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Textos para uso geral de domínio público.

O Turbilhão

Revistas as últimas provas do conto de Aurélio Mendes o Anacharsis dos "Idílios pagãos", Paulo Jove arredou a cadeira e pôs-se de pé, desabafando. Doía-lhe a espinha e, como havia fumado quase todo o maço de cigarros, tinha a boca amarga e áspera, os olhos ardidos, não só do fumo e da claridade intensíssima das lâmpadas elétricas, como da fixidez atenta em que os mantinha desde as sete e meia até àquela hora alta da noite.
Curvou-se de mãos nas ilhargas, d'ímpeto esticou os braços, arrojou-os à frente com um ahn!
surdo de atleta que exercita os músculos entorpecidos e desabou-os depois, com força, sacudindo-se todo, virando, revirando a cabeça, como em ânsia angustiosa. Levantou-os, de novo, acima da cabeça, as mãos juntas, estrincando os dedos enclavinhados e bocejou, espichando-se nas pontas dos pés caindo depois, rijamente, sobre os tacões.
Já as primeiras páginas haviam descido para a clichagem. Embaixo, martelavam pancadas crebas, como de matracas. A caldeira reboava num retroar soturno de caverna que repercutisse, sem descontinuar, o gorgorejo possante de águas encachoeiradas.
Na sala da revisão, estreita e abafada, mal comportando as quatro mesas de serviço, os revisores repousavam; apenas o Brites, esgalgado e míope, lia o antigo de fundo, todo em períodos lamentosos augurando fome e lutas; e o Amaro, conferente, acusando a pontuação de quando em quando batia na mesa pancadas secas com um lápis ou dizia claramente uma palavra, repetindo-a devagar, sílaba a sílaba, enquanto o Brites, debruçado sobre a prova, fazia a emenda resmungando.
O Malheiros, em mangas de camisa, suado, afogueado, derreava-se na cadeira, com a cabeça no respaldo, fumando, de olhos distraidamente cravados no teto, de onde escorriam os fios oscilantes das lâmpadas elétricas. O Bruno, abaçanado, raquítico, nervoso, sempre a calcar sobre a mola flácida do pince-nez, que lhe escorregava do nariz tressuante, todo pendido para o Freire, com uma rosa murcha à botoeira, silvava endecassílabos, preconizando a grande Arte do Mendonça, o inimitável cinzelador do "Fauno Trêmulo".
Paulo enxugou a fronte e, tirando de um prego o colete e o paletó, lentamente, vergado de fadiga, a bocejar, vestiu-os, com os olhos no entusiasta penegirista do Decadismo, que falava precipitado com desabalados gestos, sem dar pelo estremunho do Freire que molemente com uma ponta de cigarro ao canto da boca, sacudia a cabeça em afirmações condescendentes.
Na grande sala, ao lado, vozes morosas apregoavam letras e números.
A colmeia fervilhava. Os compositores - uns de pé, em mangas de camisa; outros em altos bancos, em quatro filas paralelas, estendidas ao longo da sala, cabisbaixos, à luz branca e viva das lâmpadas, precipitavam os dedos nos caixotins, enchendo os componedores com um trepidar metálico de gotas d'água em zinco.
O Mário, d'óculos, apressado, ia de um a outro, examinando: inclinava-se sussurrando, como se comunicasse segredos, e havia, por vezes, um zumbido de vozes surdas, interrompido pela tosse cavernosa de um rapaz bronzeado, esguio e ossudo que, de instante a instante, ia à janela escarrar e lá ficava, curvado, tossindo aos arrancos, cavadamente. como se tivesse o peito devastado e oco.
O Sampaio, diante do mármore, a mascar o charuto, ia desligando os paquets para a paginação, enquanto o Lúcio, retranca, besuntado de tinta, mangas arregaçadas, tirava as últimas provas que os revisores esperavam.
Subitamente um bufo, como da expansão de uma válcula, subiu das oficinas, e foi depois um chiado e logo um silvo de jato, e, lentamente, com rumor de ferragens, como à partida de um comboio, as máquinas moveram-se, abalando o soalho em trepidações contínuas.
O Malheiros, dobrando-se, tomou entre as mãos enlaçadas um dos joelhos e suspirou:
"Não podia ouvir aquilo sem saudade: lembrava-se da sua viagem e pensava no Norte. Parecialhe que se achava a bordo, no convés, estirado num banco, ao clarão da lua, ouvindo as fontes pulsações da máquina que impelia o navio pelo mar luminoso." E, sonhando, deixava-se ficar muito quieto, olhos semicerrados, viajando imaginariamente para o seu torrão longínquo: praias longas, ondulando em dunas alvas, praias que o mar bravio lambe e assoalha de espumas, donde os jangadeiros, cantando, arrastam as jangadas que, de velas pandas, aos galões, partem, montando a vaga, perdendo-se nos horizontes azuis.
O Bruno, esse detestava a oficina: o "antro do Dragão". O prelo era: o Monstro devorador do gênio; e, sempre que ouvia a crepitação das correias nas polias ou o rolar dos cilindros das marinônis, murmurava, com ódio e nojo: "Lá está a besta mastigando!"
Nessa noite, mais irritado, irrompeu furioso:
- Eu podia estar na redação, ganhando mais e com outras regalias: escrevo com sintaxe e com arte, tenho a minha porção de ciência e de literatura, coisas que não possuem muitos dos que se inculcam, com vaidade, jornalistas; mas não quero: prefiro ficar por aqui, em nível inferior, conservando a integridade perfeita do meu espírito; ao menos não se dirá que cevo o "Monstro"
que lá está experimentando as mandíbulas de ferro em folhas velhas, babando-as de saliva negra, como a jibóia lubrifica a presa antes de a engolir. Faz apetite à espera da ração, o estúpido.
"Eu sei que o escrito é um alimento indispensável ao espírito das gentes: entendo, porém, que os intelectuais devem apenas preparar o néctar divino e não essa mixórdia em que entra tudo -
desde o espargo até a couve tronchuda.
"Vejam vocês: um artista como o Penante faz uma bela página de prosa ática - períodos polidos a capricho, como só ele os sabe polir. Compõe o Mendonça, com a magnificência do seu talento, um poemeto de rendilhados versos bizantinos. Escreve o Rocha um daqueles antigos de original beleza, nos quais a gente encontra a Musa cantando, desolada. no serralho da Política, como a Cativa, de Hugo, na alcáçova do Turco, e vêm esses primores aqui para cima, na mesma cesta em que sobem as ignomínias das penas anônimas, como as rosas que chegam do mercado num samburá entre repolhos e nabos.
"Aqui misturam-se com os artigos pífios, cuja sintaxe temos de arranjar, raspando-lhes os solecismos - porque, meus amigos, a verdade é esta: nós somos como os ajudantes de cozinha, que lavam as ervas das hortas tirando-lhes a terra e as lesmas. O mesmo rolo que passou sobre as imbecilidades do a pedido, passa por eles; o mesmo componedor, onde se acomodaram aqueles alexandrinos de ouro e aqueles períodos lapidares, acolhe a mofina salaz e covarde e o atoucinhado anúncio, a ignomínia da charada e o sórdido folhetim desconchavado, sem nexo, sem forma, e, depois, lá vai tudo, como um guisado. ser triturado, digerido e lançado, por fim, na página, alfuja onde fermenta a estrumeira da civilização.
"Bolas! Arte é arte! A palavra é uma centelha, é preciso que tenha uma trípode. Prefiro ser revisor. Não tenho cérebro para regalo da Besta que se contenta com a panelada farta e grossa.
O meu cérebro, se algum dia fornecer alimento ao animal, dará o néctar ideal, sem ingredientes pulhas da horta indígena, como a mofina, ou da salsicharia universal, como os telegramas. Isso é a Besta máxima da Vulgaridade. Lá está mastigando cérebros: o cérebro suntuoso do Mendonça e o miolo infame do taverneiro, que anuncia malas de carne-seca ou sessões na sua Beneficente. Que te saiba, bruto! essa polenta ignóbil."
Os companheiros riam vendo o Bruno, de mãos atafulhadas nos bolsos, indo e vindo no estreito espaço que havia entre as mesas da revisão, a cuspilhar, resmungando contra aquela "moenda infame".
O Malheiros gostava de provocá-lo, sublinhando-lhe os disparates:
- Ó Bruno, o monstro come cérebros e faz estrumeira ou prepara o guisado para o público? Vê lá em que ficas.
- Fico em afirmar que é o realejo da palavra! - concluiu, indignado, o puritano da Arte.
Riram. E o Bruno foi resmungar, debruçado à balaustrada da escada que descia para a oficina.
Paulo conservava-se indiferente. Debalde o Bruno bramia e gesticulava, ele não estava de veia alegre: sentia-se mole, exausto, com uma dorzinha de cabeça. Andara todo o dia, rua abaixo, rua acima com receitas e medicamentos, porque a moléstia da mãe agravara-se com a umidade daqueles dias, prendendo-a à cama. Não fora à Escola, estava abatido e com um vazio no estômago como se estivesse em jejum.
Tomou o chapéu e o guarda-chuva a um canto, apanhou um embrulhinho na mesa e, secamente, despediu-se dos companheiros atirando uma leve pancada ao ombro do Brites, que respungou, sem levantar a cabeça: "Boa noite!" O Sampaio, vendo-o sair, perguntou com o charuto nos dentes:
- Então, já?
- É verdade. - E foi descendo lentamente.
No primeiro andar, numa sala escura dos fundos, o pessoal do correio cortava as listas da expedição e o Moraes, plantonista, gordo, pletórico, sempre empanzinado, que tinha fama nos clubes de ser um garfo respeitável, para não ficar só na redação, lá estava encostado à comprida mesa, roncando pilhérias com ânsias de asma e muita gosma.
Descendo mais alguns degraus, Paulo deteve-se, como sempre fazia para olhar um instante, através das grades, a oficina toda tomada pelos complicados maquinismos - desde as marinônis soberbas, juntas, como dois animais de raça, ocupando uma ala à parte, até os pequenos prelos de mão que uma criança movia.
O motor, ao fundo, com a chaminé esgalgada como um pescoço de girafa, furava o teto atravessado de longos eixos sobre os quais giravam polias movidas pelas correias, que eram como os nervos daquele possante organismo.
No meio da sala, ao rés-do-chão, dois cilindros brancos rodavam rapidamente ligados por uma larga faixa. Sobre um deles caía um estilicídio perene: eram os rolos de papel que, depois de umedecidos, deviam ser levados às marinônis para que, impressos e cortados, saíssem aos milheiros. com a primeira luz da madrugada, propagando sucessos e desastres.
Homens iam e vinham apressados, outros cercavam o mármore, onde jazia a página e, com pedacinhos de papelão, iam acamando certos tipos para que ressaltassem na estereotipia;
outros levavam grandes folhas de estanho, reluzentes como prata e mergulhavam-nas nos fundidores, onde se derretiam como se fossem de neve e, com o volteio daquelas rodas céleres e as vozes e os passos dos que se moviam e o chiar das correias que estralejavam, de quando em quando, um constante e estranho rumor de vida agitava a oficina onde as lâmpadas suspensas brilhavam como grossas gotas de luz.
- Parado, coçando a barba, como em grande cuidado, um velho olhava para uma das marinônis, em cujos cilindros já reluziam as matrizes. De repente afastou-se, tomou várias folhas de papel tisnadas, andou com elas em volta do "Monstro" vendo, revendo, curvado, de cócoras. Meteu o papel entre os cilindros, ergueu-se, deu um puxão à alavanca e a máquina moveu-se com rapidez trepidando, a espichar aquelas folhas de papel que os rolos apertavam e impeliam manchadas de tachas sórdidas, como as primeiras vasas anunciadoras do parto.
Paulo, satisfeita a curiosidade, desceu ouvindo sempre o estrondoso rumor do trabalho. Era o "Monstro" do Bruno, pior que o touro brônzeo de Fálaris, porque do seu bojo saíam, não os gemidos de uma só vítima, mas o clamor de toda a humanidade, a resenha da vida universal, cuja percentagem de angústias sobreleva-se avassaladoramente à parte mínima de prazer. E, olhando, parecia-lhe ouvir o arquejo doloroso do mundo, a zoada ansiosa do enxame humano atroando, subindo daquelas finas lâminas flexíveis, como a voz cativa irrompe quando a despertam nos tubos sensíveis do fonógrafo. Desceu.
No corredor, encostado à parede, com as pernas estiradas, um homem dormia, a cabeça pendida sobre um dos ombros, os pés nus, imundos, o peito da camisa aberto, uma bolsa a tiracolo. A porta, em torno dum negro que vendia café, às canecas, um grupo chalrava alegremente, na treva.
Paulo subiu a Rua do Ouvidor obscura e calada.
Um vento frio soprava. O céu negro, sem estrelas, ameaçava aguaceiro e, como chovera copiosamente à tarde, com ventania e trovões, poças d'água refletiam a luz dos combustores.
Um cão magro percorria a sarjeta farejando.
Na esquina da Rua dos Ourives estacionava a patrulha. Os soldados, emblocados nos capotes, fumavam pachorrentamente, e os cavalos muito juntos, a cabeça baixa, pareciam dormir fitando, de vez em vez, as orelhas agudas como se perscrutassem rumores no vento.
Uma luzinha tíbia, como de lamparina, atraiu para uma casa os olhares do retardatário. As portas eram fortes e negras, como de ferro e, por um postigo engradado, via-se o interior de uma ourivesaria com os mostradores atopetados de jóias de preço e de baixelas que reluziam.
Taroucando tamancos, dois homens passaram por ele discutindo e, já longe, romperam em gargalhada estrondosa.
Chegando ao Largo de S. Francisco teve uma exclamação e deitou a correr para um bonde que partia, quase vazio, com as cortinas descidas. Tomou-o na volta, apesar do aviso do condutor:
"Que ia recolher." Morando na Rua Senador Pompeu tanto lhe servia aquele como outro.
Sentou-se, acendeu um cigarro e, de pernas cruzadas, imaginando fortunas e aventuras, foi-se deixando levar, como em sonho, sem ver, sem ouvir, alheio ao real que o cercava.
Repentinamente, porém, lembrou-se da mãe. Que seria dele se a boa velha morresse?
Achacada, sempre a gemer, arrastando a perna túmida e pesada, era ela, ainda assim, quem lhe prestava auxílios, cuidando da casa, regulando as despesas, porque a irmã, sempre a pensar em enfeites, fazendo e desfazendo penteados ao espelho, polindo as unhas, passava os dias na cadeira de balanço, a ler romances e, à tarde, encharcada de essências, com muito póde-arroz, debruçava-se à janela, para ver os trens e receber bilhetinhos que os rapazes metiam por entre as rexas da persiana.
Era bonita e esbelta, de um moreno quente de crioula, tez fina e rosada, olhos negros, boca pequena, sensual, de lábios carnudos e úmidos. Os cabelos, quando os desprendia, passavamlhe da cinta em ondas negras e reluzentes. Tinha uma voz lânguida, como ressentida de tristeza; falava em tom dolente de queixa e o seu olhar quebrantado, sonolento, amortecia-se em êxtases sob as longas pestanas curvas.
Paulo dominava-a com aspereza, exprobrando-lhe a vida desmazelada e, quando a velha, na intimidade, referia-lhe algum pequenino escândalo de Violante, rompia, assomado, ameaçando pregar a janela, atirar ao lixo todas aquelas caixas, todos aqueles vidros que entulhavam o toucador. Mas a irmã tinha crises - rolava pela casa, aos gritos, rangendo os dentes, rasgando a roupa, escabujando. E a boa velha, lamentando-se, corria os cantos, procurando remédios e, de joelhos, com a cabeça da filha ao colo, beijando-a, chamava-a, pedindo ao outro que a não tratasse com tanta aspereza, que tivesse pena dela, e instava para que, com afagos, procurasse chamá-la à razão. Ele obedecia contrariado. E Violante, amuada e mais linda depois da excitação nervosa, com os olhos mais brilhantes e a cor das faces mais viva, ia trancar-se no quarto, resmungando ameaças.
Voluntariosa, criada aos joelhos do pai, que a tratava de "princesa", anunciando-lhe sempre um noivo formoso e rico, que a havia de cobrir de sedas e carregá-la de jóias, foi acostumando o espírito com estas idéias de nobreza e fausto; de sorte que, quando lhe morreu o pai, já mocinha, sentiu-se como deserdada: foi como se, com ele, houvesse perdido uma fortuna que já possuía e um noivo que já a visitava em sonhos, formoso como os príncipes dos romances que ela devorava, revendo-se, com enlevo, em todas as heroínas.
Com a monte do pai, major de cavalaria, condecorado por feitos no Paraguai, todo o peso da casa recaiu sobre Paulo que, então, concluía os preparatórios.
Abandonando a idéia de bacharelar-se no Ginásio, matriculou-se na Faculdade de Medicina, conseguindo um lugar na revisão do Equador e algumas lições particulares, com o que fazia uma soma regular que, reunida ao meio-soldo que a mãe recebia, dava para irem vivendo, se não com luxo, ao menos com decência e fartura.
Posto que não achasse gravidade no estado da mãe, andava apreensivo, receoso, imaginando complicações e, volta e meia, lá ia um médico à casa; eram, às vezes, colegas. E os frascos de remédios enchiam prateleiras.
Com aqueles dias úmidos, Dona Júlia sofria atrozmente: mal podia mover-se na casa; sempre acaçapada nas cadeiras, as mãos espalmadas nas coxas, a gemer, dando ordens à cozinheira, que era a criada única que tinham. Ainda assim, se as dores abrandavam, lá ia ela para a vassoura, varrer, limpar os móveis ou arranjar a sala, porque não podia ver um fósforo no chão, nem um átomo de poeira nos seus velhos trastes do tempo do falecido. E, se a moléstia a prendia à cama, lá mesmo, com a perna esticada e untada, com o cesto de costura ao colo, ia cerzindo roupas, remendando meias ou reformando, pacientemente, os casacos da filha.
Profundamente religiosa, tinha no seu quanto, defronte da cama, sobre a cômoda, o oratório ante o qual ardia, perene, a lamparina de azeite iluminando registros milagrosos e duas imagens: a da Conceição e a do Senhor dos Passas.
Paulo ia pensando na boa velha e, quando o bonde passava pela Estrada de Ferro, saltou, subindo a Rua do Dr. João Ricardo, deserta àquela hora da noite. Grossas gotas de chuva bateram nas pedras, uma lufada de vento passou e, ao clarão de um relâmpago, o céu apareceu negro, acastelado de nuvens. Levantou a gola do casaco e, com o guarda-chuva à frente, como um escudo, a cabeça encolhida, partiu, rompendo a ventania.
2 Foi com surpresa pressaga que, ao avistar a casa, percebeu luzes por entre as persianas, acusando desusada vigília e logo a idéia de um acidente grave sobressaltou-lhe o espírito.
Atravessou a rua a correr e bateu açodadamente à porta, aflito, ouvindo soluços e exclamações desesperadas que vinham do fundo da casa. A cozinheira apareceu, embrulhada num xale, com um lenço à cabeça. Ele entrou d'arremesso:
- Que é, Felícia? Que tem mamãe?
- Foi Nhá Violante que desapareceu, exclamou lamentosamente a negra.
Paulo ficou a olhar, num espanto, e, sem tirar o chapéu, avançou pelo corredor, direito à sala de jantar, onde Dona Júlia, com a cabeça entre os braços, dobrada sobre a mesa, soluçava.
- Que é, mamãe? Que foi? Então Violante desapareceu? Como? Quando?
Ouvindo-lhe a voz, a velha senhora levantou o rosto demudado e, pondo nele os olhos rasos de água, arrancou do peito um suspiro, pronunciando o nome da filha, com uma expressão de imenso desespero. Paulo compreendeu imediatamente o horror do crime que haviam levado a efeito na sua ausência. Teve um movimento impetuoso, lançando os olhos ao corredor, como se quisesse partir no mesmo instante, voltar à noite fria, para seguir no encalço da fugitiva. Mas Dona Júlia, abalada, rompendo em pranto convulso, lançou-lhe as mãos aos ombros, encostando-lhe ao peito a cabeça, cujos cabelos brancos, desfeitos, esvoaçavam e, numa queixa dorida, entrecortada, pôs-se a dizer: "Que nunca esperara aquilo de uma menina que ela criara com tantos sacrifícios, privando-se de tudo para que nada lhe faltasse, trabalhando como uma moura para poder satisfazer os seus caprichos de moça. Ah! nunca esperara tamanha ingratidão!"
