda, a terceira, até à duodécima, que era o caderno, cujo paradeiro foi às mãos convulsas de D. Beatriz.
Ate-se agora o fio da história, no lance de D. Beatriz mandar que a sobrinha se preparasse para entrar no convento.
XII
A FUGA
A surpresa tolheu a reflexão.
Ângela, pela primeira vez, deu ares de família. Contavam-se arrojos de D. Maria d’Antas, em anos verdes, quando o pai lhe impunha observância das leis do decoro, em desacertos amorosos. Saiu-se a filha de Simão de Noronha com um dos atrevimentos não comuns enquanto a sociedade assusta, e o coração mulheril não desteme os efeitos do escândalo.
Ouvida a ordem, ao anoitecer, entrou no seu quarto, onde se deteve até às dez. o silêncio da casa era completo, quando ela abriu a janela mais rente da rua, saiu e encaminhou-se a casa de Joana.
A irmã de Francisco, que tanto o instigara a sair para o Porto, naquele dia, estava, a essa hora, chorando saudosa dele. Quando ouviu bater à porta, alvoroçou-se cuidando que o irmão desandara por não poder vencer-se. Perguntou, conheceu a voz trêmula da fidalga, expediu um grito, e chamou o marido.
Ângela, apenas entrou, disse entre risonha e espavorida:
― Fugi!
― Fugiu, Santo Deus! – exclamou Joana. – vossa excelência fugiu, senhora D. Ângela?! Não me diga isso, por quem é!...
― Fugi, deveras, pois não vê, minha amiga? Olhe... ninguém veio comigo... Se eu não fugisse, amanhã havia de entrar no convento forçosamente, que assim mo disse minha tia...
― E agora, minha senhora? – atalhou afligidíssima a irmã de Francisco.
― Agora o quê?
― Que tenciona a menina fazer?
― Fico nesta casa – respondeu serenamente D. Ângela, apertando nas suas a mão de Joana.
― Mui pobre casa; mas ela aqui está, e nós para servirmos a vossa excelência – disse José Maria respeitosamente.
― Mas que infelicidade, minha senhora, que infelicidade! – exclamava a trêmula irmã do acadêmico, enquanto Ângela relançava em volta de si os olhos indagadores.
― Não te aflijas assim, Joana! – disse tranqüilo o merceeiro. – Maior infelicidade seria que a fidalga não tivesse pessoas que a respeitam como nós.
― Seu irmão? – perguntou Ângela com veemência, como se a salteasse o pensamento dele ter saído para longe.
― Está já no Porto, minha senhora – respondeu José Maria, visto que a mulher não respondia.
― Foi para o Porto?! – murmurou a filha de D. Maria d’Antas empalidecendo e esbugalhando os seus olhos negros.
― Foi, minha senhora; pedi-lhe eu muito que fosse – tartamudeava Joana – cuidando que, saindo ele daqui, se acabavam as inquietações de vossa excelência e de sua tia.
Ângela pendeu a face para o seio, e quedou-se largo espaço confusa, sem atender às sensatas observações de José Maria.
― Que ingratidão! – murmurou ela; e, levantado-se de saldo, disse: - Bem... não vim aqui fazer nada; irei para o convento, irei para onde quiserem. Meus amigos, abram-me a porta, que eu vou outra vez para casa; mas digam ao senhor Costa que eu vim procurá-lo numa hora de muito sofrimento, que o não encontrei, e que saí desenganada...
― Ó minha senhora, vossa excelência é injusta com o meu pobre irmão... – exclamou Joana, com as mãos postas, e inclinada quase em joelhos.
Neste em meio, soaram na porta redobrados golpes. Estremeceram todos.
José Maria foi à janela, e as duas senhoras seguiram-no. ― Está cá a senhora D. Ângela? – perguntou uma voz de mulher esbofada.
― É Vitorina... – disse a fidalga. – Estou, Vitorina, estou aqui... Que é?
― Ó minha senhora – disse a criada ansiadíssima. – Deram fé que vossa excelência fugiu. Sua tia levantou-se a chamar os criados. Não tardam aí... Olhe que a levam à força, e sua tia disse ao João Alho que se pilhasse às mãos o Sr. Francisco, o fizesse em postas.
Volte depressa, que, se eles cá chegam a vir, há desgraça de maior.
― Eu vou – disse atribulada Ângela – eu vou; que não vão eles fazer-lhes mal, meus amigos. Adeus, adeus, que não nos tornamos a ver... – E, abraçando Joana, balbuciou coberta de lágrimas: – Diga a seu irmão que lhe perdôo, que fez bem em fugir, senão talvez o matassem...
E desceu pressurosamente as escadas.
Logo que saíram à rua, ouviram a estropeada de criados, que eram muitos, acaudilhados pelo capelão, sujeito de má rês.
― Vamos por outro lado – disse Vitorina receando o encontro.
― Não – obstou Ângela. – Se eles me não encontram, são capazes de arrombar a porta desta pobre gente.
Vamos direitas a eles. Se não queres vir comigo, vai por outra banda.
― Não, minha menina, hei de acompanhá-la, aconteça o que acontecer... – disse Vitorina.
A poucos passos encontraram a chusma. Ângela parou. O capelão aproximou-se a reconhecê-la, e disse severamente:
― Donde vem vossa excelência?
― Vou para casa – respondeu imperturbada a fidalga.
― Mas donde vem? – insistiu o padre.
― Que lhe importa?
― Importa, sim, senhora – replicou ele, apertando entre os dedos o marmeleiro argolado que vergava sob a pressão daquelas mãos ungidas de sacerdote de Jesus; e prosseguiu: – Eu queria ver a cara ao bandalho; queria mandar as orelhas dele de presente ao senhor general Simão de Noronha.
Ângela ladeou a turba, e, traspassada de súbito medo, seguiu caminho de casa. Os criados, imitando o padre, seguiram-na de perto.
Entrou a senhora pela porta principal. D. Beatriz, rodeada de criadas e vizinhas, estava na primeira sala. Ângela perdeu o ânimo, quando avistou do patim a multidão que estava dentro. Voltou-se então muito desalentada para Vitorina, e disse:
― Quem me dera morrer neste instante!...
O capelão adiantou-se, mandando recolher os criados. Passou avante de Ângela, e disse a D. Beatriz:
― A sobrinha de vossa excelência está ali. Que ordena?
― Abram-lhe uma porta de dentro; que não passe diante dos meus olhos, e que fique esta noite aqui por caridade. Começou como Maria d’Antas; provavelmente acabará como ela. Tal mãe, tal filha.
E, vociferando assim, sacudia umas calmandulas de azeviche que tinha penduradas no pulso.
A gente, que a rodeava, repetiu com tom de piedade:
― Tal mãe, tal filha!...
E Ângela escutara aquilo, amparando-se nos braços de Vitorina.
E esta mulher sentia-se transida de horror, porque só ela e Simão de Noronha sabiam que morrer havia sido o de D. Maria d’Antas. Ela tinha sido quem conduzira a Viana a criancinha de dois anos; e nunca o terrível segredo lhe fora arrancado pelas suspeitosas indagações de Ângela.
Recolhida ao seu quarto, a pávida menina rompeu em soluços abafados no seio da criada.
XIII
DESAMPARO
O Capelão obteve de galope as licenças necessárias para a clausura de Ângela.
D. Beatriz recusou ver a sobrinha, que lhe mandou pedir licença para despedir-se Vitorina acompanhou-a.
Quando entraram no convento, já lá corria a notícia da fuga. Soror Cassilda de Noronha, irmã do general, estava prevenida por sua irmã. Recebeu glacialmente a sobrinha a quem aborrecia: era ódio reflexo de D. Maria d’Antas, causa indireta da sua forçada reclusão. Fora o caso que Simão de Noronha, resolvido a concubinar-se com a prima, removeu o estorvo da irmã, induzindo-a ou constrangendo-a a professar, já quando não podia consagrar ao divino esposo a virgindade do coração. Sem impedimento da mortalha, Soror Cassilda desforrou-se, bem que não saísse da classe, e da sua ordem, honra lhe seja; que os seus amados tinham sido todos frades beneditinos. Sem embargo, o ódio inveterado a Maria d’Antas foi semente maldita, que bracejou árvore, onde as aves infernais fizeram ninho.
Cumpria à desditosa filha da pecadora tragar-lhe os frutos.
Para dobro de desgraça, o general foi avisado da fuga. A resposta do selvagem foi simples: “Não tenho filha”.
Queria dizer: essa mulher que se sustente com o seu trabalho, ou sustente-a a caridade pública.
E, portanto, Ângela não tinha mesada. Cassilda dizia às suas criadas: “Dêem-lhe alguma coisa, se quiserem”. E
Vitorina, que tinha cordões e arrecadas, vendeu o seu oiro, alegrando-se de ver transformado no pão de sua ama.
Foi terminantemente proibido à porteira entregar carta à recolhida, sem prévio exame da abadessa; a mesma condição estipulada para carta ida do convento.
Três dias depois, José Maria, o merceeiro cujos haveres não chegavam a pagar o débito de um conto de réis a D.
Beatriz, foi intimado para pagar ou nomear bens à penhora. Tinha a casa em que vivia, e os gêneros de sua loja a pagamento de prazo. Ofereceu a casa. Penhoraram-lha. Os credores confluíram. Fecharam-lhe a loja. E dez dias depois o coveiro fechou-lhe a sepultura. “Morro desonrado, e deixo-te a pedir e mais teu irmão” exclamou ele, desde que o ameaçou a congestão cerebral até que pendeu a cabeça aos braços da esposa, e expirou.
Chegou a notícia do sucesso triste ao mosteiro. D. Ângela verteu acerbas lágrimas, e tomou como sobrecarga de angústias e responsabilidade da morte do merceeiro, e a desgraça de viúva e do cunhado.
Francisco José da Costa recebeu a um tempo a notícia da fuga e reclusão de Ângela, a da penhora e falência, a da doença e provável morte do cunhado. Partiu para Viana. Quando chegou, Joana assistia de joelhos ao ato de sacramentar-se o marido. Francisco não ajoelhou. Naquele estacar imóvel diante do espetáculo lúgubre, havia o que quer que fosse pior que a condição do moribundo. Vê-lo era compreender as palavras plangentes dum escritor celebrado: “A vida morta ficou sepultada no corpo vivo”.
Fechada a sepultura de José Maria, a viúva ajoelhou à beira do leito do irmão.
― Não morras, que eu não tenho outro amparo! – lhe clamara ela.
― Qual amparo?! – murmurou ele.
― Trabalharemos, meu irmão! Vê que sou mulher, e não desespero! Vê que dores me traspassam, Francisco! E
vivo, e vivo, meu querido irmão! Lembra-te da coragem da infeliz menina!... Não sejas tu o mais fraco de tantos desgraçados, já que...
― Já que foste a causa... – completou o moço a frase, e rompeu em choro desfeito.
Depois, sentou-se no leito, fincou os dedos recurvos na fronte, e disse:
― Pois sim: trabalharemos.
E, volvidos poucos dias, Joana e Francisco saíam para o Porto, com quanto dinheiro possuíam: o urgente para a alimentação de oito dias.
O estudante abandonou as aulas. Quem o sustentaria? Como congraçar o estudo com qualquer outro emprego?
E qual emprego lhe daria pão, exauridos os cobres salvados dos últimos vestidos feitos por sua irmã?
Joana pediu trabalho a uma modista francesa. Exigiram-lhe fiança. Ela disse a chorar que não conhecia ninguém. Abonaram-na as lágrimas. Permitiu a modista que a desvalida levasse as fazendas para um sótão da Rua Escura, onde seu irmão tinha vivido como estudante de escassos recursos. Francisco vendeu todos os seus livros, depois que apartou de entre eles as Esperanças de Ângela. Comprou com o produto deles a catre de sua irmã, que dormia sobre tábuas. Dizia ela que para quem passava as noites trabalhando e chorando todo o leito era bom.
Os condiscípulos do acadêmico, sabedores do infortúnio do primeiranista, quotizaram-se para lhe acudir e salvar o ano: Francisco rejeitou a esmola sem orgulho, dizendo: “Quem não pode ser médico, seja operário de mais humilde condição”.
Um dia ofereceram-lhe o lugar de amanuense de tabelião. Aceitou muito agradecido. Escrevia à rasa, e ganhava trezentos réis diários. No sótão da Rua Escura, depois de dois meses de trabalho incessante, com intermitências de lágrimas, havia horas regulares de comer.
Eis aqui o poeta dos SONHOS, três meses depois que... sonhava Que despertar aquele! Se não vale mais andar um homem sempre acordado, e a patinhar na lama deste planeta para não adormecer!...
Entretanto, Ângela de Noronha, ou d’Antas, como as tias a apelidavam para sacudirem de si o opróbrio de tal parenta, ainda lia os SONHOS do cismador do monte d’Agra e das ribas do mar. O manuscrito e cartas de Francisco andavam na caixa de Vitorina, valendo todavia menos às amarguras de Ângela do que o oiro da velha, o qual (digamo-lo com vênia da poesia, e da prosa apocalíptica) tornava muitíssimo mais prestimosa a caixa da generosa criada.
O recolhimento e conformidade da filha do general moveram à comiseração algumas religiosas, que se não pejaram de freqüentar a sua desornada cela, a ocultas de soror Cassilda. Se alguma freira, mais desprendida de respeitos e preconceitos, se afoitava a argüir de cruel a inválida consoladora dos extintos frades, Cassilda respondia que não aceitava como sobrinha a mulher que seu irmão não considerava filha. Esta razão passava com foros de discreta e ajuizada.
Quem mais se compadecia de Ângela era uma criada da prelada. Assim que vagava às lides caseiras, ia com mostras de grande respeito à cela da fidalga, e ali se esquecia a contemplá-la, e a dizer coisas muito encarecidas, fascinada de sua beleza. Muitas vezes ofereceu as suas soldadas de trinta anos a Vitorina, às escondidas da senhora;
mas a criada fazia milagres de economia com o produto dos seus enfeites, auxiliado com os bordados da ama.
Rita de Barrosas – que assim se chamava a criada da abadessa – contou muito secretamente a Vitorina que sua ama tinha apanhado uma carta muito grande, vinda do Porto para a fidalga; por sinal, ajuntava Rita, que a senhora abadessa, lendo-a a outras freiras, chorava com elas.
Com o bom propósito de não acerbar as dores de sua ama, Vitorina ocultou esta confidência. E, quando Ângela, brandamente, acusava o esquecimento de Francisco, a criada, conciliando a discrição com a consciência, dizia:
― Deus sabe o que ele padece! E vossa excelência sabe também que à sua mão, carta que ele escreva, nunca chegará.
― Mas nem Joana... aquela infeliz mulher...
― Deus sabe também se ela terá papel em que lhe escreva... Minha querida menina, tenha compaixão deles, que são mais infelizes do que vossa excelência. Disse-me a Rita de Barrosas que ouvira contar misérias da pobre gente lá pelo Porto. Olhe, minha senhora, se vossa excelência puder esquecer o Sr. Costa, ainda pode ser que volte às boas graças de sua família, e seu paizinho, à hora da morte, lhe perdoe, e a deixe herdeira dos bens livres, como todos diziam que deixava; mas, se eles souberem que vossa excelência ainda teima nestes praguejados amores, então não sei o que há de ser da minha infeliz menina.
― O que a divina Providência quiser. Eu não posso esquecer-me de Joana e de Francisco porque fui causa da desgraça deles. Se Deus me desse alguma coisa, e meu pai me deixasse pouco que fosse, eu daria tudo para os remediar. Isto já não é amor, Vitorina; é dever. Quem matou o José Maria foi a cruel vingança de minha tia. Fui eu que lhes não deixei gozar a santa felicidade de pobres.
XIV
VIA DOLOROSA
Passaram dois anos, e somos chegados ao de 1840.
Alteração notável no viver de Francisco José da Costa não há nenhuma. É ainda amanuense de tabelião. Joana continua a trabalhar para as modistas; mas, cansada e doente, rende-lhe pouquíssimo o louvor.
O viver de Ângela é mais angustiado. Vitorina já vendeu tudo que valia dinheiro. A ama não tem que vender, porque sua tia Beatriz negou-lhe algumas jóias que o pai lhe havia dado, sem impedimento de terem sido de D.
Maria d’Antas. Os escrúpulos de beata não iam ao extremo de repulsarem os braceletes e correntes da pecadora.
Vitorina já aceita as esmolas de Rita de Barrosas, e as liberalidade de outras senhoras que delicadamente favorecem a sobrinha de Cassilda de Noronha – freira opulenta, como depositária e herdeira in mente dum dom abade de beneditinos, rolado ao inferno por intermédio duma hidropisia.
Ângela ignorou algum tempo a sua deplorável dependência. Era, contudo, forçoso adivinhá-la, e inferi-la das tristezas da criada. Animou-se para entrar ao fundo da sua miséria, e soube que estava indigente.
Vencida pela desesperação, escreveu ao pai, invocando a memória de sua mãe. Péssimo expediente! Vitorina quis dissuadi-la da invocação; mas era-lhe doloroso, tendo de explicar a inconveniência, contar a uma filha a desastrada morte de Maria d’Antas. A carta foi; mas a resposta não veio.
Pensava Ângela sem sair do mosteiro e ir ajoelhar-se diante do pai. Constou o intento. A prelada, com boas palavras, lhe desfez o plano, dizendo-lhe que só poderia sair com ordem de sua tia ou do Sr. arcebispo de Braga.
― Mas minha tia ou o Sr. arcebispo não me deixarão morrer à necessidade? – perguntou Ângela debulhada em lágrimas.
A prelada, comovida, respondeu:
― A menina não há de morrer à necessidade. Por enquanto alguém e tem socorrido e continuará a socorrer. A
misericórdia do Senhor é grande.
Neste tempo, aconteceu chegar ao convento a notícia de ter aparecido em Barrosas um brasileiro muito rico, procurando novas de uma irmã que deixara, quando, em criança, fora para a América. Ora a irmã do brasileiro era Rita de Barrosas, criada da abadessa. Grande alvoroço, e alegrias, e invejas no mosteiro! Rita correu ao quarto de Ângela a mostrar a carta do vigário da sua freguesia, avisando-a de que o irmão iria brevemente buscá-la de liteira.
Dias depois, chegou a Viana Hermenegildo Fialho; e, dado aviso ao convento, foi procurar a irmã. Saíram a cumprimentá-lo as religiosas mais autorizadas, e folgaram de o ver comer pastéis ensopados em vinho do Porto com familiar lhaneza e proporções homéricas de estômago.
Ao outro dia, Rita saiu do mosteiro, depois de ter chorado abraçada em Ângela, única pessoa, dizia ela, de quem levava saudades, e de quem nunca se esqueceria.
Com este sucesso coincidiu a morte de D. Beatriz de Noronha. Contaram as criadas que o fantasma de José Maria, auxiliado por incômodos de bexiga, a matara, penetrando-a dum remorso dilacerante. E posto que a crítica e a medicina presumam que D. Beatriz haja sucumbido a uma cistite, ou qualquer outra moléstia mais ou menos grega, é certo que a velha, para lograr o espectro do merceeiro, deixou em testamento 960$000 réis para missas por sua alma de esmola de 240. Quatro mil missas! O diabo que se atreva a levar alma com tal recomendação, se é capaz!
Falecida Beatriz, solicitou Ângela novamente a sua saída. A prelada consultou Soror Cassilda, a qual respondeu que não tinha que ver com a saída, assim como não tivera com a entrada. Sempre discreta! Os frades desta senhora deviam ter sido sujeitos áticos bastantemente nos seus raciocínios. Esta madre era notável nas formas aforismáticas, e quase sempre rebatia as réplicas com argumento de dois bicos. Parece que, na convivência de varões doutos, a sutil religiosa medrava em espírito o que os mestres iam adelgaçando na parte que Xavier de Maistre denomina a outra.
Rita de Barrosas, escrevendo a D. Ângela, pedia-lhe que fosse estar com ela uma temporada à bela quinta que seu irmão acabava de comprar; e ajuntava que, sendo necessária licença, ela se encarregaria de a requerer e obter em Braga.
Ninguém impediu a saída da reclusa. As freiras cooperaram quase todas para que não se estorvasse à pobre senhora o intento de pedir perdão ao general.
Efetivamente, Ângela, apesar de desprezada do pai, insistia em tentar a reconciliação apresentando-se-lhe com as súplicas piedosas do costume. Se ela medisse o seu amor filial pelo que devia esperar de Simão de Noronha, poupar-se-ia a tentativas vãs. Em verdade, o desapego era recíproco. A ficção poderia espremer lágrimas dos olhos de Ângela aos pés do pai, que lhas desprezaria; se, todavia, ele pudesse sobreposse acariciá-la, os júbilos do perdão escassamente agitariam o coração da filha. Seriam, bem ensaiados, filha e pai de comédia, quando os artistas se compenetram dos seus papéis.
Um pensamento, nem esquisito, nem repreensível, avassalava o ânimo de Ângela: cogitava em ser rica para enriquecer Francisco da Costa e irmã. O amor já entrava quase esvaído neste cálculo. Figurava-se-lhe que tocaria o acume da fortuna se conseguisse pagar cem por um dos bens que perderam os dois irmãos, quebrado o esteio do lojista.
Ora, a riqueza donde lhe proviria a não ser do general, cuja abastança engrossara com a herança de D. Beatriz?
Rijo era, pois, o estímulo que a fazia transpor as balizas da dignidade. E longe de nós acoimar de aviltamento a humilhação da filha; se, no entanto, o sentir filial a não impulsa, e a cobiça, fingindo arrependimento, se deplora, o senhoril do ato é pouquíssimo exemplar. Tanto assim, que Ângela, despreocupada do desejo de enriquecer-se para remediar alheios infortúnios, certo se deixaria vencer da fome antes de ajoelhar a um homem distinto dos outros pelo nome insignificativo de pai.
Foi, pois, caminho de Ponte de Lima, apenas saiu do convento. Chegou de noite com Vitorina ao portão do palacete. Bateu, esperou largo tempo que lhe abrissem. Anunciou-se. Mandou-a entrar um antigo criado; conduziu-a a uma sala, com duas alcovas, dizendo-lhe:
― Vossa excelência tem ali uma cama naquela alcova, e a criada outra. Eu vou servir o chá.
― E meu pai não me consente que o veja hoje? – perguntou Ângela.
― Seu pai, minha senhora, foi para França há quinze dias consultar médicos, por que tem padecido muito nestes últimos meses. Eu já era criado em Gondar quando vossa excelência nasceu. A Sr.ª. Vitorina há de lembrar-se do João Pedro. Sou eu, é este velho que aqui está. Ora eu fiquei com o governo desta casa, que para isso fui chamado lá do Paço, e entendo que minha obrigação é receber a filha do meu amo, e dar parte para Paris que vossa excelência está aqui. Se o Sr. general reprovar o meu procedimento, e me despedir do seu serviço, já me não prega grande peça, que eu pouco hei de viver. Até já, minha senhora. Se a Sr.ª. Vitorina quisesse ajudar-me a preparar o chá, bom seria, para não haver grande demora; que eu despedi a cozinheira assim que o patrão saiu, e cá me arranjo e mais outro criado com duas brasas e um púcaro.
Era consolador o repousar e respirar que Ângela experimentava naquela atmosfera de riqueza. O seu quarto de dormir, quando, anos antes, visitava o pai, era aquele mesmo. Enquanto Vitorina moirejava alegremente na cozinha, a senhora pegou num castiçal e andou percorrendo a casa. Reconheceu a antecâmara de seu pai, entrou e sentou-se na cadeira de espaldar anteposta à banca de escrever. Era esta banca rodeada de escaninhos onde se recadavam cartas.
Ângela reconheceu a letra da defunta Beatriz num sobrescrito de carta emaçada com outras. Leu a primeira, em que sua tia relatava os pormenores da fuga, caluniando a sobrinha a ponto de referir que os seus criados a tinham arrancado dos braços do filho do sacristão. Que seria daquela alma, a não se guindar do purgatório alçapremada por quatro mil missas a 240 réis!
Leu a Segunda, em que D. Beatriz participava estar disposta a obrigar Ângela, pela necessidade, a vestir a touca de criada, para que todos soubessem que os parentes, se o eram, (sublinhava ela), a tinham abandonado como infame.
― É impossível que meu pai me receba... – disse entre si amargurada.
Ia retirar-se, quando reparou num cofre de prata que assentava sobre um bufete. Reconheceu-o, porque tinha sido de D. Beatriz. Abriu-o. estavam dentro as jóias que seu pai lhe tinha dado, e sobre elas um cartão com o nome impresso do general, e por baixo, escrito do pulso dele, o seguinte: Estas peças em número de dez pertencem a Ângela, filha de D. Maria d’Antas, já defunta. Se eu morrer em Paris, entreguem-lhas os meus testamenteiros.
Procurem-na no mosteiro de S. Bento em Viana, ou onde ela parar. Não tem mais que herdar da casa onde viveu sua mãe.
Fechou Ângela o cofre e voltou profundamente descoroçoada à sala.
Entravam os dois criados com a bandeja do chá. A filha de Maria d’Antas tomou um chávena, e disse:
― Aceito a esmola, Sr. João Pedro. Dirá ao Sr. general que a filha de D. Maria d’Antas aceitou esta chávena de chá, e um leito onde passar uma noite.