- Mas como foi? perguntou Paulo, sentando-se numa cadeira próxima.
- Não sei, meu filho, não sei. Eu estava deitada, passara pelo sono, um pouco aliviada, depois do curativo. Acordei de repente com uma dor muito viva, umas alfinetadas que me subiam até o peito, como se me estivessem picando. Quis levantar-me para ir buscar a pomada, que estava em cima da cômoda, não pude: as dores eram muitas, tolhiam-me. Foi, então, que cheguei à parede e bati, como sempre fazia. Bati, bati, chamei, e tão alto, que Felícia ouviu na cozinha, e veio correndo, coitada! saber se eu queria alguma coisa.
"Ah! meu filho! Eu estava adivinhando, o coração dizia-me que havia acontecido alguma coisa.
Antes de cuidar de mim, mandei Felícia ao quarto de Violante. Não sei como não morri quando a rapariga voltou espantada, dizendo que tua irmã não estava lá. Não sei como não morri. Foi Deus que não quis. Fiquei sufocada, com um bolo no peito, como se o meu coração fosse rebentar, e, nem sei como, saltei da cama e fui ao quarto dela. Ah! Paulo, meu filho, nunca pensei que aquela menina fosse capaz de uma coisa assim."
O pranto abalou-a de novo, um pranto humilde, infeliz, cortado de gemidos. A negra, então, que se conservava à distância, calada, ousou continuar, e Paulo boquiaberto, esgazeado, levantou a cabeça e fitou nela os olhos.
- Ela nem se deitou: a cama está assim mesmo.
- E com quem foi?
- Quem sabe lá! - gemeu Dona Júlia - algum malvado.
- Eu bem dizia a mamãe que não desse tanta liberdade à Violante.
- Que havia eu de fazer? Ela é moça, todas as moças namoram. Nunca me passou pela cabeça que minha filha fosse capaz de dar um passo como esse. E agora, meu Deus! que há de ser dela?
Paulo, sem responder, ergueu-se, pôs-se a procurar alguma coisa pelos cantos, sobre os móveis. "Meu chapéu...!?"
A negra adiantou-se:
- Vosmecê está com ele na cabeça, nhonhô.
Com o vento da noite, que entrava d'esfuzio pelo corredor, a chama do gás zumbia, ruflava dobrando-se como a de um maçarico; bátegas de água ruflavam nos vidros. Paulo dobrou as calças e, surdamente, pôs-se a rilhar os dentes, curvado, com o pé sobre uma cadeira. Dona Júlia, ouvindo o rumor forte da chuva, que desabara, perguntou lacrimosa:
- Queres sair com este tempo?
- Então?
- Onde vais?
- Vou à polícia. Mas... mamãe não desconfia de alguém?
- Eu? eu, não; eu vivia sempre metida aqui dentro.
A negra resmungou: "Que Nhá Violante conversava de noite com um moço da vizinhança, um que costumava passear de velocípede. As vezes, um soldado parava defronte, junto do muro da Estrada, e ficava até tarde batendo a calçada".
- Um soldado?
- Ele tem farda, explicou a negra.
- E tu és capaz de reconhecê-lo, se o vires?
A negra fez um momo:
- Hum... eu sou, como não? mas eu tenho muito medo dessa gente, nhonhô. Ele é alto, tem bigode preto. Mas nhonhô não me chame, sou uma pobre velha, ando por aí de noite sozinha.
Tenho muito medo dessa gente.
- Mas é preciso, Felícia.
- Mas não foi ele não, nhonhô; vosmecê pode ficar certo de que não foi ele; Nhá Violante não gostava dele - cuspia, batia com a janela, fazia toda a sorte de desfeitas quando ele se punha a rondar a casa. Não foi ele não, nhonhô. Quem foi não é daqui, fique vosmecê certo. Numa rua passa tanta gente! Quem foi não é daqui, vosmecê há de ver.
Paulo encarava-a desconfiado, como se a suspeitasse de conivência no caso. Por fim, resolvendo-se, caminhou alguns passos, mas, voltando-se, pediu à mãe que se recolhesse, que se fosse deitar: Estava doente, não devia ficar ali fora exposta ao frio - podia ter alguma coisa séria. A polícia havia de descobrir o raptor. E insistiu: Que ele bem dizia: tantas vontades haviam de dar naquilo. Violante fazia o que entendia e, se ele falava, ai! porque era impertinente, grosseiro e mais isto e mais aquilo. Ali estava o resultado. Pensou rapidamente no escândalo -
nos comentários da vizinhança, nos risinhos dos colegas, nas alusões dos companheiros de trabalho.
- Vai, então, meu filho: tem paciência. Vai ver se ainda podes salvar aquela infeliz. E que Deus te acompanhe. Nunca pensei que Violante fosse capaz de fazer isto comigo. Nunca pensei!
- Bem, mamãe. a senhora não consegue nada com lágrimas; vá deitar-se. Eu vou à polícia.
E baixinho, à negra, com voz trêmula, recomendou:
- Não a deixes, Felícia; tem paciência. Ela está doente, pode ter alguma coisa séria com este choque.
- Vosmecê pode ir descansado.
- Até já, mamãe: e vá deitar-se.
Dona Júlia balançou a cabeça desanimadamente, e Paulo enfiou pelo corredor, por onde o vento zunia. Na sala deteve-se, d'olhos altos, trincando os lábios, e, como a negra lembrasse o sobretudo, voltou-se repentinamente:
- Hem?
- Por que vosmecê não leva o sobretudo? Está chovendo tanto.
- Não: não é preciso.
Escancarou a porta e mergulhou na escuridão tempestuosa, com o guarda-chuva diante do peito, chapinhando em poças, sem ver, sem ouvir, atordoado e com os olhos cheios de lágrimas que lhe rolavam pela face.
Diante da Central, obscura e deserta, elevando os olhos neblinados, viu que eram duas horas.
Nem um bonde, nem um tílburi: a praça estava vazia, à chuva. O vento, com uivos, em fortíssimas rajadas, apanhando-lhe o côncavo do guarda-chuva, arrastava-o, como se o quisesse levar, em monção propícia, mais depressa e direito ao destino. Em frente, a sombra era densa e os lampiões, brilhando, irradiavam no aguaceiro como aranhas d'ouro em teias de cristal.
Que seria dela? Onde andaria?! Tirou um cigarro do bolso, rebuscou a caixa de fósforos e, como não a encontrasse, teve um ímpeto de cólera, atirando à lama o cigarro úmido e mole.
Caminhando, pensava: "Que poderia fazer a polícia sem uma indicação, com uma noite daquelas? De manhã seria tarde; talvez mesmo àquela hora já a sua pobre irmã..." Deteve-se subitamente, sustado por uma cólera violenta, d'olhos cravados no chão; trincou os lábios e um impropério saiu-lhe da boca ressecada. "E a pobre velha? Que seria dela com tamanho choque?"
Ouviu um tinido de campainha através do surdo rufar da chuva, voltou-se sôfrego: nada! Pôs-se de novo a caminho, com mais ânsia, pelo meio da rua. Um Bêbedo resmungava, chafurdando nas poças, aos trancos.
Passando por uma casa baixa, iluminada, ouviu falas. Sobressaltou-se-lhe o coração num presságio. Talvez estivesse ali. Parou um momento, à escuta, e, atrevendo-se, espiou pelas frestas da persiana e viu, no meio da saleta triste, sobre uma mesa, um pequenino caixão entre velas. Uma mulher contemplava-o chorando e, em volta, outras mulheres, sentadas, cochichavam. Foi-se.
Não! Violante devia estar em algum sítio confortável, algum hotel de luxo, com o sedutor.
Conhecia-a bem. Não sairia senão com quem lhe pudesse dar o fausto com que sonhava, vendo as gravuras dos figurinos ou lendo as descrições dos romances. Bem certo estava de que a irmã só se deixara arrastar à infâmia por vaidade, calculadamente, não por impulso d'alma.
Dobrou instintivamente a Rua da Constituição. Os seus passos ressoavam na rua deserta sem que ele os ouvisse, atordoado com os pensamentos que lhe trabalhavam o espírito. Tomou pela Rua do Núncio, desceu a do Visconde do Rio Branco e, achando-se na do Lavradio, houve nele um renascimento de coragem, uma grande e desanuviada esperança. "Podiam encontrá-la ainda pura. Os agentes conhecem todos os recantos e ela, talvez por pudor, resistisse, dando tempo a que a salvassem." E, quase a correr, aos saltos, evitando os lameiros, lançou-se para a polícia. A medida, porém, que se aproximava, como quem se avizinha de uma ilusão, ia-se-lhe a esperança desfazendo n'alma.
Àquela hora o edifício parecia repousar em sono calmo: a própria sentinela, atabafada no capote, com o capuz pela cabeça, agudo e negro, a lembrar um monge, estava encostada a um dos umbrais, d'arma ao ombro, imóvel. Atirou-se pelas escadas e, em cima, no corredor, à meia luz dormente de um bico de gás, viu dois homens num banco, cochilando. Um deles, porém, mais pronto, ouvindo o rumor, abriu os olhos, pigarreou e, firmando-se, encarou-o carrancudo.
Paulo, quase sem hálito, pediu para falar ao delegado: Tinha urgência, era um caso grave.
- Se não é coisa de muita importância, o melhor é o senhor entender-se lá embaixo com o tenente, porque o doutor está descansando.
- Não; é mesmo com o delegado que pretendo falar.
- Quem é o senhor? - perguntou o homem molemente, abotoando o colete, enquanto o outro, que acordara, coçando com fúria a grenha hirsuta, engrolava escarros.
- Paulo Jove, estudante de medicina. - Já o homem caminhava quando, adiantando-se, ele ajuntou, em tom confidencial: Olhe, diga que sou do Equador. Tenho urgência, é um caso grave.
O homem correu o reposteiro e desapareceu. Paulo voltou à escada, encostou-se à balaustrada, com o guarda-chuva a escorrer. Só então pareceu dar pelas calças molhadas. Pôs-se a mirar os pés e, tirando o lenço, passou-o pelo peito, pelos ombros, pelas coxas. Estava regelado e, por vezes, uma dor fina atravessava-lhe a cabeça, como se a varasse um estilete.
Um soldado subia a escada, com a espada a bater nos degraus. Em cima respirou com força e tomou à direita, lento, achamboado, desaparecendo num corredor, Impaciente, Paulo ia chegando ao reposteiro. quando o homem, com uma voz gosmosa, o chamou:
- O senhor não pode entrar; espere um pouco.
- Pois não.
Afastou-se e pôs-se a passear, arrepelando os cabelos molhados, a pensar em Violante, vendoa, acompanhando-a na fuga, pelo braço de um homem misterioso que a levava, com ânsia lasciva, os dois cobertos pela mesma capa, correndo, felizes, por entre árvores, como na gravura idílica de Paulo e Virgínia. Vagarosamente, o que fora anunciar, entreabriu o reposteiro e chamou-o: "Pode vir". Precipitou-se: quis deixar o guarda-chuva à porta, a escorrer, chegou a encostá-lo; logo, porém, retomando-o, entrou em pontas de pés, tímido. O homem indicou-lhe um sofá e foi encostar-se à mesa, bocejando. Pôs-se a olhar - a sala, em silêncio, estava iluminada e, sobre a mesa, acumulada de papéis, havia um capote e embrulhos.
Aquele abandono dava-lhe uma impressão acabrunhadora e, como se aquela sala, que era o vazadouro dos crimes, estivesse impregnada de um fluido mau, com um ambiente sinistro, infeccionada pelas confissões dos réus, como as enfermarias dos hospitais ficam viciadas com a respiração dos doentes, as idéias se lhe foram tornando sombrias. Já não era um doce idílio que ele via introspectivamente, através da claridade da imaginação, que opera, como uma lâmpada mágica, alumiando devaneios e conjecturas - era um crime: Violante a estorcer-se nas mãos brutais de um homem, a gemer, a implorar, meiga e infeliz, com sangue a escorrer-lhe do seio, com lágrimas nos olhos assombrados e, em torno dela, todo o horror de uma espelunca.
D'olhos muito abertos, a respiração tomada, viu sair de uma porta fronteira um homem pálido, de barba ruiva, estremunhado, a ajustar ao corpo um robe de chambre de ramagens. O
introdutor disse, surdamente, como se não quisesse perturbar o silêncio da casa:
- É este moço.
Paulo adiantou-se para o delegado, que se sentara molemente, tomando na mesa uma espátula, com a qual se pôs a bater na pasta.
- Sente-se - disse em voz pausada e fanha. - Estou às suas ordens.
O estudante chegou-se à mesa trêmulo, esfregando as mãos e, depois de haver lançado um olhar ao contínuo, que se deixara ficar à porta, disse:
- Sou estudante de medicina, sr. doutor: Paulo Jove; trabalho no Equador. O que me traz aqui é o desaparecimento de minha irmã.
O delegado cruzou as pernas e, sem levantar os olhos, friamente, perguntou:
- Desapareceu?
- Sim, senhor; hoje.
- A que horas?
- Das onze e meia para a meia-noite. Em casa não viram e minha mãe só deu pelo fato muito tarde, quando a chamou.
- Foi só?
- Não sei, sr. doutor.
- Não é natural. - E, depois de uma pausa: Desconfia de alguém?
- Francamente. sr. doutor... - meneou com a cabeça negativamente e encolheu os ombros. -
Com a minha vida pouco paro em casa. Minha mãe, sempre doente ou a cuidar do serviço, raramente aparece na sala. A criada falou em um soldado. - Deu d'ombros: - Mas não creio.
- Onde mora?
- Na Rua Senador Pompeu.
- Seu nome?
- Paulo Jove.
- E ela, a moça?
- Violante.
- Quantos anos?
- Dezoito.
- Dezoito?
- Sim, senhor.
O delegado ia garatujando em uma folha de papel; deteve-se e, sem levantar a pena, murmurou:
- Traços.
- Como?
Ele repetiu devagar, insistindo:
- Traços.
- Ah! - E Paulo foi dizendo a altura da irmã, a graça do seu corpo flexível, a cor alambreada da sua pele flexível, a abundância ondulante dos seus cabelos negros, o carmim dos seus lábios polpudos, o negror das suas pupilas árdegas, a alvura dos seus pequeninos dentes, a languidez do seu andar preguiçoso, o encanto da sua voz dengosa.
- Bem: vou mandar ver. O senhor não procurou o delegado da sua circunscrição?
- Não, senhor; vim diretamente aqui. Mas se o sr. doutor acha necessário...
Sem responder, o delegado arrepanhou o robe de chambre e, com o papel na mão, pôs-se de pé.
- Tem pai?
- Não, senhor: morreu - era major de cavalaria.
- Pois sim, vou mandar ver; - e foi-se para a ponta do fundo, lento e derreado, tossindo.
Paulo ficou um momento hesitante, a olhar; ouviu o estralar de um móvel e um resmungo na saleta onde entrara o delegado. Já com o chapéu na mão esteve ainda indeciso, como à espera de uma resposta, até que, desanimado, dirigiu-se à ponta, correu o reposteiro e saiu. "Vou mandar ver!..." E, repetindo as palavras do delegado, desceu as escadas, indignado e desesperançado.
Chovia ainda. Carroças desciam a rua, aos solavancos, atroando o silêncio. Parado, com o olhar disperso, numa inércia acabrunhada, como esquecido do seu próprio ser, ficou um instante à porta, até que a frase indiferente do delegado repontou: "Vou mandar ver..." Teve um risinho irônico; voltou-se para a escada, com ódio, repetindo entredentes: "Vou mandar ver..."
Impetuosamente abriu d'estalo o guarda-chuva, e ia, de novo, lançar-se a caminho, quando viu um tílburi, que se aproximava vagaroso, ao passo tardo de um sendeiro esgrouviado, pobre besta noctâmbula, velha e exausta, que só àquelas horas ermas, de trevas, saía com a ossada e o mormo, para a tarefa que lhe valia o pasto e o abrigo na cocheira, até que, de todo inútil, fosse tocada pelos moços e achasse um canto para morrer, ao claro sol, sob o azul macio do céu. O cocheiro perguntou, em voz pigarrenta: "Para onde?" e Paulo, deixando-se cair na almofada, deu-lhe o endereço.
Encolhido, sentindo a fria umidade da roupa, ia pensando na irmã: "Talvez a encontrasse em casa, arrependida implorando o perdão". Via-a de joelhos, banhada em lágrimas, agitada pelos soluços e a mãe a afagá-la, numa grande e transbordante felicidade. Mas o cocheiro interrompeu-lhe o sonho:
- Que tempozinho! E anda por ai moléstia que é um horror!
- É verdade.
- A bexiga então... O senhor não imagina. Lá na minha rua dois casos. Ontem foi-se um companheiro meu, deixando mulher e dois filhos. Um rapaz fonte que fazia gosto - vendia saúde. Agora fica praí, sem amparo, a pobre rapariga, com dois pequenos agarrados à saia.
Mas que quer o senhor? um homem precisa, não pode estar a escolher. Ele apanhou um freguês para Catumbi e lá esteve com o carro à espera, mais de uma hora, perto duma vala. Até expirar não falou de outra coisa "que apanhara a moléstia naquela viagem. Que se não fosse o demônio da vala..." Mas nós temos de ir a toda a parte, para isso é que saímos.
Atirou uma chicotada à anca ossuda da alimária, que arrancou a trote fazendo ranger o tílburi, tão velho como ela, ameaçando desfazer-se em caminho, e continuou, inclinando-se, de vez em vez, para atirar à rua grossas cusparadas.
- Também não há quem cuide da cidade. Veja o senhor isto: não há molas que resistam.
Uma das rodas ficara entalada numa fossa, o animal ladeava esforçando-se, e o cocheiro, a fustigá-lo, cacarejava sacudindo as rédeas. Safando o veículo, o sendeiro partiu desabrido, apesar dos psius! do cocheiro, que retesava as rédeas.
- Ainda tem fogo. Aqui tem o senhor um bicho que trabalha há doze anos e não é qualquer que lida com ele. Tem ronha! Eu mesmo, às vezes, vejo-me atrapalhado.
Paulo não lhe dava atenção, preocupado, como estava, com o caso da irmã. Mas como fora aquilo? A força?! Não! Violante não era uma criança que se deixasse arrebatar por um desconhecido. Só? Também não! Para onde? E se houvesse saído para casar? Mas qual!
Tivesse o tipo tal idéia, certamente não a aviltaria em uma fuga, de mais a mais, sem motivo.
Fora contrariada? Não. Namorava, mas dizer que tinha amor a este ou àquele, isso não. Devia ser algum desses bilontras - quantos conhecia ele! - que exploram raparigas, lançando-as no vício. para viverem à custa da sua degradação. Um ímpeto de furor sacudiu-o: encheram-se-lhe os olhos d'água. O cocheiro bocejou alto, atirando uma relhada ao flanco do animal que trotava.
Subiam a Rua do Dr. João Ricardo quando um silvo agudo cortou o silêncio da noite fria.
- Já o expresso!? - exclamou Paulo, em sobressalto. - Que horas serão?
- Deve andar perto das quatro.
- Como?! Já!
- Sim, senhor: não pode faltar muito.
Ao voltar o tílburi a rua, Paulo sentiu esvaziar-se-lhe repentinamente o coração como se todo o sangue se houvesse escoado. Lá estava a luz sinistra filtrando-se através das persianas. Era o sinal da vigília.
- Ali! disse.
O tílburi parou à porta e logo a janela abriu-se e a negra apareceu. com a trunfa muito branca e disse para dentro: "É nhonhô..." Ele compreendeu que ainda esperavam a desaparecida; pagou e desceu. O tílburi deu volta e foi-se lentamente, rangendo, como a desmantelar-se.
- Nada? perguntou à negra que lhe abria a ponta.
- Não, senhor.
Vindo da noite fria, sentiu uma impressão tépida, agradável, naquela sala iluminada e lúgubre. A
negra pôs-se a fechar a porta correndo o ferrolho e ele caminhou direito à sala de jantar, desanimado, receoso, com o coração aos baques. Que havia de dizer à mãe que o esperava ansiosa, confiada na sagacidade da polícia?
Para os simples a polícia é ainda um conforto porque só a vêem através das lendas. A polícia tudo conhece e porque, raro em raro, descobre um criminoso, entende a pobre gente que ninguém lhe escapa, tanto o assassino como o ladrão, o que mata como o que furta. A pobre senhora acariciava a esperança de que, antes do nascer do sol, ali teria a filha, salva e pura.
Paulo bem a conhecia e receava desenganá-la. Antes de chegar à sala ouviu-lhe a voz gemente:
- Então, meu filho?
Não respondeu e, quando a viu sentada em uma cadeira de vime, junto à mesa onde tinha um dos braços estirado, abatida, com os olhos roxos de pranto, fitou-a mudo deixando-se cair em uma cadeira.
- Nada...
- Nada?! Nem notícias, Paulo?
Esteve um instante a fitá-lo, desatando, depois, a chorar: um choro humilde, fraco, muito infeliz, de criança, com a cabeça pendida sobre o colo farto que estremecia sacudido pelos soluços.
Paulo, comovido, com os olhos marejados, quis dizer algumas palavras de consolação - pôs-se de pé, mas diante da mãe, cujo corpo tremia nos entrebuchos do pranto, emudeceu sem sentir as lágrimas que lhe cresciam nos olhos. Lentamente, passando a mão pelos cabelos molhados, foi caminhando cabisbaixo até a porta do quarto de Violante.
Deteve-se um momento, limpou os olhos e, tomando da mesa uma caixa de fósforos, fez luz e entrou. Sobre o lavatório de vinhático, numa palmatória de cristal, havia um coto de vela;
acendeu-o.
A luz, que se foi, aos poucos, difundindo, lançou os olhos pelo interior desolado e, cruzando os braços, ficou a olhar como se estivesse diante dum cadáver.
A cama estreita, alva, com um fino cortinado enastrado de fitas, tinha uma ligeira depressão; o travesseiro macio, de paina, com a fronha de crivo, estava machucado. Um lenço jazia aos pés da cama, amarfanhado e odorante.
Ela estivera ali deitada, e planejara a fuga, atenta aos rumores da casa e às pancadas do relógio. Dali saíra, pé ante pé, atravessando a sala, passando sorrateiramente junto ao quarto em que dormia a mãe e fora-se pelo corredor. Abrira a ponta, ganhara a rua e partira sem uma lágrima, talvez sem o mais leve remorso.
Voltou-se: o lavatório estava em ordem, com os vidrinhos de essências, os vasos de flores, as escovas, os pentes. Sobre a cômoda o retrato do pai, fardado, em grande gala, de pé junto a um rochedo; e outros retratos de moças, de crianças; e cromos e a cestinha que ele lhe dera pelo Natal com amêndoas.
No fundo, o guarda-vestidos entreaberto. Puxou a ponta, que rangeu, emperrada, e viu, a um canto, sobre a caixa de chapéu, a boneca, muito loura, com os braços abertos, rindo, toda de azul; e os vestidos escorridos nos cabides, a sombrinha, caixas, embrulhos. Afastou as saias, sentindo um perfume morno e sensual de essência e de carne - faltava a de seda preta, a mais nova. Fora com ela, a linda saia que ele lhe havia dado meses antes, no dia em que ela completara dezoito anos, e que a mãe contara e cosera, cantarolando as suas modinhas tristes.
Não dizia palavra, apenas o seu rosto contraia-se em crispações nervosas e as pemas tremiamlhe. Fechou o móvel, sentou-se na cama, com os braços caídos, e viu-se ao espelho do lavatório, demudado, os cabelos desfeitos, os olhos fundos e demorou o olhar, mirando-se.
Pouco a pouco, porém, foi-se-lhe a imagem desvanecendo e uma sombra passou-lhe pelos olhos; agitou-se, e logo reviu-se, como em ressurgimento, Fora, os soluços de Dona Júlia sucediam-se, a mais e mais angustiosos. "Que lhe hei de eu dizer, meu Deus!" Não lhe acudia uma palavra, apertava a cabeça entre as mãos, como a espremê-la, trincava os lábios e, de novo, cravava os olhos no espelho, revendo-se. E as jóias?
Puxou a gaveta da cômoda - lá estava a caixa de veludo em que ela costumava guardá-1as -
abriu-a: vazia! Meneou com a cabeça, contemplando o fundo de cetim negro, onde brilhavam letras douradas, entre medalhas. Fechou-a e depô-la de leve na gaveta, sobre umas gazes tênues. Afastando-se, sentiu que alguma coisa lhe fugia diante dos pés: baixou os olhos - era uma velha botina acalcanhada com o cano engelhado. Perto do lavatório jazia a parelha. Eram as botinas com que ela andava em casa.
Ficou a contemplá-las. Ah! Violante. Em súbito furor, atirou um murro à fronte rosnando: "Eu devia ter sido mais severo, mas mamãe... Encolheu os ombros e, como se lhe houvesse ocorrido uma idéia salvadora, levantou-se às pressas, abriu a gaveta do lavatório, mas ficou inerte, a olhar uma infinidade de selos esparsos. Fora ele que os arranjara com o Prates dos telegramas para a coleção que ela andava a fazer; estavam todos ali, em desordem, colados a pedaços de jornais, em fragmentos de envelopes carimbados. E cartas? Ela devia tê-las. Então, numa fúria, como um ladrão que tivesse pressa, receoso de ser surpreendido, pôs-se a abrir e a fechar gavetas que, às vezes, emperravam e, nervosamente, revolvia retalhos, papéis finos amarfanhados, ferros de frisar, cromos, grampos, alfinetes. Mas a voz lamentosa de Dona Júlia chamou-o:
- Paulo!
Rápido, atarantado, lutou para fechar a gaveta do lavatório, que resistia, empenada, meteu-lhe o peito e, com um impulso fonte, com o qual tremeram, tilintando, a louça e os cristais, levou-a ao fundo, saindo imediatamente. Dona Júlia limpava os olhos.
- Paulo! repetiu.
- Que é, mamãe?
- E agora, meu filho, que havemos de fazer? - Ele pôs-se a torcer a toalha da mesa, sem dizer palavra. - Então essa gente da polícia não pode salvar uma moça?
- Que hão de eles fazer, mamãe? Quem sabe lá! O delegado prometeu interessar-se por ela.
Mas a senhora sabe que também não é assim, de uma hora para outra. Eles vão procurar.
- E então?
- Se encontrarem obrigarão o homem a casar, seja ele quem for. Não há outra coisa a fazer.
- Ah! meu filho... E se for um ricaço? O dinheiro vence tudo. Os ricos governam e a minha pobre filha é que fica para aí, perdida. Tu conheces tanta gente, Paulo... Tem pena de mim. Tem pena de tua irmã.
E a pobre velha, de mãos postas, soluçando, deixou-se cair de joelhos, a implorar.
- Tem, Paulo, tem pena de mim. Que vergonha, meu filho! - e inclinou-se, com o rosto nas mãos, os cotovelos fincados na cadeira. Paulo levantou-a:
- Eu farei tudo. mamãe; descanse. Nem conto com a polícia. Eu mesmo vou procurar Violante.
- Sim, meu filho; ela é tua irmã! Nem sabe o passo que deu. - Nervosa, trêmula, arrastando-se para o quarto, pôs-se a dizer: Nem eu sei com que cara hei de aparecer amanhã a essa gente da vizinhança.
Paulo já havia entrado no quarto quando ouviu o baque de um corpo. Precipitou-se, sobressaltado, e foi achar a mãe de joelhos, com a cabeça derreada, de mãos postas, exorando as imagens. Retrocedeu em pontas de pés, com um respeito sagrado e tornou ao seu quarto, na sala de visitas. Felícia, sentada no tapete, as pernas esticadas, os pés hirtos, ressonava. A porta estava entreaberta. Entrou, deu luz ao gás e, diante da estante atochada de livros, desabafou, colérico:
- Cínica! E tudo por vaidade. É a mania do luxo. Uma moça pobre, que não pensava em outra coisa senão em vestir-se... E eu que morresse! E a pobre velha que se estafasse! Ah! coisa nojenta!
Encontrou-se à mesa, onde tinha o retrato da família, num quadro: o pai, a mãe, ele, ela:
pequenina, de vestido curto, com uma boneca nos braços, recaída sobre o colo de Dona Júlia, ainda moça e forte. Tomou o quadro e pôs-se a contemplá-lo e, de novo, os olhos se lhe encheram d'água.
O pai, muito severo, de pé, apoiado à espada, fitava-o duramente, como se o responsabilizasse por aquele fato que deslustrava o nome que ele havia, com tanto brio, honrado na guerra e na paz, legando-o puro aos filhos.
E Paulo, com um tremor nervoso, como se efetivamente aquela figura, animada por milagre, lhe falasse, pôs-se a dizer baixinho, em sussurro: "Meu pobre pai! Meu pobre pai!" Mas os seus olhos, empanados pelo pranto, buscavam a criança inocente que ali estava, linda e pura, com os cachos dos cabelos muito negros, confundidos com os bucres louros da boneca.
Depois o quadro e, acendendo um cigarro, sentou-se na cama e ia tirar as botinas que, com a umidade, se lhe haviam colado aos pés, quando ouviu os passos arrastados de Dona Júlia. A
velha empurrou a porta e entrou, d'olhos muito abertos, a arquejar, e foi logo perguntando:
- Tu falaste no soldado? Quem sabe se não foi ele? - Paulo encolheu os ombros e a velha, sentando-se, continuou: Eu não atino com outra pessoa. Se não foi o soldado, foi alguém da Estrada de Ferro.
- Qual da Estrada de Ferro!
Depois de uma pausa, ela insistiu:
- Para mim, foi o soldado. Eu, se fosse você, ia de manhã ao quartel.
Paulo explodiu:
- Pois mamãe acha lá possível que Violante, vaidosa como é, saísse de casa com um soldado?!
- Quem sabe, meu filho!
- Ora!... Ela não deu esse passo por amor. Violante não quer bem a ninguém, nem à senhora, acredite. Se ela lhe tivesse um pouco de amizade, não saía de casa, como saiu, deixando-a de cama. Aquilo é a criatura mais indiferente que eu conheço. Se mamãe tivesse ouvido os meus conselhos, não estava agora aí chorando.
- Ora, Paulo... tinha de acontecer.
- Ah! Tinha de acontecer?... Não, não aconteceria se a senhora não lhe passasse tanto a mão pela cabeça. Que fazia Violante aqui em casa? Era uma princesa: Dormia até as tantas e passava os dias polindo as unhas ou colecionando folhetins dos jornais. Se a senhora a obrigasse a coser e a arrumar a casa não aconteceria o que aconteceu. Mas ninguém tocasse em dona Violante!
- Está bom, não queiras agora culpar-me. Eu fazia tudo isso porque sou mãe.
- Porque é mãe... Pois sim. E eu agora que deixe os meus afazeres e que ande por aí, envergonhado, à procura da senhora minha irmã. - Levantou-se indignado: Eu não ponho mais os pés na Escola! Essas coisas sabem-se logo e eu não tenho cara para aparecer aos colegas.
"É irmão de fulana, que fugiu." Eu não! - Voltou-se repentinamente para a velha, carrancudo:
Olhe, nós estamos aqui aflitos. E ela?...
- Sabe Deus se já não está arrependida! - suspirou a velha.
- Arrependida! Ela fez tudo com calma, levou todas as jóias.
- Levou!?
- Sim senhora, levou! - A mísera inclinou a cabeça sobre o colo com um suspiro; e Paulo continuou: E ainda a senhora quer desculpá-la. Uma perversa!
- Não fales assim.
- Que é, então? Que lhe faltava aqui? Tinha até demais! Luxo?! - Exclamou curvando-se, com a face contraída, os olhos flamejantes, as mãos espalmadas nas coxas: Ah! Isso não, porque eu não havia de roubar. Isso não! - E pôs-se a passear pelo quarto. Desabafava. A sua cólera contida transbordava e, como na expansão duma válvula há o vapor que se liqüefaz, havia naquela fúria lágrimas disfarçadas; era o pranto que irrompia da cólera e a atitude infeliz de Dona Júlia concorria poderosamente para aquela fraqueza. Tomou, ao acaso, um livro na estante, folheou-o vagamente e, atirando-o à mesa, prorrompeu de novo: Quantas vezes protestei contra aquela mania da janela? Diga! Uma pouca-vergonha. As outras moças chegam à janela, é verdade, mas Violante era desde a manhã até as tantas da noite, todos os dias, até com chuva. Nem sei que parecia. E a senhora? A senhora sempre a defendê-la, porque era moça. Está aí.
- Mas tu queres agora culpar-me, Paulo? Eu podia ver?
- Justamente por isso.
- Ora, meu filho, se ela tinha essa idéia nem que eu ficasse agarrada à sua saia noite e dia havia de levá-la a efeito. Tinha de acontecer e quando Deus quer...
- Deus! Aí vem a senhora com Deus. Pois sim. Eu é que não sei como há de ser agora.
- O quê?
- A minha vida. Tenho o jornal... Da Escola não falo, porque lá não ponho mais os pés.
- Então não te formas?
- Eu? Eu, não! Mas não sei como há de ser. Como poderei cuidar das minhas obrigações tendo de andar por aí à procura de Violante? Não sei.
- Ela há de aparecer. Tenho fé em Deus.
- Vá esperando.
- Por que falas assim?! Nem parece que é tua irmã. Deixa lá, é sina de cada um.
- Ah! É sina de cada um. Pois sim...!
- É, meu filho: é sina de cada um.
Com tais palavras, para evitar as recriminações de Paulo, que não suportava "superstições e crendices", foi-se do quarto, arrastando os passos.
Locomotivas silvavam manobrando, os galos amiudavam nos quintais vizinhos. Era a madrugada. Paulo começou a despir-se, atirando a roupa desordenadamente. As artérias das têmporas latejavam-lhe túrgidas, sentia um grande peso no cérebro. Apagou o gás e, no escuro.
sentado à beira da cama, com os pés nus roçando o soalho frio, pôs-se a arrepelar os cabelos e viu, na sombra, vagamente, a cena da fuga: a irmã, de preto, com o embrulho das jóias, a caminhar cautelosa, surdamente e desaparecer diluindo-se como uma névoa.
Deitou-se, cobriu-se, não tinha sono. E pensava: Onde iria? Como encontrá-la? Chegou-se mais à parede e, d'olhos fechados, meditava quando ouviu os arrancados soluços de Dona Júlia no quarto próximo. Pôs-se à escuta e os olhos foram-se-lhe enchendo d'água, uma opressão pesou-lhe no peito como se lho fosse esmagando e, de repente. afundando a cabeça no travesseiro, rompeu a chorar desesperadamente.
3 Eram seis horas da manhã quando acordou em sobressalto, como se houvesse sido violentamente despertado. Sentou-se na cama esfregando os olhos, moído de fadiga e os fatos da véspera afluíram-lhe à memória, nítidos e rápidos. A cena em casa, a caminhada através da noite tormentosa, a subida à polícia, o delegado sonolento. Mas, pensando na mãe, pôs-se de pé, descalço e saiu para a sala, já aberta e em ordem.
Tiniam na rua as campainhas das vacas, trens bufavam rodando pesadamente; às vezes um silvo varava o silêncio. Havia sol. A luz dourada entrava pelas brechas das persianas brilhando no verniz dos móveis e, muito longe, soavam sinos, cometas vibravam.
Ia para a janela, mas recuou pensando nos vizinhos, receoso de alguma pergunta e estava parado, enrolando um cigarro, quando bateram à porta: era o lixeiro. Abriu; o homem passou às pressas, meio curvado, murmurando "Bom dia" e foi-se pelo corredor, com o balde à cabeça.
Ele deixou-se estar, indo e vindo na sala estreita, até que o lixeiro tornou, sempre apressado, e saiu. Pareceu-lhe tê-lo visto sorrir, um sorriso irônico de quem se regozija com o sofrimento alheio. Teria ele sabido? Encostou-se à rótula olhando pelas rexas - o homem, trepado a uma das rodas da carroça, despejou o balde e dobrou a tampa que bateu com estrépito, saltou à calçada, deu volta, a correr, e, tomando as rédeas, incitou o animal que arrancou.
Na rua havia ainda grandes poças d'água, posto que os paralelepípedos, já enxutos, aparecessem muito brancos, lavados. O céu, limpidamente azul, resplandecia com um brilho de seda; subiam tufos de fumo das locomotivas, grossos, em rolos muito brancos, aos jatos, como flocos que se iam esgarçando, diluindo-se no ar.
Irresoluto, tão alquebrado d'alma como de corpo, com o desânimo, que é a fadiga moral, onde parava deixava-se ficar inerte, d'olhos imóveis, abandonado. Idéias contrárias debatiam-se-lhe no espírito, sentimentos diversos disputavam: ora o ódio irritava-lhe os nervos, ora a piedade umedecia-lhe os olhos.
Cabisbaixo, lentamente, com as mãos para as costas, seguiu pelo corredor e, na sala de jantar, levantando a cabeça, viu, com surpresa, a mãe parada à ponta do quarto de Violante, a chorar em silêncio, como se já não tivesse gemidos. Não lhe deu palavra; deixou-se cair em uma cadeira e ficou-se a olhar, absorto. Felícia trouxe-lhe o café e ele, distraído, pôs-se a mexê-lo vagarosamente.
Ouvindo bater à porta voltou-se ligeiro e disse à negra: que fosse ver, devia ser o caixeiro. Que lhe falasse lá mesmo, não queria ninguém em casa. A negra seguiu pelo corredor enrolando a trunfa em volta da carapinha grisalha e dura. Dona Júlia, sentando-se, disse, com uma doce expressão de ternura:
- Ela não levou as jóias, Paulo,- foi só com os brincos e com o anel que usava sempre.
- Como não levou?!
- Não, estão aqui; - e mostrou uma caixa verde, que fora de sabonetes, explicando:
- Estavam no guarda-vestidos. Nem as jóias, nem a roupa: está tudo aí. - Paulo conservou-se calado, d'olhos baixos, raspando o soalho com os pés. - Vais à polícia outra vez, não?
- Para quê?
A velha encarou-o boquiaberta.
- Como? Pois não vais?
- Eu, não. Que vou lá fazer? Para o homem dizer-me de novo: Que vai ver? Eu não.
- Mas, meu filho, se a polícia não fizer alguma coisa, quem poderá fazer? Queres que tua irmã fique para aí, atirada no mundo, sem uma pessoa que tome as dores por ela? Se não queres ir eu vou e tenho certeza de que hei de conseguir alguma coisa.
Felícia tornou à sala com os jornais que recebera do entregador. Paulo, em dois goles, sorveu o café morno e, cruzando as pemas, tomou as folhas que a negra deixara sobre a mesa. Lançou os olhos, com ânsia, à primeira página, percorrendo todas as colunas, à procura da notícia da fuga de Violante. Bem podia algum repórter ter aparecido na polícia depois da sua saída levando a informação escandalosa. Tranqüilizou-se, porém, lembrando-se da hora adiantada em que se dera o crime - já todos os jornais deviam estar prontos e nem tão importante era o caso para que o plantonista se arriscasse, por ele, a perder o correio.
Mais calmo, acendendo o cigarro, pôs-se a ler o Equador, achando aqui, ali, notícias que revisara: um desastre no mar, uma tentativa de suicídio e o conto de Aurélio Mendes, ao alto da primeira página, enchendo densamente as duas primeiras colunas.
Com o jornal diante dos olhos pensava nos companheiros. Que diriam eles quando a notícia, saindo da composição, lhes chegasse às mãos? O Brites conhecia Violante, e o Bruno, que a vira, uma vez, na redação, numa terça-feira gorda, ficara impressionado pelos seus olhos "que ardiam" - Que diriam eles quando lessem a prova infame? E, como se já sentisse a vergonha que lhe estava reservada, passou a mão pela fronte, depois, atirando um murro à mesa, ergueuse: "Não! Não volto!" exclamou respondendo a um pensamento. Dona Júlia levantou os olhos marejados encarando-o em silêncio. "Não volto!" repetiu debruçando-se à janela que abria sobre o quintalejo. Lá estavam os caixotes com violetas e malvas, à sombra do muro. Eram os canteiros de Violante.