― Uma noite! – volveu espantado o velho. – Vossa excelência está em sua casa, penso eu. E, se me não engana o coração, a fidalga não sairá mais da casa de seu pai.
― Amanhã.
― Amanhã! Pois vossa excelência ainda há pouco parecia resolvida a ficar esperando que o senhor general...
― É verdade; mas resolvi outro passo menos desonroso. Amanhã iremos para Barrosas, Vitorina. Aceitaremos o bem-fazer da mulher humilde. Ela foi pobre; será por isso mais compadecida.
― Estou às aranhas, minha senhora! – exclamou João Pedro. – Faça-me o favor de mudar de idéias, e queira desculpar o meu atrevimento. A senhora tenha prudência. Já que veio, fique; que seu pai, quer queira quer não, para fora de casa não a manda...
― Manda – afirmou Ângela com veemência. – Diga-me uma coisa, Sr. João: nunca ouviu falar de mim ao Sr.
general?
― Nunca: eu não sei mentir.
― Quem supõe vossemecê que seja herdeiro do senhor general?
― Os irmãos da mulher com quem ele casou quando tinha dezasseis anos, uns homens de pé descalço, que nunca vieram a esta casa. Eu desconfio, minha senhora, que seu pai está doente da cabeça, há coisa de quatro anos.
Os médicos não atinam com a cura por que lhe procuram a doença no peito, e ele tem-na nos miolos; salvo tal lugar.
É por isso que eu desejava que ele visse aqui vossa excelência, porque, se a visse, parece-me que atremaria outra vez.
― E, se ele morresse em Paris, eu seria expulsa desta casa pelos homens de pé descalço, não é verdade? –
perguntou Ângela.
― Seria o que fosse. Eu, e mais os criados todos, iríamos jurar que seu pai não regulava do juízo quando fez o testamento; e p’ra prova basta dizer que ele mandou trazer da capela do Paço de Gondar o esqueleto da tal Josefa Salgueira com quem foi casado, e tem-no debaixo da cama num caixão de pau de alcânfora. Que-lo mais doido ao pobrezinho do velho?
― Respeite-se a sua dor, embora seja um desatino – disse Ângela. – Então ele amou muito essa mulher?
― Lá isso muito. Ela morreu de aflição, quando o viu ferido em Amarante.
― Já sabia isso. Era uma sublime alma! Conheceu-a?
― Se conheci! Andava ela com o rebanho das ovelhas, quando eu era rapazola de quinze anos. Era muito linda, isso era!
― E de minha mãe, lembra-se?
― Da senhora D. Maria d’Antas?... pois não lembro! Isso foi ontem! Fui criado dela dez anos... como hei de eu não me lembrar?
― A Vitorina diz que era muito formosa...
― Era vossa excelência sem tirar nem pôr. Estou a vê-la. Só era um poucachinho mais alta e corada.
― Lembra-se se ela era muito minha amiga?
― Parece-me que sim...
― Por quê?
― Foi ela quem a criou: não quis ama, como todas as mães que tem de seu.
― Lembra-se da morte dela?
João Pedro respondeu tardamente e tartamudo: ― Não me recordo bem... Eu estava então na quinta de Santo Amaro... Lá é que me chegou a notícia de ter morrido a fidalga... E, quando voltei, o Sr. Simão de Noronha já estava fora de Portugal...
― Mas o Sr. general não mandou buscar os ossos de minha mãe? – perguntou Ângela, chorando no sorriso.
O velho não respondeu.
― Vamos deitar, Vitorina. Até amanhã, Sr. João Pedro.
― Muito bem passe a noite, fidalga.
Ao alvorejar da manhã, Ângela, que velara a noite ao pé do leito de Vitorina, foi sentar-se à banca de seu pai, e escreveu uma breve carta, que sobrescritou ao general Simão de Noronha, pedindo-lhe que perdoasse ao seu criado a caridade de a ter recebido, e lhe ter dado uma cama por uma noite, e lhe haver ainda esmolado dinheiro com que ela e sua criada pudessem chegar a outra porta caritativa. Em seguida, chamou João Pedro ao escritório de seu pai, abriu o cofre das jóias, leu-lhe a declaração do general, e ajuntou:
― É quase certo que, por morte do Sr. Simão de Noronha, me sejam entregues as jóias de minha mãe. Sobre este penhor, peço eu a vossemecê que me empreste uma moeda para eu poder ir daqui a uma terra chamada Barrosas.
Não tenho outro penhor que lhe oferecer.
― Pois eu tenho mais que uma moeda para dar a vossa excelência. Tenho cinqüenta.
― Uma me basta.
― Torno a pedir-lhe que não vá, fidalga.
― Hei de ir forçosamente.
― Faça-se a sua vontade. Irei então alugar cavalgaduras; e entretanto Vitorina fará o almoço.
....................................................................................................................................
― Aqui tem esta carta: mande-a a meu pai – concluiu Ângela saindo com a face altiva e enxuta.
XV
MEIO MILHÃO!
Ao cabo de onze léguas de jornada, encontraram a quinta dos Choupos, residência de Rita de Barrosas, que os do sítio chamavam a Sr.ª D. Rita brasileira.
Quando apearam, Hermenegildo estava no espaçoso pátio vigiando os pedreiros que derruíam uma antiga torre de arquitetura manuelina para construir nos alicerces dela uma capoeira.
Fialho, habituado a ouvir repetidas descrições da formosa fidalga, reconheceu Ângela. Apertou o cós das ceroulas, abotoou o colete amarelo, deu um jeito ao colarinho desengravatado, e foi ao portão receber a hóspeda, mandando chamar a irmã.
― Faça favor de desculpar este desarranjo, minha senhora... – disse ele referindo-se às mouras verdes acalcanhadas, onde os pés jubilavam em pleno desafogo dos joanetes. – Vossa... vossa excelência é a Sr.ª D. Ângela, amiga cá da Rita?
― Sim, senhor... Como está ela?
― Rita como um pêro. Ela aí vem a quatro pés!... A mulher é sua amiga como nunca vi!...
― Também eu dela.
Rita abraçou Ângela pelos joelhos, e levantou-a, exclamando:
― Pilhei-a! pilhei-a! não torna a sair daqui a Sr.ª D. Ângela, senão para a companhia dos anjos, que não são tão lindos!
E com estes e outros sinceros encarecimentos entraram nas vastas salas, onde o brasileiro tinha recolhido as espigas do milhão a monte, de mistura com as cebolas, e as nozes e as castanhas.
Passado este lanço da casa, que havia sido convento de ordem rica, no ângulo formado pela vasta quadra, as salas e quartos estavam decorados com luxuoso e atrapalhado mau gosto.
― Aqui é a parte da casa que pertence à fidalga e à nossa Vitorina - disse Rita, com aprovação de Hermenegildo, manifestada por um sorriso.
― Como tudo isto é bonito! – exclamou sinceramente Ângela. – Uma princesa ficaria contente...
― A nossa princesa é vossa excelência – tornou Rita.
― Princesas que as leve a breca! – interveio Fialho num lerdo assomo de republicanismo. – O que eu quero em minha casa são pessoas amigas, que não obrigam a “intequetas” nem outras aquelas.
― Se me recebem com cerimonias – acudiu a filha do general – poucas horas estaria contente neste paraíso.
― Toca a saber o essencial – disse o brasileiro. – A senhora jantou? São cinco horas.
― Não jantamos, nem temos vontade. ― Hão de comer do que houver. Rita, carne assada, fiambre, salame, e peixe frito p’ra mesa. O café hei de ir fazê-lo eu. Aqui, quem quiser estar em minha casa, há de comer e beber, passear e dormir. Divertimentos não nos há, a não ser alguma chulata cá dos labrostes da terra. A gente aqui passa três meses na chácara, e depois vai em a cidade passar o Inverno, que eu tenciono lá abrir escritório de consignações, e fazer dois ou três navios p’ra me entreter, que graças a Deus não preciso, sou solteiro, e os meus parentes, não falando cá na Rita, são os dentes, diz lá o ditado.
Hermenegildo era loquacíssimo deste feitio, e de certo modo pitoresco na linguagem.
Ângela engraçava com aquela rudeza indicativa de bom feito de bruto. O sorriso dela não era mordente, nem o lance de olhos observador. A novidade do tipo, o plebeísmo do dizer, a redondeza da pessoa, a cara espirando alegria e uma saúde oleosa, tudo isto que aceraria a sátira da mulher dum alfaiate de Lisboa, produzia na fidalga bem condicionada uma inofensiva hilaridade, com a qual o brasileiro se comprazia.
Dobaram-se dias bonançosos para Ângela. Esses seriam porventura, os mais quietos de sua vida, se, a reveses, lhe não enublasse o espírito o incerto destino de Joana e seu irmão.
Rita, sem ser rogada, mandara lançar inculcas no Porto sobre descobrir se ali viviam os dois irmãos. Não colhera indício algum. Apenas soubera que Francisco José da Costa começara a freqüentar em 1839 o primeiro ano da escola médico-cirúrgica, e abandonara os estudos em meio do ano. Quanto a Joana, vestígio nenhum levou os indagadores ao sótão da Rua-escura. Vitorina estava sempre encontrando com judiciosas reflexões o cuidado que dava a sua ama o destino da família do merceeiro, a fim de a ir desatando de recordações prejudiciais a reconciliar-se com o general. Neste louvável desígnio pedia a Rita que, se descobrisse a paragem de Joana, se calasse com o segredo para afastar novos dissabores, e a pior das calamidades, que seria fidalga casar com Francisco.
― Credo! – exclamou a irmã de Hermenegildo, dois meses antes cozinheira da abadessa. – Credo! Anjo da guarda! Pois uma fidalga assim, filha dum general, e linda como os amores, havia de casar com um pobretão?! Não me diga isso, Sr.ª Vitorina! Esta senhora, se quiser casar, encontra marido que mede o dinheiro às rasas, e tem quintas e palácios, e tudo quanto cobre a rosa do sol, e que se pode comprar com dinheiro. Vossemecê não me entende?
Vitorina parecia não entender.
― Pois vossemecê não me entende?! – tornou Rita aconchegando-se dela. – Então eu lhe conto o que se passa, e vossemecê vai ficar espantada. Faz hoje três semanas que chegou, não faz?
― É verdade.
― Pois neste pouco tempo meu irmão ganhou uma tal simpatia à menina que não faz outra coisa senão dizerme que ela é muito bonita, que é muito discreta, que é muito bem feita de corpo, que é isto, que é aquilo, que é aqueloutro. Não faz idéia, Sr.ª Vitorina! E olhe lá que eu caia em lhe dizer os amores que ela teve com o tal Francisco! Nessa não cai a Rita... Ontem era uma hora da noite, e ele ainda estava no meu quarto a batalhar p’ra que eu lhe dissesse se a fidalga inda viria a gostar dele. “Ó mano, eu sei lá o que há de acontecer!” dizia-lhe eu, e ele fezme uma pena, que vossemecê não faz idéia, quando disse muito triste: “Oxalá que eu nunca visse esta criatura!
Nunca me senti apaixonado cá do interior senão agora. Estou desta idade, e é a primeira vez que pegou em mim o amor verdadeiro! Sinto-me outro homem cá por dentro. E, se isto não muda de rumo, eu não hei de ir longe... Tu verás que esta paixão dá comigo na cova”. Sabe vossemecê? Peguei a esbaguar lágrimas como punhos...
Rita alimpou ao avental os olhos aguados, e prosseguiu, sensibilizada:
― “Ó meu Hermenegildo, disse-lhe eu, tem juízo! Tu não te deixes apaixonar por uma pessoa tão nobre!
Verdade é que ela é pobre; mas tem pai muito rico, sem outra filha. E a demais: ela terá vinte anos, se tiver, e tu já vais nos quarenta e seis, porque eu sou mais velha que tu quatro, e faço os cinqüenta pelas cerejas”. E vai ele levantou-se da cadeira, e saiu pelo quarto fora sem dizer palavra. Eu fiquei muito aflita, e fui-me ter onde a ele, e comecei a dizer-lhe que não perdesse a esperança, porque se tinham visto casos mais milagrosos. Não lhe digo nada, Sr.ª Vitorina; estive até à madrugada, e não pus olho, porque afinal meu irmão, de se afligir, começou a doer-lhe o fígado, e eu fui arranjar-lhe a cataplasma de linhaça. Assim que o vi descansadinho, fui rezar à minha Senhora dos Remédios, e fiz-lhe uma promessa que não digo, se ela, das duas uma, ou varresse da cabeça do meu irmão esta idéia, ou movesse a fidalga a casar com ele.
Vitorina ouviu sem tosquenejar a comovida mulher. A impressão da confidência não lhe era irrisória nem mesmo de grandes estranhezas. A criada, tanto ou quanto participante da luz do século XIX, já estava à altura da idéia democrática e niveladora quanto a nascimentos, ressalvada a profunda desigualdade quanto a “fortunas”. Pelo que, a união do plebeu ricaço com a fidalga pobre não se lhe afigurou absurda, e muito menos milagrosa, como dizia a consternada Rita, na sua exposição. Possuída, portanto, destes sentimentos indiciativos de ilustração inata, Vitorina respondeu deste modo consolativo:
― Sr.ª Dona Rita... ― Não me chame Dona. Eu sou Rita de Barrosas, já lho disse um cento de vezes, e mais à sua ama. Meu pai era tamanqueiro, torno a dizer-lhe. Se um vestido de seda e um relógio de oito dá dom a quem o não tem, em pouco está o dom, e não no quero.
― Pois sim, seja como quiser. O que eu lhe digo é que seu irmão não deve descoroçoar. Minha ama tem-me falado dele com ar de amizade, e gosta muito de ouvi-lo. Quem é amiga pode ser o resto. Deixe estar, Sr.ª Dona Rita...
― E ela a dar-lhe... – atalhou a outra. – Rita, Rita...
― Esquecia-me... Deixe estar que eu hei de sondar a minha ama...
― Porque olhe vossemecê – acudiu alegremente a irmã do brasileiro – eu tenho muito medo que meu irmão se apaixone por alguma destas senhoritas cá de Barrosas que andam a armar-lhe a rediosca com presentinhos de queques e ramos de flores. O doutor das Lamelas já cá trouxe três filhas de visita; umas espinifradas com uns grandes pentes, a darem-me senhoria a mim, e por detrás a escarnecerem de meu irmão. Pois quer vossemecê saber?
O doutor teve o descoco de dizer ao meu Hermenegildo que as suas filhas eram todas tôdas muito amigas dele, e que qualquer delas se daria por feliz ficando nesta casa! Salvo seja! Eu as arrenego! Longe vá o agouro! Meu irmão, que é finório ali onde o vê, respondeu que estava já velhote para casar, e que era muito doente do interior. O homem não tornou cá, nem as pelintronas das filhas, que hão de pôr a cara onde a Sr.ª D. Ângela põe os pés para serem fidalgas.
E, como lhe eu ia contando, meu irmão é muito doente do fígado, e diz ele que não há de viver muito. Oxalá que se engane; mas a mim bacoreja-me que aquela moléstia de dentro não se cura. Se ele morrer, eu já sei que a mim me deixará alguma coisa para a minha decência; mas a riqueza quase toda vai para o Atanásio do Porto, que foi sócio dele, e são muito amigos. Ora diga-me vossemecê: Não era melhor que esta riqueza ficasse à Sr.ª D. Ângelazinha?
Fazia-lhe mal ficar com este palácio, com esta quina, e com o dinheirão que o meu Hermenegildo tem nos bancos, que pelos modos me disse o tal Atanásio que era metade dum milhão! Metade dum milhão, ó Sr.ª Vitorina!
Vossemecê já viu riqueza assim?
― Com efeito! – disse a interlocutora com sincero assombro. – Metade dum milhão! A fidalga, ainda que ficasse herdeira do pai, não tinha tanto, acho eu!
― Nem sombras disso! Meio milhão acho que neste mundo só o tem as pessoas reais. Quer vossemecê saber outra? Já desde que meu mano chegou, duas vezes os governos do Porto lhe escreveram para ele ser barão.
Vossemecê bem sabe que barão é isto de ser grande e maioral do reino, e fica-se logo fidalgo. Pois saberá que o meu irmão não quis até agora, porque lhe pediam cinco contos pela fidalgaria, e ele ofereceu metade. Estamos a ver se se arranjará o negócio; mas, ponto é querer a fidalga que ele seja barão, que isso manda ele logo aos governos do Porto pagar os cinco contos. Conte-lhe vossemecê tudo isto lá como coisa sua. E olhe que, se o casamento se chega a fazer, vossemecê também há de apanhar uma boa pechincha. Eu cá de mm dou-lhe um cordão de vinte moedas, e meu irmão é capaz de lhe comprar uma casa p’rá sua velhice.
― Velha estou eu, Sr.ª Ritinha – atalhou Vitorina – e, se Deus quiser, hei de morrer na casa onde viver a minha ama.
― Pois isto é um modo de falar; que vossemecê há de ficar sempre conosco enquanto for viva.
Pouco depois, Ângela escutava a exposição de Rita fielmente reproduzida pela criada, tirante as ridiculezas que a sagaz Vitorina omitiu como desconvenientes à gravidade do assunto.
Não obstante a compostura da velha, Ângela sorria-se e duas vezes abafou os froixos da gargalhada. Finda a relação, a filha de D. Maria d’Antas reconcentrou-se, apanhou as fontes nas mimosas mãos e murmurou:
― Qual virá a ser o meu destino?...
Esta pergunta era o epílogo de mil confusas idéias que se lhe embaralhavam na alma, umas sublimes, outras baixas até ao vilíssimo lodo que originariamente foi costela de homem. Com a qual costela bem podem dar-nos na cara as malfadadas a quem frechamos de sátiras, quando uns fumos iriados do prestígio, que lhes doira a nossa poesia, se rarefazem.
― Qual virá a ser o meu destino?
Que interrogação!
É a mulher sem parentes que a faz.
É a mulher que conheceu a pobreza.
E o desamparo.
E o desprezo dos seus.
E as injúrias caluniosas, sem que Deus ou a sociedade a vingassem e a ilibassem.
É a mulher que não vê aurora de melhor dia;
Que um mês antes quase esmolara o custo da passagem dum albergue de caridade para outro;
Que se despenhara das canduras dum primeiro amor à mais rasa, à mais estranha e imprevista miséria.
― Qual virá a ser o meu destino? Há neste interrogar-se uma abdicação, um alienar direitos de dispor do que quer que seja aspirações a felicidade.
Porque é tudo escuridade e amargura em sua alma. Amargura, se se recorda; escuridade, se olha adiante.
A riqueza, que se lhe oferece, não é a que ela desejava. O meio milhão deste homem não servirá a resgatar da pobreza a família do homem assassinado por sua tia. Mas Vitorina...
(Ó costela do homem! Ó oiro que a baba da serpente converteu em lama!...)
Mas Vitorina repisara naquelas palavras de Rita: ora diga-me vossemecê: Não era melhor que esta riqueza ficasse à Sr.ª D. Ângelazinha?
E Ângela de Noronha, interrogando o silêncio da sua alma, pôs os olhos lagrimosos em Vitorina e disse:
― Se tu pedisses a Deus que me levasse deste mundo!...
― Por que, minha senhora? Por que quer morrer?
― Porque me julgam tão sem amparo que já me aconselham o casar-me com este homem... E, na verdade, eu sei que sou muito, muito infeliz! Não tenho nada, não sei trabalhar, não tenho outras amigas senão tu, e esta mulher a quem devo benefícios que me colocaram inferior a ela... Quem sou eu, afinal? Uma grande senhora que não pode guardar a independência de sua alma à custa dos mais rudes trabalhos... Até hoje, a minha pureza foi tão-somente manchada pela calúnia de minhas tias; mas amanhã em que posição me colocará a Providência? Toda a gente terá direito de me considerar ou perdida, ou no transe de me perder... E, depois, Vitorina? Quando sairmos daqui, onde iremos? Se, ao menos, meu pai me mandasse entregar já as jóias de minha mãe... ainda teríamos com que viver, e eu iria trabalhando nos bordados...
― Os bordados... – murmurou Vitorina.
― Sim...
― Os bordados, minha senhora... – tornou a criada, sorrindo amargamente. – Vossa excelência sabe quanto eu recebia de cada bordado em que a menina gastava as horas todas do dia e algumas da noite? Era conforme. Uns regulavam o tostão por dia e noite. Outros a seis vinténs. E mais diziam que era por favor, porque tinham melhor e mais barato...
Saltaram-lhe as lágrimas dos olhos.
― Ó minha mãe, se tu me visse chorar!... – exclamou a filha do general inclinando a face para o seio arquejante.
XVI
POR CAUSA DO FÍGADO
Escreveu Ângela a João Pedro perguntado-lhe se o pai respondera. Teve resposta negativa. Que o fidalgo tivesse piorado supunha o escudeiro por ter lido numa gazeta de Lisboa que o bravo general Noronha estava em Paris sofrendo, além de antigos achaques, os graves incômodos de uma oftalmia, que o ameaçava de cegueira.
Não era já a herança que a alvoroçava. Contentá-la-ia a entrega das jóias, como um socorro imediato, para poder, agradecida a hospitalidade do brasileiro, procurar sua vida noutras condições. Mas até esta esperança se fechara à pobre senhora!
Na correnteza destes sucessos, aconteceu adoecer de hepatite Hermenegildo Fialho. Bem pode ser que o amor contribuísse a sobreexcitar a inflamação crônica do fígado, entranha que se ressente das perturbações morais por esquisita simpatia. Alguma razão, pois, tinha a mortificada Sr.ª Rita para atribuir a doença do irmão a pura paixão de alma.
A enfermidade agravou-se. Vieram as intermitentes, a intumescência da víscera, o fastio e a rápida magreza, os suores noturnos e o delírio, enfim o estado em que a medicina capitula assustadoramente a doença.
Nos delírios, o brasileiro rosnava o nome de Ângela, caso que fazia sempre repuxar chafarizes de lágrimas dos olhos da irmã, ao passo que o rosto de Ângela se entristecia compassivamente.
Uma vez que o doente desagradou notavelmente ao médico, Rita lançou-se de joelhos aos pés da hóspeda, e clamou:
― Meu anjinho, faça um voto a Nossa Senhora dos Remédios que há de casar com meu irmão, se ele melhorar!
Faça, pelas chagas de Cristo, e por alma de sua mãezinha!
― Levante-se, Sr.ª Rita! – disse Ângela, inclinando-se para ergue-la nos braços.
― Não me levanto sem vossa excelência prometer a Nossa Senhora que há de casar com o meu pobre Hermenegildo, que morre de paixão pela senhora.
― Jesus! – balbuciou a atribulada menina.
― Então? – instou a suplicante velha. – então, minha senhora!... ― Pois a Sr.ª Rita cuida que a minha promessa salva seu irmão?! – argumentou Ângela.
― Cuido, cuido, porque Nossa Senhora há de ouvir a promessa dum anjo!
― Pois... sim – gaguejou a violentada senhora.
― Casa com ele? – acudiu Rita, radiosa de esperança.
― Sim... caso...
Levantou-se Rita com exultação de mentecapta, entrou no quarto do enfermo, e chamou-o tão estrondosa e vertiginosamente que o homem abriu os olhos, as ventas, e a boca, tudo a um tempo e medonhamente.
― Olha que a Sr.ª D. Ângela fez a Nossa Senhora dos Remédios a promessa de casar contigo, se tu melhorasses.
― Hum... – fez Hermenegildo, e quedou-se extático a olhar para a jubilosa cara de Rita, e ela a repetir-lhe até quarta vez a notícia.
E, ao mesmo tempo, Ângela soluçava e estalejava com os dentes vibrados por um frio nervoso. E Vitorina, a fim de consolá-la e tirar-lhe a carga da promessa, dizia-lhe:
― Não se aflija, menina, que o homem não escapa! Quando vossa excelência casar com ele, dou licença que me enforquem.
Voltou o médico Segunda vez naquele dia, e achou o homem menos febril, e a língua mais úmida. No seguinte, a febre foi menor; e o suor da noite quase insensível. Ao outro dia, como o doente já desemperrasse a língua para dizer que a dor o deixava respirar livremente, o médico, voltado para Rita e Ângela, declarou, com vaidade de ter restaurado um moribundo, que o doente estava livre de perigo, e ia entrar em convalescença.
E, dentro em pouco, entrou a bolear-se, a arredondar-se, a pele a encher, as orelhas a enconchar-se com um escarlate de coralinas, o nariz a vestir-se de tegumentos, o todo enfim do carão a luzir e a estilar sorosidades de sangue novo que parecia uma espumadeira de tomates.
E Ângela via tudo aquilo com o falso contentamento das viúvas do Malabar que assistem à disposição das achas para a fogueira que há de assá-las.
Hermenegildo esperava que a sua hóspeda lhe desse azo a falar-lhe em casamento; ela, porém, esquivava os lanços preparados pouco engenhosamente pela irmã do noivo.
Era fatal e indeclinável o cálix!
Uma vez, o brasileiro, esporeado pela mana, afoitou-se a perguntar a D. Ângela se queria ser sua esposa.