Ao fundo, num cercado de ripas, as galinhas cacarejavam assanhadas, com fome. Um gato caminhava lentamente pelo muro, ao sol e, entre as folhas miúdas duma esponjeira, uma camaxirra chilreava trêfega, na alegria da luz, entre o brilho das gotas da chuva, engastadas nas folhas.
Paulo, com o rosto nas mãos, os cotovelos no beiral da janela, elevou o olhar pensativo. De vez em vez sacudia a cabeça com um sorriso magoado. Amofinava-o aquela idéia dum possível comentário dos companheiros na sala da revisão, perto dele: o Bruno, sensual, a invejar o homem que arrebatara Violante; o Amaro, com quem tivera uma rusga, a rejubilar vingativo; o Malheiros a rir, com a sua eterna ironia, e os compositores, até o Lúcio, retranca, toda aquela gente a espetá-lo com olhares perversos ou curiosos. Talvez mesmo algum, mais ousado, lhe pedisse pormenores oferecendo-se para ajudá-lo na pesquisa ou com um empenho para o chefe, não porque o quisesse auxiliar, em desinteressada camaradagem, mas para entranhar-se no escândalo, conhecer as minúcias, todos os pequeninos incidentes. "Não! Não volto!" E
encolheu os ombros.
Não eram somente os revisores do Equador, toda aquela multidão promíscua do jornal que lhe aparecia, inclemente, a rir, num surdo remoque: eram os estudantes, seus colegas da Escola, troçando o caso em volta do tabuleiro da Sabina, nos anfiteatros, nos corredores, até diante das mesas de dissecção.
Nas ruas também, quando passasse, haviam de mostrá-lo: "É aquele!" E ririam, com escárnio, da sua desonra; talvez o responsabilizassem por ela. Fariam dele um carrasco e da irmã uma vítima - que fugira para evitar tormentos, que se libertara do verdugo, preferindo as misérias do meretrício à vida humilhada e torturada. E ele, inocente, seguia, vexado, sob a dureza daqueles olhares que lhe infligiam um injusto castigo. Teve um novo movimento de cólera e Dona Júlia, que o olhava, perguntou:
- Que é?
Encolheu os ombros, deixando a janela e, molemente, abandonadamente, encostou-se à mesa brincando com a colher que ficara na salva de metal. De repente, numa inspiração, exclamou:
- Vou procurar o Mamede.
- Mamede?! Para quê? perguntou a mãe.
- Para descobrir Violante.
- E Mamede sabe, meu filho!?
- Mamede? Mamede conhece toda a cidade, é íntimo dessa gente da polícia. Se com ele eu não descobrir Violante, então... - esticou o beiço, desanimado. - A senhora bem sabe que ele foi agente de polícia, era um dos melhores; saiu por causa do gênio.
- E sabes onde ele mora?
- Mora em uma estalagem, na Rua do Riachuelo. Vou já. Hoje é domingo; ele deve estar em casa.
- Então, vai. E a polícia?
- Qual polícia! Penso lá em polícia!? Descanse. - Deu alguns passos e voltou-se: Olhe, se eu tivesse dinheiro ainda bem, mas assim...
E caminhou para a cozinha. Felícia talhava a carne sobre a mesa encardida e acumulada; o gato miava, fazendo voltas, com a cauda hirta e, numa gaiola, o gaturamo gorjeava, pulando, todo arrufado e úmido do banho. Paulo saiu ao quintal e, descalço como estava, foi seguindo direito ao banheiro. Felícia, vendo-o passar, correu com um par de tamancos e uma toalha felpuda:
- Olhe, nhonhô.
Ele tomou os tamancos, atirou a toalha ao ombro e empurrou a porta do banheiro sombrio e úmido. Despiu-se e, nu, passeando, a esfregar o peito, d'olhos no chão, esteve algum tempo a pensar.
Na vizinhança, uma voz de mulher cantava; estalavam roupas batidas e, de instante a instante, eram berros de locomotivas que chegavam, que partiam, arrastando comboios. Ficou debaixo do chuveiro, hesitante, com frio; esteve um momento parado a olhar o crivo que pingava, depois uma aranha, que se balançava na teia, a um canto, junto à caixa d'água; por fim, resoluto, puxou a corrente e a água jorrou copiosa. Refrescado, saltou para a tábua e, envolvendo-se na toalha, pôs-se a esfregar-se. Vestiu-se, calçou os tamancos e saiu.
Passando pela cozinha recomendou à Felícia que lhe arranjasse qualquer coisa para almoçar:
um bife e ovos - e, apressado, fechou-se no quarto para vestir-se. As botinas estavam encharcadas; tomou uns sapatos amarelos e surpreendeu-se a assobiar, esquecido da agonia que lhe toldava a vida, dantes tão calma e feliz naquela casinha alegre. Vestido, mirou-se rapidamente ao espelho, compôs a gravata e passou à sala de jantar.
Felícia estendera a toalha e já o prato o esperava. Sentou-se; e arrastando uma cadeira para junto dele, ficou a enrolar uma ponta da toalha, suspirando a espaços. Quando a negra apareceu com o bife e os ovos ainda rechinando na frigideira, Paulo partiu o pão e pôs-se a comer às pressas, sem levantar os olhos. Cigarras chiavam nas árvores vizinhas e na rua um vendedor de frutas prolongava um pregão monótono.
- Que vais dizer ao Mamede?
- A verdade.
- Que ela fugiu de casa?
- Então?
Calou-se, pensativa. e tornou por fim, receosa:
- Não sei. Eu, por mim, não dizia. Mamede, com aquele vicio...
- Ora, vício. Mamãe há de ver.
- Enfim...
- A senhora pensa que a polícia é uma coisa e ela é outra. Olhe o Alves.
- Que Alves?
- Um colega meu. Um copeiro levou-lhe de casa todas as jóias da mãe e das irmãs e depois? O
Alves fez tudo e, até hoje, não conseguiu da polícia outra resposta senão: "Que os agentes estão na pista do gatuno!" Vai já para um ano, e o Alves tem dinheiro para gastar. A senhora pensa que é só chegar lá e pedir? Pois sim! Vou arranjar-me com o Mamede. Se hei de gastar com um desconhecido, gasto com ele, que é amigo, e com mais probabilidade de êxito, porque Mamede pode ser tudo, mas estima-nos.
- Isso é verdade, concordou Dona Júlia, ajuntando: e tem obrigação. Seria um ingrato se não nos estimasse.
A palestra foi-se tornando calma entre mãe e filho, como se houvessem esquecido o desgosto.
Dona Júlia chegou a notar que um dos punhos do filho tinha uma mancha de ferro e propôs substituí-lo.
- Não, serve este mesmo, - disse ele levantando-se e batendo forte com os pés para ajeitar os sapatos. Ainda mastigando, recebeu de Felícia a xícara de café; tomou-o em três goles e, dirigindo-se a Dona Júlia, disse-lhe: E agora não fique para aí chorando: almoce descansada.
Eu vou ver. Tenho esperança de conseguir alguma coisa com o Mamede.
Tomou o chapéu, mas Dona Júlia adiantou-se com a escova.
- Espera um pouco, não vás assim! - e pôs-se a escová-lo vagarosamente.
- Lembre-se de sua saúde; a senhora anda doente. Eu estou aqui. Não vá agora amofinar-se por uma ingrata, que nem é digna da sua amizade. Eu, palavra de honra, se não fosse pela senhora, nem me abalava - que se arranjasse. - Dona Júlia curvara-se para escovar-lhe as calças.
- Isso não! É minha filha, é tua irmã!
- Pois sim...
- É teu sangue.
- Meu sangue, não! - negou indignado. - Não, que eu trabalho, faço pela vida. não ando a embonecar-me. Mas ela há de ver o bonito... - Oh!
- Não fales assim, Paulo! Deixa-a. Deus é grande! - E passando-lhe a mão pelas costas, para tirar um fiapo que esvoaçava repetiu: Deus é grande e é pai.
Paulo tomou a bengala e partiu.
- Deus te acompanhe! murmurou a velha.
Ele esteve um momento indeciso, a pensar nos vizinhos, imaginando uma resposta para os que lhe perguntassem pela irmã, mas resolvendo-se, abriu a porta e saiu, de cabeça baixa, como preocupado, para evitar os cumprimentos.
A cidade, depois da noite de chuva, muito arejada e lavada, tinha um aspecto asseado e agradável. O sol tépido brilhava num puro azul e, pelos telhados vermelhos do casario, aqui, ali, clarabóias dardejavam ofuscantes. Um realejo melancólico resmoneava ao longe. Paulo atravessou a rua sem voltar os olhos. Ouvia vozes na vizinhança - uma mulher que silvava psius! os gritos frenéticos de uma criança, latidos de cães. Quando dobrou a esquina sentiu-se aliviado, tranqüilo, como se houvesse escapado a um perigo; moderou o andar.
No quartel estrondava um dobrado entusiástico. Instintivamente foi ritmando os passos pela música; de repente, porém, como se se sentisse observado, fez uma leve parada e seguiu devagar, fugindo aos compassos, até que se achou diante da estação Central.
Gente escoava em massa para o largo, chalrando: pequenos apregoavam jornais, perseguindo os passageiros que chegavam dos subúrbios. Homens, sentados ou acocorados diante de cestas de frutas, acamavam maçãs rosadas ou conversavam alegremente. Grandes tabuleiros de doces atraíam a garotada, os doceiros apregoavam, afugentando as moscas que esvoaçavam em torno dos pães louros, lentejoulados d'açúcar cristalizado e os engraxates, de joelhos junto das caixas, que batiam, chamavam os transeuntes. Bondes faziam a curva, outros seguiam cheios e os de São Cristóvão cruzavam-se, apinhados, com gente nos estribos.
Os carros, em fila, estendiam-se ao longo do terreno vago e em torno de um quiosque cocheiros discutiam em algazarra; outros, atracados, mediam forças ou gingavam em meneios capoeirosos, enquanto um pequeno, junto a um dos carros, estalava um chicote, rindo-se quando a água de uma poça espirrava para os lados, lamacenta e negra.
Os montes, muito azuis, tinham uma nova alegria. A Tijuca, desanuviada, cravava o seu cimo no céu; e o parque em frente, denso e verde, parecia de um arvoredo tenro: lisa era toda a folhagem, como nascida naquela manhã; a grama verdejava viçosa, como se por ali houvesse andado a primavera mondando as plantas, recolhendo versas e ramalho para mostrar, em todo o esplendor da beleza, a sua residência mais amada.
Ia atravessando a rua quando uma matula de garotos arremangados, descalços, brandindo paus, aos berros, abalou da estação, a correr em direção ao quartel, donde partiam, vibrando na serenidade da manhã luminosa, clangores fortes de metais. Deteve-se, empolgado por aquele troar de guerra, que os ecos iam prolongando gloriosamente. Era um batalhão que saía, precedido pela cainçada lépida, que ladrava.
A molecada esperta, aos saltos, corcoveando, em destros arremessos, bradava atirando, desviando golpes, numa excitação de luta e a banda rompeu estrondosa como uma muralha resplandecente que se movesse, seguindo para o campo fronteiro, onde já se haviam reunido grupos de curiosos.
Apareceram depois os oficiais a cavalo - um dos ginetes, negro e luzidio, caracolava garboso:
logo depois o primeiro pelotão, com as baionetas rútilas inclinadas, formando um revérbero e passavam, com intervalos, serenamente, pelotões sobre pelotões, até que houve um claro e a bandeira verde, solta ao vento, palpitou vitoriosa. Retiniram cometas, novos pelotões desfilaram:
por fim vários soldados, num bando desordenado, saíram na coda e um carneiro, lanzudo e gordo, precipitou-se rebolando entre cães que ladravam, engalfinhando-se, numa alegria estróina. Bondes esperavam travados até que o batalhão atravessou a rua airosamente.
A um brado do comandante, que sofreava o corcel, os pelotões recuaram ficando toda a tropa em linha, imóvel e direita. Súbito, num relâmpago, moveram-se as baionetas fazendo uma linha perpendicular, cintilante. Uma pancada atroou, os tambores rufaram e um dos oficiais, à rédea frouxa, partiu em revista à formatura.
Os passageiros voltavam-se nos bondes para olhar e Paulo, entretido, acompanhava as manobras quando se lembrou do Mamede. Lançou um olhar rápido ao relógio da estação - eram oito e meia. Foi-se lentamente até ao portão do parque, sempre a ouvir a música guerreira que estrugia como um hino forte à luz magnífica do sol.
As aléias estavam ainda úmidas e marcadas de pegadas, mas que frescor na folhagem! O lago, liso e cristalino, refletia o céu e um ganso, alvo de neve, nadava sem mesmo frisar a água dormida. O relvado cintilava emperlado de gotas límpidas e um aroma silvestre de bosque virgem saturava o ar fino.
Ele seguia contemplativo, sentindo o hálito das árvores, cercado pela vegetação forte, refeita com a rega farta da noite.
Passarinhos cantavam nos ramos, iam dum a outro, perseguindo-se; uniam-se no ar como trocando beijos e lá iam, de novo, juntos, d'asas frementes, metiam-se num meandro folhudo, onde, por certo, tinham o ninho agasalhado. Folhas caíam girogirando, flores murchas manchavam a relva, amareleciam ou ensangüentavam as alamedas.
Num banco um casal espairecia vendo o filho, um pequenito enfezado, ir e vir, arrastando a bengala, a fazer garatujas na areia. Súbito, porém, um som rouco e fanho de buzina e um retinir de tímpano alarmaram os dois felizes: o homem levantou-se, tomou o petiz nos braços, mas não teve tempo de voltar ao banco porque dois ciclistas, curvados sobre as máquinas, pedalando com fúria, passaram rápidos, com uma leve crepitação da areia.
Homens caminhavam passo a passo, como convalescentes e uma velha negra, abordoada a um pau, trêmula e tarda, passou com resmungos, num solilóquio de idiota, a cabeça toda branca, a pele engelhada, os olhos sumidos, enevoados no fundo das órbitas. Paulo chegava à praça central quando alguém lhe falou. Era um vizinho, empregado no Correio:
- Por aqui?
- É verdade.
- Os seus, bons?
- Graças a Deus. E os seus?
- Assim... - tocou no boné e seguiu ligeiro, gingando. Outros ciclistas deslizavam, uns céleres, como em vôo rasteiro, outros lentamente, ziguezagueando, oscilando ora à direita, ora à esquerda, esbaforidos, suados.
Bem felizes eram aqueles que por ali andavam descuidados! Para eles a natureza ria, o sol era alegre, jacundos os passarinhos, as flores obrantes e no sorriso de enlevo manifestavam a alegria de viver. Tudo, em torno, acenava-lhes afortunadamente. Só ele ia magoado, com a alma denegrida, fugindo aos homens, receoso das próprias coisas, porque aquelas mesmas árvores, aquele mesmo céu, aqueles mesmos pássaros pareciam recebê-lo com ironia pungente vendo-o infeliz, toldando com a sua tristeza a alacridade daquela manhã triunfal.
Um velho maltrapilho cochilava num banco, sob a ramagem verde e basta duma árvore em flor, com o cajado entre as mãos engelhadas. Era um triste, talvez, tinha também o seu drama; mas abriu os olhos lentamente, cravou-os no céu e, como um sino ressoasse perto, sonoro e grave, tirou o chapéu desabado, descansou-o no banco, persignou-se e, baixando a cabeça branca, de emaranhados e amarelecidos cabelos, ficou imóvel.
Dominado por aquela figura venerável de crente, Paulo descobriu-se, mas com vergonha dos transeuntes, que o podiam tomar por um carola, pôs-se a passar a mão pelos cabelos - no íntimo, porém, fazia votos a Deus, àquele Deus de Misericórdia que a voz grave do sino recordava no esplendor da manhã.
Vivamente outros sinos, mais límpidos, bimbalharam em festivo repique, e lá iam os devotos ao som do reclamo, como ovelhas correndo à buzina do pastor, por entre os pedrouços e a urze brava do monte, aos quais bem podem ser comparadas as agruras da vida.
Quando chegou ao portão, em frente aos Bombeiros, teve de recuar à zoada das trompas de outros ciclistas, que vinham em caravana, apostando, uns mais avançados, rindo, galhofando em tom de vitória. Atravessou a rua e, fustigado pela preocupação, amiudou os passos.
Subindo a Rua do Senado por entre o casario pobre, vendo às janelas os bustos arremangados das caseiras e, na calçada, os homens que gozavam a sua manhã de folga, em mangas de camisa, os braços nus, guedelhudos e fortes, tinha, por vezes, palpites de que a irmã estava refugiada em uma daquelas casas. Ouvia-lhe o riso, reconhecia-lhe o timbre da voz fresca e lânguida; voltava os olhos e, rapidamente, devassava interiores modestos.
Num botequim, junto à barreira esbarrondada, abancados a mesas sórdidas, preguiçavam madraços, e, mais adiante, numa casa de pasto, escura e lôbrega, ao longo de compridos bancos, trabalhadores almoçavam chalrando estrondosamente.
Enxames de moscas esvoaçavam na calçada e um velho, sentado no limiar de uma casa, com a perna esticada, envolta em estropalho imundo, alrotava, estendendo a mão aos transeuntes.
Paulo atirou-lhe uma moeda.
Ganhando o aclive da Rua do Riachuelo, seguiu lentamente, curvado, chegando ao alto alagado em suor.
4 A estalagem em que morava o Mamede, antiga chácara senhorial, abria por um portão nobre, com leões de louça nos pilares de pedra. Era um imenso e rumoroso viveiro, alveolado de renques de casotas baixas, de porta e janela, ao fundo de um jardinete, em umas escavacado e seco, em outras caprichosamente plantado até a cerca de ripas que o limitava.
Largo, vasto, subindo em capinzal para a montanha, o terreno era o logradouro comum, gramado em quadros ou com coradouros de pedra sob uma verdadeira teia de cordas onde trapejavam roupas.
No aclive, encostado à barranca, havia um estábulo e mais ao fundo, num cercado de pau-apique, muares soltos espojavam-se entre carroças tombadas sobre os varais. Tinas jaziam acanteiradas em fila ou de borco. Sentia-se o descanso domingueiro.
Só uma mulher, vermelha, anafada, com um largo chapéu de homem à cabeça, as saias arrepanhadas na cintura grossa, mostrando as pernas fortes e os pés rijos, em tamancos, ensaboava, jogando violentamente o busto, rebolindo os quadris nutridos. Os seios desabavamse-lhe, moles e trêmulos, no papo da camisa e os seus braços másculos mergulhavam e reapareciam enluvados d'espuma.
Um mulato calvo, d'óculos, quase no limiar de um dos casebres, aproveitando a luz, cosia à máquina, cantarolando; e uma negra, sentada acaçapadamente, com o pito nos beiços, chupava fumaças distraídas, olhando o céu azul.
Ao fundo, alta e agreste, a montanha impunha-se e, por um caminho íngreme, escavado, uma cabra, aos galões, galgava o alcândor.
Fortum acre de barrela saturava o ar. Poças d'água cinzenta alumiavam ao sol em todo o vasto enxurdeiro.
Paulo sabia que a casa do Mamede era uma das últimas, querendo, porém, certificar-se perguntou a um pequeno que, em camisola e descalço, arrastava um comboio feito com caixas de fósforos. O interrogado partiu correndo e estendeu o braço indicando uma casinha pintada de azul, a cuja frente, além da cerca de ripas, verdejava uma latada.
- É ali.
Paulo agradeceu e encaminhou-se saltando um rego onde dormia, estagnada, uma água negra, velada e pútrida. Antes de bater esteve a olhar, como à espera de alguém. Cantavam na vizinhança, em tom monótono de acalento. Adiantou-se e bateu, tímido a principio, depois forte, bradando:
- Ó de casa!
- Quem é? - rosnaram de dentro, e um mulato espadaúdo, picado de bexigas, em mangas de camisa, cabelo em poupa, apareceu à porta, sungando as calças. Logo que viu o estudante abriu os braços, com alegria ruidosa:
- Ó nhozinho! Que milagre! Vosmecê por aqui? - E, sério, inclinando-se, com o sobrolho carregado: Alguma novidade lá em casa?