― Sim, senhor – balbuciou ela, rápida e laconicamente como o suicida que fecha os olhos, e se despenha, antes que a reflexão lhe pinte os horrores da queda.
Hermenegildo emparveceu mais que o comum nos sujeitos da sua natureza. O sorriso que lhe entreabriu as queixadas parecia escancarar os alçapões daquele peito carecido de ar, como se o júbilo o afogasse.
A careta era feia; mas amorosíssima. Havia ali mescla de sátiro cupidinoso e de amante soez. Ângela não viu a fachada do coração que sonhoreava. Se naquele instante o encarasse, bem pode ser que a Senhora dos Remédios fosse lograda.
Dado o dilacerante sim, a ideal amante de Francisco Costa, a maviosa cismadora das Esperanças, entrou no seu quarto, e não pode chorar. Sentia um peso de estupidez, uma sensação na cabeça, como um capacete de lama, permita-se a figura.
Vitorina foi eminentíssima em insartar argumentos sobre argumentos convincentes de que Ângela havia de ser feliz, embora não amasse o marido, e simplesmente o estimasse como homem que a levantava com sua riqueza à independência, à consideração pública, e ao futuro gozo de ser viúva: “porque ele, dizia a criada, doutro ataque vaise embora”.
Numa tragédia desta ordem, como se vê, o cômico está sempre negaceando à gente por detrás daquele Fialho, o qual, apesar dos chacoteadores, tinha ares de bom homem, e talvez desse de si um marido regular, se se ajoujasse a uma fêmea da sua espécie.
Por cortar demoras, não nos deteremos a descrever a bulha que a felicidade de Rita e do irmão fazia na casa.
Fialho saiu logo para o Porto a prover-se dos aprestos para o noivado, e então comprou os 6.500$000 réis de brilhantes, como consta do primeiro capítulo desta crônica social, e cortes de seda, e peças de veludo, e quanto lhe depararam as casas francesas, e modistas escrituradas que levou consigo para a quinta.
No meio desta azáfama, Ângela estava como insensível, e, na cama, onde uma febre lenta a prostrara.
Vitorina, exagerando o susto, já era de parecer que se desligasse a ama da sua palavra, e não casasse.
― Que me importa a mim?! – disse Ângela. – Dum ou doutro modo hei de acabar breve. O coração já não o sinto. Não tenho saudades de nada. Morro, sem faltar à minha palavra. Se Deus me não der melhor vida depois, é que não há céu.
Ângela enganou-se. Ao fim de quinze dias estava cansada de pensar na sua desgraça, e indiferente, senão identificada. Estas refundições são vulgaríssimas. É minha opinião que as lágrimas deslaçam e rompem os liames de certas crenças e esperanças; porém, como à vida se fazem mister outros, opera-se uma renovação de vínculos que nos atam a outras preocupações. Nas índoles feminis são por via de regra tais renovações mais temporãs, em razão de operarem nelas as lágrimas em maior cópia. E se me não engano, há aí coração de senhora que pode frutificar colheitas variadas cada ano, duas, três e mais, consoante a regra de lágrimas. E uma aleivosia que o mundo ignaro lhes assaca de versatilidade não é mais que ilusões que se afogam e renovos que desabrocham assim que as lágrimas se estancam.
Postas estas coisas como explicação de outras relativas à filha do general Noronha, cumpre saber que no dia 4 de novembro de 1841, pelas 9 horas da manhã, contraíram o sacramento do matrimônio D. Ângela de Noronha Barbosa com Hermenegildo Fialho.
Entre as testemunhas deste consórcio, invejado das damas e cavalheiros do concelho, estava aquele João Pedro mordomo do general.
É que ele tinha chegado na véspera a entregar a D. Ângela o cofre das jóias de D. Maria d’Antas, e a mostrar uma carta, escrita desde Paris, em que o general dizia: “Se souberes onde para a senhora que pernoitou nessa casa, entrega-lhe um cacifro de objetos de oiro e pedras que está no meu quarto, e cobra recibo”.
João Pedro, informado da riqueza do noivo, antes de o ver, felicitou a filha de seu patrão; mas, depois que o viu, coçou as farripas da calva, e disse à puridade, a Vitorina:
― Oh! Com dez milheiros de diabos!...
― Então que é? – perguntou a criada.
― É que, se a fidalga não for santa, aquele homem há de ser...
E calou-se, porque adivinhou que eu tinha de contar fidelíssimas estas passagens.
XVII
HISTÓRIA DOS BRILHANTES
Em janeiro de 1842, Hermenegildo Fialho passou a residir no Porto em casa sua, mobiliada pomposamente, na rua do Bispo.
Diga-se desde já, para anteparar estranhezas futuras, que o brasileiro andava cismático e a modo de melancólico.
Não se descosia com ninguém, porque a irmã, sua confidente, ficara a governar a quinta dos Choupos. É, todavia, fácil entrar nas cavernas daquele peito, sem embargo do enxundioso arnês.
Fialho conjectura que Ângela o aborrece. Nem um sorriso, nem uma carícia, nem uma palavra que não seja resposta concisa e seca. Ele não ousa argüi-la; mas, se mansamente se queixa, Ângela responde com um franzir de testa e um silêncio tétrico.
Principia o arrependimento a desbastar-lhe as opulências musculares, e o fígado a dar rebates de desordem intestinal. Recorre aos emolientes; mas a esposa, como ele revelou ao compadre Atanásio, manda-lhe cingir as papas por um galego.
Ângela faz isto inocentemente. E talvez que, matrimoniada com um arcanjo, não pusesse mão em linhaça, se os arcanjos pudessem sofrer do fígado.
Debaixo das telhas do próximo passam agonias ridículas que não viu o dom Cleofas de Le Sage.
Vitorina está sempre a procurar na cara do amo sinais de morte. Se o vê mais amarelo, ou mais vermelho, com o nariz menos sucoso, e os olhos mais encovados, diz logo a Ângela: “O homem não tarda!”. A frase era elipticamente econômica; o não tardar era ir depressa para a sepultura.
Resolvido a viver e distrair-se, Fialho abriu escritório na Reboleira e comprou navios. E distraía-se. A bailes e teatros não ia, nem Ângela os desejava. Como é já notório, em substituição à missa, comprou oratório para uso da esposa. Hermenegildo, em matéria de religião, era bestial.
Decorreram seis meses. Ângela foi mudando salutarmente para ambos. Estava afeita. Conversava com melhor sombra; mas acariciava um gato para sentir o prazer nativo de suas aveludadas mãos. Hermenegildo olhava para o lombo luzidio do bicho, e espumava umas cóleras que engolia azedas como vômito de digestão derrancada.
Na primavera deste ano, o brasileiro foi à terra, e só, para queixar-se à irmã nestes termos:
― Ela não me tem casta de amor nenhum. Passam-se dias que não dá palavra, e noites que adormece a rezar e lá fica. Este casamento foi o diabo! Cabeçada assim nunca a deu homem de juízo! É bonita, mas de que serve? É como quem tem um painel em casa. Se é fidalga, isso cá a mim que me faz? Fidalga é a burra. Enfim, desde que me desenganei que não há volta a dar-lhe, lancei cá os meus cálculos, e já sei o que hei de fazer... Nada de me apaixonar.
Mulheres que me queiram não faltam. Eu me arranjarei como fazem todos. A irmã deu-lhe bons conselhos, e recomendou-lhe paciência e juízo.
― Lembra-te, dizia ela, que a pobre menina fez uma promessa para te salvar da morte, e casou contigo sem amor.
― Então não casasse.
― Eu disse-to, e tu disseste que o amor vinha depois. Então espera que ele venha, meu filho.
― Agora vem! Olha que ela está-se a fazer velha; e de aborrecida já nem parece a mesma. Está mais amagrada, e branca como a cal da parede.
― Coitadinha! – atalhou Rita, condoída.
― Coitadinho de mim!
― Mas tu estás bem gordo, Hermenegildo!
― Bem haja eu! Pudera não! Vou fazendo pela vida.
― Mas não a mortifiques, que ela é um anjo.
― Não me cantes lérias, Rita! Aquela mulher tem lá no interior outra paixão antiga. E queira Deus ou o diabo que ele me não pregue alguma, que eu não sou para graças. À primeira que me fizer, ponho-me ao largo.
― Jesus! Tu estás aí a asnear, homem de Deus! Pois uma senhora tão boa, tão rezadeira...
― Ora, contos, minha amiga; as que rezam muito lá sabem por que o fazem. Se elas não tem pecados, p’ra que rezam? Responde lá, se és capaz!
― Tu és herege, Hermenegildo!
― Qual herege! Sou felósefo, é o que eu sou.
E era.
Enquanto ele filosofava em linguagem correntia – mérito de que não se gabam muitos de seus confrades –
lances extraordinários passavam na vida de Ângela.
Estava ela à janela em um Domingo de manhã quando viu subir da Praça Nova uma mulher de mantilha, que a fez estremecer vista de longe. Desceu de corrida ao primeiro-andar e abriu a janela a tempo que a mulher passava defronte. Duvidou, acreditou, hesitou, e enfim disse em voz alta à criada que a seguira assustada:
― Será Joana?!
A mulher, que passava, voltou o rosto rapidamente, deu de olhos em Ângela e estacou.
― É ela, é ela! – confirmou Vitorina.
― Suba Sr.ª Joana! – disse a senhora agitadamente, correndo a recebe-la no pátio.
― Ó minha senhora – exclamou Joana – Ó meu Deus! Pois eu encontro aqui a Sr.ª D. Ângela! Ainda torno a ver esta senhora!
Abraçaram-se enternecidas e subiram sem se desenlaçarem.
― Como ela está acabada! – disse Vitorina benzendo-se ― Estou muito velha e muito doente... e vossa excelência ainda tão formosa, mas mais descoradinha!... Eu vim de Viana há três meses, perguntei por vossa excelência, e ninguém me soube dizer onde parava. E estava aqui! E eu sem o saber!
― Então tem tido muitas amarguras na sua vida? – perguntou Ângela com os olhos afogados em lágrimas muito fitos nela.
― Oh, se tenho, minha senhora! Há perto de quatro anos a vivermos dum trabalho pouco rendoso...
― A viverem... – atalhou Ângela. – Então seu irmão...
― Meu irmão está comigo, minha senhora. Nunca nos desamparamos um ao outro, e Deus tem sido misericordioso conosco deixando-nos viver juntos...
― Aquela morte de seu marido... – balbuciou a sobrinha de D. Beatriz.
― Não me fale nisso, minha senhora, que ainda se me parte o coração, quando me lembro de o ver cheio de vida e lutando com a desgraça para poder pagar à Sr.ª D. Beatriz, sem vender a casa; e, em poucos dias, matou-o a paixão de se ver desonrado e...
― Sei tudo, sei tudo... – murmurou Ângela apartando-lhe as mãos. – Perdoe-me, sim? – continuou ela com a voz tremente. – Perdoe a quem foi a causa de morrer seu marido...
― A causa, minha senhora, não foi vossa excelência; foi a má estrela que nos perseguia. Ninguém podia prever o que aconteceu. Tão culpada foi a senhora, como eu, como o meu pobre Francisco. Por causa dele também vossa excelência padeceu muito, segundo lá ouvi dizer em Viana a uma criada que foi do convento. Afirmaram-me que vossa excelência chegara a sentir a precisão de trabalhar... Quem diria!...
― E que tem isso? Pior seria se o meu trabalho me não chegasse para o pão de cada dia... – refletiu Ângela.
― Quando contei isto a meu irmão, parecia que a luz dos olhos se lhe apagava nas lágrimas...
As duas senhoras referiram mutuamente a sua história, desde o momento em que se apartaram. A leitora sensível antes quer ignorar misérias que ali se revelaram as duas amigas; que farte tristezas são já sabidas para piedade e simpatia.
Tinham decorrido três horas de prática entre sorrisos e lágrimas, quando Joana se levantou e disse:
― Deixe-me vossa excelência ir fazer o jantar de meu irmão.
― Espere... – atalhou Ângela, e foi ao seu quarto.
Parou à entrada, e exclamou, como se houvesse medo de entrar:
― Ah!
E, chamando Vitorina, perguntou com aflição:
― As jóias de minha mãe ficaram na quinta, não ficaram?
― Sim, minha senhora. Vossa excelência disse-me que as fechasse na cômoda, porque eram coisas antigas que já se não usavam; até seu marido, nessa ocasião lembrou que o meu melhor era trocá-las por enfeites modernos.
― É verdade!... – recordou Ângela com muita amargura. – Como há de ser isto? Eu queria dá-las a Joana.
― Dá-las?... e se seu marido perguntasse por elas?
― Respondia que as dei.
O tom severo desta resposta forçou a criada a silêncio.
Ângela voltou à sala, apertou entre as suas as mãos da viuva, e disse-lhe com veemente solenidade:
― A minha amiga vai jurar pela memória de seu marido que não dirá a seu irmão que me viu.
― Juro, minha senhora.
― E não lho dirá por que o vermo-nos complicaria o infortúnio de ambos.
― Não era preciso lembrar-mo vossa excelência.
― E promete-me aqui vir amanhã à mesma hora?
― Sim, minha senhora.
― Então vá, e creia que tem aqui ao pé da minha alma de irmã a alma de seu marido. Eu hei de melhorar a sua sorte, se a senhora nunca esquecer o seu juramento.
― Não esquecerei, Sr.ª D. Ângela.
Saiu Joana; e a esposa do brasileiro abriu um estojo de veludo, que continha o adereço que o marido lhe dera.
Examinou as peças, procurando uma, cujas pedras se desencravassem com menos custo. Escolheu a pulseira, e dela com os bicos de tesoura extraiu um brilhante. Chamou Vitorina, e disse-lhe:
― Vai vender esta pedra a um ourives.
― Vender?!... – objetou com espanto a criada.
― Sim, vender.
― Teremos novas desgraças, minha senhora?
― Não. Temos desgraças antigas a remediar. Faz o que te mando, Vitorina, senão, vou eu.
A criada sentiu-se impelida por irresistível força. Ângela, quando mandava com império, fazia lembrar à velha a soberba e inflexível Maria d’Antas.
Saiu Vitorina, examinando, na rua das Flores, as ourivesarias mais abastecidas. Entrou na loja dos Srs.
Mourões, e vendeu o brilhante por 250$000 réis.
Voltou a tremer, medindo a gravidade do delito pela abundância de oiro e prata que lhe pesava de certo modo na consciência. Entregou o dinheiro a sua ama, e abalançou-se a fazer considerações timoratas sobre o alcance de tal passo.
D. Ângela rebateu os sustos de Vitorina com o seu ar de infinita alegria – raio de luz que muitos anos havia não tinha tocado os lutos daquela alma.
― As minhas jóias já ele me disse que valeriam quatro ou cinco contos – ajuntou Ângela para aliviar dos escrúpulos a meticulosa criada. – Quando ele (ele era o marido) desse fé que eu dispusera destes brilhantes lá tem os de minha mãe para se ressarcir.
― Mas o pior é se ele pergunta a quem vossa excelência deu o dinheiro... – contrariou a sisuda velha.
― Se pergunta, responderei “dei-o”. Verás que sou pontual no que prometo, se chegar essa ocasião.
― Deus nos acuda por sua sagrada paixão, e morte!... – esconjurou Vitorina, e acomodou-se para não agourentar a exultação da ama.
No dia seguinte, à hora aprazada, chegou a irmã de Francisco Costa. Foi recebida com grande contentamento.
― A minha amiga – disse a filha do general com a mesma gravidade do dia anterior – continua a jurar pela memória de seu marido que fará quanto eu lhe disser, e não revelará a seu irmão palavra do que se aqui passar. Jura?
― Farei o que vossa excelência disser, sendo coisa que não possa acarretar-lhe desgostos.
― Não me ponha condições; se mas põem, torna-me mais desgraçada do que eu era – disse Ângela com transporte, perdendo por instantes a alegria que lhe iluminava o rosto.
― Farei o que vossa excelência mandar. ― Bem. Escute-me. Quero que a senhora mude de situação, de casa, e de tudo. Quero que seu irmão continue os seus estudos. Quero restituir-lhe o que perdeu com a morte de seu marido...
― Ó minha senhora, vossa excelência...
― Deixe-me falar. Quero que seu irmão nem em sonhos possa conjecturar donde a minha amiga recebe os recursos. Ajude-me a pensar; como há de ser isto? Como poderemos nós enganá-lo?
― Não sei, minha senhora... Meu irmão sabe que eu nada tenho, e que os nossos parentes todos são pobres...
― Eu pensei toda a noite nisto. Inventei uma mentira inocente. Veja se tem jeito... Parece-me que sim... A
minha querida amiga finja que uma pessoa de Viana, que não se declara, ficou devendo em consciência a seu marido certa quantia de dinheiro, e quer restituí-la porque tem remorsos de ter contribuído para a perda e morte do Sr. José Maria. Compreende?
― Sim, minha senhora; mas...
― Espere. Ouça o resto. Essa pessoa diz na carta que irá remetendo, de tempo a tempo, a quantia que deve, e declara que não é pequena a restituição. Para que seu irmão possa, sem receio de ser interrompido por falta de meios, continuar o seu curso. Que lhe parece?
― Não me parece mal; mas se meu irmão quer entrar em averiguações...
― Na carta há de dizer a pessoa que das averiguações, se se fizerem, resulta a suspensão dos pagamentos, porque o restituidor não se esconde de Deus, mas quer esconder-se do mundo. Pensei em tudo.
― Mas quem há de escrever a carta? – argumentou Joana.
― Olhem a grande dificuldade! Escrevo-a eu.
― Mas ele conhece a letra de vossa excelência...
― Que novidade! Deixe-me acabar... Escrevo-a eu, e Vitorina chama um rapaz da escola, e paga-lhe para que a copie; e, depois, a carta finge-se trazida por um sujeito desconhecido, que a procura em sua casa enquanto seu irmão está no escritório, e lha entrega com este dinheiro.
E, dizendo, entregava a Joana os 250$000 réis em uma saquinha.
A irmã de Francisco hesitava em receber. Ângela lançou-lhe a saca ao regaço, e disse:
― Com esses modos não me deixa gozar todo o contentamento com que Deus me está compensando o martírio de quatro anos! Minha amiga, deixe-me inteiro este gozo, por quem é! Por alma de seu marido lhe rogo!
Lavada em lágrimas, Joana inclinou-se a querer beijar os pés da fidalga, que a estreitou com transporte ao coração.
― Vá que são horas – disse Ângela – guarde o dinheiro onde seu mano o não veja. Amanhã torne à mesma hora, que já hei de cá ter a carta. Fico muito alegre. Vou agradecer a Deus este raio de sol. Não me acha hoje mais bonita? Mais nova? Olhe o que faz a felicidade!... Há quatro anos à espera desta hora!... É hoje a primeira vez que vejo seu marido a sorrir para mim do outro mundo!... Não chore, que ele não quer. Vá, vá minha amiga...
Joana saiu enxugando as lágrimas, e entrou no primeiro templo que encontrou aberto a pedir ao Senhor que abençoasse a caridade da virtuosa Ângela.
Saiu-lhe bem logrado o plano à consolada senhora.
Francisco José da Costa leu a carta como assombrado dum caso de restituição em tempos de tanta filosofia alumiadora dos espíritos – quando para castigo de ladrões já não havia inferno, nem para glória de arrependidos céu.
Contou o dinheiro, e disse à irmã:
― Agora, minha pobre Joana, cessa de trabalhar. Vai vivendo do que receberes, que eu para mim cá me arranjarei com os três tostões da escrivaninha.
― Isso acabou, Francisco. Deixaste de ser amanuense de tabelião.
― Estás doida com a tua felicidade dos 250$000 réis!...
― Olha, Francisco, – tornou ela – se este dinheiro e o que vier te não servir, para mim é inútil. Ou tu continuas os teus estudos, ou eu continuo a minha costura, esperando que um dia te resolvas a empregar o dinheiro. Escolhe.
Juro-te que não levantarei cinco réis deste, e do que vier, sem que tu estejas formado. O que peço é que me alugues melhor casa e que a mobiles com mais limpeza. Peço-te muito por ti, e pouquíssimo por mim. Estamos em março; vê se consegues ainda este ano continuar a aula que interrompeste em fevereiro, há quatro anos. Forma-te, meu querido irmão, e serás depois o meu amparo. Então descansarei confiada somente aos teus cuidados.
A lei não permitia abrir matrícula extemporaneamente. Todavia, Francisco passou o restante do ano recordando matérias esquecidas desde as mais rudimentares das aulas preparatórias. Melhorou de casa, comprou livros, sentiu-se renascer, abendiçoou muitas vezes a Providência que sugerira no coração de quem quer que fosse a virtude de repor um roubo – virtude dificílima, digo eu, que encheria o céu de santos, se os ladrões, uma bela manhã, se combinassem para expulsar de lá os bem-aventurados por virtudes fáceis. Roubar e restituir depois, dizia ele, inculca uma transformação moral de tal magnitude que não se faz mister provar com outro fenômeno a divindade da religião que operou tal maravilha. No primeiro capítulo deste livro vem contado o prosseguimento da venda dos brilhantes até completar-se a formatura de Francisco Costa, concluída em 1846. A ilusão do estudante nunca sofreu quebra. A restituição orçava por 1.650$000 réis, quando o cirurgião-médico, desgostoso de se ver sem clínica, bem que se distinguisse em prêmios e habilidade operatória, deliberou aceitar a proposta dum armador para ir ao Rio de Janeiro como cirurgião duma galera. O proponente era Hermenegildo Fialho, sujeito que Francisco nem de nome conhecia. Aceitou sob partido que ficaria no Rio, se lhe aprouvesse.
Joana, na véspera de embarcar-se o irmão, pediu de joelhos a D. Ângela que lhe deixasse declarar a quem deviam a sua felicidade. A esposa do brasileiro redargüiu que lhe daria mau pago se a denunciasse sem precisão nem utilidade, indo humilhar um homem que não podia agradecer, sem desconsolação, o benefício da mulher que o amou.
Pelo que respeita ao viver íntimo do brasileiro e esposa, no correr destes cinco anos, é de notar que melhorou sobremaneira. Ângela conformara-se, ou as alegrias da beneficência vislumbravam-lhe no rosto, mais afável para o marido. Ele, por sua parte, cumprindo o programa exposto equivocamente à irmã naquela frase eu me arranjarei, realizou-o exuberantemente mobiliando em S. Roque da Lameira e na Cruz da Regateira duas vivendas alegres, gaiolas de amor, em que tinha as duas aves colhidas a visgo de oiro nas florestas da sua Barrosas, segundo ele confessara, justificando os motivos a seu hospedeiro compadre Atanásio José da Silva.
E visto que chegamos ao ponto em que deixamos o brasileiro roncando, ligue-se a história, depois de havermos afastado da imaculada esposa as presunções aleivosas.
XVIII
A INFAMADA
Estava Ângela escrevendo a um dos três amigos de seu marido, rogando que a não considerassem esposa infiel, nem difamassem seu nome, querendo forçá-la a entrar num convento, à imitação das mulheres delinqüentes.
Prometia ela defender-se, se se marido a quisesse escutar, a sós, bastando-lhe de sua inocência o testemunho de Deus, cuja providência, em tão apertado lance, lhe dava coragem para encarar de rosto qualquer desgraça, menos a de entrar no convento com a nódoa de adúltera.
A carta ia ser fechada, quando se anunciou Atanásio, com os seus amigos Pantaleão e Joaquim Antônio.
O marido da Ruiva declarou que o amigo Hermenegildo teimava em que sua mulher entrasse no convento que lhe fosse escolhido por eles, representantes de suas ordens; e que, no caso de a senhora se negar a obedecer a tão justo mandado, fizesse de conta que não tinha marido, nem casa, nem fortuna, porque todos os teres e haveres de seu homem estavam hipotecados, vendidos e alienados, como se provaria em juízo com documentos da maior validade.
Escutou-os Ângela, e disse serenamente:
― Mandam-me portanto sair?
― Sim, se a senhora não quiser ir para o convento.
― Não vou.
― Então, muito nos custa dizer-lhe que...
― Despeje a casa? – concluiu Ângela.
― Sim..., se a senhora... – repetiu Atanásio. – Bem sabe que a honra dum homem... Seu marido tem de dar contas à sociedade...
― E a Deus – ajuntou Ângela.
― Isso de Deus... – remoneou Joaquim José Antônio.
― Não há? – perguntou ela.
― Não sei se há, nem se não há. O que sei é que ele não se mete cá nestas coisas.
― Se a senhora está inocente – interveio Pantaleão – prove-o. Diga a quem deu 1.650$000 réis.
― A um pobre.
― Mas quem era o pobre? Saibamos isso... Era pobre honrado?
― Era.
― Como se chama?
― Ainda que lhes diga o nome dele, os senhores não conhecem os pobres honrados; conhecem somente os infames ricos.
― Tenha prudência na língua, minha senhora – rebateu Atanásio.
― Desçam as escadas, que quero sair, seus biltres! – exclamou a filha de D. Maria d’Antas. – Se os galegos da casa me obedecessem, haviam de fazê-los saltar pelas janelas; mas a casa já não é minha, e infame eu seja quando pedir um ceitil do que ela encerra. Aqui ficam as jóias de minha mãe, que valem quatro ou cinco contos de réis. O seu amigo Hermenegildo que se pague do que me deu, e, se alguns vinténs sobejarem, que compre uma corda e que se enforque.
― Irra!... que mulher! – dizia Joaquim a Pantaleão, limpando o suor da testa em janeiro.
― Tem diabo no corpo! – regougou o outro.
Voltaram-lhe as costas com arremesso, e saíram vociferando palavras insultantes.
De pós eles saíram Ângela e Vitorina, deixando as portas abertas e a casa entregue aos criados, que choravam em altos clamores.
― Vais tão triste?! – perguntou Ângela à criada.
― E vossa excelência não, minha infeliz menina?
― Não! Pois não vês?! O que eu não deixei naquela casa foi o ouro da consciência...
― Sair sem nada!... Que leva vossa excelência ai nesse dispensável?...
― É o livro dos SONHOS do Francisco – respondeu ela sorrindo. – Não tenho mais nada que me recorde a minha alegre mocidade senão isto e tu! As coisas que mais amo vão comigo.
Vitorina chorou de agradecida, e participou involuntariamente da alegria da senhora.
Entraram na rua do Moinho de Vento e procuraram um número de casa. Subiram, e acharam-se na alegre e asseada saleta de Joana Costa, que se levantou a receber a fidalga com transporte e espanto.
― Venho pedir-lhe um canto da sua casinha! – disse Ângela risonhamente. – Dê-me o quarto de seu irmão para mim e para a minha Vitorina.
― Pois que é, minha senhora? Que é isto?! – exclamou Joana.
― É que fui expulsa; não tenho casa, nem “fortuna”. Veja como se cai depressa, minha amiga! Apesar disso, quando a queda não é vergonhosa, a gente parece que sente as asas dos anjos a ampará-la.
Referiu Ângela o sucesso dos brilhantes, da intimação para responder à autoridade, da mensagem dos amigos do marido, etc. se Joana a interrompia com o choro, a serena hóspeda revelava desgosto, e queixava-se do mau uso que ela fazia das lágrimas.
Finda a relação, a filha do general foi tomar posse do quarto de Francisco, quedou largo tempo a examinar as mais insignificantes coisas, buliu nos livros, nas gavetas, nos papéis escritos, sorrindo a tudo.
― O meu livrinho das Esperanças? – perguntou ela.
― Levou-o. Costuma estar neste sitio – respondeu Joana indigitando um lugar vazio entre dois livros.
― Pois irá para o lugar dele o livro dos SONHOS.
E colocou o manuscrito, examinando os dois livros laterais. Eram também manuscritos, e ambos com o mesmo título: ÂNGELA.
Joana disse, sorrindo:
― Eu nunca lhe contei que ele tinha esses livros...
― Não.
― De propósito para que vossa excelência os não quisesse ver... Escreveu-os nos primeiros quatro anos da nossa pobreza. Passava as noites nisto, depois de gastar os dias no escritório. Lia-me às vezes alguma página, e abraçava-me se eu chorava. Mas não se entristeça, minha senhora! Já mudou de semblante!
― É felicidade! Não me lamente, minha amiga!... Como eu quero a estes dois livros!... E era capaz de me deixar morrer sem que eu os visse?
― Decerto! Deus me livrasse de eu ir inquietar vossa excelência!... Já depois que meu irmão saiu, estive aqui um dia muito doente, e pensava já em os rasgar, se piorasse; que não fosse alguém ler o que ele dizia de vossa excelência...
― Pensemos noutra coisa, minha amiga – tornou Ângela com os olhos rasos de gozosas lágrimas. – Temos em que trabalhar?
― Não precisamos; que meu irmão deixou-me metade dos trezentos mil réis que foi ganhar. Apenas gastei duas moedas deste dinheiro. Abra vossa excelência essa gaveta, que lá está o resto.
― Mas é necessário trabalhar, minha irmã. A ociosidade é o tédio, é a doença, é o desespero. Olhe que eu, quando me chamavam a brasileira do meio milhão, em cada dia, costurava cinco horas. E foi bom conservar os costumes adquiridos na pobreza do convento. a pobreza voltou; mas desta vez encontra-me prevenida, e de mais a mais disposta a desafiá-la para que me incomode.
― E como o prazer lhe salta nos olhos! – dizia Joana a contemplá-la, e a saborear o seu quinhão daquela comunicável alegria.
― Não, que a minha irmã não imagina quanto me sinto bem! Parece que renasci! Ó Vitorina, vai ver como está isso lá de cozinha. Tenho vontade de jantar. Vamos jantar logo, Joanhinha?... E se seu irmão nos aparecesse agora!
Se ele me encontrasse de posse do seu quarto e dos seus livros, e a escrever as minhas novas Esperanças...
Esperanças! – sorriu ela, acentuando a palavra. – Agora é que as esperanças de amanhã não hão de inquietar o bem de hoje! Até agora o que eu esperava era isto... esta paz, esta doçura de viver, sem parentes, sem ninguém, senão com as pessoas que sacrifiquei, e me querem bem, apesar de tudo, não é verdade?
― Mas se seu marido a vem buscar, minha senhora!
― Buscar-me! Eu morri, ou ele morreu... não sei bem quem foi; mas o certo é que nos não veremos mais...
Àquela mesma hora, Hermenegildo jantava na cevadeira de Atanásio. Escarmentado pela ceia da véspera, não comeu empadão de ostras; mas fez-se em lagosta e salmão. Depois de jantar, reuniu os amigos, e completou as instruções a seguir sobre a segura arrecadação da sua “fortuna”, alienação fraudulenta de quintas, casas e navios, tudo incontinente para antecipar-se à tentativa de divórcio com a separação do casal, a requerimento de sua mulher.
Ao anoitecer, meteu-se em carruagem, e foi para S. Roque da Lameira, ou para a Cruz da Regateira: não liquidamos com certeza em qual das paragens pernoitou. O sabido é que uma das frescassas moças de Barrosas o seguiu para o Porto, no dia seguinte por noite, e tomou as rédeas do governo da casa do brasileiro, e achou bonitas as cortinas do leito nupcial de Ângela, quando pela manhã um raio de sol, através das rendas, aureolava a cabeça de Hermenegildo, contornada no braço trigueiro dela.
E, quinze dias depois, o brasileiro, chorado e lamentado dos amigos, embarcava em um dos seus navios, aproando às praias de Santa Cruz, onde, dizia ele, ia esconder a sua vergonha, associando à sua angústia a franduna rapagoa, Rosa Catraia, que se lhe encostava ao coração, enjoada com o balanço da galera!
A colônia de brasileiros portuenses longo tempo chorou a sorte dura de Fialho. Ali, na Praça-nova e no Jardim de S. Lázaro, se apinhavam os magotes daquele gentio a escoucear na honra de Ângela. Enquanto uns diziam que ela passara a abarregar-se com o incógnito amante, outros asseveravam ter exatas informações de que a tal fidalga da Cascos-de-rôlhas cedo poria em almoeda a sua beleza. E os homens honestos do Porto jungiam-se na maledicência com a vara de javardos que retoiçavam e foçavam na infâmia uns dos outros. E sobre aquela gente chovia, e chove Deus toda casta de prosperidades! E a providência ter-lhe-á dado quanto tem e pode no dia em que enviar sobre ela uma nova chuva... de albardas.
XIX
AMOR-PRÓPRIO
Recebeu Joana a Segunda carta de seu irmão. A prosperidade afagava-o no Rio de Janeiro. Feliz numa operação de catarata, e louvado nos periódicos, fez soar o seu nome nas capitais das províncias, de onde concorriam os enfermos a consultá-lo. As remunerações eram liberalíssimas, por maneira que, segundo a parcimônia de sua ambição, poderia, dizia ele, retirar-se com sobejos recursos para viver em Portugal sem clínica. Não transparecia da carta cintila de contentamento, senão antes muitas e tristes saudades da irmã e do seu gabinete de meditação. O
período último da carta rezava assim:
“Li há dias no Jornal do Comércio, que tinha chegado ao Rio o português Hermenegildo Fialho, que é ou era dono da barca em que vim. Nunca o tinha visto; mas entendi que devia procurá-lo, porque era dele o primeiro dinheiro que ganhei pela ciência, e o com que te estás sustentando. Tinha-se hospedado em casa do seu correspondente. Sem eu nada lhe perguntar, me disse que deixara Portugal para sempre, por causa de sérios desgostos que lhe dera a mulher. Ouvi-o em silêncio, e tive pena do homem, que me pareceu consternado, posto que nédio e pouco azado para mover à piedade. Mas a minha compaixão trocou-se em riso quando ontem o vi em Petrópolis com uma espadaúda mulher que denunciava pertencer à raça forte das nossas mulheres do Minho. Eu iame desviando dele, pensando que o embaraçava; mas ele mesmo me chamou para me oferecer de almoçar com tal instância que não pude safar-me. Não me atrevia a perguntar quem era a nossa comensal. Como leste o D. Quixote, imaginarás que eu, comparando os personagens do romance com os do almoço, me figurei que Sancho tinha roubado Maritornes ao cavaleiro da triste figura. Realmente, Hermenegildo, como Sancho, excedeu a imaginativa de Cervantes”.
“Em meio do almoço, o marido exilado da pátria e da esposa que o desonrou, me disse que aquela mulher era o seu aconchego, e a consolação das suas mágoas. Isto me fez um certo engulho, e fiquei depois a pensar na desmoralização daqueles cinqüenta anos. Talvez que a mulher cuide lá que o seu esposo anda por cá muito atormentado! Contei-te este caso por achar nele, não direi sal, mas podridão dos costumes contemporâneos, etc.”
leu Ângela a carta, interrompendo-se com impulsos de riso no derradeiro período.
― E se ele soubesse que eu era a esposa de Sancho!... – exclamou ela, casquinando uma argentina risada. –
Que piedosas lágrimas não verteria o nosso Francisco, minha irmã! E, se não chorasse, pode ser que eu lhe fizesse também engulho!... A despeito do riso, Ângela doera-se, e em secreto sentiu ímpetos de chorar. Não lhe pungia a ridícula libertinagem do marido. Que lhe fazia isso a ela? O nojo não tinha já onde coubesse. A mágoa era toda de amorpróprio; era prever que Francisco Costa, um dia, ao saber que tão grotesco homem era o marido da mulher única do seu amor, sentiria despintar-se-lhe da fantasia o colorido ideal com que a eterizava nos dois livros chamados Ângela.
E, como esta mágoa era de espécie ruim de revelar-se, a calá-la foi um penetrar-se, mais dos espinhos de sua perdoável vaidade, e entristecer-se a extremos de dar que sofrer à amiga e a Vitorina.
Perguntava ela uma vez a Joana:
― Seu irmão, quando soube que eu casara no Minho, como o soube?
― Porque um homem de Ponte lhe disse que a filha do Sr. general Noronha tinha casado muito rica, e o soubera do mordomo de seu pai...
― Eu vi aqui no livro dele, - interrompeu Ângela – uma alusão ao meu casamento. Diz ele assim... (E abriu o livro, onde tinha a lauda dobrada, e leu:) Que pena terás de ti própria, Ângela, quando não sentires o calor da tua alma nas formas tão belas, tão vestidas de celestial luz, conspurcadas no sevo da brutal cupidez do argentário!...
Sabe, minha amiga, o sentido destas palavras?
― Sei, minha senhora. É porque o mordomo de seu pai tinha visto, não sei onde, seu marido, e dissera ao outro que nunca vira coisa mais feia.
― E seu irmão desprezou-me por isso?
― Leia vossa excelência a continuação do livro e verá que ele não a desprezou: amou-a sempre com a mesma elevação espiritual do tempo em que ele dizia, e eu mal o percebia: Como homem de alma adoro Ângela, ilumino-a à luz que radia das minhas crenças em Deus. Quantas vezes eu lhe dizia: - Por que não amas outra? – E ele respondiame: “Não se aviltam certas almas quando mesmo queiram envilecer-se...”
― Isto está escrito – apontou Ângela, e continuou lendo: Entre ti e Deus poderá existir outro elo, minha querida amiga; mas eu não o conheço. Se um dia o conhecer, então esquecer-te-ei. O homem, que te chama sua, é apenas a lama que se apegou ao brilhante caído no tremendal. Eu serei sempre, na tua memória, o aro de ferro onde realçaria o teu brilho. A sociedade enxovalhou-te, impeliu-te, a golpes da miséria, à degradação dos corpos escravos do ouro; mas eu sei que a tua alma se vai alçando mais para a sua origem purificada por agonias superiores às minhas. A mim resta-me a independência para chorar; e tu não tens sequer esse desafogo, minha pobre Ângela! Eu sou mais feliz, e não queria sê-lo...
Estas leituras e os comentos de Joana despontaram as puas do amor-próprio. A satisfação renasceu.
Neste tempo, noticiaram as gazetas portuenses que o general Noronha voltara de novo a Paris, e recolhera a Portugal sem esperanças de cura, sendo um dos seus flageladores padecimentos uma quase cegueira, que lhe tornava horrorosa a existência no seu solitário palacete de Ponte.
Ângela sentiu-se transida de compaixão de seu pai, que ela tinha conhecido onze anos antes ainda vigoroso, posto que encanecido. Escreveu-lhe. De sua vida nada lhe contava. Oferecia-lhe o seu braço para amparo, os seus olhos para ver por eles, o seu coração de filha para urna das lágrimas espremidas pela saudade e memórias dos seus afetos de moço feliz, com todas as alegrias do mundo a cortejá-lo O general ouviu ler a carta ao seu mordomo, e disse:
― Cuidei que era morta... Morta está decerto...
E não respondeu.
Aquela carta redobrou-lhe o tormento da memória ao ancião. Maria d’Antas relampagueava-lhe amiúde diante dos olhos de alma; e ele circunvagava os do rosto para afastar a imagem formidável com a diversão de outras; mas...
não via! Apenas tinha olhos para chorar.
― Por que não chama vossa excelência para si sua filha? – dizia-lhe um dia o mordomo, com a liberdade de quarenta anos de servo.
― E quem te disse que ela é minha filha?
O mordomo calava-se ― Quem te disse que ela era minha filha? – insistia o general esbugalhando os olhos cinzentos e nublosos.
― Pensei, senhor...
― Parece-se comigo?
― Não, senhor, é o rosto de sua mãe.
― Muito parecido? Já me não recordo de Ângela...
― Tal qual. Quando aqui esteve, há sete anos, era como a fidalga d’Antas quando... morreu.
― Vai-te... deixa-me... – rugiu o cego, gesticulando vertiginosamente.
XX O DOENTE E O DOUTOR
Em fins de 1848 perfazia dois anos e meio que Francisco José da Costa demorava no Rio, gozando os proventos de seus muitos trabalhos e créditos. As remessas de dinheiro feitas à irmã denunciavam o propósito de voltar proximamente à pátria. Uma instante recomendação fazia ele: era a compra da casinha de Viana, que Francisco ainda via luzente e doirada das ilusões de sua mocidade. Talvez que ali vá acabar os meus dias – escrevia ele. – Tenho posses para mais; no entanto, as minhas esperanças não vão mais longe; e as tuas, pobre Joana, são ver-me resignado na tristeza.
Era, pois, em novembro de 1848.
O doutor Costa, como no Rio o honorificavam, foi chamado para visitar um enfermo já seu conhecido e de muita consideração.
Era Hermenegildo Fialho de Barrosas – o roliço devasso que ele não tornara a ver desde o almoço de Petrópolis.
Encontrou-o doente do fígado: desconfiou da enfermidade naquele clima, e no afogo do verão.
O acerto do tratamento desfez os mais graves sintomas: receava, não obstante, o facultativo que o doente recaísse por demasias de gulodice em que a enfermeira se mostrava complacente amiga, e lambaz quinheira.
Hermenegildo não dispensava duas visita diárias, pagando-as com generosidade, porque, dizia ele:
― Sou muito rico, conto mais de duzentos contos, não tenho herdeiros. Tinha uma irmã, que já morreu há três meses, com paixão de me ver sair de Portugal para nunca mais. Não poupe o meu dinheiro, Sr. Costa; e de cada vez que vier conte com uma nota de cem mil réis. O que eu quero é saúde para gastar o que tenho; que já não sou capaz disso.
― Então vossa senhoria não teve filhos de sua senhora? – perguntou o doutor.
― Nada, não tive, nem tenho de ninguém. Não sou de casta.
― Mas sua senhora, se não houve divórcio nem escritura especial, deve partilhar da sua herança, penso eu.
― Isso é cá uma história que eu contarei ao meu amigo doutor Costa. Minha mulher... minha ou lá do diabo de quem é, não há de receber uma pataca, se eu for adiante dela. Quando me apartei, desfiz-me de tudo; isto é, dispus a minha fortuna de jeito e com tais artes que ela não acha coisa a que deite as unhas.
― E tem ela recursos de que viva, depois que vossa senhoria a deixou?
― Não sei, nem quero saber. Dizem que o pai é rico; mas ele faz tanto caso dela como eu.
― Desculpe-me fazer-lhe uma pergunta...
― Pergunte o que quiser; que eu já não me importa falar nisto. Deitei o coração ao largo, e, como o outro que diz, leve o diabo paixões e mais quem com elas medra. Gosto do cavaco. Que queria o Sr. doutor saber?
― Se teve razões para privar inteiramente de recursos sua senhora. Às vezes acontece um homem, na sua posição de atraiçoado pela esposa, cavar mais fundos abismos à sua honra, atirando a culpada ao meio da sociedade, como que diz: “Aí vai uma mulher que eu podia salvar da extrema miséria... Levem-na à última paragem do vício!”
― Não que eu quis salvá-la – acudiu o doente – mas ela não quis. Dava-lhe que comer num convento, e a doida saiu pela porta fora, descompondo os meus amigos.
― E foi viver com o amante, ou esse mesmo a abandonou?
― Isso não sei. Eu o amante não lho conheci, nem sei quem fosse.
― Não sabe?! Então com que provas se julgou traído?... Desculpe...
― As provas foi ela gastar dinheiro grosso sem dizer no quê: disse que o dera, e acabou-se. Pois a quem dava ela o dinheiro?
― Era velha sua mulher?
― Nada: era uma rapariga bonita, bonita duma vez. Não tinha de seu; apaixonei-me pelo palmo da cara, e casei. Vossa senhoria, que é do Porto, nunca ouviu nomear um general chamado Noronha?
― Noronha?! – exclamou Francisco José da Costa, cravando os olhos pávidos no brasileiro.
― Sim, um general Noronha, que vivia em Ponte do Lima... Minha mulher era filha dele...
― Como se chama essa senhora? – interrompeu o facultativo respirando dificilmente.
― Ângela.
Francisco Costa, espaço de três minutos, ficou num espasmo e torpor de pensamento e ação. Aos olhos do brasileiro aquele ar espantado significava estar o doutor recordando-se de ter conhecido o general ou a filha.
― Talvez que o Sr. doutor visse alguma vez minha mulher no Porto... – prosseguiu Hermenegildo. – Eu morava na Rua do Bispo, numa casa de azulejo de quatro andares... Vossa senhoria está incomodado? – disse o doente, notando extraordinária mudança no rosto do médico. – Parece que está a enfiar!...
― Não, senhor. Estou bom... estava a ouvi-lo, e a lembrar-me... que não me é estranho o nome do general e da filha... Donde era sua senhora? ― De Viana, cuido eu.
― Mas eu tinha ouvido contar que uma filha do general Noronha casara na província do Minho...
― Foi comigo; eu estava então na minha quinta dos Choupos. Lá é que foi dar a tal senhora porque era amiga de minha irmã, que tinha estado no mesmo convento com ela, e eu fiz a grande burricada de casar, sem pedir informações a ninguém.
― E depois mudaram para o Porto? Em que ano?
― Em 1840.
― E foi no Porto que o Sr. Fialho teve razões para suspeitar da lealdade de sua senhora?
― Sim, senhor.
― Mas já me disse que não conhecia o amante, nem tinha a certeza de que ela o tivesse...
― Lá conhecê-lo, não conheci; mas a quem dava ela o dinheiro? A minha casa não ia homem de suspeita. Ela não se visitava com fôlego vivo. Mulheres destas de mexericos não me punham lá o pé das escadas acima, a não ser a costureira, de longe a longe. Não sei; o que sei é que descobri que ela vendia os brilhantes duma pulseira que lhe dei, e distribuía o dinheiro.
― Quantia grande?
― Que eu saiba 1.650$000 réis. Não era pelo dinheiro, que isto cá a mim não me fazia mossa; a minha questão era saber a quem deu ela este capital. Isso é que nem Deus nem o diabo foram capazes de lhe tirar do bucho.
Deteve-se Francisco a pensar naquela quantia de dinheiro, confrontando-a com outra que recebera durante o tempo da sua formatura. O homem tinha momentos de cuidar-se alucinado ou adormecido. Às vezes, a ânsia com que perguntava e o alvoroço com que ouvia as respostas, inclinavam-no sobre a cara do enfermo, que tinha razão de se espantar da torva inquietação do doutor.
― Queira dizer-me... – voltou Francisco, e susteve-se embaraçado com a torrente de perguntas que lhe soçobravam o espírito.
― O quê? – perguntou Hermenegildo, que parecia folgar nestas confidências com o seu médico.
― Já me disse que a sua casa ia apenas uma costureira...
― É verdade...
― E essa costureira...
Susteve-se outra vez o interrogador, receando demasiar-se em averiguações que deviam parecer desnecessárias ao marido de Ângela.
― Da costureira não desconfiava eu, nem me importava que ela lá fosse; mas olhe que não deixei de indagar da vida dela.
― E soube alguma coisa?
― Soube que era uma viúva honrada e que vivia com um irmão. Chamava-se ela Joana, e por sinal que não era má fatia! – acrescentou ele, piscando o olho direito e trejeitando um careta de sibarita.
O facultativo calava-se a intervalos grandes. Dir-se-ia que o nojo crescendo, subindo e empolando-se do peito acima, lhe impedia a fala.
De súbito, perguntou com a fronte avincada.
― E para onde foi a Sr.ª D. Ângela?
― Não sei: os meus amigos ainda a viram sair com a criada pela rua acima, tomar para o largo do Laranjal, e não souberam mais nada. Eu, passadas duas semanas, fiz-me de vela para aqui.
― Mas não pode o Sr. Fialho conjecturar onde ela iria ter?
― Quem sabe lá?!
― Ela saiu sem dinheiro?
― Acho que sim. não me faltou nada de casa. Tinha lá umas jóias, que eram da mãe, e deixou-as.
― Então saiu em circunstâncias de pedir esmola?
― Esmola?... Acho que não...
― Por que acha que não?... Uma senhora pobre, educada como fidalga, não exercitada em qualquer trabalho, de repente privada de meios, e indigente, que faria?
― Não sei... lá se avenha...
― Suponha o Sr. Fialho que D. Ângela de Noronha, em vez de trabalhar, porque não sabia, e em vez de mendigar, porque não podia, começou a vender-se porque era bonita!... Se assim acontecesse...
Demorou-se, instantes, sufocado Francisco, e repetiu:
― Se assim acontecesse...
― O senhor parece que está a lagrimejar?!
― Estou, não há dúvida... porque me compadeço dessa pobre senhora...
― Compadece?... Então acha que é bonito uma mulher desonrar um homem de bem? ― Quem é o homem de bem?
― Sou eu...
― O Sr. Fialho?!
― Então vossa senhoria duvida?!
― Não duvido. Tenho a certeza de que o senhor é...
A cadeira de Francisco Costa tremia em vibrações. Ao brasileiro aumentou-se-lhe o espanto, quando viu o doutor erguer-se de salto e lançar mão do chapéu.
― Vai-se embora doutor?!... O senhor não vai bom!... Que é lá isso? Venha cá!
― Lembrei-me que tenho doentes, e a hora de os visitar já passou, mas volto logo – respondeu o médico, examinando o relógio, sem ver a hora.
― Nada... vossa senhoria sabe alguma coisa de minha mulher... Aqui há história...
― Sei!... – disse Francisco Costa, encarando-o de lado quando se retirava. – Sei que D. Ângela, até ao momento em que o senhor a expulsou de casa, foi pura e honrada esposa.
― Venha cá! Como sabe isso? – bradou Fialho sentando-se no leito.
O médico tinha saído.
― Aqui há mandinga, por mais que me digam! – monologava o brasileiro, apalpando ao mesmo tempo o fígado congestionado. – Quem diabo disse a este sujeito que a minha mulher estava honrada? É o primeiro homem que me diz isto!... Quero saber este negócio como é! À tarde vou mandá-lo chamar. Se ele puder provar que Ângela estava inocente, mando-a procurar, e dou-lhe uma boa mesada, e a quinta dos Choupos. Mas onde estará ela a esta hora!...
Meditou uma curta pausa e acrescentou:
― Ora bolas! Qual pura nem qual cabaça!... Se ela estivesse inocente, ia pela porta fora?!...
Hermenegildo sentia-se bem disposto para jantar; mas a galinha enjoava-o já. Pediu à Rosa Catraia que lhe levasse do seu jantar. Comeu uma farta gamelada de carne seca com feijão preto, bebeu à proporção vinho de Bordéus, adoçou os bócios com uma tigela de maracujá, e estendeu-se no flácido colchão para sestear.