Paulo afirmou com a cabeça e o mulato, boquiaberto, num assombro, ficou algum tempo a mirálo; de repente, porém, passando-lhe o braço pelas costas, chamou-o: Mas entre, nhozinho;
entre. Fez uma volta repentina na soleira e, sorrindo, com os dentes muito brancos, observou, pernóstico: não repare, isto é casa de pobre... e Ritinha ainda nem fez a limpeza.
Paulo encolheu os ombros e, deixando o chapéu a um canto, sentou-se numa cadeira tosca, que tinha o forro de palha muito esgaçado.
- Vai um golinho de café? - Paulo aceitou. - Isto é que é... Sempre o mesmo, hem, nhozinho?
Bom como o velho. - E, atirando o corpo para trás, com um gesto largo do braço, descaído e lépido: Em casa de pobre não há outra coisa. Mas é bom! - afirmou com seriedade cômica. - Um instantinho.
Correu um leve reposteiro de chita escura, de ramagens, e desapareceu, gingando.
Paulo lançou os olhos à sala. Estreita, com uma janela e a porta à frente, duas portas ao fundo, encobertas pelos reposteiros de chita que o vento tufava; uma mesa de pinho, a cômoda com imagens de gesso e quinquilharias, quatro cadeiras e um banco com assento de couro. Nas paredes: cromos de antigas folhinhas, gravuras recortadas e uma cópia da Batalha de Avaí. A
um canto, um feixe de bengalões mosqueados.
Na janela, empanada por uma cortina de filó, dois vasos de barro com malvas e, numa gaiola, um pássaro triste, amorrinhado, olhava o céu, piando. Um gato cinzento, esgrouviado, espichouse, corcoveou e veio vindo, com preguiça, pelos varais da latada; ao vê-lo, porém, deteve-se, desconfiado, fitando-o, e, sem perdê-lo de vista, agachou-se, cravou as unhas nas ripas, raspando com frenesi; de repente, num salto, desapareceu no telhado.
Mas o mulato tornou, com a sua alegria ruidosa: "Que Ritinha estava arranjando o café", e, tomando de cima da mesa uma ponta de cigarro, acendeu-a e sentou-se cavalgando o banco, de pernas abertas, descaído, os cotovelos nos joelhos, o queixo entalado nas mãos, e perguntou com mistério:
- Então que houve, nhozinho?
- Violante fugiu de casa, Mamede.
O mulato empinou-se num ímpeto de espanto e, hirto, d'olhos esbugalhados, exclamou:
- Como, nhozinho!? Não me diga isto! Nhá Violante...! Com quem?
- Não sei.
- Quando, nhozinho?
- Ontem à noite.
- E vosmecê não desconfia de alguém?
- Ora, Mamede, eu, com a vida que tenho, pouco paro em casa. Não sei.
- E a velha?
- Mamãe, coitada!
- Ora, Nhá Violante! Uma menina que parecia uma santa... Vosmecê já foi à polícia?
- Fui ontem. Mas não confio naquela gente. O que eu quero é que tu me auxilies. Só conto contigo.
- Comigo!? - exclamou o mulato vaidoso, espalmando a mão no peito.
- Sim, tu conheces essas coisas. Contigo tenho certeza de descobrir o patife.
O mulato encolheu-se, modesto.
- Ah! nhozinho, também não é assim como vosmecê pensa, - disse escarvando a cabeça; - não é assim. Se a gente ainda tivesse uma dica... - Encolheu-se, pensativo, mordicando os grossos beiços, levantando o bico das chinelas. De repente, firmando-se, explicou: Aqui só há um meio -
é a gente conversar com os cocheiros. Ela, com certeza, foi de carro, eu sei; ninguém faz essas coisas senão de carro e cocheiro é como mulher: não guarda segredo - o que um faz está na boca de todos. O meio é a gente sair pescando aqui, ali, nos pontos. Mas para isso é preciso andar com essa malandragem e esse serviço não é para um moço como vosmecê.
- Como não? Por quê?
O mulato sorriu superiormente, bambaleando-se:
- Não, nhozinho, eu mexo as coisas cá no meu lado, vá vosmecê tocando lá por cima. Essa gente miúda é o diabo! repetiu. Perto dum moço como vosmecê nenhum abre o bico, não se arranca isto, - e mostrou a unha aguda do polegar. - Comigo não, sou cabra da mesma romaria, ando no lote com eles e com uma misturadinha e uma pabulagem destripo o mais mitrado. Para mim o melhor mesmo é pegar os cocheiros. A gente vai no rasto, farejando, até botar a mão em cima do mestre, depois... o resto é nada. Mas com vosmecê, não. Vosmecê atrapalha os cálculos. Moço assim direito... qual! dizem logo, isso é tira, está sondando. Eu conheço os casos; - e riu. Logo, porém, reassumindo a gravidade, perguntou: E na vizinhança? A gente não pode apanhar alguma coisa? Vosmecê não tentou?
- Não.
- Pois é preciso, nhozinho. Então é assim que vosmecê quer pegar o meco? É preciso.
Nesse momento uma mulatinha cor de canela, afastando o reposteiro, apareceu com a bandejinha de café.
Muito nova, teria dezoito anos, pele fina, cetínea, olhos negros, faceiros e pestanudos, cabelo liso, abundante, roliça e lânguida. Os seios rijos espetavam o corpinho de cassa, e, pelas mangas frouxas, viam-se-lhe os braços morenos, torneados e nos punhos finas pulseiras de prata com berloques tinindo. Mamede apresentou-a:
- Esta é a minha barbiana, Ritinha, a mulata de mais caídos que eu conheço; - e atirou uma palmada ao quadril da rapariga, que fugiu com o corpo graciosamente.
- Olha, Rita, este é o filho do meu major. Eu vi este menino assim - e esticou o braço forte mostrando a altura - brincou muito aqui nos meus joelhos, era doido por mim. Nem vosmecê se lembra, hem, nhozinho?
Paulo, sorvendo o café, fez um aceno afirmativo; mas o mulato, estirando as pernas, arregaçando as calças, duvidou:
- Qual! Vosmecê era muito miúdo. - Ritinha sentou-se com a bandeja nos joelhos, mirando-o.
Mamede, porém, entregando-lhe as xícaras, atirou-lhe nova palmada, que ela rebateu, ligeira, com um momo. - Vai um bocadinho lá dentro, mulata; nós estamos aqui numa menestra.
Ritinha levantou-se molemente e, com o seu andar quebrado, desapareceu; pouco depois a sua garganta mandou à sala a melodia de uma modinha sertaneja.
- Então, nhozinho, vosmecê não acha que eu penso bem? Eu vejo fundo nessas coisas.
Vosmecê toca lá de cima, eu vou trabalhando cá por baixo, com o meu povo: assim, sim.
Fechamos o bicho num cerco e, seja ele quem for, quanto mais graúdo melhor, há de chegar à fala. E depois, se eu puser os luzios nele, vosmecê pode ficar certo de que o mestre cumpre a obrigação. Ah! isso cumpre! Olhe, nhozinho, não é por vosmecê estar presente, mas pergunte à Ritinha se eu não vivo aqui falando lá de casa: do velho, da velha, de vosmecê, de Nhá Violante.
Eu estimo vosmecês mesmo, não é prosa, estimo! Vosmecês cresceram nos meus braços, e então? Deus me livre! Achando, vosmecê pode ficar tranqüilo, porque o trucha ou cumpre a obrigação apagando a mancha, ou eu... ahn! Vosmecê não me conhece ainda, nhozinho. Eu não sou homem de muita conversa, esteja certo disso; não sou, mas quando digo, faço, nem que saiba ir parar no inferno. Assim como assim, a gente vive em qualquer parte, vive mesmo, mas com uma ânsia no coração, isso é que não, não é comigo.
Encolheu os ombros, esguichou, por entredentes, uma cusparada para o quintalejo e ergueu-se.
- Vou pôr os manos em serviço e se eu, com eles, não descobrir, também a polícia não descobre, isso juro!
Afastou a cortina e bradou:
- Ritinha, que é da cana? Vosmecê não bebe?
- Não.
- Pois fique descansado, nhozinho, que eu vou trabalhar com gosto. Hoje mesmo começo, hoje é bom dia, que é domingo. É verdade que eu tenho um negocinho nas corridas, mas não há dúvida: primeiro a minha gente. Mas que maluquice de Nhá Violante! Uma moça bonita, que podia fazer um casamento importante...
"Mas é essa malandragem que anda por aí solta, desencaminhando as moças. A cidade está perdida, só mesmo um chefe teso, que mande varrer tudo, a torto e a direito. É uma pelintragem que faz medo: uns pindaíbas, sem lasca de guita, muito engravatados, batendo a calçada e fazendo estrupícios. E por isso que há tanta perdição por aí.
"Muitas vezes vosmecê lê nos jamais que um homem enfiou uma língua de ferro no bucho do outro, à toa. À toa?! pois sim, trate de indagar e há de ver. Só um maluco mata por matar, há sempre uma razão. Eu mesmo já tenho estado para esfriar mais de um, por causa de desaforos, não com a Ritinha, qu'isso, então, era logo; por causa de outras coisas. Foi algum vagabundo que virou a cabeça de Nhá Violante, mocinha nova, sem experiência do mundo... - Suspirou: Eu, de quem tenho mais pena é da velha... Tão boa, coitada! Uma santa!"
- Passou toda noite em claro, chorando.
- Imagino! Eu sei como ela é para vosmecês! Eh! quando um dos filhos tinha qualquer coisa, uma febrinha de nada... Nossa Senhora! ficava que até fazia pena, quanto mais com isso agora.
Eu nem sei, coitada!
Paulo pôs-se de pé.
- Então estamos ajustados? Vais trabalhar?
- Hoje mesmo, já não cuido de outra coisa. Vá vosmecê tocando de cima qu'eu espero cá embaixo.
- Achas que devo voltar à polícia?
- Acho. Vosmecê não conhece algum delegado?
- Não.
- Mas isso é fácil. Vosmecê arranja um cartão lá no jornal e vai mesmo ao chefe. E deixe correr o barco. - Ritinha, já íntima, entrou com a garrafa e dois cálices. Mamede, porém, foi logo dizendo: Nhozinho não bebe, - e serviu-se, pigarreando grosso, com o cálice entre os dedos.
Virou de um trago, caramunhando, olhos semicerrados.
- Então até logo, Mamede. Ainda vou dar uns passos por aí.
O mulato deu um safanão às calças:
- Pois é: vosmecê faz por seu lado qu'eu vou mexendo cá no meu mundo. E vou trabalhar com gente direita - pode ficar certo de que se eu farejar o rasto, trago o mano nos grampos. Vá descansado.
E estendeu a mão ao estudante. Ritinha, sempre lânguida, encostada à cômoda, olhava-o com os seus grandes olhos negros, aveludados que, por vezes, pareciam adormecer à sombra dos longos cílios. Paulo adiantou-se para falar-lhe com reserva e ela, como a custo, levantou o braço e entregou-lhe a mão, passivamente, num abandono. Tomou o chapéu e, já no quintalejo, sob a folhagem lustrosa, disse:
- Então até logo, Mamede; e trabalha.
- Não precisa pedir, nhozinho: eu entro nisso com o coração. - Paulo, porém, atraía-o e, quando o viu fora, longe das vistas de Ritinha, entre os velhos caixotes de plantas, perguntou-lhe em segredo: Estás armado? - O mulato recuou, como ofendido; o estudante, porém, já com a mão no bolso, continuou: Sem cerimônia, meu velho; entre nós deve haver franqueza. Eu posso passar algum.
- Que é isso, nhozinho! Então eu vou receber dinheiro de vosmecê?! Isso não! não senhor!
- Tu precisas, Mamede.
- Ora quê! Dinheiro arranja-se.
- Qual arranja-se, - insistiu o rapaz, tirando do bolso algumas notas amarfanhadas.
O mulato sorria, meio vexado; e a voz fresca de Ritinha recomeçou languidamente a modinha sertaneja. O estudante dobrou uma nota e meteu-a, à força, na mão calosa do mulato, que recuava, sorrindo.
- Que é isso nhozinho! Tenha paciência, isso não.
- Ora... - Afastou-se e, voltando-se da cancela, recomendou: E trabalha! Vamos ver se conseguimos descobrir o miserável.
- Não há dúvida. Eu saio já; é só o tempo de botar alguma coisa na boca.
Paulo acenou um adeus, e o mulato, agarrado à cerca, sorrindo, inclinou-se, recomendando:
- Lembranças, nhozinho.
5 Descendo, sempre alvejado pelos olhares curiosos da gente da estalagem, o estudante sentiase vexado. Dir-se-ia que aquele povo simples, olhando-o e cochichando, comentava, como se o conhecesse, o segredo que ali o levara. Precipitou os passos e, achando-se na rua, atirou-se a um bonde que passava sem saber ao certo o rumo que devia seguir.
Sentou-se, muito encolhido, e logo o tipo sensual de Ritinha surgia-lhe como uma visão. Onde a teria o Mamede encontrado, tão nova, tão linda, bem diferente da Libânia, sua antiga companheira, uma bexigosa relaxada, que andava em mangas de camisa, tresandando a sarro, cuspilhando nojosamente, sempre em rusgas com a vizinhança da casa da Rua do Conde?
Invejou o mulato. Devia ser delicioso viver com uma rapariguinha como aquela, vê-la, senti-la sempre, dobrando-a a um ligeiro aceno, sujeitando-a com um ardente olhar, como uma humilde, submissa escrava do amor.
Tão distraído estava com os pensamentos lúbricos que não deu pelo condutor - foi necessário que ele lhe tocasse o braço; voltou-se e, precipitadamente, desculpando-se, meteu a mão no bolso e pagou.
Depois de uma curta parada, de muda, diante da estação, o bonde seguiu rápido, ladeira abaixo, aos trancos.
Quando avistou os Arcos o estudante perguntou a si mesmo: "Mas para onde vou eu?" Não sabia, deixava-se levar ao acaso, sem indagar. Talvez encontrasse Violante.
No Largo da Lapa esteve para descer vendo uma fila de bondes engatados que seguiam para Botafogo. Sim, naquele bairro é que ela devia estar, num chalezinho risonho, entre flores.
Àquela hora dormia ainda, decerto, sobre as sedas macias do leito infame com a cabeça no braço do amante, nua e fatigada. E, lá em casa, consumida de angústia, a pobre velha andava pelos cantos, como uma trapeira, reunindo as lembranças: aqui um veludo que apertara as tranças da ingrata, um livro desmantelado, um lenço, um cromo, coisas que falavam dela, que conservavam a impressão dos seus dedos ou o aroma da sua carne. Pobre velha!
E foi com os olhos aguados que ele viu o Passeio, as grandes árvores, os tabuleiros verdes e aquela gente que ia para ali respirar a brisa saturada do aroma da folhagem ou a que vinha do mar, cheirando a salsugem.
Às janelas das casas, criadas batiam tapetes, levantando uma densa poeira. Das portas dalguns prédios corriam lençóis d'água negra para a calçada. Carros rodavam, tirados por trotadores de raça, cruzando-se com os apressados tílburis; passavam carroças, rangendo pesadamente e uma diligência, velha e imunda, desconjuntada, subia lenta, com oscilações, puxada por dois muares, atarracada de legumes que tufavam em grandes cestos, feixes de canas, jacás de galinhas, caixotes e, por entre a carga, agarrados aos balaustres, ou sentados em sacas, homens descalços, em mangas de camisa, oscilando com os solavancos da traquitana, que ameaçava desmanchar-se na primeira cova em que entrasse as suas rodas; mas lá ia, e as chicotadas sucediam-se no lombo dos animais que arrancavam com esforço.
Quando o bonde chegou à praia de Santa Luzia, Paulo comoveu-se vendo as árvores, que fazem uma cerrada abóbada, coando a luz pelas abertas da folhagem, ao longo da rua, larga e direita, que enfrenta com a Misericórdia.
No terreno que desce para a praia redes secavam, estendidas em espeques; barcos, pintados de fresco, reluziam, emborcados; uma carena apodrecia ao sol, como um esqueleto monstruoso. Pescadores teciam malhas, outros remendavam velas que o forte vento do largo estraçalhara. E a vaga rumorejava, refervia na praia por entre as pedras aveludadas de sargaço.
Longe estacionavam os navios. Um rebocador cortava as águas lisas, levantando a mareta na qual jogavam as pirogas esguias dos pescadores praieiros. Roupas grossas secavam em cordas, panejando com o vento da barra. Gaivotas voavam ou, pousadas n'água, apareciam e desapareciam, com a arfadura do mar.
Voltando-se, porém, deu com o frontão da Misericórdia - a escadada, a grande porta, larga e alta, que levava à sala do banco. Havia gente, enfermos pobres que iam à consulta, outros à espera de remédios. Alguns, sentados nos degraus da escada, abatidos, melancólicos, a cabeça entre os joelhos, pareciam cochilar; mulheres com crianças ao colo, velhos subindo tremulamente os degraus e uma negra que descia, de cabeça alta, olhos escuros, tateando cautelosamente, às cegas. Um tílburi estacionava embaixo.
Paulo respirou angustiado. Era dali que ele devia sair para a vida, depois de praticar à beira dos leitos de sofrimento, esvurmando pústulas, talhando carnes, recebendo nas mãos a vasa imunda das podridões humanas, acudindo à agonia de um, ao estertor de outro, subjugando um delirante, animando um tímido, levando o cordial a um abatido, com o termômetro de axila em axila, a tomar a temperatura de corpos queimados pela febre, túmidos de inchaços ou descarnados pela tuberculose.
Era aquela estrumeira humana que fazia vicejar a flor sempre bela da ciência; era aquela infecção que preparava a saúde. Aqueles corpos eram como compêndios nos quais, logo que esmoreciam, mestres e alunos, abrindo-os a golpes, estudavam na morte os segredos da vida misteriosa. Dali devia ele levar o diploma desejado. Era daquela imensa alcaçova, espécie de presídio da Morte, que ele devia tirar o pão, o agasalho, o conforto, a riqueza e a glória de amanhã...
Mas o edifício da Escola apareceu e Paulo, pensando na irmã, receoso de ver um dos colegas, sem lembrar-se de que era domingo, baixou os olhos e só descansou quando o bonde deu volta para o Largo do Moura.
Um brado chamou-lhe a atenção: partira de um beco, em cujo fundo, entaipado por uma muralha, abria-se o largo portão do Arsenal de Guerra. A esquerda, ficava o velho quartel, com o muro baixo, apuado de baionetas simbólicas, entre as quais, de espaço a espaço, desta cavamse pequenos canhões e, em frente, todo de branco mármore, avultava o sacelo fúnebre do Necrotério.
Os passageiros descobriram-se respeitosamente. Uma velha mulher, baixando a cabeça, fez o sinal-da-cruz; ele lançou os olhos à capelinha e viu um cadáver ocupando uma das primeiras mesas.
Por uma rápida associação de idéias lembrou-se da Roda e já o bonde ia longe, através do largo, por onde andavam lavadeiras, quando ele se voltou para lançar um derradeiro olhar à capelinha.
A Roda... e foi pensando nos dois abrigos que se ligam pela mesma misericórdia - um recolhendo os inocentes anônimos, repulsas da miséria e do crime, outro dando guarida aos mortos desprezados ou desconhecidos. São como duas conchas de uma balança - em uma a creche, em outra o esquife - e a mesma Senhora da Piedade, que velava à cabeceira dos que não haviam contemplado a luz da última hora, que haviam expirado em devesas escuras, vasquejando prostrados pelo homicida ou no fundo das águas, presidia o dormitório dos desamparados, acalentando os pequenitos, cujos vagidos não acham o carinho do colo e dos lábios maternais.
Tão preocupado seguia que só levantou os olhos na Praça 15 de Novembro, diante da estátua de Osório que, em atitude enérgica, contendo o ginete, parece esperar os esquadrões gaúchos para arremeter com a fúria que o tornou lendário.
Em várias igrejas os sinos tintinabulavam e um carrilhão ressoava uma ária profana como se os próprios templos, esquecidos do misticismo, despegados do mistério, viessem, com desplante, confabular na orgia humana, repetindo, com as vozes dos seus campanários, os estribilhos devassos.
Desceu diante do Carceller e esteve um momento irresoluto, a olhar os que passavam - uns de volta do mercado, com as compras, outros a caminho das igrejas em formigar rumoroso.
Para onde iria? Pôs-se a olhar as casas, os bondes que chegavam, os vendedores de frutas que arranjavam as suas cestas. De repente sentiu-se agarrado - voltou-se. Era o Bruno.