Pouco depois rugia, apanhando os refegos do estômago que latejava, e contorcendo-se sobre o fígado. Era uma cólica.
Saíram os criados a procurar o doutor Costa. Encontraram-no, caminho já da casa de Hermenegildo Fialho.
― Estou a morrer, se me não acode! – exclamou o doente escabujando nos braços de Rosa Catraia.
O doutor receitou, ouvida a exposição da enfermeira. Um vomitório enérgico arrancou das cavernas daquela sentina a morte envolta em ondas de feijão preto.
Estava desafrontado, mas ardentemente febril.
O doutor examinou atento se as faculdades intelectivas do doente estavam de leve alteradas pelo acesso febril.
Aprazivelmente reconheceu a sanidade do espírito do homem, que lhe dizia com voz roufenha:
― Sempre vossa senhoria é um grande cirurgião! Palavra de honra, que eu estava a espichar desta!
Francisco Costa disse à concubina que saísse do quarto, e sentou-se à cabeceira do doente.
― Parece-lhe que estou pior, doutor? – disse assustado o brasileiro, traduzindo funestamente o aspecto severo e pensativo de Francisco.
― Não senhor. Está melhor. Poderá o Sr. Hermenegildo ler um papel que eu aqui tenho?
― Ler um papel?! Que papel é esse? Posso ler perfeitamente.
― Leia.
Fialho recebeu uma meia folha de papel selado, que continha o seguinte:
Declaro eu abaixo assinado Hermenegildo Fialho Barrosas, negociante que fui no Porto, e atualmente morador no Rio de Janeiro, que recebi do cirurgião Francisco José da Costa, residente na mesma cidade, a quantia de um conto, seiscentos e cinqüenta mil réis, fortes, que minha mulher D. Ângela de Noronha tinha emprestado a Joana Costa, irmã do dito cirurgião, e costureira residente no Porto, a fim de com esta quantia, recebida em diversas parcelas, o referido cirurgião poder continuar a completar a sua habilitação para curar. E, como isto é verdade, pedi ao dito Francisco José da Costa que este fizesse para eu assinar a presença de três testemunhas que são...
Aqui terminava a leitura.
Hermenegildo sentara-se espantado no leito, ao passo que Francisco tirava duma carteira um maço de notas, e lhe dizia serenamente:
― Torne a ler, se quiser, Sr. Fialho; mas não me faça perguntas; porque tudo que tenho a responder-lhe está aí.
Eu sou o irmão da viúva honrada que ia a sua casa. Fui um moço pobre que a Sr.ª D. Ângela conheceu bom e digno de ser estimado na mocidade de ambos. Recebi dessa virtuosa senhora a esmola da minha formatura, ignorando a quem a devia. Agora posso pagá-la; e a vossa senhoria, que diz ter sido roubado por sua esposa, é a quem de direito me cumpre pagar. Falta a indicação das testemunhas. Permita-me que eu chame três dos seus vizinhos, aos quais o Sr. Fialho lerá esta quitação, e perante os quais me fará a mercê de assinar, contada a quantia que deixo para ser examinada.
― Mas explique-me isto! – bradava o enfermo.
― Está explicado, senhor!
― Então minha mulher estava inocente? Porque o não disse ela? Porque não contou ela a história que o doutor me contou agora?
― Não sei. Confiaria pouco na sua generosidade, senhor. Seria surpreendida de modo que não pudesse justificar-se. Enfim, não sei, nem posso demorar-me. Vou chamar as testemunhas.
― Mas eu não quero este dinheiro! – clamou Hermenegildo.
― Rasgue as notas depois de ter assinado o recibo.
E desceu precipitadamente as escadas, subindo-as logo com as três testemunhas.
Fialho não pode ler a quitação, de inquieta e aflita que se lhe espojava a alma, como enojada do corpo. Costa pediu a uma das testemunhas que lesse e a outra que contasse as notas. Depois, chegou a pena ao doente, que assinou com a mão convulsa.
As testemunhas saíram.
― Se vê que eu morro – tartamudeou Hermenegildo – diga-mo, que quero fazer testamento, e deixar alguma coisa a minha mulher, se ela ainda for viva.
― Não sei se morre, Sr. Fialho. Ângela de Noronha, se vive, não aceitará a sua herança...
― Por quê? Então não há de aceitar?
― Ângela de Noronha, se viver, terá metade do meu pão. O que D. Ângela aceitaria de seu marido está aqui...
É este papel que a salvará da infâmia que o senhor lhe associou à pobreza, para que o mundo nem misericórdia houvesse dela. Se a infeliz tiver caído à última desonra, Sr. Fialho, em tal caso eu irei ainda procurá-la de abismo em abismo, e dizer-lhe que fiz o que pude em desafronta do seu nome. Adeus.
Francisco Costa saiu enxugando as lágrimas.
A cara de Hermenegildo apenas ressumava o suor mal enxuto das agonias da cólica, sobre o amarelidão nauseabunda da icterícia.
XXI
MORRE HERMENEGILDO
Esta é de cabo de esquadra! – dizia ele, horas depois, aos amigos que o confortavam. – E quem deu direito a minha mulher de emprestar sem minha ordem 1.650$000 réis ao irmão da costureira? Que me importa a mim que ele fosse boa pessoa ou que fosse um pandilha sem beira nem leira?
― Você tem razão – dizia-lhe um primo carnal de Atanásio. – Lá pr’ó caso de sua mulher andar mal, andou; e, se era honrada, não o parecia. Por exemplo: eu vou em casa da mulher dum sujeito, e peço-lhe dinheiro. Ela mo empresta, e se esconde do marido; que hei de dizer eu? Sim, tem razão você de não dar a orelha, Sr. Fialho.
Estas cláusulas pareceram irrespondíveis ao doente. E, de feito, a natureza tinha esclarecido esta família dos Atanásios com grandes lumes de razão natural.
Por feição que Hermenegildo ratificou não só os seus anteriores juízos sobre os irregulares costumes de Ângela, mas também entrou-se da desconfiança de ter apanhado, quando menos o esperava, o amante dela. Quer-nos parecer que aquela perversíssima alma raciocinasse atuada por influências de fígado e outras entranhas que principiavam a engurgitar-se.
O restante do dia passou-o pouco febril, e por isso mesmo com certa energia de espírito que destampava em esfuziadas de protérvias contra a esposa, sem ressalvar a probidade do cirurgião.
De noite exasperaram-se-lhe as dores hepáticas, as aflições do estômago, a dispnéia, e o queimar de febre. Ao romper do dia, pediu a brados que lhe chamassem o doutor Costa.
Informou-se Francisco com o portador sobre o estado do doente, e despediu-o.
Daí a pouco, outro notável médico enviado por Francisco Costa, desculpando o colega, oferecia os seus serviços.
A doença progrediu sem intermitências de repouso nos cinco dias seguintes.
Hermenegildo pegou a dar gritos que o doutor o mandara envenenar na tisana da quina. Os médicos, chamados um de pós outro, iam cedendo o passo ao último, indignados da aleivosia com que o estúpido enfermo caluniava o ilustre caráter de Francisco Costa e o do seu substituto. A doença entrou no décimo quarto dia, com mortais sintomas. Aquela massa reagia com frenesi ao esfacelar da morte. O gemer dum doente vulgar era em Hermenegildo um rugir ferocíssimo. Rosa Catraia ganhou-lhe medo, e fugia da beira do leito receosa de que o legado do moribundo fosse algum daqueles murros que fendiam o espaldar do leito. Recolhida em sua dor, a choruda alvéola da ribeiras de Barrosas começou a cobrir com as asas os brilhantes e notas que se lhe depararam na sua irrequieta angústia. Nestes transes foi-lhe grande auxiliar um criado da casa, parente em quarto grau do patrão, rapazola de espáduas anchas, que prometia reabilitar os créditos de Rosa por meio dum decente matrimônio, logo que seu patrão e primo “desse a casca”, frase lírica e pitoresca da Catraia.
Assim, pois, que o último assistente declarou perdidas as esperanças de cura, o primo de Atanásio começou de arrebanhar os livros e papéis do moribundo – cuidado que lhe tinha sido sobremodo recomendado do Porto, logo que Hermenegildo adoecesse gravemente. Notou o arrecadador dos livros comerciais que os haveres do moribundo, superiores a duas centenas de contos, estavam em poder de Pantaleão, de Joaquim Antônio, e de seu primo Atanásio José, repartidos em avultadas somas, das quais Fialho tinha cobrado as declarações encontradas, e lavradas com suficientes solenidades legais. Este quarto ladrão que descobria os três do Porto considerou-se o melhor colherdeiro da herança, porque desde logo computou a percentagem a auferir.
Um conhecido do agonizante levado de escrúpulos, entrou-lhe ao quarto com o prior da freguesia, homem de respeitáveis cãs, e, na serenidade límpida do rosto, um como mensageiro e núncio da misericórdia divina.
Hermenegildo encarou nele com assombro, e regougou a trancos de voz cavernosa:
― Vá-se embora, que eu não morro desta vez.
― Assim o permitirá Deus – respondeu o sacerdote com grave compostura – mas os benefícios dos sacramentos não utilizam somente aos que vão à presença do Senhor.
― Não me conte histórias – tartamudeou o brasileiro, rolando-se de modo que lhe virou as costas.
― Meu irmão – tornou o sacerdote de Jesus – veja se tem na sua alma ofensas a perdoar, ou ódios de que peça perdão. Quando Deus for servido chamá-lo a contas, a sua alma não poderá voltar as costas à face do supremo juiz.
― Não me matem! – rugiu Hermenegildo, barafustando.
O padre quedou-se a contemplar de braços cruzados e o coração em Deus aquele espetáculo, suplicando graça para rebeldia tão estranha na suprema hora.
A graça divina esquivou-se. Contra a benigna teologia de boníssimos casuístas, vivo persuadido que Lúcifer estimaria que certas almas, à última hora, limpas pela contrição, se guindassem à glória, a fim de lhe não sujarem o inferno.
O sacerdote retirou-se, quando viu que a sua presença sobreafligia o doente.
Era meia-noite.
Desta hora até às cinco da manhã Hermenegildo pediu água já nos demorados paroxismos, e ninguém se abeirou do seu leito.
Cinco horas vasquejou sozinho, e, aos primeiros assomos do dia, rendeu... a alma.
Rosa, acordada pelo futuro marido, perguntou se o patrão tinha acabado.
― Acho que sim, que já não ouço nada – disse o criado, e foi chamar o primo de Atanásio para tomar conta de algumas arrobas de carne em putrefação, onde estivera uma alma “criada à imagem e semelhança de Deus”.
A tolerância divina permite semelhantes blasfêmias.
XXII
FELICIDADE SUPREMA
Em abril de 1850, Ângela e Joana, sentadas no quintalinho de sua casa, debaixo duma amendoeira florida, ao entardecer, descansavam do trabalho do bastidor de que tiravam bons lucros em bordados de ouro.
Joana, embelezada na formosura de sua amiga, dizia-lhe:
― Como vossa excelência, nesta pobreza, ganhou o que tinha perdido na opulência da sua casa! É bem certo que a felicidade está em mui pouco! Eu a temer que a Sr.ª D. Ângela envelhecesse nestas estreitezas da nossa casa, e não se habituasse a isto; e quis Deus que, em dez meses, eu a não visse triste senão quando veio a primeira carta do meu Francisco...
― Pois olhe, minha amiga, eu estava agora triste...
― Por quê?! Vi-a calada; mas cuidei que não era tristeza...
― Era...
― E é segredo? ― Não, minha amiga... Segredos quando eu não posso distinguir as nossas almas uma da outra... Eu lhe conto... Estava a dizer comigo: o meu futuro qual será? Tenho vinte e nove anos. Se me recordo do que passei, imagino que a vida já é longa e deveria estar por pouco; mas, diante de mim, vejo os anos demorados daqui até à velhice, até aos sessenta anos da nossa Vitorina, que espera ainda viver até os oitenta. Muito se vive quando se sofre!... E o que mais espanta é que nem a desesperação infunda um sincero desejo de morrer... Aqui estou eu a lastimar-me, a perguntar o que há de ser de mim, a ver a precisão de se acabar esta sossegada vida que tenho; e, apesar do escuro das minhas nenhumas esperanças, desejo viver... para quê?
― Deus lho irá dizendo, minha senhora. Se eu dissesse à minha amiga que esperasse resignada, seria uma indiscreta conselheira. Quem pode dar lições mais sublimes de paciência que a Sr.ª D. Ângela?
― Paciência, sim; não me há de abandonar esta providência dos infelizes... – disse Ângela, concentrando-se outra vez com desacostumada melancolia.
― Então que é isso? – disse meigamente Joana, tocando-lhe nas mãos que ela enclavinhara amparando a fronte.
― E seu irmão? – disse Ângela, como se a pergunta saísse de um diálogo mental.
― Meu irmão? O quê, minha amiga?
― Não o hei de ver mais?
― Por que não, Sr.ª D. Ângela? Pois que razão há para que o não veja?
― Quando a felicidade do coração se tornou impossível...
― Impossível, não. Vossa excelência quis ser noutro tempo esposa de meu irmão. Quem sabe se um dia poderá mais livremente dispor da sua vontade!... Seu marido tem bastante idade...
― Eu era nesse tempo a mulher com o prestígio que se desfez... Esse homem, que me prendeu ao remorso e vergonha de me deixar vencer da compaixão e dos baixos pensamentos de ser rica, igualou-me a qualquer mulher vulgar... Se eu desmereci aos meus próprios olhos, autorizei todo o mundo a considerar-me aviltada...
― Não diga isso, minha senhora... – atalhou Joana, tomando-lhe as mãos cariciosamente. – Pois não vê nessas sinceras confissões de meu irmão como ele a amava?...
― Amava a saudade; não era a mulher; amava o passado e que lá se perdeu. À luz que então me via não poderá ver-me jamais. Eu hei de ser sempre a esposa ou a viúva dum homem que me lançou de si com desprezo... E, depois, a gratidão das almas nobres, como a de Francisco, pode levá-lo a dobrar-me o joelho com admiração: mas, com amor, nunca. Eu sei isto, adivinho isto. Se eu vendesse a casinha única onde me abrigasse para lhe melhorar a sorte dele, essa dedicação sublime duplicaria o meu direito a ser amada; mas eu, quando bem penso no que fiz, duvido que me louvem os estranhos, e sinto esfriar a veemência de gratidão naquele mesmo por amor de quem me pareceu louvável o ato que pratiquei. Mas eu não queria que me agradecesse; queria até que ele ignorasse sempre, para eu não ficar desdourada. Vê por que tantas vezes lhe tenho pedido que não me descubra? E a minha amiga sempre a querer, sempre a instar que eu a deixe contar-lhe tudo. Oh! Não o faça, por piedade lhe peço que não lho diga! Se ele vier um dia a Portugal, basta que lhe faça saber que eu não fui má esposa... que fui caluniada; mas que não há no mundo quem possa provar que eu meditei um instante em justificar um crime com os exemplos de meu marido.
Assim posso ser amada... e eu queria sê-lo, queria, minha amiga, porque dos dezasseis aos vinte e nove anos, vão milhares de dias e noites em que nunca esqueci seu irmão. Houve um tempo em que julguei mal, porque Deus lhe dera a virtude que esmaga o coração, porque o meu desatino queria ser excedido pela paixão do homem que me obrigava à voluntária pobreza, às injúrias de meus parentes, ao perdimento de um grande patrimônio e da herança de um nome nobre. Que me importava isso? Mas seu irmão, minha amiga, tinha riquezas superiores: a santificação da virtude, uma coisa que se adora de joelhos depois que se tem sido desgraçada, e se lidou seis anos com um homem de condição vil.
Nesse momento, Vitorina assomou numa janela, dizendo que estava um homem perguntando pela dona da casa.
― Será carta do Brasil? – perguntou Joana.
― Não é, - disse baixinho Vitorina – é uma pessoa asseada com barbas grandes. – E, voltando-se subitamente, soltou um grito, e disse para dentro:
― O senhor entra pela casa assim, sem esperar resposta?
O sujeito sorriu-se à indignação da velha, que não reconheceu, acercou-se da janela, debruçou-se para o quintal, e cravou espantados olhos nas duas senhoras!
― É ele! É meu irmão! – exclamou Joana.
― Oh, minha querida senhora, é ele!...
E correu para casa; mas Ângela ficara imóvel a olhar para Francisco, e ele imóvel apoiado no peitoril da janela, com os olhos fixos em Ângela.
A irmã abraçava-o, e ele, beijando-a na fronte, murmurou:
― Aquela é Ângela, não é?! ― Sim, meu filho, pois não é ela o mesmo anjo?! Vamos buscá-la, depressa, que está sem côr...
E desceram rapidamente, e chegaram já quando a esmaecida senhora caminhava a tardos passos para casa.
Costa ofereceu-lhe a mão convulsa. Ângela encarou-o muito amorável, apertou-lhe a mão, e disse com voz magoada:
― É a primeira vez...
E carregaram-se-lhe de lágrimas os olhos.
Depois, abraçou-se em Joana, apoiando-lhe a face no ombro.
Francisco permaneceu silencioso, abafado, num modo de existir, que seria o prelúdio da demência, se durasse muito, ou a congestão se não desafogasse no pranto involuntário.
― Dá-lhe o braço, Francisco... – disse Joana. – Ele parece que não acredita vê-la aqui, minha filha – continuou ela, sorrindo.
― E desde quando? – perguntou ele, tomando o braço de Ângela.
― Desde quando está aqui? – verificou a irmã, não percebendo bem a pergunta.
― Desde que não tenho casa – respondeu a hóspeda, sorrindo. – Desde que precisei da caridade da minha amiga de infância, e da sua beneficência, Sr. Costa.
Ocorreu Vitorina a dar uns tons de festa à chegada de Francisco, pasmando-se nele, nas grandes barbas, e na espantosa mudança que fizera, e no medo que ela tivera de que fosse um salteador, quando o viu romper por ali dentro.
Entraram para a saleta do trabalho, onde estavam armados dois bastidores.
― Aqui tens a nossa oficina – apontou a ridentíssima Joana. – Temos feito progressos e lucros admiráveis:
bordamos a ouro. A Sr.ª D. Ângela, em dez meses, ganhou quarenta e duas moedas.
― Está vossa excelência aqui há dez meses? – perguntou Costa à hóspeda.
― Penso que sim – confirmou Ângela.
Francisco, confrontando as datas, concluiu que tendo chegado ao Rio Hermenegildo oito meses antes, Ângela se acolhera a sua irmã logo que saiu de casa. Exultou, luzia-lhe nos olhos o muito sol que se lhe abrira na alma.
E a ponto vem dizer-se que o confidente último do brasileiro, desde que ao longe premeditou a redenção de Ângela, conjecturara que teria de procurá-la na ladeira onde vulgarmente pobreza e formosura impelem a mulher, nascida sem auréola santificante: - auréola de que já hoje ninguém vê resplendor, nem os romancistas propriamente se exercitam nesse gênero de inventiva, temerosos do descrédito de fantásticos e inverossímeis.
Do muito martelar nesta hipótese péssima, bem que trivialmente realizada no máximo número de lances análogos, causou-se que o lapso da desamparada senhora para os braços doutro homem, amado ou aborrecido, era a esperança infernal que preocupava o autor dos SONHOS, aquele olímpico vidente agora demudado em pessimista, com as asas da sua poesia mortas, e o espírito prostrado nas baixezas vulgares deste mundo. Figurou-se-lhe, por desventura, que uma mulher, que aspirara o ambiente de Hermenegildo Fialho, devia de ter empeçonhado o coração, apagada a flama celestial do espírito, e desbotadas as cores prismáticas por onde via o bom, o belo o santo da criação, antes de tocar a hediondez de tal marido. Duas angústias, pois, a um tempo o navalhavam: se a encontraria amante doutrem, e para si perdida; se vítima da necessidade na vulgar degradação de escrava, e perdida também para ele.
O encontrá-la, portanto, em companhia de sua irmã causara aquele entorpecimento de espírito e palavra que parecia irmanar-se com a indiferença, e até com a surpresa desagradável. Depois, porém, que se afez ao ar da felicidade, e os seus olhos puderam suportar a luz inesperada, Francisco transfigurou-se, as lágrimas venceram a represa, os dezoito anos refloriram; e, de súbito, Ângela, que não entendia o frio silêncio dele, sentiu-se-lhe apertada nos braços, e beijada nas faces que ardiam dos beiços, das lágrimas e do pudor.
― Eu vinha procurar-te, Ângela! – balbuciou Francisco – mas Deus não quis que eu imaginasse a possibilidade de te encontrar ao lado da minha santa irmã. Eu tinha sofrido muito e a recompensa devia ser esta...
Ângela abaixou o rosto, e pensou confusamente na estranheza deste transe.
Costa, voltando em si, compenetrou-se do pejo de Ângela, e disse:
― Eu beijei a tua face, Ângela, porque não há consideração que te obrigue a corar. Teu marido morreu.
― Morreu?! – conclamaram as duas senhoras, e em ambas o ar da fisionomia não revelava sentimento que pedisse luto imediato. Os olhos de Ângela não tinham sombras de funéreos; o sorriso de Joana iriava as cores azuis e escarlates dum vestido de gala. E, se neste conflito pairasse idéia triste, bastaria um destempero de Vitorina para destruir o efeito lúgubre da notícia. Quando Francisco proferiu teu marido morreu, a criada, que estava na cozinha, correu à saleta, exclamando:
― Ainda bem! Ainda bem!
E chorava de alegria, como nunca ninguém chorou por um defunto, exceto os herdeiros, parentes em quarto grau. Cumpria relatar o caso infando. Costa, omitindo os fatos essenciais, contou que conversara com Hermenegildo nos primeiros dias da doença, sobre coisas particulares da sua vida; mas, como outros doentes fora do Rio o desviassem do enfermo, não sabia dizer da morte senão o principal: isto é, que morrera.
Instado a referir o diálogo que tivera, contou que o brasileiro apenas se queixava e dava como prova da deslealdade de Ângela a venda duns brilhantes, e a pertinácia em não declarar o destino dado a 1.650$000 réis.
― Foi... – clamou Joana, e suspendeu-se, quando encontrou os olhos de Ângela, que pareciam recriminá-la com profundíssima dor.
― Foi... o quê? – perguntou Francisco José da Costa, fingindo-se embaraçado pelos olhares mútuos das duas, ― Nada... – dissimulou Joana. – Queria eu dizer que foi uma falsidade.
― Falsidade!... não foi... O homem não mentia; nem tu, Ângela, permitirás que a nossa Joana desminta teu defunto marido – objetou ele, sorrindo às inquietas visagens da viúva. – E continuou: - Como hei de eu entrar num segredo que teu marido não penetrou com toda a sua policia administrativa e espionagem de amigos! Não ouso, minha amiga, pedir-te a confidência... Teu marido queria morrer convencido que o seu ouro andava por mãos de quem lhe disputara e vencera a alma da esposa. Parece que o homem não se dispensava desta ignorância para poder alegá-la nas contas dadas ao juiz que via as tuas lágrimas, minha santa amiga. Eu, porém, não consenti que ele se prevalecesse da sua ignorância, e jurei, pela minha honra, que tu deras de esmola 1.650$000 réis. Mas o que tu davas de esmola, nas mãos do beneficiado, chamava-se roubo em relação a teu marido, que era o senhor do objeto esmolado. Fui roubado – poderia ele dizer ao juiz supremo. – Minha mulher estaria inocente quanto aos deveres de esposa; mas, como parte do meu ser mercantil, defraudou-me em 1.650$000 réis – quantia que ele tinha gravado ao cérebro com letras de betume ardente. Ora, supondo mesmo que tinhas sido roubada, por quem quer que fosse, e iludida em tua ardente caridade, Ângela, restava-lhe a ele a possibilidade de uma restituição que, afinal, dilucidasse o mistério da tua inocência. Com o propósito de lhe criar esperanças de ainda ser embolsado, contei-lhe eu, Joana, a história daquele dinheiro, que te foi restituído, quando tu nem o esperavas, nem tinhas remoto conhecimento do roubo. Na minha história havia a singular coincidência de ser a restituição do teu roubo igual à quantia de que o meu doente se queixava. Notável semelhança: 1.650$000 réis! Dando-se, de mais a mais, a estranha coisa de ser ele roubado ao mesmo tempo que tu eras indenizada, minha irmã! E não para aqui a coincidência! Os brilhantes eram vendidos por quantias iguais àquelas que tu ias recebendo, e na mesma ocasião, do tal sujeito de Viana, honrada pessoa que eu nunca cessarei de proclamar, apesar do incógnito!... Por que estás tu a sorrir, Joana? E tu, Ângela, que ar é esse de assombro e alvoroço?... Não querem ouvir o melhor da passagem? Um dia, estava teu marido a contar, provavelmente, as dúzias de contos que lhe alvoejavam com asas de ouro à volta do leito, onde havia de morrer sozinho, blasfemo, e abrasado de sede, sem amigo ou indiferente que lhe apagasse nos beiços o brasido da morte; um dia, vinha eu dizendo, aproximou-se dele um homem e disse: “Venho restituir-lhe 1.650$000 réis que lhe foram roubados por sua esposa para me dar a mim, que era pobre. E eu com o seu dinheiro fiz a minha posição de menos pobre. A restituição é um dever que complica dois grandes resultados: um é o Sr. Hermenegildo morrer com a certeza que deixa, além de duzentos e tantos contos, mais esta quantia aos seus amigos; a outra é ir vossa senhoria por onde quer que vá com a certeza de que teve a ventura de casar com uma senhora que podia roubá-lo e traí-lo;
mas que se limitou apenas a privá-lo, por espaço de alguns anos, da deleitosa posse destas nota. Porém, como o Sr.
Fialho infamou sua esposa, convém que a declare ilibada, não só do desvio do ouro, mas também da dignidade conjugal. Para o que se faz mister que leia e assine este recibo”. E teu marido, minha amiga, leu, recebeu o dinheiro e assinou isto que tu vais ler, se te não custa.
E a viúva e Joana leram mentalmente a quitação que o leitor conhece.
Quando terminou a leitura, Francisco, ajoelhado aos pés de Ângela, beijava-lhe as mãos, exclamando coberto de lágrimas:
― Eu te agradeço, filha da minha alma! Bendita sejas tu, escolhida de Deus para mensageira de sua misericórdia!
E Ângela, baixando a face até aos lábios dele, murmurou:
― Meu santo e nobre coração!...
XXIII
OS HOMENS HONESTOS
Seis meses depois, Atanásio José da Silva, Pantaleão Mendes Guimarães e Joaquim Antônio Bernardo, reunidos na famigerada bodega do Maneta do Reimão, onde em certos dias iam sevar-se na pescada e cebolas, bodo peculiar daquela taverna, praticavam do seguinte teor: ― Acertamos ou não?... – dizia Atanásio. – Viram vocês como afinal tudo se descobriu? Não, que certos lorpas inda diziam que o adultério da tal Sr.ª Ângela não estava provado... Aí a tem agora casada com o sujeito... E nem deixou passar um ano sobre a morte do marido, percebem vocês?
― Pois isso estava claro física e moralmente falando – obtemperou Joaquim Antônio. – O mariola era um estudante de cirurgia, segundo ouvi contar. Olha se o Hermenegildo não tem as coisas seguras, que lá se regalava agora o troca-tintas com bem bom dele! E dizia aqui o nosso Pantaleão, quando veio a notícia da morte do nosso amigo, que se procurasse a viúva, e se lhe desse alguns contos de réis! Parece-me que o marido se levantaria da cova, se tal fizéssemos!
― É que eu – explicou o marido de Francisca Ruiva – ainda cuidava que ela teria feito a sua asneira, e que se tivesse arrependido; mas à vista do que acontece, nem um dardo! (E descendo a voz, continuou) : Ó amigo Atanásio, aqui entre nós, seu primo do Rio é que a fez limpa! Sem trabalho nenhum, nem risco, nem nota de ladroagem, pilhou os seus quarenta contos fortes... Apre que é ladrão, e perdoe você por ser seu parente...
― Que queriam vocês? – desculpou-se Atanásio – eu incumbi meu primo do negócio porque não via pessoa mais hábil, percebem vocês? Cuidava eu que ele entregaria os títulos acomodando-se com uma pechincha de meia dúzia de contos: mas vocês bem viram a carta dele. Ou me dão quarenta contos, ou entrego os títulos à viúva ou herdeiros de Fialho. Que fazer? Ou dar os quarenta ou perder duzentos. Vocês concordaram, e eu paguei.
― E os outros seis contos que você deu ao marido da Rosa Catraia? – perguntou Pantaleão.
― Não que esse, como era criado do quarto de Hermenegildo e sabia ler, tinha visto os títulos quando andava à carta das notas e mais a bêbada da moça, percebem vocês? E depois viu que eles desapareceram, e começou a dar à língua; de maneiras que não houve remédio senão meu primo fazer cambalacho com ele, e mandá-lo para mim com uma carta, que vocês viram, e também concordaram em que se pagasse.
― Querem vocês saber uma? Adivinham quem ontem esteve no baile da Assembléia? A tal Rosa Catraia! –
disse Joaquim Antônio.
― Ora que novidade você me dá! – acudiu Atanásio. – Fui eu quem lhe arranjei a carta de convite.
― E estava rica a valer! – acrescentou o marido da maiata. – E boa mulher?! O maroto do Fialho tinha gosto!
Quantas lhe conheci eram todas de sola e vira!
― Pelo que vejo a Rosa soube-se arranjar bem!... – observou Pantaleão.
― Ora!... – conveio Atanásio. – eu dou-lhe trinta contos fortes pelo que ela apanhou. Só os brilhantes da Ângela valiam mais de cinco contos.
― E ela lá os tinha no baile, que eu bem lhos conheci... – confirmou o mesário da santa casa.
― Também é escândalo demais! – censurou Pantaleão. – Apresentar-se em público com os enfeites da mulher do amo. A minha vontade era espalhar isso...
― Caia nessa você – contradisse Atanásio – e depois queixe-se, se o marido contar que viu na carteira do Fialho um título seu de dívida de cinqüenta e dois contos... percebe você?
― Fale baixo, diabo! – acudiu o ladrão pundonoroso. – Você não sabe que anda aí gente pelo quintal?!
Chegaram as travessas da pescada entre rimas de cebolas e ovos. Abriram-se os buchos, e fecharam-se as consciências destes membros do tribunal de honra onde Ângela foi condenada à infâmia e à pobreza.
Fartos até ao arroto, de coletes desabotoados, saíram os três acionistas mais grados dos bancos portuenses a beber o ar balsâmico do jardim de São Lázaro. Nada, absolutamente nada, estremava aqueles três da classe dos homens de bem, porque a lei, que mandava abrir com ferro quente um ferrete na testa dos ladrões, foi derrogada em 7 de fevereiro de 1523.
XXIV
A OPINIAO PÚBLICA
A opinião dos três capitalistas dignamente acatados no anterior capítulo frisava com a opinião geral da sociedade portuense sobre o casamento de Ângela com o cirurgião Costa. As segundas núpcias tinham evidenciado o crime das primeiras. A infâmia de Ângela era indelével, e já pode ser que mais repulsiva, desde que ela afrontou a moral, passando em frente dos amigos de Fialho pelo braço do amante que causara a morte do honrado brasileiro, dizia a maiata, e Francisca Ruiva, e outras Ruivas, que me estão pedindo crônica. E hão de tê-la. A cortesia não se exercita somente com as senhoras honestas.
Francisco José da Costa leu a opinião pública no volver de olhos dos magotes que se arrebanhavam nas praças, e no petulante encarar das mães, que segredavam às filhas a desmoralização da mulher de Fialho. O cirurgião era alvo da injúria, cuspida nas costas, por seus próprios colegas. Era simples o libelo infamatório: acusavam-no de se ter formado à custa dos brilhante de um brasileiro, roubados por sua mulher.
Ângela encontrou um dia numa algibeira de casaco uma recente carta anônima em que um amigo aconselhava a seu marido que saísse do Porto, se precisava de viver pela arte. E ajuntava ao conselho a causa promotora de tão amigável aviso: É odioso na sociedade o homem que se habilitou para entrar nela com o dinheiro de uma senhora casada. E, se esta senhora roubou, desonrou e matou o marido... mil vezes horrendíssimo!
Ângela da Costa leu e chorou. Depois argüiu-se de fraca, e desmerecedora dos bens com que Deus lhe apremiara a sua paciência nas injúrias.
Guardou a carta, e assim que o marido recolheu, foi para ele risonha, e disse em tom de queixume:
― Por que me não mostraste logo esta carta, meu filho?
― Ah! – acudiu Francisco – Tinha tenção de mostrar-te; mas esqueceu-me a carta e o intento. É o que foi. Mas olha, Ângela, este esquecimento não argüi insensibilidade, nem uma coisa impropriamente chamada cinismo. Sabes o que é? Conformidade, tolerância, e quase uma desculpa à opinião pública.
― Desculpa!... – interrompeu Ângela.
― Sim, filha. Porventura, tu já te justificaste? E eu já me justifiquei? Não. A sociedade sabia que uma mulher casada vendeu uns brilhantes; que o marido dessa mulher a expulsou; que esse marido morreu; que um homem, seis meses depois, aparece casado com a viúva do roubado, do assassinado a punhaladas de desonra... Que queres, Ângela? Quem ousará defender-nos?
― Mas faz tu pública essa paga assinada por...
― Deus me livre, minha louca. A quitação foi escrita e assinada para que soubesses que não devias nada a teu marido, e que a roubada em tuas jóias tinhas sido tu. Satisfações à sociedade? São justas, quando ela não condena antes de ouvir os réus, quando não escarra nas faces das vítimas, antes de examinar os vincos por onde passaram as lágrimas. A nossa causa de moral pública está perdida; não obstante, a reabilitação davam-ta os juizes, se houvesses herdado os duzentos contos de Fialho. Os que me denigrem o caráter, se eu a esta hora fosse o marido da viúva com duzentos contos, chamando-me “tratante feliz”, sentar-se-iam lisonjeados nos coxins das minhas cadeiras, e pediriam aos meus lacaios, com urbanidade, o favor de me entregarem os seus bilhetes de visita. Mas, filha, esta soledade que mora à volta de nós é o cordão com que a mão da Providência abaliza a felicidade de duas almas que não podem corar uma da outra. Quando eu desejar mais do que tenho, quando invejar felicidades que não sei imaginar, Ângela, hei de pedir-te perdão de ter sido o mais vil dos teus inimigos.
Apertou-o Ângela com arrebatamento nos braços, e murmurou:
― Se tu quisesses...
― O quê, minha filha?
― Viver numa aldeia, entre umas serras, sozinho com a nossa Joana, esquecidos, e tão amados...
― Sim, quero, minha providência... Adivinhaste a minha aspiração de não sei quantos anos...
― Eu sei, meu amor. Li-a nos teus livros, e que fantasias eu criava para completar as tuas!... Se eu tivesse filhos, e lhes pudesse incutir a certeza de que todo o seu futuro e mundo era o espaço contido nos horizontes das nossas montanhas...
― E não sabes tu, Ângela – volveu jubilosamente Francisco – não sabes que eu careço de ser cirurgião? Que todas as portas se me fecham aqui? Não cuidava que eu viesse quase pobre do Brasil? Vim, minha filha, vim.
Contava com muito se lá permanecesse, mas a minha riqueza eras tu. Apenas tenho a subsistência segura de dois anos nesta mediania em que tu fazes milagres de abundância. Mas o futuro...
― Pois então para onde iremos, Francisco? Tenho pressa; quero ir amanhã, hoje, já...
― Olha numa terra, que chamam Barroso, não há facultativos. O sítio é triste, é montanhoso, as casas são colmadas, os alimentos grosseiros, os frios do inverno glaciais, e os ardores do estio queimam as urzes e secam as fontes. Queres ir para Barroso?
― E tu? Irias tu contente para aí?
― Vou.
― Vamos, filho – exclamou ela entusiasticamente!
― Assim que a doença ou a tristeza te ameaçar, passaremos a sítios mais amenos, iremos de aldeia em aldeia, até que uma casinha entre duas árvores te convide a viver e morrer nela.
Dias depois, Francisco Costa, o grande operador que honrara as escolas da sua pátria no Brasil, aceitava o partido de um conselho chamado Boticas, em terras de Barroso.
Vitorina acompanhou a ditosa família. Ao vizinharem da terra tão selvàticamente pintada por Francisco na imaginativa da esposa, a rústica expectativa demudou-se em alegres várzeas, terras colmadas de arvoredos, regatos que vertiam murmurosos por entre outeirinhos tapisados de boninas. A casa destinada ao cirurgião de partido era telhada, e olhava sobre uns almargeais por três janelinhas de portas envidraçadas. A horta supria mais substancialmente a falta de jardim, e em vez de musgos e trepadeiras floridas, verdejavam as couves galegas e trepavam florentes os feijões carrapatos – espetáculo bucólico de que muito se deliciava Vitorina, recordando a casinha rural de seus pais.
Ângela exclamava com as mãos postas:
― Isto é tão lindo! Se haverá uma alma triste neste povoado! Que miserável e escuro daqui se me figura o que deixamos!...
Joana cuidou em alindar a casa com a modestíssima mobília em que o município se mostrara generoso para granjear a estima do facultativo.
Ao outro dia, a esposa do boticário com sua cunhada, esposa do regedor, e as autoridades de Monte Alegre com suas famílias, visitaram o cirurgião, que ali era graduado em doutor.
De tudo isto entreluzia à cismadora Ângela um viver antigo, santa singeleza de costumes e dulcificação de almas que para ali viessem acerbadas do viver das cidades.
Aquele silêncio de terra e céu era-lhe o ambiente lúcido das suas esperanças. Não ousara imaginá-las tão acordes com a sua índole, vendo-se ligada ao esposo querido que refletia a felicidade de todos sobredourando a sua.
Começou o doutor a curar, e a voz pública a pregoar milagres. Achaques inveterados, aleijões, nevralgias, que tinham resistido aos exorcismos, espinhelas caídas e nunca levantadas, todas as castas de enfermidades sem cura encontraram remédio ou alívio.
O assombro, porém, excedeu todo encarecimento quando o doutor chamou um cego mendigo, e depois de operá-lo e tratá-lo em sua casa, o mandou trabalhar com vista no seu antigo ofício de pedreiro.
Rodeavam-no as multidões de parentes e amigos perguntando todos a um tempo se os conhecia.
Convencidos de que o cego de vinte anos voltara a ver os filhos que deixara no berço, o doutor avultou-lhes como entre milagroso, ali mandado pela Senhora da Saúde, adorada com muita fé na sua igreja.
Alargou-se a área da clínica do facultativo a seis e mais léguas em redor, por caminhos precipitosos à orla de despenhadeiros.
Mas o inverno chegou.
Os pegões do vento outonal abateram quando as neves de novembro começaram a coroar os espinhaços das serras, e a sobrepor as suas camadas endurecidas pelo gear das noites, sobre as veredas de cabras que ligavam uma aldeia a outra. Sem impedimento dos rogos de sua família, Francisco Costa ia sempre que era chamado. E, quando transpunha as raias do concelho, a visitar doentes, em noite tempestuosa, por os mesmos caminhos já famigerados na vida de fr. Bartolomeu dos Mártires, e recebia duzentos e quarenta réis de recompensa, Francisco depunha no regaço da esposa o seu bem suado ou bem tiritado óbolo, e dizia a sorrir:
― É o dinheiro de dois operários: tanto labutou o lavrador para o tirar da terra, como eu para lho arrancar do cantinho da arca. Se eu lhe pedisse mais, o doente preferia a morte.
O que muito supria na sua receita era a arte operatória, exercitada longe, mormente as operações de catarata, que já tinham levado seu nome ao território espanhol.
Então aconteceu, duas vezes, no primeiro ano, Francisco Costa entesourar na caixa econômica de sua mulher uma dúzia de peças, com esta recomendação dita em gracejo:
― Vai guardando o patrimônio do nosso primeiro filho.
Ângela estremeceu da felicidade que já lhe estremecia no seio adiantados sinais de maternidade.
― E o nosso filho que será neste mundo? Que destino lhe hás de dar? – perguntou a filha do general Noronha.
― Visto que não é provável ser ele o vigésimo senhor do paço de Gondar – respondeu a rir Francisco Costa –
será artista.
― Artista!...
― Artífice é mais português. Terá uma profissão que lhe abaste à sua subsistência e à de uma família criada com pouquíssimas necessidades. Não aprenderá a ler, para crer; não saberá nada da ciência humana para entender bem o Padre Nosso, que é a ciência divina baixada até ao homem; dormirá o sono pesado do operário para não sonhar as quimeras que me fizeram a mim o motor dos teus longos infortúnios, meu pobre anjo!
― Mas hoje, filho!... – atalhou ela. – Não estou eu esquecida de tudo!... A compensação não é tão superior ao que padeci? Se Deus me der filhas, a felicidade que eu peço para elas é esta minha...
― Mas padeceste muito, Ângela... E as tuas filhas poderão ser felizes como tu sem terem padecido... – E
concluiu, acariciando-a: - É preciso que elas não saibam ler Sonhos nem escrever Esperanças...
XXV
O CEGO Os olhos do general Noronha cegaram inteiramente. Os especialistas de Paris tinham capitulado de catarata negra a próxima cegueira, muito semelhante nos sintomas à gota serena.
Declinava para os setenta anos o inconsolável cego. Queria voltar a Paris, esperançado na operação; mas escasseavam-lhe forças. A velhice deste homem disciplinado por pesares de toda a espécie, deste o terrível só até ao excruciar do remorso, causava a um tempo compaixão e medo. A caquexia lenta mirrara-o até lhe secar a pele sobre a aridez dos ossos; e os glóbulos dos olhos guinavam pardacentos nas órbitas descarnadas à procura dum raio de luz.
Os parentes e amigos que ele havia repelido não o procuravam nos derradeiros anos, porque sabiam que o testamento estava feito. Os legatários, entregues à sáfara da sua lavoura, nem sequer averiguavam se o senhor do Paço de Gondar era morto ou vivo. Ninguém portanto o visitava. O velho cheirava a cadáver, e o lastimar-se dum cego exasperado afugentaria até a comiseração dos herdeiros.
O mordomo, João Pedro, é que, dia e noite, lhe dava o braço ou vigiava o ansiado dormitar. Chorava, quando o via de súbito parar, voltados para o céu os olhos, e clamar: “Meu Deus, meu Deus, dai-me a minha vista, ou mataime!”
E, em uma dessas apóstrofes à Providência divina, que lhe visitara alfim a escuríssima cegueira de alma e corpo, João Pedro disse:
― Fidalgo, vossa excelência, se quer que Deus o escute, siga a lei cristã: tenha pena de sua filha, perdoe-lhe pelo divino amor de Deus. Pode ser que depois a misericórdia de Jesus Cristo se compadeça de vossa excelência.
― E quem te disse a ti que ela era minha filha? – repetiu o cego a pergunta feita um ano antes.
― Disse-mo vossa excelência, quando ela o visitava; muitas vezes me escreveu lá para o Paço: “Manda-me boa fruta que tenho cá minha filha”. Há de perdoar-me, fidalgo; mas vossa excelência só deixou de lhe chamar filha depois que ela quis casar com um homem mecânico...
― E se perverteu... – atalhou rancoroso o cego.
― Mentiram-lhe, fidalgo; ela não praticou ação má senão a de querer ser esposa dum pobre.
― Não sabes nada, pedaço de asno. Tenho ali uma carta de minha irmã Beatriz.
― Bem sei, meu senhor.
― Sabes? quem to disse?
― A Sr.ª D. Ângela.
― Quem lha mostrou?
― Viu-a ela, quando escreveu a vossa excelência uma carta sobre a sua escrivaninha. Essa carta diz que os criados da senhora sua irmã, a quem Deus perdoe, tinham arrancado a fidalga dos braços do tal filho do sacristão. Era uma mentira de clamar vingança aos anjos. Sua excelentíssima filha, quando, desesperada, procurara o tal homem, não o encontrou, tinha saído para o Porto.
― Quem to contou?
― Vitorina, que saiu de Gondar com a Sr.ª D. Ângela, quando tinha dois anos; o próprio capelão, e todos os criados da Sr.ª D. Beatriz, que lá está onde as contas são apertadas.
― Por que não disseste isso até hoje?
― Porque vossa excelência se desesperava assim que eu começava a falar na Sr.ª D. Ângela, e depois...
― Depois o que?... Não respondes?!
― Vossa excelência começava a dizer que via a mãe da menina, e a sacudir os braços que me fazia terror.
― Está bom! Está bom! – murmurava guturalmente o velho, procurando com as mãos trêmulas a boca do criado.
E recaía na concentrada prostração que durava horas e dias.
Uma vez, o general acordou de sobressalto, por noite fora, chamou João Pedro com aflição, e disse-lhe:
― Quem anda na casa?
― Ninguém, senhor... Serão os ratos que os há nela de tamanho de leitões.
― Não mangues comigo, João!
― Ó fidalgo! Eu mangar com vossa excelência!...
― Aí anda gente... os passos e a voz são de Ângela...
― Deus permitisse que fosse ela... O senhor general estava agora sonhando, e às vezes falava em sua filha.
― Falava?
― Sim, meu senhor.
― Então era sonho...
― E, se ela lhe aparecesse... se vossa excelência a visse de repente...
― Não vês que estou cego... Cego, meu Deus!
― Pois sim; mas se vossa excelência lhe ouvisse a voz, e lhe deixasse beijar as mãos... ― Tu quando a viste?
― Eu, senhor? Vi-a há oito anos, quando vossa excelência estava em França, e me mandou entregar-lhe o cofre dos enfeites.
― E estava aonde?
― Perto da vila de Barrosas, e casou no dia em que lá cheguei... Eu já contei a vossa excelência isto...
― Mas ela escreveu-me há coisas de ano e meio. Onde estava então?
― No Porto.
― E nunca mais soubeste dela nada?
― Não, fidalgo... Isto é... – tartamudeou o mordomo – quero dizer...
― Soubeste, ou não?
― Ela a mim nunca me escreveu; mas, cá em Ponte, ouvi dizer que o marido a deixara e fora para o Brasil.
― Por quê?
― Não sei... – responde pronto João Pedro, como quem esperava a pergunta, e tencionava esconder os boatos desairosos para a filha de seu amo.
― Não sabes? Alguma nova desonra!... Quem te contou isso? Quero saber...
― Não me recordo a quem o ouvi... Parece-me que foi um padre que já morreu.
― E que é feito dela? Sabes?
― Não sei, meu senhor.
― Quero que saibas... Vai saber isso ao Porto... Indaga por lá.
― E quem há de ficar à beira de vossa excelência?
― Um criado qualquer. Vai já hoje, assim que amanhecer... Sonhei que a via... Ver, meu Deus, ver!... Sonhei que a via... E o meu coração estava alegre... Procura-ma, procura-ma, João!
Seis dias depois, o mordomo voltava triste do Porto. As inculcas lançadas informaram-no de que Ângela, coberta de opróbrio e justo desprezo de todo mundo, se casara com um cirurgião, por amor de quem o marido morrera apaixonado; e ninguém sabia dizer, na vizinhança da casa onde ela habitara, o destino que levaram com certeza; havia, no entanto, quem afirmasse que tinham ido para o Brasil.
Das informações colhidas, João Pedro disse simplesmente que a Sr.ª D. Ângela, viúva do primeiro marido, casara segunda vez, e saíra ou para o Brasil ou para onde se não sabia.
E o mordomo, vendo contrair-se de angústia o rosto cavado de seu amo, chorou de compaixão dele, e de pesar de não ter encontrado Ângela.
― Agora, não se aflija, fidalgo... – disse com a voz quebrada o extremoso servo.
― Deus – soluçou o ancião – despertou-me o desejo de a ter comigo para me redobrar o martírio!... Seja feita a vossa vontade, Senhor!...
XXVI
A PROVIDÊNCIA
Pernoitou em Ponte do Lima, no ano de 1853, um cavalheiro de Chaves, de apelido Pizarro, em casa de parentes que também o eram do general Simão de Noronha.
Dizia-se, à mesa da ceia, que o general aceitara o título de conde de Gondar, na última velhice, cego, sem descendência, sem sociedade, sem o mínimo prazer da vida, seqüestrado de toda a convivência, e, segundo se contava, tão desvairado de razão que deixava três enormes casas de bens livres aos irmãos da mulher da infama ralé com quem casara na primeira mocidade.
― E está cego o tio conde de Gondar? – perguntou o fidalgo de Chaves. – Cego sem remédio?
― Se tivesse remédio, tê-lo-ia achado em Paris, onde já foi duas vezes.
― Na minha província e perto de mim – tornou o flaviense – há um cirurgião da moderna escola que tem feito prodígios em operações de olhos. Se eu soubesse que o conde consentia ser examinado, obrigava-me a trazer-lhe o doutor Costa, como lá se chama, sem favor, ao admirável facultativo.
― Quem lho há de perguntar? Há mais de dez anos que não recebe nem visita alguém.
― Não importa: hei de eu ir procurá-lo. Foi; anunciou-se, e teve entrada, porque o conde lembrou-se de ter conhecido, nas primeiras lutas da liberdade, um general, tio do cavalheiro anunciado.
Disse o visitante o propósito que o levava. Contou as maravilhas do doutor Costa e ofereceu-se a conduzi-lo à Ponte.
― Será inútil; mas que venha. Irá a minha liteira buscá-lo. Se eu pudesse ir...
― E por que não vai, senhor conde? – aproveitou o parente, aplaudindo o desejo. – O exercício deve ser-lhe útil. São dois dias e meio de jornada. Se ele se resolve a operá-lo, vossa excelência vai residir em Chaves na minha casa, ou em Monte Alegre, onde há boas comodidades; porque, se vossa excelência quisesse ser operado em Ponte, seria isso mais difícil ao doutor, que tem uma clínica, e não poderia assistir, como convém, ao curativo, e convalescença da operação.