- Que é isto?! - O "decadente" estava amarfanhado, d'olhos vermelhos e esmorecidos; um hálito quente, nidoroso, saía-lhe da boca seca. O colarinho estava todo esmagado, em gelhas, a gravata espocava. - Ah! meu amigo, que noite! Vamos tomar alguma coisa. - E, passando-lhe um braço pelas costas, lá o foi levando para o botequim. Sentou-se, tirou o chapéu. Estava com os cabelos empastados como se houvesse saído dum banho. - Dois cognacs! - pediu e, inclinando-se, com os cotovelos na mesa, exclamou de novo: Que noite, Paulo!
- Mas donde vem você?
- Imagina! Ontem, depois que saí da revisão, bati para os Fenianos, com o Brites.
- Com o Brites?
- Então? Ah! pensas que o Brites é sempre aquele mazorro que prega a moral de Corate? Fora da filosofia é um pândego de marca. Fizemos o diabo! Não imaginas. Encontrei lá uma rapariga, a Lívia, conheces? uma morena, que tem um sinal no canto da boca... Ora! Uma que esteve com o Bastos!...
- Não conheço.
- Ora, não conheces!...
- Palavra!
- Conheces! - afirmou o Bruno nervoso e, depois de haver virado o cognac, continuou: Dancei com ela e... coisas... tu sabes. - E. com os olhos lampejantes: quase viro aquilo tudo! Se não fosse o Brites... não sei. Tu sabes, eu não sou mole e com alguma coisa na cabeça não vejo nada diante de mim. Pois um sujeito, um tipo, porque me viu com a Lívia, e entendeu que me devia tomar à sua conta. Eu... ahn!
- Brigaste?
- Não, não briguei porque, tu sabes, aparecem sempre pacificadores, os tais da ordem. Mas que mulher, Paulo! Venho de lá agora. Não imaginas!
- E para onde vais?
- Vou descansar um bocado. Hoje tenho folga. E tu?
- Estou de serviço.
- Pois é verdade... - O Bruno, porém, lançou um olhar inteligente ao amigo e, com malícia, sorrindo: Tu também, aqui entre nós, não passaste a noite em oratório... Estás com uma cara!...
Paulo estremeceu e mirou-se ao espelho achando-se pálido, desfigurado.
- Não, passei a noite em casa.
- De quem?
- Na minha.
- Pois sim. Todos vocês são uns santos, eu é que sou o debochado, porque conto o que faço.
Eu devia fazer como vocês - não há como a hipocrisia. O Brites também é um homem sério, filósofo, abstinente... Vai vê-lo nos Fenianos.
- Mas tu nunca me viste em bailes.
- Mas há outras coisas e... piores. Enfim, isso não é da minha conta. E vou-me embora que estou morto. Imagina, depois daquele trabalho estúpido que tivemos ontem, um deboche até às seis... Ainda não preguei olho: também caio agora na cama e vou até às quatro. Adeus.
Chamou o caixeiro, pagou e saíram. Justamente havia um bonde de Riachuelo. O Bruno despediu-se e precipitou-se esbaforido.
De novo só, recaindo na preocupação, Paulo resolveu chegar à polícia para saber alguma coisa:
talvez já estivessem na pista do raptor. Teve uma repentina decisão, partindo imediatamente para a Rua do Ouvidor. A esquina, porém, deteve-se indeciso:
"Não, não podiam ter ainda encontrado o homem. Certamente a diligencia começara de manhã e não era assim tão fácil descobrir um criminoso que, sem dúvida, procurara, com tempo, refúgio seguro para gozar as primícias de um corpo jovem e formoso. Iria à noite saber.
Conversaria com o delegado ou com o próprio chefe." Demais, sentia-se fatigado como se, só então, lhe pesasse o cansaço da grande agitação da véspera: as pernas vergavam-se-lhe, ardiam-lhe os pés e um suor viscoso untava-lhe todo o corpo; tinha uma sensação de febre, pulso agitado, boca ressecada e saburrosa. Saía um bonde da Rua da América, tomou-o.
Até a casa foi numa inércia mole, como adormecido, sem sentir a viagem, pensando vagamente em coisas diversas: ora nos próximos exames, ora na mãe, na irmã ou em Idalina, uma loura a quem fazia versos e que o esperava à janela, com flores e bilhetinhos, tresandando a essências reles. Outra como Violante...
Repentinamente, porém, numa mutação introspectiva, viu o Bruno e o Brites, afogueados, girando como dois convulsionários, agarrados a mulheres. Teve uma súbita irritação, uma revolta surda contra a imaginação desvairada - queria apenas cuidar da irmã e o seu espírito cambiava em ziguezagues, avançando, retrocedendo, ora em sonhos, ora em recordações. Mas já o bonde ia perto da casa. Estavam vizinhos à janela e ele descobriu Felícia conversando com uma mulher gorda que comprava a um quitandeiro. O sangue ferveu-lhe no coração e seus olhos cravaram-se, com furor, na velha negra.
Já no estribo, sem corresponder aos cumprimentos dos vizinhos, fitava-a duramente. Quando ela o viu saltar, despediu-se da mulher, à pressa. Ele amiudou os passos para alcançá-la e, à porta, enquanto ela metia a mão pelo postigo para dar volta à taramela, interpelou-a em voz surda e colérica:
- Já foste bater língua pela vizinhança, Felícia!...
- Eu?! Eu não, nhozinho. Minha boca não se abriu pra falar em Nhá Violante. Eu estava falando dumas costuras.
Entraram e Paulo irrompeu explodindo:
- Pois eu não quero conversas com vizinhos. Não tenho nada com essa corja.
A negra foi-se resmungando e Dona Júlia, que ouvira a voz do filho, apareceu arrastando os passos, ansiosa e abatida como se saísse de longa enfermidade; e perguntou:
- Então, Paulo?
- Falei ao Mamede.
- E a polícia?
- Qual polícia! - Atirou o chapéu para cima da mesa e sentou-se. Olhe, estou aqui que não posso comigo, já não tenho pernas e a senhora... nem como coisa. Eu posso morrer porque mamãe, apesar de tudo, ainda há de ter mais pena de Violante. É assim mesmo; - e amuou.
- Mas que é isso agora? Que te fiz eu? Pois então não hei de pensar nela? - Já os seus olhos iam-se alagando e, dirigindo-se a Deus, a pobre velha pôs-se a dizer: Eu não mereço isto, meu Senhor! não mereço. Se eu havia de sofrer assim, por que não me levastes em lugar dele? Que fico fazendo no mundo, se os meus próprios filhos não me estimam? - Pôs-se de pé, grossas lágrimas rolaram-lhe dos olhos.
- Eu não mereço isto!
Paulo teve um movimento frenético e, sem dizer palavra, encaminhou-se para o quarto. Dona Júlia, prostrada, ficou soluçando na sala, baixinho, para não incomodá-lo. Ele, porém, reaparecendo em mangas de camisa, esbravejou:
- Que não se podia ter um segredo naquela casa que a senhora Dona Felícia não fosse logo bater boca na vizinhança. Vira-a de prosa com a tal Dona Lucinda, a maior enredadeira do quarteirão, com certeza a contar que Violante saíra, que ele fora à polícia, tudo, enfim.
E, aos berros, para que a negra ouvisse na cozinha:
- Pois fique sabendo que não quero trela com vizinho. Viva cada um em sua casa, com as suas mazelas. Que tem Dona Lucinda com o que se passa aqui? É melhor que cuide do filho, um vagabundo, que vive com a molecagem, a assaltar os bondes e a apedrejar quintais. Súcia!
Dona Júlia, levantando a cabeça, exclamou:
- E eu não quero ficar mais nesta casa, vou procurar um canto por aí. Aqui não fico mais. Não estou para essa gente vir perguntar por Violante. Eu sei... Se não a virem hoje começam logo com recadinhos: Que tem? por que não aparece? se está doente. Eu já disse à Felícia que respondesse a todos - que ela foi passar uns dias no Engenho Novo, com o padrinho. Só assim...
- Pelo que ouço, a senhora entende que somos obrigados a dar satisfação da nossa vida à vizinhança... Por quê? Não faltava mais nada! Não é por meu gosto que a senhora conversa com essa gente. Quando nos mudamos para aqui eu lhe disse, lembre-se bem: nada de relações com vizinhos, vamos viver independentes: "Bom dia, Boa noite" e mais nada, senão começam os presentinhos, as visitas e os empréstimos de coisas e, um dia, metem-se-nos em casa. Dito e feito. Eu não posso andar à minha vontade porque, volta e meia, está aí gente à porta pedindo uma coisa e outra.
- Mas que queres, Paulo? eu nem à janela chego. Quem fez amizade por aí foi Violante; eu estou sempre metida aqui dentro, cuidando do meu serviço. Elas vêm aí, que hei de fazer?
- Pensam que não sei que me chamam de orgulhoso? Pois sou, sou mesmo! Não quero saber de amizades, vivo muito bem só. Está aí em que deram as amizades. Quer mudar-se?
- Decerto. Não tenho cara para ficar aqui.
- Nem eu. Mas eu sei que, onde quer que estejamos, há de ser sempre a mesma coisa:
conversas, visitas...
- Comigo!? - exclamou a velha espalmando a mão no peito.
- Não, comigo...
- Estás enganado. Eu, tenho o meu descanso, pouco me importo com o mundo.
Houve um silêncio. Paulo passeava nervosamente pela sala, arrepelando os cabelos, arrependido de haver magoado a boa velha, que ainda os soluços agitavam como os últimos relâmpagos de uma tormenta. De repente, estacando, perguntou:
- A senhora já almoçou?
- Eu tenho lá fome...! Tomei uma xícara de café.
Calaram-se.
Comovido, apuado pelo remorso, Paulo sentou-se perto dela, e meigo, adormecendo a cólera que o agitara, pôs-se a falar da mudança:
"Que não podiam continuar naquela casa, mesmo por ela, que havia de estar constantemente a lembrar-se de Violante."
- Ah! meu filho, ainda me parece um sonho. Há pouco estava lá dentro na sala de jantar quando ouvi rumor no quarto dela. E estremeci toda, fiquei fria, gelada e deu-me uma pancada no coração, tão forte que pensei que ia morrer. Fui devagarinho e espiei. - Suspirou e calou-se, dizendo depois duma pausa angustiosa: Como é que uma filha faz uma coisa assim? E não há lei?! Pois então um malvado seduz uma moça, atira-a na desgraça e fica muito bem sem um castigo? - Elevou então os olhos e, de mãos postas, erguendo-se tremulamente, tomou Deus por juiz: Ah! mas quem faz paga... Deus é grande! Deus não dorme. Só se eu não a criei nestes peitos com o meu sangue.
Paulo passeava sem dizer palavra, enternecido com aquelas doloridas queixas.
Um sino dobrou lentamente e Dona Júlia, agarrando-se aos braços da cadeira, foi derreando o corpo, ajoelhou-se e ficou a rezar. Nova badalada rolou e um galo cantou no fundo do quintal.
Era a hora maior do sol, a hora do esplendor máximo. Como que a natureza quedava em humilhação estática, adorando silenciosamente o grande astro a pino, na glória de toda a sua magnitude, dominando d'alto a terra que se prostrava como uma fêmea que se agacha sentindo o peso do macho sobre o seu corpo vibrante de emoção lúbrica.
O silêncio dilatava-se abafando todos os rumores como se a vida fosse, aos poucos, parando -
só um piano, na vizinhança, zaragalhava em notas fanhas, que discordavam do grande e solene arroubo daquele luminoso espasmo.
Paulo pisava de leve como para não interromper a oração da mãe, mas bateram à porta apressadamente. Dona Júlia ergueu-se e saiu em pontas de pés, ele meteu-se no quarto, revoltado e, quando Felícia acudiu para ver quem era, entreabriu a porta e ficou à escuta, retorcendo nervosamente o buço. Era um pequeno da vizinhança que pedia o jornal emprestado.
Felícia fechou a janela enquanto ia buscar a folha e, quando tornou, disse amuadamente: "que tinha ido passar uns dias fora, no Engenho Novo, com o padrinho."
Tratava-se de Violante - era a curiosidade da vizinhança que começava a aguçar-se. Paulo estremeceu de furor e pôs-se a resmungar contra a corja e, quando a negra fechou a janela, rompeu do quarto. colérico:
- Quem é?
- É o filho da viúva, nhonhô.
- Que viúva?
- A mãe de Dona Isaura, aquela mocinha bexigosa.
- Veio para indagar?...
- Não, senhor; veio pedir o jornal. Perguntou por Nhá Violante, mas eu respondi como sinhá mandou: Que ela tinha ido passar uns dias no Engenho Novo, com o padrinho.
E foi-se pelo corredor, como a fugir à fúria do estudante que a seguia, sempre a invectivar aquela súcia de bisbilhoteiros. Dona Júlia, na sala de jantar, encostada à mesa, esperava a negra; vendo, porém, o filho não teve ânimo de fazer a pergunta que já lhe estava nos lábios e pôs-se a disfarçar, arranjando uns embrulhos. Paulo adiantou-se:
- Vê a senhora? Já querem saber. Até parece que essa gente fareja. Só porque Violante não apareceu hoje já estão todos de orelha em pé. É um horror! Às vezes tenho ímpeto de responder com uma grosseria. Pois não! é demais! Não vou à casa de ninguém, vivo aqui metido, nem à janela chego e estou sempre com a casa cheia. A amizade é um pretexto, o que eles querem é ver como vivemos, que comemos, como nos arranjamos e lá se vai a nossa vida comentada, discutida de casa em casa como um trapo filado e estraçalhado por uma matilha de cães. Não quero saber de relações, dispenso-as. Amanhã, bem cedo, ponho-me na rua procurando casa e hei de achar, seja onde for.
Dona Júlia concordou passivamente:
- É mesmo.
- Quando mamãe está doente nem aqui aparecem. Muito bons para os pagodes e para a maledicência. Não quero! Se não fosse o meu trabalho no jornal eu procurava casa bem longe, num arrabalde, para livrar-me dos tais conhecidos. Infelizmente não posso: estou preso à cidade.
- Mas há tantas ruas...
Ele não respondeu. De repente, chegando à porta que levava à cozinha, chamou a negra.
Felícia apareceu, de mangas arregaçadas, enxugando o braço ao avental.
- Como é o tipo do soldado? perguntou.
A negra baixou os olhos e ficou um momento imóvel, pensativa. como a recordar as feições do homem que ela tantas vezes vira na calçada fronteira, rente ao muro, indo e vindo, com os olhos em Violante. Dona Júlia voltou-se interessada encarando a negra que, por fim titubeou:
- É um moço assim como vosmecê, mais cheio de corpo. - Logo, porém, arrependida, como para o livrar de suspeitas, afirmou: Mas não foi ele não, nhonhô, não foi. Ind'agorinha mesmo, pouco antes de vosmecê chegar, ele passou por aqui, mais outro, e lá foram para os lados da Rua da América.
Paulo deu volta coçando a cabeça e Dona Júlia, perdida aquela esperança, sentou-se à mesa, raspando distraidamente umas migas de pão.
Os dois não achavam palavra. Paulo detinha-se, olhando as paisagens cinzentas do papel da sala, passava os dedos seguindo os contornos dos cães, dos caçadores que, em desabalada corrida, levando os cavalos a toda a rédea, seguiam um grande cervo ramalhudo. Súbito um som fanhoso rompeu o silêncio - era um realejo que soava na rua, perto, tristemente, vagarosamente.
Dona Júlia levantou a cabeça e ficou imóvel, a ouvir. Paulo voltou-se também para a porta, olhou depois para o quarto de Violante. Logo, porém, vendo a mãe debruçar-se sobre a mesa, sacudida por um pranto nervoso, arrojou-se para a sala, revoltado contra aquela música pecadora que despertava tantas saudades, toda a sua infância e a dela...
Ah! se Violante ali estivesse já andaria, como uma criança, a fazer voltas de dança rindo às gargalhadas. Era doida por aquela música fanhosa, chegava até a mandar dinheiro ao homem para que a prolongasse monotonamente e a rir, muitas vezes descalça, cabelos soltos, trincando fatias de pão, volteava, volteava, indo, não raro, buscar Felícia à cozinha, quando não arrastava a mãe que com o seu enorme corpo, as pernas muito inchadas, encolhia-se toda, tomada de riso, a agarrar-se aos móveis para opor-se àquela maluca.
E o realejo gemia. Era o homem que a chamava como se também a quisesse arrancar da miséria. E como que o instrumento sentia, porque se ia tornando cada vez mais triste, mais triste, na rua clara e silente, toda em sol. Faltava o riso de Violante, faltava a sua linda mocidade alegre.
De repente Dona Júlia levantou a cabeça e, passando a mão pelo rosto, desfeito e molhado, disse arrancadamente, em arquejo doloroso:
- Não! Não fico mais aqui... Não posso!
E o realejo tristonho, depois duma pausa, recomeçou a ária melancólica.
6 Resolvido a mudar-se, Paulo saiu na segunda-feira muito cedo, e, no botequim da Central, mexendo lentamente o seu café, recorreu aos anúncios do Jornal, tomando notas em um quarto de papel. Decidiu-se por duas casas "pequenas, pintadas e forradas de novo": uma na Rua dos Inválidos, outra no cais da Glória.
Foi diretamente à primeira. Era uma casinha atarracada, espremida entre dois sobrados arcaicos, sombria e triste. No telhado verdejavam largas folhas de fumo, descaídas sobre as calhas ferrugentas. Abrindo-a a custo, empurrou a porta, pesada e perra, e entrou como em um jazigo. Tresandava a tintas e, nas paredes de uma área interior, cujo ladrilho eslava todo fendido, havia escaras de limo. O quintalejo, atravancado de tábuas e de ripas, com uma puída escada aposta ao muro, tinha um monte de lixo a um canto e tortulhos gordos pelo chão úmido;
e o ar escasso, que circulava por aquelas salas lôbregas, por aquelas alcovas escuras e acanhadas, era frio e tresandava o mofo.
Paulo fez um esgar de enjôo e tomou com a chave ao taverneiro vizinho, alegando falta de cômodos para a sua família. Seguiu a pé para o cais da Glória. Dava gosto andar com o frescor da manhã suave; e a distância era curta.
Foi indo devagar, enlevado na beleza de tão doce manhã, clara e tépida, concorrida de vozes alegres, sons festivos, movimento, todas as expansões da vida feliz. De repente, porém, deu com os olhos em uma mocinha à janela de uma casa. Lembrou-se da irmã e, assomado em súbito furor, estugou os passos, remordendo-se em surda revolta contra o mundo, contra todos e tudo - a irmã, que o forçava àqueles incômodos, que o expunha à irrisão; os vizinhos, os companheiros de trabalho, os colegas, todos... tudo...
Sentia-se mesquinho, como se fosse o único desgraçado no mundo; os próprios mendigos, que esmolavam, sorriam. Só ele andava com a alma denegrida, com o coração pesado, arrastando aquela vergonha.
Falava baixinho, em solilóquio, e, se descobria alguém às janelas, retraía-se, disfarçava procurando cigarros nos bolsos, e seguia; logo adiante, porém, reentrava nos cuidados sombrios.
Quando chegou ao Largo da Lapa, viu um quintanista, o Albergaria, parado à esquina, lendo um jornal, à espera do bonde da Misericórdia. Evitou-o, atravessando o largo, d'olhos altos, com medo de que ele o chamasse.
Foi timidez, a princípio, logo, porém, transformou-se em indignação: carregou o sobrecenho e pôs-se a murmurar: "Mas, afinal, que culpa tenho eu? Sou, então, responsável pelas loucuras de minha irmã? Se eu tivesse um irmão assassino ou ladrão, havia de responder pelos crimes que ele cometesse? não. Então por que me hei de vexar do que fez Violante? Outras têm feito o mesmo e os parentes andam por aí muito calmos, muito empertigados, com mais orgulho, talvez, e até com prestígio. E minha mãe, coitada! que culpa tem ela?" Outras idéias, porém afugentaram a lembrança da irmã perdida. Pôs-se a recordar, com arrependimento, a cena da véspera com a mãe: "Eu sou assim mesmo, mas ela bem sabe que não é por maldade que faço essas coisas. Fico nervoso, irrito-me... É gênio..."