Reanimou-se o cego. A esperança galvanizou-lhe as articulações emperradas pela imobilidade. Apertou nos braços com reconhecimento a dedicação do parente, e pactuou sair no dia seguinte.
Folgando de palestrar, sucederam variados aos assuntos. Falou da emigração, das esperanças daqueles dias, das batalhas do Porto, da bravura dos paisanos, das proezas do libertador e, terminou dizendo com um remoqueador sorriso de elevada crítica:
― Sabe vossa excelência o que venceu a guerra? Não foi a idéia da pátria, nem o ódio do despotismo, nem o amor à liberdade. Foi D. Pedro ter fechado o Brasil no caso de lhe cá espedaçarem o estandarte aventureiro, e foi cada homem do Mindelo defender a vida própria da forca ou do desterro, e foi cada cidadão da cidade eterna ser obrigado a defender a esposa e os filhos. Uma vez perguntava D. Pedro, no Porto, a um velho, que saía armado e trôpego, a um toque de rebate: “Também tu, meu velho?” e o velho respondeu: “Também eu, meu diabo! Por causa de Vossa Majestade estou eu aqui a defender os meus netos”. Esta resposta é a história do triunfo prodigioso de D.
Pedro.
Estendeu o conde a sua diatribe política, desembestando, contra generais e estadistas, acerados dardos, dignos do artigo de fundo da imprensa política portuguesa. Todavia, um ponto lhe esqueceu importantíssimo: e era explicar a sua condescendência no aceitar e pagar um título lembrado a el-rei pelo então ministro da Guerra, camarada do bravo Simão de Noronha. Convinha-lhe exemplificar o desprezo das mercês em conformidade com o seu desdém da liberdade, que, boa ou má, ele ajudara grandemente a implantar. Perdoe-se-lhe, porém, o mau humor cívico em desconto das amarguras da velhice, e da roaz concentração em que a cegueira o pusera, insulado de toda a sociabilidade.
― É pena – lastimou o cavalheiro – que vossa excelência, em anos tão carecidos dos afagos de família, se veja sozinho, e forçado a escutar-se incessantemente em suas tristezas...
― Efeitos da péssima mocidade – disse laconicamente o velho.
― E não lhe restam parentes estimados que substituíssem a falta de filhos?...
― Não, senhor.
A concisão das respostas reduziu a silêncio o interlocutor.
― Quer então vossa excelência que partamos amanhã para as Boticas?
― Se eu não tive piorado desta frouxidão que dificilmente me deixa ir duma cadeira para outra, muito me obsequiará vossa excelência acompanhando-me. Se o doutor entender que é praticável a operação, eu mandarei ir o meu escudeiro e mais criados.
― Vossa excelência tem os meus criados e a mim com eles.
― Obrigadíssimo à sua bondade: deixe-me abraçá-lo, que há muitos anos não senti alguém nos meus braços.
Parece-me que ainda é novo...
― Não, senhor. Tenho quarenta anos.
― Eu já era decrépito nessa idade. Aos vinte e seis anos embranqueceram-me os cabelos, e aos trinta caíramme. Quando voltei a Portugal, depois dum exílio de treze anos, os meus criados perguntaram-me quem eu procurava.
― E já então não encontrou pessoa alguma de família?
― Que eu prezasse... não. Tinha irmãs, que nunca estimei, nem me estimaram. Tinha uma filha...
― Morreu?
― Morreu.
O conde de Gondar apertou as mãos do homem, que prezava, porque sabia que lhe via as lágrimas; e murmurou:
― Vê? Estes olhos não tem luz, tem o sangue do coração. Olhe que eu sou o mais castigado e desgraçado homem que nasceu debaixo do Sol. A sepultura repele-me há cinqüenta anos, porque eu morri então. Morri então, senhor...
E estreitava convulsamente ao seio as duas mãos do cavalheiro.
― Está bom... – prosseguiu ele com satisfação. – Estou melhor... desafoguei... Sinto-me tão bem!...
Quem pudera chorar uma hora em cada doze de tonturas... ― Já vê vossa excelência quanto lhe seria consoladora uma família... Foi fatal o perdimento de sua filha.
― E vossa excelência sabe que a perdi?
― Sei por ter tido a honra de o ouvir há pouco dizer ao senhor conde..
― Ah! Fui eu?...
― Sim; disse-me vossa excelência que sua filha tinha morrido.
― Viva ou morta... morreu. Nunca ouviu falar dela?
― Não, senhor.
― Esqueceram-na todos! Ninguém aqui em Ponte... nem os Abreus lhe falaram dela?
― Não, senhor conde.
― É porque ela empobreceu... é porque eu a repeli... Desprezaram-na todos, e não curaram de saber se eu tinha razão, ou se ela tinha infâmias para ser desprezada... E por isso... morreu!
O flaviense não formava da intelectualidade do conde um juízo satisfatório para uma certidão de sanidade. Não acabava de entender se a filha do conde era viva ou morta; nem ousava protrair indagações irritantes da torvação mental do velho.
Calou-se, aproveitou o ensejo oportuno de despedir-se, e foi indagar o mistério de tal filha.
Os informadores disseram-lhe concordemente que em verdade o conde tivera na sua mocidade uma filha natural de uma célebre fidalga do seu tempo; mas que essa menina se havia perdido em libertinagens como sua mãe.
O cavalheiro entendeu então o que era morrer, e condoeu-se profundamente do pai da perdida.
XXVII
VEM ROMPENDO A LUZ
Francisco José da Costa foi chamado urgentemente para visitar um senhor conde hospedado em Monte Alegre.
― Conde de quê? – perguntou Ângela, curiosa de saber que titular subia as montanhas de Barroso em busca de seu marido.
― Conde de Gondar – disse o enviado.
― De Gondar? – observou Ângela ao marido. – Cuidei que só havia o Paço de Gondar de meu pai!
Ora, Francisco não lia gazetas, nem sabia que o general Noronha passasse a titular. Não ponderou por isso a observação da esposa, nem inquiriu a procedência do conde.
Chegou à casa nobre de Monte Alegre.
Levaram-no à presença dum ancião cego, de aspecto cadavérico e tocantemente amargurado.
Costa examinou-o em breve espaço, e perguntou:
― Senhor conde, há que tempo começou o seu padecimento de olhos?
― Há nove anos. Estava eu em Paris a tratar-me de nevralgias de cabeça.
― E quando cegou completamente?
― Há dois anos, tendo voltado a Paris para consultar de novo os especialistas.
― Disseram a vossa excelência que era catarata negra a cegueira?
― Juntamente; mas era intempestiva a operação. Depois, cá em Portugal, dois facultativos que consultei não votaram pela operação: um deles pendia a crer que a minha cegueira fosse paralisia.
― É catarata negra – disse Francisco Costa.
― Pode operar-se? – perguntou o conde, agitado.
― Pode, senhor conde.
― Vossa senhoria tem esperanças?
― As que pode ter-se em operatória.
― E espera dar-me vista?
― Espero, creio que vossa excelência verá.
― Feliz hora em que este amigo que está a meu lado me levou a Ponte do Lima a notícia de vossa senhoria! –
exclamou o conde.
― O senhor conde de Gondar – disse o cavaleiro de Chaves ao operador – é o bem conhecido general Simão de Noronha.
Costa fitou o semblante do cego, e baixou maquinalmente a cabeça.
O apresentante prosseguiu:
― Eu tinha visto dois prodígios de vossa senhoria, e assim que soube dos padecimentos de sua excelência, animei-me a solicitar a sua vinda com grande confiança na perícia do senhor doutor. ― Agradeço a vossa excelência a confiança imerecida com que honra o pouco que sei e valho. Onde quer ser operado o senhor conde?
― Se fosse possível, na terra onde vossa senhoria reside – respondeu o cego.
― Nas Boticas não creio que haja casa capaz – observou Pizarro.
― Há – contradisse o cirurgião.
― Sim? – acudiu o conde.
― É a minha – tornou Costa. – Se vossa excelência quiser...
― Quero, meu Deus, quero; nem posso querer outra coisa, e desde já lhe aperto as mãos com o mais sentido reconhecimento – disse o velho com alegria.
― Não pode hospedar-se melhor – confirmou o parente.
― A casa é de aldeia – tornou Costa, sorrindo – mas, enquanto o senhor conde for cego, dispensa o luxo dos ornatos; e, depois que tiver vista, irá para sua casa. O essencial é que vossa excelência tenha um leito, um cirurgião a ponto, e pessoas que o sirvam. Isso lhe ofereço.
― Não ouso dizer a vossa senhoria que remunerarei o que é remunerável – disse o conde -; mas o maior número dos seus favores não se retribui a dinheiro.
― O dinheiro nestas aldeias, senhor conde – volveu Francisco – não é extremamente apetecível, porque faltam cá, ainda bem, as tentações que o encarecem.
― Não sei – refletiu o general – como um facultativo de tanto merecimento se aclimatou em Barroso!
― À procura duma subsistência parca, bastantíssima à felicidade doméstica.
― Então é aqui feliz?
― Mais do que dizem que se pode ser neste mundo.
― É o primeiro homem que me responde isto! – maravilhou-se o general, volvendo a cabeça para o lado onde sentia gente. – Nunca foi infeliz?
― Fui apenas infeliz trinta e um anos.
― E quantos tem?!
― Trinta e três, senhor conde.
― Então a sua felicidade é recentíssima! Encontrou-a aqui?
― A perfeita, a inexcedível encontrei-a em Barroso.
― Tem família?
― Mulher, um filho e uma irmã.
― São as delícias da sua vida!... não são?
― Certamente... – respondeu Costa, espantado do tom dulcíssimo com que abemolara aquelas palavras a selvagem índole do pai de Ângela, e do amante de Maria d’Antas.
― Eu também fui casado – tornou o cego – e amei extremosamente minha mulher, que morreu de dor instantaneamente quando me viu ferido de morte em batalha. Compreendo esse sublime e sagrado amor de marido...
― E de pai?... Não tem vossa excelência a boa fortuna de ter filhos?
― Não... não tive... – balbuciou secamente o conde, e declinou a direção da prática, perguntado:
― Quando quer vossa senhoria que eu vá para a sua hospedeira casa?
― Amanhã, querendo vossa excelência. Hoje mando dar algumas ordens ao aposento que o senhor conde vai honrar.
― O senhor doutor!... beijo-lhe as mãos. E poderei chamar um escudeiro que me trata há muitos anos?
― Pois não! Esperarei vossa excelência, a menos que me não dê ordem de o acompanhar desde aqui...
― Não senhor – atalhou o fidalgo flaviense – eu acompanharei o meu amigo.
― Recebo as ordens de vossas excelências – disse Francisco José da Costa, e saiu.
― Este homem pareceu-me extraordinário! – considerou o conde. – Tem uns ares altivos, não tem?
― E mais vossa excelência não lhe viu a gravidade imponente do rosto! As maneiras são de boa sociedade, e o olhar tem uma penetração de águia. Eu estava a gostar de o ouvir.
― Também eu! Muito lhe devo, meu amigo! De mais a mais deu-me um operador simpático, com uma família que me há de aligeirar as horas? Muito lhe devo!
Entrou com tranqüila aparência o cirurgião em casa.
― Que tinha o conde? – perguntou Ângela.
― É cego, filha.
― Oh, coitado! E cura-se?
― Cura.
― Deus o permita. Vais operá-lo?
― Vem ele aqui operar-se. ― Às Boticas?
― A nossa casa.
― O conde vem para aqui!... Ai que casa esta!...
― Não te disse que ele é cego, menina?
― E que quarto lhe dás?
― O nosso.
― Então seja o meu – disse Joana.
― O nosso é melhor – tornou Francisco. – Cedes o teu quarto ao conde, Ângela?
― Pois sim, meu amor. Ele que homem é?
― Tem setenta anos.
― Tão velhinho! E vais operá-lo?
― Vou.
― De onde é ele?
― Veio de Ponte do Lima.
― De Ponte do Lima? De que família?
― Dos Noronhas Barbosas.
― Então é meu parente.
― É; é muito teu parente; é teu pai.
― Meu pai?!... Estás brincando, Francisco?
― O cego conde de Gondar que vem para tua casa é teu pai, Ângela: é o general Simão de Noronha.
― E ele sabe?... – exclamou Ângela, ofegante. – ele sabe...
― Para onde vem? Não nem quero que saiba depois que estiver cá. Desde que ele entrar, tu perdes o teu nome, e chamas-te?... como hás de chamar-te? Maria. Se sentires expansões de filha, hás de reprimi-las. pede-to o teu plebeu, o filho do sacristão honradíssimo que amou seus filhos com ternura, e se apartou deles prometendo-lhes vigiá-los do céu. O conde de Gondar aqui dentro é um doente que se trata. De comum entre nós há apenas operado e operador. Tu és a esposa de um, e a filha repulsa e abandonada do outro. Que te diz o coração, Ângela?
― Que ele é meu pai... e mais desgraçado que eu...
― Pois compadece-te, ama-o, mas não me impeças o restituir-lhe a vista. Quando ele te vir, há de ser tarde;
mas podes vê-lo e falar-lhe contanto que imediatamente à operação, e mudados os apósitos, ele te não veja.
― Mas, logo que me veja, é provável que me reconheça...
― Se assim for, a tua dignidade te aconselhará. Sobretudo, é preciso que atendas aos créditos do cirurgião. Se sobrevierem febres em resultado de comoções violentas, perderei o prazer de mostrar ao conde de Gondar uma família feliz sem brasão no portal nem ouro nas arcas. Quando o conde souber em casa de quem está, desejo muito que a senhora de casa se faça tão-somente conhecer por filha de D. Maria d’Antas.
De onde se prova que as singulares utopias no amor dos dezoito anos semelhavam muito em Francisco Costa, aos trinta e três anos, umas singulares utopias de dignidade humana.
XXVIII
CONFIDÊNCIAS DO CEGO
Batia alvoroçado o coração de Ângela quando ao longe tilintava a guisalhada da liteira, em que entrava nas Boticas o conde de Gondar. Joana e Vitorina, pasmadas da casualidade, faziam considerações muito religiosas sobre o caso.
Francisco saíra à extrema da aldeia para guiar o liteireiro. O cego, sabendo que o doutor o viera esperar, mandou parar o veículo, para apertar a mão do “segundo criador da sua luz”, dizia ele.
Caminhou Costa de par com a portinhola, e tomou o velho nos braços, quando a liteira parou ao portão do quinteiro.
Ângela e as outras espreitavam das janelas. Vitorina benzia-se, murmurando:
― Ai! Como ele está acabadinho! Quem viu este senhor há quarenta anos!
Ângela retraiu-se da janela para limpar as lágrimas.
Subiu o conde pelo braço de Francisco os poucos degraus que levavam do quinteiro à saleta destinada.
A melhor alfaia de assento era uma preguiceira almofadada a toda a presa por Ângela e Joana com um colchãozinho de lã e chita escarlate, e dois travesseiros com suas fronhas de folhos engomados. ― Queira vossa excelência sentar-se, e reclinar-se, senhor conde – disse o facultativo. – Convir-lhe-ia melhor uma poltrona; mas não a tenho.
― Isto é magnífico! – disse o general. Encostando-se confortavelmente. – que ar de frescura tem esta casa!
Parece que a felicidade tem um aroma particular, primo Pizarro! – ajuntava o general voltado para onde se lhe figurava estar o fidalgo de Chaves. – Onde vossa excelência me trouxe!... Como isto me há de parecer o céu, quando eu puder ver a casa e os bem-aventurados que vivem nela!... Ainda me não deu a honra de me apresentar a sua senhora, a seu filhinho e a sua irmã, senhor Costa.
― Eu chamo-os: são os criados de vossa excelência que eu apresento. Maria e Joana, venham oferecer os seus serviços ao senhor conde.
Entraram as duas senhoras, e Vitorina com um menino de ano e meio no colo.
O conde fez menção de levantar-se, quando sentiu frêmito de vestidos.
― Não se levante vossa excelência – susteve Francisco. – Aqui estão minha mulher e minha irmã.
― O cego estendeu as mãos, tomou as das senhoras.
― A da esquerda qual é? – perguntou ele.
― É minha mulher.
― Parece-me, notou o conde, que a presença de um ancião cego a comove sensivelmente, minha senhora!...
Vossa excelência tem a sua mão tremula e ardente... Se tem compaixão desta velhice em trevas, deixe estar que seu marido lhe há de dar a satisfação de me abrir outra vez o mundo diante destes olhos.
― Deus o permita... – balbuciou Ângela.
― Pouco hei de viver – tornou o conde -; mas eu queria ainda ver o Sol, um dia que fosse, o céu que não vejo há dois anos, contados noite por noite, porque eu nunca mais distingui o dia das trevas. Vossas excelências ser ao testemunhas da minha doida alegria... Ouço a voz dum menino que chama sua mãe... É o seu filhinho, minha senhora?
― É sim, senhor conde.
― Deixe-me beijá-lo, se ele me não tiver medo.
A criancinha foi facilmente aos braços do velho, deixou-se beijar, e ficou a olhá-lo no rosto com infantil fixidez.
― Eis aqui a florinha que desabrocha sobre uma sepultura... – disse o velho. – Que mavioso grupo, não é? Foi em França, não sei em qual palácio de Carlos X, que eu vi assim uma pintura, e uma legenda que dizia: Aurora que alumia um túmulo... Ora vá, vá, anjo, que deve estar admiradinho de se ver entre as tristes ruínas duns setenta anos!...
Aqui o tem, senhora D. Maria...
Ângela bem queria esconder o seu pranto do fidalgo de Chaves, que a contemplava como espantado de tamanha sensibilidade; mas a comoção vencia a infundado receio de denunciar-se.
― Senhor conde – disse Pizarro – razão tinha vossa excelência para supor que a senhora D. Maria estava compadecida. Ela aí está com o rosto coberto de lágrimas.
― Obrigado à sua compaixão, obrigado mil vezes, minha senhora! – agradeceu o cego com a voz tremente.
― Maria – disse Francisco – dá ordem a que venha um caldo para o senhor conde.
― Eu não tenho vontade; mas o meu dever é obediência ao médico – condescendeu o conde.
― E vossa excelência jantará um pouquinho mais tarde – continuou Costa, dirigindo-se ao parente do conde.
― Eu vou retirar-me porque me esperam em Monte Alegre, e almocei para jantar à noite. Voltarei aqui, se me dá licença, de três em três dias.
― Sempre que vossa excelência queira honrar-me. Depois de amanhã há de ser operado o senhor conde.
Mandei chamar um ajudante a Chaves, e só então aqui estará.
Retirou-se o flaviense, felicitando o primo pela ventura de ter achado o seio de tão carinhosa família.
― Quando aqui estiver três dias, cuidarei que é a minha – disse o cego tomando o caldo das mãos de Ângela, enquanto Joana lhe aconchegava as almofadas para encosto dos braços.
E, no correr deste lance, Vitorina, com as mãos postas, e os beiços chegados às pontas dos dedos, e a cabeça um pouco inclinada, não desfitava os olhos absortos da cabeça de Simão de Noronha.
Estava ela comparando o gentil capitão de cavalaria, o mancebo de olhos negros e tez morena, o fragueiro caçador que ensinava cavalos a galgar penedias, enfim, o galhardo amante de D. Maria d’Antas. E, quando a idéia da velha tropeçava neste nome, como num túmulo, queria ela ver, à beira do ancião, o espectro terribilíssimo duma mulher estrangulada.
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Ao outro dia, o cirurgião foi ver os seus enfermos no circuito de algumas léguas, recomendando à esposa:
― Sê o que deves ser, minha filha. Sopesa o coração, se o sentires mais pusilânime do que eu desejo.
― Conta comigo, Francisco. Ele não me vê chorar. As duas senhoras sentaram-se em frente do canapé, costurando nas faixas e panos necessários para o curativo.
Antoninho agatinhava à preguiceira, e passeava amparando-se à beira do estofo ou aos joelhos do cego, que nunca o deixava passar sem um beijo. A criança ria às guinadas, quando vingava iludir o velho, que se fingia zangado com o engano.
Quem seis dias antes tivesse visto no palacete de Ponte o solitário cego, de fronte abatida para o peito, braços pendidos, ou agitados, a espancar as trevas interiores em busca de um lampejo que lhe deixasse entrever a vida de além túmulo! Quem agora o visse na casinha das Boticas, a brincar com um menino, a rir das criancices que não via, a folgar que Joana lhe descrevesse as cabanas da aldeia, os trajos das barrosãs, a sua maneira de dizer, as bagatelas com que pessoas alegres costumam aligeirar as horas!...
Esta incongruente transfiguração quem a operou? A esperança da luz? O contato da família feliz? A influência misteriosa do que há aí sem nome, e sem idéia nos atos da Providência?
Tudo isto, e o mais que possa ocorrer às almas inteligentes de espiritualismo, não nos dá a causa de tão capital mudança.
Eu ousaria explicar tudo em pouco. A palavra Deus abrange o incógnito de céu e terra, o incompreensível da alma, e o insondável liame de coisas que a razão natural, de pouco alcance mas inflexívelmente orgulhosa, capitula de paradoxos. Deus. Por que não?
Se Simão de Noronha delinqüíra, o açoute da justiça não lhe estalava, desde o instante da ira, nas fibras do corpo? Não se lhe apagou primeiro lá dentro a lâmpada da fé? Não lhe tirou Deus o amor paternal para o privar da ternura da filha? Não lhe fez odiosa a sociedade para o infernar bem dentro de si mesmo?
Pois se é racional reconhecer a Providência na expiação de tão longo prazo, será absurdo reconhecer-lhe a misericórdia naquele dilúculo de contentamentos, após quarenta anos de noite, de ira, de tédio, de ateísmo, de remorso, e de inferno?
Alegremente, pois, dizia o conde:
― A senhora D. Maria fala muito pouco. A senhora D. Joana é mais conversadora.
― Eu falo pouco, senhor conde?... Tenho um gênio melancólico... – disse Ângela.
― Ainda lhe não disse, minha senhora, que o seu metal de voz desperta-me recordações tristes; e, não obstante, consolo-me de a ouvir. Conheci o timbre da sua voz não vulgar em duas pessoas...
Ângela e Joana entreolhavam-se suspensas dos tardos dizeres do conde. Ele, porém, recolheu-se, abateu o rosto caído e como subitamente macerado.
― Está tão triste, senhor conde! – disse Joana. – Não queremos vê-lo assim!... Não pense no passado. Lembrese só de que vai recuperar a sua vista...
― Para ver sepulturas, e ver também onde hei de abrir a minha...
― Para ver as pessoas que lhe desejam muitos anos de alegria, e uma é minha imã... Maria, outra sou eu, e meu mano... Aqui tem já vossa excelência três pessoas que lhe querem muito...
― E eu sei quanto pode a comiseração em suas excelentes almas, minhas senhoras... Os incômodos que eu tenho já dado para me não faltar nenhuma destas niquices de velho, e de cego... A pobre Vitorina toda a noite, assim que eu gemia, estava ao meu lado... Penso que era ela; que duma ou duas vezes quem me falou foi a senhora D.
Maria, não foi?
― Fui, senhor conde. Eu estava ainda a pé nas minhas rezas, e mais minha irmã.
― Peçam a Deus por mim, virtuosas senhoras.
― Pedimos, pedimos, senhor conde – disse Joana.
― O doutor por lá anda a moirejar na vida de cabana em cabana... – disse o conde.
― É verdade. Tem dias que sai ao romper de alva e recolhe alta noite – respondeu Ângela.
― Que voz a sua, minha senhora! – repisou o cego bamboando a cabeça. – Faz-me sentir espantosas alucinações!...
― Mas eu queria que a minha voz o não mortificasse, senhor conde...
― Não me mortifica; enche-me o coração de...
― Saudades? – perguntou Joana com susto, enquanto Ângela lhe fazia sinal para não insistir em tais indagações.
― Saudades... e agonias sem nome... Hei de dizer a verdade a vossas excelências... Na minha mocidade amei uma dama, cuja voz era a da Sr.ª D. Maria; e tive uma filha, que também assim falava... Agonias e saudades... é o que me resta de ambas... Está bom... – suspendeu-se o conde sacudindo a cabeça. – Está bom!... Ora que nem aqui me deixam estas funestas memórias!... Eu estava a dizer que dei muito incômodo esta noite... Amanhã deve aí chegar o meu escudeiro, um criado que tem quarenta e tantos anos de casa, que me tem aturado muito, e que ficará ao pé da minha cama para vossas excelências e a sua criada poderem dormir descansadas. Ângela, olhando para Joana, abriu a boca em atitude de susto, quando ouviu dizer que vinha o escudeiro. João Pedro reconhecê-la-ia logo, e com qualquer palavra de espanto perturbaria o ânimo do pai.
― Seu marido é natural do Porto, Sr.ª D. Maria? – perguntou o cego, após longa pausa.
― Sim, senhor – titubeou Ângela.
― E vossa excelência também?
― Sim, senhor.
― Queria-lhes fazer uma pergunta; mas bem conheço que é ociosa...
― Que era, senhor conde? – insistiu Joana.
― Se tiveram alguma vez notícia de existir no Porto um brasileiro de Barrosas, de quem me não lembra o nome, casado com uma senhora chamada Ângela, que depois enviuvou, e casou segunda vez...