Ia fazendo a volta. Cigarras chirriavam nas copas das árvores do Passeio. Súbito a vista alargou-se, desafrontada e risonha, e o morro da Glória apareceu com a sua igreja branca, entre palmeiras. O casario alvejava à sombra das árvores frondosas, plantadas, talvez, quem sabe!
pelo ermitão da lenda. A beira da praia uma chaminé alta avultava, esguia como um obelisco, e o mar calmo, espelhento, de um brilho quente, tremia ao sol, em arrepios claros como aço em fusão.
À entrada da barra, os fortes eram duas longínquas manchas cinzentas. Villegaignon resplandecia solitária, e cerúleas, como fechando o horizonte, as montanhas, polvilhadas d'ouro, avultavam em muralha imensa com ameias e torres, cintando a cidade. Navios ancorados, negros, com toldos rasos, pareciam dormir, como grandes sáurios; num deles as velas subiam abrindo-se ao sol. Lanchas iam e vinham, cruzando-se que nem formigas, canoas zimbravam na mareta levantada pelas hélices, e uma draga muito alta, isolada, parecia um louva-a-deus colossal.
Voltou-se para a esquerda - lá estava o terraço do Passeio, com gente debruçada à muralha a ver os banhistas na praia, ou nadando a fortes braçadas e, mais longe, um zimbório, a ponta do Arsenal, o Castelo com o seu mosteiro. O que, porém, o deteve em êxtase foi o espetáculo alegre das gaivotas voando, adejando, pousando n'água, balouçando-se maciamente na onda à espera do peixe e, nos postes fincados, restos da antiga ponte, destruída pelas grandes ressacas, outras se iam ajuntando e, vistas de longe, alvas, imóveis, eram como uma vegetação de cogumelos brancos pululando na podridão dos lenhos salitrados.
A casa anunciada ficava ao lado do jardim de um chalé discreto, que se escondia entre folhagem, com mistério; mesmo diante da porta havia uma árvore, com o tronco protegido por um embrechado de madeira. A chave estava na casa contígua, e foi uma mulher loura, gorda, de fisionomia impassível de boneca, quem lha deu depois de o examinar com um olhar fatigado e vazio.
Paulo simpatizou com a casa, vendo-a em tão sossegado recanto, com poucos vizinhos, olhando para o mar vasto e para o céu largo.
Entrou. Estava limpa e era alegre, e se não havia grande claridade, a luz era bastante para a vida e para o trabalho.
Ao fundo, no quintalejo seco, cresciam roseiras anêmicas, e uma esfumada banqueta acompanhava o muro, sobre o qual um sabugueiro do jardim vizinho derramava a ramaria ramilhetada de florinhas miúdas.
Paulo distribuiu os aposentos - a sua alcova na sala de visitas; a da sala de jantar para a mãe;
um pequeno quarto com janela sobre a área, para Felícia, e ainda sobrava um, amplo e claro, com um papel novo de ramagens. Deteve-se diante dele a olhar, meneando com a cabeça desconsoladamente.
Pensando na irmã, lembrou-se de que não encontrara nos jornais a mais ligeira referência ao caso - lera-os todos: nem palavra. Era evidente a indiferença do delegado. Se ele houvesse tomado uma nota ligeira, a reportagem, que tudo esmerilha, não a teria perdido, e bordaria o drama com os recamos costumeiros e muita sensualidade, apelando, em nome da moral ofendida, para a lei que ressalva a honra e obriga os devassos a repararem as faltas.
Revoltou-se: "Vão ver que o miserável conhece o canalha... Talvez até o proteja... Súcia! É assim mesmo." E, no seu ódio, desejava que o escândalo houvesse irrompido, alastrando o noticiário com pormenores sitis, informes íntimos: o retrato de Violante, o de Dona Júlia, o dele e elogios, muito literários, à honestidade da família exemplar, referências ao pai, um herói da Pátria e a narração da sua trabalhosa e angustiada noite, por chuva e vento, à procura da seduzida.
"Qual! tivesse eu fortuna... E assim mesmo."
Por fim, nervoso, fincando a bengala no soalho, voltou-se e foi examinar a cozinha. Achou-a limpa, com um fogão novo, pia forrada de zinco, e prateleiras.
"Ora! que se arranje. Eu é que não hei de estar a amofinar-me por causa dela. Não faltava mais nada..." E sentiu-se aliviado com o silêncio dos jornais. "Talvez que o delegado houvesse ocultado a notícia por delicadeza, em atenção a ser ele da imprensa... Caminhou para a sala, Vagaroso, pensativo, passando a mão pelas paredes. Esteve um momento indeciso, batendo de leve com a ponta do pé, a pensar na mudança. Súbito, com egoísmo, exclamou: "Melhor!
viveremos mais tranqüilos."
Saiu, fechou a porta e ia bater à casa da vizinha, quando viu vir um comboio de bondes. Sentiu inexplicável vexame achando-se ali sozinho, diante daquela multidão que descia, e para que os passageiros não o vissem de face, deu as costas à rua e ficou-se a contemplar a casa, a olhar os escritos até que os bondes passaram.
Bateu à porta da vizinha e a loura, reaparecendo, disse-lhe, numa aravia guaiada - "que a casa estivera alugada por cem mil-réis, mas a senhoria, por causa das obras que fizera, pedia então cento e vinte". Agradeceu as informações e seguiu.
Numa casa da esquina, com o cavalete junto à janela, um homem desenhava o retrato de uma criança, e Paulo, devassando, de relance, o interior, viu, pelas paredes, esboços a crayon, pequenas telas de gênero e uma paisagem.
A senhoria morava na Rua do Lavradio. Caminhou com pressa, receoso de que alguém o precedesse e, como o seu alfaiate prestava-se e dar-lhe a fiança, tratou a casa e, tornando à Rua Senador Pompeu, já levava no bolso o recibo das andorinhas que, no dia seguinte, de manhã, deviam fazer a mudança.
Foi com apreensiva tristeza que Dona Júlia ouviu a descrição minuciosa da nova residência, no cais da Glória, tão longe! Ela, que tanto insistira pela mudança, sentia-se, então, agarrada à casa. Parecia-lhe que se a deixasse nunca mais tornaria a ver a filha e, não sem timidez, contando com a revolta do filho, perguntou:
- E se Violante voltar... Como há de ser?
Paulo encarou-a mudo, brincando com as chaves e, como se não houvesse entendido a pergunta, repetiu em tom irônico:
- Se Violante voltar...
- Sim, confirmou a velha.
Houve um silêncio. Paulo por fim, encolhendo os ombros, esticando o beiço, sorriu desdenhoso:
- Mamãe ainda espera que Violante volte...
- Como não, meu filho? Onde há de ela ficar?
- Ora, mamãe. Cravando, então, os olhos na velha, disse resolutamente: Quem tem boca vai a Roma. Não saísse. Nós é que não podemos ficar aqui perseguidos pela crítica implacável dessa vizinhança bisbilhoteira até que a senhora Dona Violante se lembre de voltar.
Dona Júlia sussurrou:
- Eu tenho medo que ela chegue e encontre a casa fechada. É uma criança, não conhece a cidade. Que será dela então? Tu não pensas nisso?
- Eu penso, mas é em sair daqui quanto antes. Violante só voltará para casa, se voltar, trazida pela polícia ou pelo Mamede. Sozinha?! Vá esperando!
- Tu não queres que eu diga aos vizinhos...
- A senhora está louca? Para quê? Para rirem de nós?
- Então não sei como há de ser.
Calaram-se recolhidos em pensamentos opostos: Dona Júlia a imaginar a volta da filha: ela ali, à porta da casa fechada, a olhar o escrito, chorando, sem saber o destino dos seus; ele a fazer planos de vida calma naquela casa tranqüila.
Bateram, voltaram-se ambos e Dona Júlia chamou Felícia para ver quem era. A negra tornou em pontas de pés, cochichando: "É seu Fábio." Os dois levantaram-se à pressa caminhando para a sala, porque a negra espiara apenas, timidamente, pelas frestas da persiana, deixando o homem na rua, ao sol, com receio de que o estudante se revoltasse contra ela. Dona Júlia abriu a porta e um homenzarrão entrou limpando o suor que lhe escorria do rosto abrasado.
Alto e robusto, espadaúdo, com uma densa barba grisalha que lhe dava à fisionomia o ar expressivo de energia e doçura com que a Arte nos representa os patriarcas bíblicos, tinha, em contraste com o todo másculo, uma voz inesperadamente branda que surpreendia, saindo daquele peito forte, através da espessidão das barbas veneráveis. Logo que entrou, com o chapéu ainda à cabeça, um largo chapéu d'abas moles, o guarda-chuva debaixo do braço, estendeu as mãos ambas a Dona Júlia e a Paulo e, de olhos nela, perguntou, depois dum aceno da cabeça, franzindo a fronte: "Então que foi isso?" Dona Júlia, desabando os braços, encolhendo os ombros, baixou a cabeça e o velho, deixando o chapéu sobre a mesa, sentou-se declarando - "que só naquela manhã recebera a carta que ela lhe escrevera". E perguntou: "Mas quando foi?"
- No sábado, à noite, compadre.
O velho meneou com a cabeça; e, voltando-se para o estudante, indagou:
- Já foste à polícia?
- Na mesma noite.
- Então?
- Ora! o senhor bem sabe como aquilo é. Prometeram fazer tudo e ficou nisso...
- E não voltaste?
- Para quê?
- Como para quê? Que diabo, rapaz! Hás de ser sempre o mesmo descansado? Então é assim?
A gente move-se, homem de Deus; e, se tu és o primeiro a mostrar indiferença pela causa, como queres que os estranhos se interessem por ela?
Dona Júlia, sentindo-se protegida, ousou falar.
- Eu disse isto mesmo, compadre.
- Aí vem a senhora... Eu fiz tudo: fui à polícia na mesma noite, com uma tempestade medonha, dei todas as informações ao delegado, não tenho culpa de que as nossas autoridades sejam relaxadas. Em Londres o homem já estaria preso.
- Qual Londres! - bramiu o velho, atirando os braços.
- Hei de ficar plantado na polícia dia e noite? Isto não! Estou com os exames à porta e não quero fazer figura de idiota.
- Filho, eu bem te conheço, - tornou o velho com calma; - deixa-te de histórias. Vens agora com exames, porque não tem convém andar por aí uns dias trabalhando. - Cruzou os braços: Mas então, queres tua irmã perdida? Não te vexas? Não tens pena de tua mãe? Eu sei: és um excelente rapaz enquanto não te incomodam. Meu amigo, quem quer vai. E por essas e outras que há por aí tanta miséria. A polícia auxilia, mas é preciso que a gente não a deixe, mesmo porque ela tem mais em que cuidar. Por que não dás um pulo até lá? Vai saber, anda. - Paulo fez um gesto de enfado e o velho insistiu: Tem paciência, é tua irmã, é teu sangue. E a vergonha não ficará só com ela. És o homem da casa. Vai, anda! não percas tempo. E agarra-te com o chefe, com os delegados.
- Pois sim: há de ser a mesma coisa: que vai mandar ver...
- Não há tal: os delegados atendem, estão lá para isso. Estás fatigado, compreendo, mas tem paciência. Dá um pulo à polícia, vê se podes falar ao chefe, conta-lhe tudo e estou certo de que ele não se há de limitar a dizer - que vai mandar ver. Deixa-te de histórias, eu também já andei por lá, sei como aquilo é. Move-te, move-te.
- Tem paciência, meu filho! - implorou a velha. Paulo levantou-se amuado:
- Eu também sou de carne.
- Também eu, - retorquiu Fábio em tom ríspido - e tenho cinqüenta e oito feitos, entretanto, meu rapaz, não sei que é descanso. O interesse é de todos vocês.
Paulo tomou o chapéu e a bengala e, arrebatadamente, sem mesmo falar ao velho, que enxugava a fronte suada, abriu a porta e saiu resmungando.
- Tem paciência, - insistiu Fábio - é assim: quem quer faz assim.
A porta, impelida pelo vento, abria-se devagarinho, rinchando, e Dona Júlia levantou-se para fechá-la. Sós, o velho Fábio externou-se francamente:
- Olhe, comadre, quer saber? Parecia que eu estava adivinhando isto; mais de uma vez, lá em casa, eu disse à Marta: "Aquilo não vai bem. Aquela menina não tem modos, não sai da janela, dando trela a quanto pelintra vê." Agora, que o caso está passado, eu digo a verdade: Marta não era lá muito pelas conversas de Violante com Cristina. Não dava a perceber para que a senhora não ficasse magoada, mas gostar, não gostava. E eu cheguei a falar, lembre-se bem, no dia dos anos do Tula. Era com todos, comadre... até com homens casados.
Dona Júlia suspirou, afirmando:
- Sim, o compadre falou... Mas que havia eu de fazer?
- Que havia de fazer?! Pois então a comadre não é mãe? Olhe, a Cristina é noiva, mas vá lá saber se eu a deixo um instante só com o noivo... E é um moço sério. Não, senhora; há sempre gente na sala com eles.
E, curvando-se, sentenciou com lentidão:
- Minha comadre - a ocasião faz o ladrão. Isso de moças solteiras é mais melindroso do que parece. - Engrossou a voz: E Violante? reunia aqui uma súcia de frangotes; era conversa com um, era risada com outro, afastando os moços sérios que a estimavam. De um sei eu que era doido por ela.
- O Fernando, da botica.
- Sim, senhora, o Fernando. Está começando a vida, mas é um rapaz de futuro. Ele disse-me, lastimando, que sempre que passava por sua casa via Violante à janela e rapazes batendo a calçada.
Cruzou os braços, perguntando com ar de nojo:
- Isso era decente? diga! era decente?
- Eu não sei! - suspirou a boa senhora.
- O rapaz recuou, porque, afinal, ele não a queria por passatempo, e a comadre compreende que, quando um homem pensa seriamente em casar, trata de estudar a moça, indaga, informase... E Violante? Não se zangue comigo, mas a senhora foi culpada em parte, isso foi. Amor não é isso. Eu quero muito à Cristina, mas nem por isso ando a passar-lhe a mão pela cabeça -
quando é preciso, falo, grito, bato o pé e ninguém me contraria. Não, que não admito. Não vai casar? então...! Ainda depois de casada, se for preciso, lá irei dizer-lhe as verdades, mesmo diante do marido, porque o que eu quero é vê-la feliz. Mas sua filha, se a gente queria dar-lhe um conselho, saltava logo com duas pedras na mão. Outro - esse rapaz.
A velha levantou os olhos assombrados:
- Sim senhora, o Paulo. Excelente menino, mas um pouco atrevido... e parece que não tem ainda o juízo assente: são dez, vinte idéias por dia; quer ser tudo, não é nada. Em quantas academias tem ele andado? Já quis ser engenheiro, deixou; pensou em meter-se na marinha, andou a estudar para guarda-livros, e está agora às voltas com a medicina. Esse há de ser médico quando eu for frade. Não é assim, tenha paciência. Não é assim.
- Mas ele estuda, compadre; eu vejo. Fica, às vezes, até de madrugada em cima dos livros.
- Que tem isso? Estuda e é inteligente, mas à primeira dificuldade, recua desanimado. Não, senhora - é para diante! Quem quer ser alguma coisa na vida queima as pestanas e firma-se numa idéia: é isto porque é! Ele não - é só orgulho! - e encheu as bochechas, bufando. -
Ninguém tem o direito de lhe dizer uma palavra que logo se não espinhe. Se um professor faz uma observação, fica de trombas, não volta à escola, e há de viver assim: daqui para ali, sem firmar-se em uma carreira. Também já não é uma criança; com vinte anos há por aí muito pai de família.
- E ele, então, não trabalha, compadre?
- Trabalha, trabalha... mas é um mês aqui, um mês ali. A propósito: ainda está no jornal?
- Ainda.
- Pois olhe: admira. Que melhor emprego queria ele que o de amanuense na Secretaria do Interior? Não fez concurso? Não foi classificado?
- Diz que não tem jeito para emprego público.
- Ah! não tem jeito?! O que ele não tem é cabeça, como a irmã. Agora mesmo - no primeiro momento fez, aconteceu, andou por aí com chuva, mas já desanimou, nem se preocupa mais com o caso. Não é assim, comadre; não é assim. Quem quer alguma coisa, trabalha; sem persistência nada se faz; a senhora bem sabe, porque tem lutado para viver. Mas é preciso ter o juízo assente. Com a menina foi o mesmo: vontades, vontades, e aí está em que deram. Então, Violante não podia cuidar um pouco da casa, arrumar o seu quarto? coser a sua roupa? Eu nunca vim aqui que a encontrasse trabalhando - ou estava dormindo ou lendo, recostada na cadeira de balanço, como uma princesa. Nem os ticos vivem assim, comadre; nem os que têm...
Enfim, não quero amofíná-la mais; vamos ver se ainda se pode fazer alguma coisa. É no que dão as condescendências. Quem quer belas flores e belos frutos poda as demasias da planta. É assim.
Levantou-se.
- Não quer uma xícara de café, compadre?
- Nada, obrigado.
Apanhou o chapéu e o guarda-chuva.
- E a comadre não desconfia de algum dos tais tipos?
- Eu nem os conheço; vivia sempre lá para dentro, metida comigo, no meu trabalho.
- E ela, aqui esparrimada à janela, de prosa.
Deu d'ombros, afundando o chapéu na cabeça; e, d'olhos altos:
- Mas que loucura da rapariga!
E ficou um momento a olhar o teto, meneando com a cabeça:
- Bem, adeus, comadre. Pois eu vou por aí, e se conseguir saber alguma coisa, dou um pulo até cá.
- Nós vamos mudar-nos.
- Quando?
- Amanhã.
- Para onde?
- Para o cais da Glória. Paulo achou lá uma casinha. O senhor compreende: não podemos ficar aqui - vem um, vem outro, perguntam...A gente tem vergonha.
- É natural, é. Pois é isso: faça o rapaz mover-se.
Caminhou até a porta e, voltando-se:
- Olhe, nós lá estamos... sem cerimônia. Para os de casa, como a comadre, há sempre lugar.
Sem cerimônia.
- Obrigada, compadre; eu sei.
O velho escancarou a porta e, já na rua, repetiu:
- Se conseguir saber alguma coisa dou um pulo até cá.
- Será favor.
- Adeus. E não se amofine.
- Lembranças a todos.
- Obrigado.
E foi-se pigarreando.
7 Com o rosto encostado à persiana, Dona Júlia deixou-se estar esquecida, o olhar perdido, pensando nas palavras do velho Fábio que, só então, depois de vinte e cinco anos de amizade, porque o marido levara, como um dote, aquele coração, cuja bondade vivia a apregoar - emitia a sua opinião sincera sobre "os pequenos" que, a bem dizer, lhe haviam crescido ao colo. Não estimava, então, a afilhada, tinha-a em má conta, achando-a indigna de conversar com Cristina, a inocente e triste Cristina, sempre chorosa e pressaga, com idéias de convento e de morte. E
por que? que havia feito Violante para que assim a julgassem? Ah! infeliz de quem se vê ao desamparo! Se o marido fosse vivo o compadre não lhe diria, com certeza, aquelas duras palavras sobre os filhos; não, não lhas diria.
Ah! o bom tempo da ventura - ela moça e contente, caminhando na vida sem cuidado, à sombra do esposo, com os dois filhinhos à frente, de mãos dadas, rindo, gárrulos, e Fábio a gabá-los, achando-os lindos, carregando-os de brinquedos, empanturrando-os de doces. levando-os aos cavalinhos com a Cristina, sempre triste, doentinha, chorosa. Ah! o bom tempo!
Então era ele quem pedia as crianças, quem as levava para a sua casinha, não fazendo distinção entre elas e a filha, sempre abaetada, a tossir, com o corpinho abotoado em furúnculos. Mas com a morte do esposo todas as boas amizades haviam desertado, o próprio Fábio parecia querer abandoná-la justamente no momento mais doloroso. Pobre dela! Não houvesse ele arranjado a vida conseguindo comprar a chácara do Engenho Novo, que ele não era assim antes, isso não era.