Ângela fez à cunhada um sinal negativo.
― Nada, não conhecemos, nem ouvimos falar...
― Logo vi. Vão lá saber em terra tamanha...
― Mas, se se pedissem informações... – lembrou Joana.
― Já as mandei procurar...
― E não soube nada?
― Soube o que disse, minhas senhoras: que Ângela enviuvara, casara segunda vez, e saíra não se sabia para onde.
― Vossa excelência mandou há muito saber? – perguntou Joana.
― Há três meses o meu escudeiro; por lá andou cinco dias.
― E essa senhora... – balbuciou Ângela.
― Seria parenta do senhor conde? – interveio Joana.
― Era uma infeliz, filha dum homem que tinha sido bom, e infortúnios grandes desvairaram e perverteram.
Afinal, esse homem, como se tinha sepultado vivo, perdeu nas trevas, onde se abismou, alma, coração, honra e tudo.
Deus, que o precipitara, levantou-o um dia, não sei se para lhe acrescentar o suplício, renascendo-lhe o coração e sentimentos de amor a sua filha. Procurou-a então; mas... tarde.
Escutaram-no silenciosas e estupefatas as duas senhoras.
A conversação foi interrompida pela entrada do cirurgião; porém, o conde, azado o ensejo, prosseguiu:
― Sr. Costa, eu quero dever-lhe uma grande fineza!
― Mande-me vossa excelência.
― Estas senhoras já me ouviram com muita paciência e compaixão falar duma filha que tive...
Francisco olhou com assombro para ambas.
Simão de Noronha continuou:
― Hei de pedir-lhe que empenhe as suas amizades e relações no Porto para descobrir-se o destino de uma senhora, de nome Ângela, casada que foi com um brasileiro, já falecido, e casada depois com não sei quem. O meu escudeiro, que chega talvez amanhã, pode dizer a vossa senhoria o nome do brasileiro, com o qual a indagação nos levaria a descobrir a paragem de minha filha.
― Prontamente escreverei a pessoas que hão de conseguir o que for possível – disse Francisco, sensivelmente perturbado. – Tenha vossa excelência esperanças; mas que não venham alvorotar-lhe o espírito. Precisamos de toda a sua placidez nervosa, e de completa inação de espírito. Depois que vossa excelência estiver no gozo da sua vista, buscaremos tudo que possa impressioná-lo alegremente. Se sua filha existir, ela será também comigo portadora de luz; eu, a dos olhos; ela, a da alma.
XXIX
LUZ!
Estão prestes o operador e o ajudante.
Ângela, baldado o esforço que empregou para assistir, afastou-se, pálida e tremula, para o seu oratório.
Joana e Vitorina assistiam para coadjuvar o operador.
O conde treme.
― General! – disse Francisco Costa. – Quem se enrostou com os esquadrões de cavalaria de Chaves imperturbável, não desmaia diante duma lâminazinha de aço.
― Tremo de medo; mas não é medo do golpe. Se depois de me rasgar as névoas, doutor, eu não vejo mais que trevas!... ― Será ver o que ninguém viu, senhor conde. Ver trevas, é vista dupla, que eu não prometo dar a vossa excelência. Basta que veja a luz – replicou jocosamente o operador. – Não obstante, eu encontrei essa imagem em Milton, que tinha a autoridade de cego.
O operador escolheu o método da extração.
Atravessada com o queratótomo a córnea transparente, o humor cristalino, cuja opacidade impedia a impressão de raios visuais, depois de comprimido o globo brandamente, destacou-se, e saiu no gancho de Wenzel.
Terminada a operação, o conde viu a mão do operador, tomou-a nas suas e beijou-a.
― Vi! Meu Deus! Vejo o seu rosto, Sr. Costa – exclamou Simão de Noronha. – Aqui estão duas senhoras, não estão?...
― É minha irmã e Vitorina.
― E sua senhora?
― Está preparando compressas.
― Eu queria vê-la...
― Noutra ocasião. Vamos já colocar os apósitos.
― Já?! Mais quantos dias cego!
― Quarenta e oito horas em que vossa excelência, pensando nos cegos irremediáveis, cuidará que as horas são instantes.
Conduzido para o leito o operado, em quarto quase de todo escuro, assentaram-lhe chumaços molhados sobre os olhos cingidos de ligaduras.
Terminado o curativo, Ângela voltou, apertou a mão do pai, e disse estremecidamente:
― Parabéns para vossa excelência e para nós, senhor conde!
― Não tive a fortuna de vê-la, Sr.ª D. Maria!... – queixou-se o velho.
― Estava lá dentro...
― E não esteve aqui enquanto me operaram? Não a senti...
― Estava pedindo a Deus por vossa excelência.
― É um anjo, minha querida senhora! Esta casa... toda ela é um santuário... Olhe que vi seu marido. Já o conheço. Tem um belo aspecto! É trigueiro e muito barbado, não é?
― É, sim, senhor conde.
― Sua cunhada não a divisei bem; mas pareceu-me banca e magra, não é?
― É, sem dúvida.
― A criada conheci que era velha; mas estava encoberta pela Sr.ª D. Joana...
― As velhinhas escondem-se – ocorreu a jovial Vitorina. – é o que faltava aparecer uma velha carcomida logo de pancada a um senhor que não via criatura viva há dois anos?
― Pois quero e desejo vê-la, e muitas vezes, Sr.ª Vitorina. Tem-me tratado com muito amor. Já tive outra criada com o seu nome. Onde isso vai! Há bons trinta e dois anos que a não vejo!...
― Já deve ser da minha idade, então... – observou a velha, trejeitando para as damas.
― Sim, se vossemecê anda pelos setenta...
― Setenta! Deus nos acuda!... Pois eu tenho lá setenta anos!
― Então quantos tem vossemecê?
― Fiz sessenta e nove há seis meses.
― Ah! Então recolho o meu juízo! – casquinou o conde. – Está vossemecê muito nova, Sr.ª Vitorina. Cuidado com as ilusões da mocidade, menina!
Riam as senhoras, e Vitorina continuou a provocar as jocosidades do conde, que eram ouvidas com admiração, mormente pela filha, que, nos raros dias de convivência com seu pai, o não vira sorrir uma vez só.
Quando, ao cair da tarde, se anunciou a chegada de João Pedro, saiu a encontrá-lo no quinteiro Ângela.
O velho embasbacou, e encostou-se à mula, de que desmontara, porque as pernas lhe faltavam.
A filha do conde de Gondar em poucas palavras elucidou-o sobre o que lhe convinha fazer para que a cura de seu pai não fosse perturbada por alvoroços de espírito ou nevralgias que lhe irritassem os olhos.
Logo que o ensejo se apropositou, Francisco Costa, estando já precavido o escudeiro, volveu a falar ao conde no seu intento de procurar Ângela.
― Ai está João Pedro que dirá a vossa senhoria o nome do homem com quem minha filha foi casada.
O escudeiro custava-lhe a conter em posição sisuda as mandíbulas abertas pelo riso, quando respondeu, voltado para Ângela:
― Chamava-se Hemorragilde.
Abafaram todos o froixo da gargalhada, tirante o conde, que murmurou:
― Vejam que nome! Parece gótico; mas ainda parece mais nome de moléstia... Hemorragilde!... ― Se o senhor conde permitir – disse o cirurgião – vai João Pedro ao Porto com cartas minhas, visto que o dispensamos aqui, e pode lá fazer bons serviços ao nosso intento.
― Pois que vá onde vossa senhoria ordenar – anuiu o conde.
― E, segundo as notícias que nos for comunicando, vossa excelência ordenará o que há de fazer-se.
Conjecturemos que ele encontra a Sr.ª D. Ângela. Que manda o senhor conde que ele diga a sua filha?
― Que imediatamente venha para minha companhia – deliberou sem detença o general – que não espere novas ordens; que se recolha à minha casa de Ponte, e espere por mim... e por todos nós... porque vossa senhoria e estas senhoras iriam comigo, não é verdade? Iriam ser testemunhas da felicidade que me começou no seio caritativo e amoroso desta família...
― E se sua filha, senhor conde, quisesse vir aqui mesmo encontrá-lo, não seria isso antecipar-se a ela o júbilo de lhe beijar as mãos?...
― Sim...; mas eu queria poder vê-la... Se ela viesse enquanto dura esta escuridão, seria grande e dolorosa a minha ânsia...
― Concordo, e aconselho até que ela venha depois que vossa excelência estiver convalescido – obtemperou Francisco.
― Mas o doutor parece que dá a vinda como possível! – admirou o conde.
― Pois não é possível?! Afigura-se-me até provável... O impedimento único seria ter ela morrido. Se existe, hei de descobri-la mediante as diligências dos meus amigos. Encontrada ela, tem vossa excelência a sua filha nos braços.
― E, se ela mos repelisse!... – conjecturou o velho, quebrado do vigor com que estivera dialogando.
― Seria incrível!... – objetou o marido de Ângela.
― Eu também a repeli... – contraveio o conde.
― Tão justificados seriam os motivos...
― As calúnias, e mais que tudo... a terrível doença da minha alma... a peçonha que ma queimava... a desesperada tristeza que me ia levando à demência, e me deixou o pior... que foi a vida, a consciência dos meus crimes encadeados uns noutros, como os fuzis do grilhão que amarra o criminoso ao cepo... Aí vem o meu demônio... – disse reconcentrado o conde...
― Mal vamos assim! – acudiu o facultativo, tomando-lhe o pulso. – Senhor conde, domine-se, arranque-se dessas intermitentes, pelo menos enquanto não estiver inteiramente restaurado.
― Senhor conde! – rogou ternissimamente Ângela – peço-lhe pelo divino amor de Deus que não se aflija...
Diz-me o coração que sua filha o ama, e lhe dará anos de muita alegria e sossego de alma. Verá que não me engano o pressentimento... O seu mordomo vai amanhã para o Porto. Daqui a oito dias pode muito bem acontecer que sua filha aqui esteja, a pedir-lhe perdão, se caiu nalgum erro...
― Não caiu! – exclamou o velho. – Precipitaram-na; fui eu, foram todos os que deviam ampará-la com o seio, com o coração, se ela pendesse a cair...
― Pois bem, senhor conde; melhor assim: não terá vossa excelência dificuldade em perdoar-lhe, nem ela ousará acusar seu pai nem seus parentes.
― Se ela tivesse no seu coração como está na sua voz, minha senhora! – murmurou o velho, estendendo-lhe a mão para lha apertar em impulsos de reconhecimento...
João Pedro foi para casa dum lavrador da freguesia, levado pelo doutor sob qualquer pretexto, e ai esperou as ordens, contentíssimo de ter parte no feliz desfecho que prometia o enredo da reconciliação entre a fidalga e seu pai.
Enquanto corria o tempo necessário a dissimular a ida do mordomo e vinda da resposta, examinou Francisco os olhos do conde, e exultou. A cicatrização era excelente. A fotofobia era quase nula. O velho já via através de lentes escuras graduadas as miudezas dos objetos, bem que a insistência lhe desse vágados e ligeiras dores. Ainda assim, Francisco ordenou que continuasse a escuridade no quarto.
Entretanto, lamentava o conde que D. Maria estivesse na cama sofrendo uma impertinente enxaqueca, ao tempo que ele tirara o apósito; e que as trevas do quarto fossem tantas que ele não podia destacar-lhe as feições, porque via tudo a vulto.
Passados os dias convenientes à simulada indagação, Costa, fingindo alvoroço, disse ao conde:
― Alvíssaras! – Aqui está carta de João Pedro para vossa excelência.
― Alvíssaras! – disse o conde. – Pois quem sabe o que aí vem?
― Se ele não encontrasse boas novas, é natural que voltasse logo, ou escrevesse mais tarde.
― Leia, leia então, meu amigo.
A carta dizia que a Sr.ª D. Ângela, no dia imediato, saía para as Boticas, com seu marido e filho. Acrescentava que a fidalga vivia muito pobre, e casada com um plebeu.
― Ela será rica, e ele nobre... – murmurou o senhor do paço de Gondar. ― Todavia – observou o filho do sacristão – mais grato seria a vossa excelência que ela houvesse casado com homem de geração histórica.
― Todas as gerações são históricas, Sr. Costa – acudiu o conde. – A geração da plebe francesa da minha mocidade é a mais histórica de quantas houve. Está enganado, doutor, comigo, pelo menos. Eu casei com uma pastora dos rebanhos dos meus caseiros. Chamava-se Josefa Salgueira. Amei-a como se ela descesse dum trono para me receber. Ao mesmo tempo que a pastora morria de dor por me ver ferido, a imperatriz da Rússia era uma devassa, e a rainha de Portugal era... a esposa do Sr. D. João VI... Vamos ao caso: vem minha filha? Dê-me agora os parabéns, e deixe-me apertar-lhe a mão de profetisa, Sr.ª D. Maria...
― Vai ver a sua filha... – balbuciou Ângela. – Que transportes de santa alegria vai ter a ditosa senhora!...
― Que tem de mais a mais um filho para brincar com o Antoninho... – acrescentou o general com pueril contentamento, rindo com estranho gesto. – Ó doutor, nesse dia dá-me luz em abundância? Entra o Sol neste quarto?
― Sim, senhor conde. Nesse dia, luz à discrição!
XXX
FINALMENTE
E o dia chegou.
Ângela, de manhã, pediu vênia ao conde para ir esperar a Monte Alegre sua filha.
― É de grande honra que ambos recebemos – agradeceu o velho – mas, minha senhora, peça a seu marido que me tire dos olhos estes veuzinhos escuros, e consinta que entre uma réstia de sol à chegada de Ângela.
― Eu vou recomendar o seu justo pedido, senhor conde – disse Ângela, e simulou sair de casa.
Francisco substituiu os vidros por outros mais claros nos olhos do convalescente e mandou abrir as janelas da saleta, por feição que o interior da alcova recebesse bastante luz.
O rosto do velho banhara-se de consolação, vendo distintamente Joana, e o menino que lhe brincava com os óculos, pondo-os no próprio nariz e chamando-se papão.
― Venho ajudá-lo a vestir, senhor conde – disse o facultativo. – Pode vossa excelência passar da cama para a preguiceira, se lhe apraz.
― Se eu pudesse... Mas as pernas, doutor?
― As pernas hão de ser medicadas com bifes e vinho do Porto. Queremos exercício, apetite, e bom estômago.
Toca a levantar, meu general.
Ergueu-se trôpego e amparado a Francisco. Depois de vestido, olhava para o sobrado, e chorava de alegria, dizendo:
― Já vejo o chão que piso... Saí da sepultura...
― Ora, senhor conde – tornou o marido de Ângela, depois que o reclinou no canapé. – Vossa excelência deve preparar-se para ver sua filha, como pai, mas também como homem. Se receia grande abalo, predisponha-se para rebater as expansões nocivas à sua compleição debilitada.
― Não há de haver dúvida. Já estou preparado... Sinto o coração; mas coração de setenta anos.
Anunciou-se a chegada de Ângela.
O conde sentou-se com esforçado ímpeto.
― Então! – acalmou Francisco. – Não quero grandes movimentos, senhor conde!...
― Oh, doutor? Não me deixa ser ao menos pai! – sorriu o velho.
Ângela entrou vestida como em casa, apenas coberta duma capa de pano preto. Acercou-se do pai, ajoelhou, e abraçou-o pela cintura. O conde inclinou a face para a cabeça dela, e murmurou:
― Deixa-me ver a tua face, minha filha.
Ângela encarou-o entre risonha e lagrimosa. O velho contemplou-a com a fixidez duma vista débil, beijou-a na fronte, e disse:
― Benvinda sejas!... És a minha pobre Ângela!... Perdoa à tua fatalidade e à minha... Levanta-te, e senta-te aqui ao meu lado.
Joana, Vitorina e João Pedro choravam soluçantes.
― Por que chora esta gente? – perguntou o general.
― A satisfação de ver Deus neste lance – disse Francisco.
― Então, alegrem-se! – tornou o conde. – Ângela, que é de teu marido e teu filho.
― Meu marido está aqui... – e apontou Francisco.
― Onde? Quem? teu marido!... Quem é? ― Eu, senhor conde! – disse Costa, inclinando-se a beijar-lhe a mão. – Antoninho, vem cá...
A criancinha correu aos braços do pai, que o levantou aos lábios do avô.
― Deixem-me pensar nisto que é um sonho, meu Deus! – volveu o general. – Tu, Ângela... és a esposa... de Francisco Costa...
― Sou, meu pai..
― Estou, portanto, em casa de minha filha... do meu genro... És o anjo que me velavas de noite... és, minha Ângela?... Aqui me trouxe Deus, a restaurar a luz da minha alma, e a descerrar as trevas dos meus olhos para vos ver, meus filhos!
― Senhor conde – disse o cirurgião muito comovido. – Eu queria evitar-lhe lágrimas; mas não sei se me enganaria, porque também comigo me enganei. O que mais me comove é pensar eu que vossa excelência tardou tanto em procurar o puro e santo coração de Ângela. Eu ofereço a vida de meu filho a Deus que me castigue o temerário juramento: juro por Deus que não há uma nódoa na alma de sua filha, senhor conde. Eu, marido dela, defendo-a, perante seu pai, porque ninguém mais se erguerá contra o mundo que a calunia. Eu, operário pobre, cirurgião nestas pobres montanhas, não encareço as virtudes da filha do fidalgo abastado: exalto-a, porque é ela a companheira da minha vida honrada, será sempre a graça divina que cobre do ouro da alegria estas paredes nuas, este desaconchego de regalos, isto que vossa excelência já vê com seus olhos. Não demorarei a explicação do processo um pouco estranho por que vossa excelência veio a encontrar Ângela, podendo desde que aqui entrou saber que era ela quem passava as noites à cabeceira de sua cama. Eu receei que o senhor conde desprezasse ainda sua filha quando entrou nesta casa. Conheci que felizmente me enganara; mas sobreveio o medo dos incidentes fatais da operação, quando grandes excitações morais implicam a placidez do curativo. Quis preparar o seu ânimo com delongas; preveni-lo de hora a hora para receber sua filha sem surpresa. Esta de ser ela a esposa do seu facultativo cuidei eu que seria grata a vossa excelência. Não será de vexame ao nobre conde que o marido de sua filha seja o cirurgião que teve a ventura de lhe abrir os olhos para que visse a criatura feliz que primeiro trilhou todas as vias dolorosas por onde pode ir a honra de uma mulher até ao calvário, em que o mundo costuma crucificá-las na ignomínia. Ela aí está, senhor conde, a sua filha Ângela. Ainda vossa excelência não viu ao lado dela a sua antiga criada que, desde os dois anos, a acompanhou, e lhe matou a fome com os cordões ganhados no serviço de seu pai e sua tia.
― És tu, Vitorina! – exclamou o conde. – Pois tu vives, mulher, e não abraças o teu amo!
― Não, que vossa excelência chamou-me velha, e fez rir as minhas amas, a zombar de mim!
E, dizendo, abraçou-se-lhe aos joelhos, e beijou-lhe as mãos, lavando-lhas de lágrimas.
Nesse lance anunciou-se o primo Pizarro, com outros fidalgos flavienses que pediam a honra de ser apresentados ao senhor conde de Gondar.
― Que entrem – disse o general. – Mando como em casa tua, minha Ângela.
Pizarro foi com os braços abertos felicitar o velho que exclamou:
― Saiu-me a cara que eu imaginava, primo Pizarro. Parece-se bastante com o general seu tio. Aqui estou com os meus olhos envidraçados; mas conheço tudo que Deus criou, e já sei que hei de ir vendo terra até ela se abater debaixo dos meus pés. Apresento a vossa excelência, e aos seus amigos que me honra, Ângela da Costa, futura condessa de Gondar.
― Quem? – inquiriu o pávido fidalgo.
― Ângela, minha filha, casada com meu genro, o Sr. Francisco José da Costa. Agora, minha querida Ângela, se crês que Deus tem na terra os seus agentes para os grandes fins de premiar ou punir, vai abraçar aquele cavalheiro que foi o mensageiro providencial que me trouxe aqui.
Ângela inclinou-se nos braços respeitosos de Pizarro, que, mal cobrado do seu assombro, disse:
― Sr.ª D. Ângela, vejo que Deus tomou a si o encargo de a vingar da sociedade.
CONCLUSÃO
Restaurado de forças físicas à proporção que a alma lhe remoçava, o conde ordenou, em tom militar, que toda a sua família das Boticas se transferisse para Ponte do Lima. Francisco José da Costa contrariou seu sogro, alegando que se tinha contratado por tempo de três anos com o município, e não podia deixar os seus doentes, sem que o seu lugar estivesse ocupado. O conde tais artes usou, de inteligência com Pizarro, que dias depois um médico, com vntajosíssima oferta pecuniária do conde, se oferecia a substituir Costa.
Mudou-se a família para Ponte.
Dias depois, Ângela era agraciada com o título de condessa de Gondar, e seu marido participante do título, em duas vidas. Francisco Costa, lendo o ofício do ministério do Reino, dirigiu-se ao sogro, e disse risonho:
― Um operador de cataratas conde! Meu querido amigo! Não queira vossa excelência afugentar de mim os doentes pobres que precisam dos meus serviços! Os enfermos indigentes que tem um colmeiro de palha como leito não ousariam chamar à sua caverna um conde. O pobre que se chama simplesmente Francisco folga e alegra-se de poder chamar Sr. Francisco ao irmão que lhe faz a receita. O título que vossa excelência pode sem custo e com muitíssimo proveito dar ao marido da condessa de Gondar, é permitir que ela pague do seu bolsinho ao boticário as receitas que eu mande aviar, e dar-ma também como auxiliar na cura dos pobrezinhos que adoecem de fome e frio.
O conde de Gondar viveu dez anos a mais ditosa existência de velho. Ainda viu seis netos à volta dele, perfumando-lhe de primaveras aqueles dez invernos cheios de sol.
Morreu aos oitenta, encostando serenamente a face sobre o braço da filha, que lhe dava a oscular a Cruz de Cristo.
Um ano antes tinha descido abençoada à sepultura aquela primorosa Vitorina, legando os seus cordões restaurados, e um bom casal que lhe dera Ângela à filha mais velha de sua ama.
Vivem atualmente a condessa de Gondar, o marido, que ficou sempre Francisco José da Costa, seis filhos, o mais velho dos quais, aquele Antoninho, nascido nas Boticas, é o mais requintado aristocrata do Minho, e aturde os seus condiscípulos da Universidade contando-lhes legendas do Paço de Gondar, de que ele vem a ser o vigésimo senhor. A legenda que ele ignora é a de sua avó D. Maria d’Antas.
Ângela tem hoje quarenta e nove anos. As rugas não ousam ainda combater a mocidade renascida naquele coração. Cinco meninas formosas que a seguem à missa passam pelo desgosto de ouvir dizer:
― A mãe é melhor que as filhas.
Quem ainda vive, a competir com os velhos robles do Paço de Gondar, é João Pedro, que pediu a sua reforma, e está feitor nominal do condado.
Na véspera de Natal vem sempre a Ponte consoar com “a sua gente”, diz ele. E depois que as rabanadas e o Porto lhe aguçam a memória, costuma dizer todos os anos, a sós com Ângela:
― Ó senhora condessa!... mal diria eu quando a vi casada com aquele Hemorragilde!...
Ângela, com quanto já conheça, de antemão, o gracejo obrigado da noite de Natal, aplaude sempre com uma risada e dois piparotes na orelhas musgosas do macróbio.
EPÍLOGO
Concluído o livro, suja-se uma verdadeira lauda com as escavações que mandamos fazer nos pântanos desta história.
Descobriu-se através de fétidos esgotos, que os três amigos e herdeiros de Hermenegildo Fialho de Barrosas ainda respiram a medram.
Atanásio José da Silva é barão da Silva.
Pantaleão Mendes Guimarães é barão de Mendes Guimarães.
Joaquim Antônio Bernardo, como não tinha apelido, apossou-se da quinta dos Choupos, que lhe fora hipotecada na dívida fantástica de Fialho, e fez-se barão dos Choupos.
Ainda há mais um título.
O marido de Rosa Catraia, retirado à terra onde nascera, Cabeceiras de Basto, fez-se influente político, principiando em regedor, depois camarista, presidente do município, e administrados substituto do conselho.
Lutador acérrimo em eleições de deputados, vingou levar ao parlamento um sobrinho de Rosa, formado à sua custa. A comenda que o agradecido bacharel lhe enviou fez saltar a rolha da cornucópia das graças, que mais se retorcia de vergonha sua e da pátria, como se uma e outra pudessem já alegar pudor, e negar-se a solicitações de infames.
Rosa Catraia é, pois, baronesa de Vilar d’Amôres, título um tanto lírico e romanesco, bem ajustado às escarlates bochechas e túrgidos seios que ressumbram bestidade, saúde, alegria e lubricidade seródia.
As outras baronesas, bastante mais avelhantadas, representam os estragos da corrupção moral nas pessoas, e o despejo da corrupção política nos títulos.
FIM
Fonte:
CASTELO BRANCO, Camilo Ferreira Botelho. Os brilhantes do brasileiro. São Paulo : Saraiva, 1966. 186p.
(Coleção Saraiva, n. 215).
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
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mantidas.