Repentinamente, numa transição, como arrependida daqueles injustos pensamentos, suspirou:
Pobre compadre! Sim, lá ia ele, velho, bater a cidade por causa de Violante. Ele não falava por mal, seu gênio era aquele: dizia tudo que lhe vinha à boca, com uma franqueza impetuosa e rude, como se estivesse com raiva, mas lá por dentro o coração estava a chorar e, não raro, nos momentos em que mais furioso se mostrava, enchiam-se-lhe os olhos d'água e, para que o não julgassem um fraco, vociferava ainda mais, gesticulando desatinadamente. Já no tempo do marido era aquilo - a mesma aspereza, os mesmos ímpetos, dominando com a superioridade de um irmão mais velho e o outro não se zangava, ouvia calado, dizendo sempre: "O Fábio tem razão... O Fábio tem razão." Na moléstia do Paulo, quando a febre o prostrou entre a vida e a morte, desenganado pelos médicos, quem velara à sua cabeceira com maior carinho do que ele? E onde fora seu filho ganhar forças novas em convalescença tranqüila e animada senão em casa dele? Não, pobre compadre! Deixou a janela e, lentamente, foi caminhando para a sala de jantar. Felícia dobrava a toalha da mesa quando ela, encostando-se a uma cadeira, perguntou:
- Tu vais comigo, Felícia?
- Para onde? Para onde é que sinhá vai?
- Paulo encontrou uma casa no cais da Glória. Vamos para lá.
- Eh! eh! - fez a negra. - Tão longe!
- Qual longe! Então é longe?
A negra ficou algum tempo imóvel, a pensar, com um sorriso estampado no rosto macilento; por fim disse, resignada e submissa:
- Sinhá indo, que é que eu hei de fazer? - Depois, baixando o olhar, a passar a mão pela toalha dobrada, murmurou: Aquele mar ali perto é que é...
- Que tem o mar?
A negra levou, de repente, as mãos juntas aos olhos e pôs-se a chorar baixinho, pensando no filho.
- Deixa disso, criatura, está com Deus... mais feliz do que nós, já não sofre. - E, afagando-a, a boa senhora, cujos olhos se encheram d'água, procurou distraí-la: Olha, vamos aproveitar o tempo, arrumando alguma coisa. - De novo as palavras do velho Fábio ressoaram-lhe no coração dolorido: "Indigna de estar ao lado de Cristina..." Um sorriso triste aflorou-lhe aos lábios e, arrastadamente, caminhou para o quarto. Súbito, porém, detendo-se, agarrou a cabeça a mãos ambas, exclamando: "Pois, meu Deus! é possível? É possível mesmo que eu fique sem minha filha?!"
De vez em quando a lembrança de Violante passava-lhe assim pelo espírito, como um relâmpago, e ela quedava inerte no meio da casa, tolhida, esquecida de tudo, a olhar sem ver, em verdadeira inibição. "Pois é possível que ela não volte?" Meneando com a cabeça, entrou no quarto da filha, deserto e triste como o seu coração.
Até à noitinha Dona Júlia e a negra andaram em arrumação: empalhando a louça, entrouxando a roupa, retirando quadros das paredes e a casa, desnudando-se, tornava-se ainda mais triste, com um aspecto lúgubre de miséria: os móveis em desordem, montes de coisas pelos cantos, rolos de colchões, cartas esparsas, velhas fitas empoeiradas, retalhos, folhagens secas. O gato, sobressaltado, rondava a casa miando, de canto em canto, sobre um móvel, sobre outro, tudo farejando com desconfiança.
Felícia saía ao quintal para espanar os quadros, ia e vinha opondo-se a que a ama carregasse pesos. "Que ela não podia; deixasse." E, ligeira, ia adiantando o serviço. Dona Júlia, d'olhos no chão, recolhia, catava pequeninas coisas - um laço de fita, uma madeixa ruça, um cromo: eram lembranças da filha. Pobre Violante! Se ela ali estivesse, que alegria!
Com o trabalho não deram pelo cerrar da noite e foi Felícia quem disse:
- Parece que nhonhô não vem hoje jantar...
- É verdade! - exclamou a velha surpreendida, com os olhos no relógio.
Eram quase sete horas; escurecia; já andavam a acender os lampiões. Impressionada ficou algum tempo a olhar os ponteiros e foi ainda a negra quem interrompeu o silêncio, acendendo o gás:
- Quem sabe se ele não encontrou Nhá Violante, sinhá?
- Hem?!
- Ele que não vem até agora...
- É!... E o compadre foi também. Quem sabe se andam juntos?! Ah meu Deus!... Se eles entrassem agora com ela? Mas qual! não tenho esperança. Andam por aí quebrando a cabeça, coitados! Se ela pudesse de vir já tinha vindo. Enfim... há de ser o que Deus quiser.
- A Deus nada impossível, minh'ama; - consolou a negra levando, a grandes vassouradas, um monte de papéis para a cozinha. - Eu não sei, mas meu coração me diz que Nhá Violante ainda volta... minh'ama há de ver.
- Deus te ouça.
- Onde é que ela há de ficar, uma moça como ela? Minh'ama há de ver, meu coração não falha.
Foi num canto da mesa que Dona Júlia, a contragosto, tomou a sopa e mastigou uma febra de carne, suspirando, com o ouvido atento aos menores ruídos. Gente que passava na rua, falando, fazia com que ela voltasse a cabeça ansiosa. Foi várias vezes à janela, entreabriu-a e ficou à espreita, alongando os olhos pela rua deserta. Parecia, às vezes, distinguir o filho além!
Um casal, voltando a esquina, sobressaltou-lhe o coração; cravou os olhos... Não, não eram eles. As lâmpadas da Central espalhavam uma claridade de luar na rua tranqüila. Dançavam na vizinhança, vozes marcavam uma quadrilha, vibravam gargalhadas. Ah! Violante...
Tamborinando no tabuleiro, rompeu, cantando, um vendedor de roletes; apareceu na esquina a chamar a freguesia e a baquetar com força. Os trens rodavam e um bonde, quase vazio, passou vagaroso.
Onde andaria o Paulo? Iam as horas correndo: oito, nove, dez. A venda da esquina fechou-se e a claridade lívida da calçada sumiu-se. De quando em quando ela ia espreitar pelas frestas da janela, aflita. Que terá havido? Que terá acontecido, meu Deus! Eram onze e meia quando bateram à porta.
- Quem é?
- Abra!
Com mais pressa do que lhe permitia o corpo levantou-se da cadeira e precipitou-se; antes, porém, de abrir espiou pelas rexas da persiana e reconheceu o filho. Abriu. Paulo entrou impetuosamente, num arremesso de empurrão. A pobre velha, alarmada, perguntou, querendo ampará-lo:
- Que é isto, meu filho?
Vendo-o, porém, à luz, demudado, oscilando, d'olhos muito lânguidos, como amortecidos de sono, ficou pregada ao soalho contemplando-o, entre assombro e piedade. Paulo bateu com o chapéu sobre a mesa, deixou cair a bengala e, sem dizer palavra, encaminhou-se para o quarto, detendo-se à porta, hesitante. Repentinamente voltou-se e, com a voz pastosa, a língua frouxa, tropegou:
- Por enquanto nada. Andei com o Mamede... Nada.
Vacilando, levou a mão ao umbral da porta, curvado, com a cabeça pendida e ficou a arquejar surdamente, em angústia, com o cabelo escorrido à fronte, as pernas abertas. Dona Júlia adiantou-se, ia amparar-lhe a cabeça quando ele a repeliu, falando balofo:
- Deixe, mamãe... Deixe.
- Mas que é isto, meu filho? Pois tu?
- Que é? Já vem a senhora com os conselhos. Violante podia fazer tudo e... Pois eu não estou disposto a ouvir sermões, sabe? Chega, estou farto. - Revoltado, sem poder levantar a cabeça, que bombeava, continuou em voz fanhosa: E não quero mais histórias comigo. Não sou criança para estar a ouvir as grosserias do Sr. Fábio e de outros idiotas como ele. Eu ainda perco a cabeça e faço uma das minhas e vão depois dizer que sou isto e aquilo. - Deixou-se cair em uma cadeira, passando a mão pelos olhos lentamente, como se retirasse alguma coisa que os empanasse. - Andei como um animal... Estou que não posso comigo e ainda não jantei. Tudo por causa da senhora Dona Violante.
- Com quem andaste?
Ele levantou a cabeça com esforço:
- Com quem havia de ser? com o Mamede, pois não sabe?
- Logo vi... balbuciou a velha.
- E... já a senhora pensava que eu vinha da troça, que tinha andado em pândega por aí. Pois ainda não jantei. Que é que está olhando? É isto: ainda não jantei. Ah! pensa que bebi. Bebi mesmo, e depois? bebi! - E, furioso, às guinadas, meteu-se no quarto, resmungando. Dona Júlia ficou de pé no meio da sala, abatida, num desalento profundo, com os olhos na porta que o filho encostara. Por fim, animou-se a chamá-lo, e nunca a sua voz foi tão suave e tão terna: "Paulo, meu filho..."
- Que é? Não se importe comigo, deixe-me: estou com muita dor de cabeça, e é tarde. Não se importe comigo; não preciso de cuidados, graças a Deus. No dia em que eu não tiver forças para trabalhar, meto uma bala na cabeça. Coragem não me falta. Ora se... e pouco se perde.
Descanse, que a senhora não há de sofrer por minha causa. Ah! é um desespero! tudo é pra cima de mim, como se eu fosse um burro de carga. Pois sim, mas isto acaba.
Dona Júlia entrou no quarto. Paulo estava de pé junto à estante, a remexer nos livros; sentindo a mãe, voltou-se:
- Pode olhar, mas não me fale, tenha paciência... Eu não estou bom.
- Mas que queixas tem você de mim? Então eu sou má?
- Não sei... Eu é que não estou disposto a aborrecer-me. Que culpa tenho eu de que Violante tenha fugido de casa? Foi comigo que ela fugiu? Foi por minha causa? Fui eu que lhe abri a porta? Não - então por que me aborrecem? Já faço muito em andar por aí, de casa em casa, cansando-me atrás de uma vagabunda.
- Que é isto, Paulo?
- Vagabunda, sim! A senhora pode defendê-la como quiser. Ah! eu não esqueço o que me fazem, não esqueço. Quando estive doente deixaram-me aqui abandonado, como um cachorro, porque a senhora Dona Violante queria um vestido com pressa, não sei para que pagode. Eu podia morrer, contanto que ela brilhasse. Fiquei ardendo em febre, e mamãe lá foi acompanhar a senhora minha irmã, deixando-me com uma negra. Eu não esqueço... Mas não faz mal. Deus é grande!
Sentou-se na cama fazendo horríveis visagens, ansiando, abrindo e fechando a boca, aos haustos. Dona Júlia adiantou-se, enternecida:
- Tu estás sentindo alguma coisa, meu filho?
Ele engulhava. Saiu-lhe, a jorro, uma negra golfada da boca esparrimando-se no soalho, com um fétido ácido. A velha amparou-lhe a fronte viscosa, posto que ele, torcendo-se com agoniadas contrações e arrevessando, repelisse, já sem energia, e mão carinhosa. Nova golfada bolçou longe e Paulo, suando frio, pôs-se a gemer, dando com a cabeça, a comprimir o estômago, estorcendo-se.
Dona Júlia, com os dedos atarantados, desabotoou-lhe a camisa e as calças, deitou-o e correu, aflita, a buscar o vidro d'água sedativa. Na sala de jantar pensou em acordar Felícia, mas teve vergonha - não queria que ela visse o filho naquele estado. Entrou resolutamente no quarto e, como a prateleira dos remédios - a sua botica - ficava por trás dos santos, enquanto procurava, entre outros, o vidro que queria, foi fazendo uma oração ao Senhor dos Passos, frouxamente iluminado pela lamparina trêmula.
Quando tornou ao quarto, com o remédio, encontrou o filho de pé, agarrando a cabeça a mãos ambas, vacilando, como se a embriaguez se houvesse agravado. Dos olhos úmidos escorriam lágrimas, uma baba víscida descia-lhe pelos cantos da boca, copioso suor alagava-lhe a fronte, onde os cabelos caídos colavam-se, empastados.
- Por que não te deitas, meu filho? Vem cá, deita-te, descansa; isso passa.
E a boa velha foi conduzindo o filho, que cambaleava. Forçou-o brandamente a deitar-se, alteou os travesseiros, repousou-o. Ele, porém, sentia-se mal e, lutando, soergueu-se de novo, aflito, arquejando, debatendo-se. Repentinamente saltou da cama e, engulhando, ficou de pé no meio do quarto, d'olhos desvairados, a esmagar o estômago a mãos ambas, dobrando-se.
- Não posso mais. Eu morro! - rouquejou, deixando-se cair na cama e Dona Júlia, ajoelhandose, arrancou-lhe as calças, sem que ele fizesse o menor movimento, e vendo-o tranqüilo, deixou-o estendido, com os pés quase tocando o chão, o ventre descoberto, aflando, como o de um peixe em agonia.
D'olhos fechados, Paulo sentia uma impressão estranha, como se fosse rolando no vácuo; a cabeça parecia estar cheia de nuvens densas, pesadas, que rolavam; o leito oscilava. Abriu os olhos - foi pior: os móveis moviam-se, sombras enormes bailavam fantasticamente nas paredes;
uma zoada rumorejava-lhe aos ouvidos. Um cheiro acre, penetrante, agudo, chegou-lhe terebrantemente ao cérebro. Agitou-se nervoso e agarrou o pulso de Dona Júlia, repelindo-a;
mas a boa senhora manteve-se junto dele, chegando-lhe ao nariz o lenço, encharcado d'água sedativa.
- Tem paciência, meu filho.
- Não, mamãe...
- Vais ficar bom.
- Não! - e debatia-se. Tentou erguer-se, mas oscilou para um lado, para outro e tombou no leito, gemendo, resmungando:
- O Fábio! pois sim... - Riu sardonicamente, escondendo o rosto no travesseiro para fugir ao lenço com que a mãe o perseguia. De novo, engulhando, ameaçou levantar-se: fincou os cotovelos na cama, conseguindo apenas soerguer a cabeça, que logo descaiu, pesada. - Já disse que não quero, mamãe. Por causa daquele diabo! Mas deixa estar. Eu bem dizia. A culpa é sua e dessa negra. - Teve um ímpeto de ira e abriu os olhos desmedidamente: Mas eu não a quero nem mais um dia aqui em casa, nem mais uma hora! Sem-vergonha! Era ela mesma que andava com as cartinhas de lá para cá. Foi ela que arranjou tudo. Mas deixa estar...!
Dona Júlia insistiu com o lenço, seguindo os movimentos repentinos do filho, que fugia com a cabeça, resmungando.
- Espera, Paulo.
- Não quero! Não teima...! Mau! Mau!
- Tem paciência, meu filho.
- Não quero! Olhe, mamãe...! ameaçou.
- Pois hás de ficar assim? - e, em segredo, para vencê-lo pelo vexame, disse: Olha Felícia...
- Que tenho eu com Felícia? Ela que venha cá! Por causa dessa sem-vergonha é que a nossa vida anda assim. Não quero mais essa negra aqui! Não faltam criadas.
A cefaléia, porém, ia-se-lhe tornando insuportável: sentia a cabeça como apertada num capacete de ferro, os olhos pareciam querer saltar das órbitas: as artérias, nas têmporas, latejavam com violência, túrgidas. Entrou a suar frio e, arrebatadamente, desnudou-se aos olhos compassivos da mãe que, sem vexame, comovida, não podendo retirar o lençol da cama, cobriu-o com uma toalha de banho que pendia do cabide. Depois, reunindo toda a sua força, agarrou-o pelo tronco e virou-o na cama, repousando-lhe a cabeça nos travesseiros altos.
Estendeu-lhe as pernas e, sentando-se à beira da cama, ficou-se a acariciá-lo, chegando-lhe, de quando em quando, ao nariz, o lenço, que ia embebendo em água sedativa.
Por fim ele imobilizou-se, como se houvesse adormecido, mas sofria - o atordoamento da embriaguez dava-lhe desequilíbrios. As vezes parecia-lhe ir caindo, estendia os braços, procurava agarrar-se a alguma coisa, resmungava; mas, de novo, reentrava em inconsciência, até que, estirado, com um fio de baba a escorrer-lhe da boca, adormeceu, hirto e pálido, como morto.
Vendo-o a dormir, Dona Júlia saiu em pontas de pés e, instantes depois, tornou, silenciosa, com um balde e um pano e, de joelhos, pôs-se a esfregar o soalho, para que não ficasse vestígio daquela vergonha. No mesmo passo, cauto e sutil, saiu com o balde, voltando, pouco depois, ao seu posto. Sentou-se devagarinho na cadeira, encostando-se à mesa acumulada de livros, com os olhos no filho, ungindo-o de piedade e desviando-se, fugindo ao presente triste, achegou-se às recordações do passado.
Era ele pequenino, uma criança linda, de cabelos louros, meiga e inteligente. Como a casa era alegre com as suas travessuras, com o seu riso que vibrava! E ela, como era venturosa quando o tomava nos braços, doce peso que fazia subir sua alma ao Paraíso.
E a outra, que beleza de menina! E como andava garrida, sempre com figuinhas sob as rendas do vestido taful, para conjurar os olhares vesgos da inveja, amimada por todos, de colo em colo, de casa em casa.
Quando o marido chegava do quartel tomava os dois e, com um em cada joelho, punha-se a sacudi-los: upa! upa! e eles a rirem, e ela a rir com eles, enlevada.
Depois o colégio, as horas de saída, o regozijo em casa quando os dois apareciam gárrulos, contando o que haviam feito, todos os pequenos incidentes do dia escolar. Suspirou. Aquela ironia da memória alanceava-lhe o coração. Paulo voltou-se atirando um braço, encolhendo as pernas, com um resmungo. Ela pensou que ele houvesse acordado e, de manso, inclinando-se, examinou-o: dormia profundamente, respirando um hálito quente e azedo.
Bebendo! suspirou ela baixinho, de mãos postas, olhos em alvo, demandando o céu. Bebendo...
meu filho, o meu Paulo! E sentou-se, de novo, muito quieta para continuar a dolorosa vigília, perseguida pelas reminiscências, falenas tristes da noite velha do passado que esvoaçavam em torno de sua alma. Já o via rapaz e a ela menina: ele concluindo os preparatórios, ela fazendo os primeiros bordados.
Noites tranqüilas para sempre perdidas quando, na sala de jantar, em volta da mesa, à luz de um lampião de querosene, na casa da Rua Haddock Lobo, Paulo estudava os seus verbos, Violante vestia as suas bonecas e ela, ao lado do marido, gozando aquela delícia honesta, ponteava, cerzia uma roupa ou discorria sobre as necessidades da casa, lembrando compras indispensáveis. Fora, no quintal, havia um jasmineiro, que avassalava o muro e perfumava a casa.
"Uhum! não..." regougou o rapaz voltando-se torcicolosamente e, como o seu rosto ficasse em plena claridade, Dona Júlia afastou a vela, pôs-lhe diante um livro como alparluz para que a sombra lhe protegesse o sono. Paulo pôs-se a mastigar, com estalidos secos e ela, sempre receosa, inclinava-se, d'olhos franzidos, acompanhando, vigiando aquele pesado torpor.
A chama da vela crescia, por vezes, e sombras dançavam na parede macabramente. Havia um roque-roque na sala próxima, um rato a roer e era o ruído único dentro da noite, porque as próprias máquinas viageiras dormiam, repousando das céleres corridas pelos campos largos, pelas serras ásperas.
Outras idéias surgiram no espírito atribulado da miseranda:
Onde andaria Violante? Pobrezinha! talvez sofresse num canto obscuro, guardada pelo homem perverso que a havia seduzido. Ah! sim, devia estar bem escondida para que a polícia, trabalhando como trabalhava, não lhe houvesse podido ainda descobrir o paradeiro.
E se houvesse sido assassinada? Lembrou-se de certa notícia que lera em tempo: o caso de um homem que, depois de haver cevado os seus desejos lúbricos, arrastara a sua vítima, pobre pastora, para uma charneca e a esfaqueara. Teve um arrepio e, d'olhos cravados na parede, ficou a olhar, a olhar...
Uma sombra passou e foi-se adensando, adensando... Círculos iriados dilatavam-se brilhando e desfaziam-se e toda a sua visão ficou reduzida àquelas miragens que, repentinamente, desapareceram.
A porta rangeu: voltou-se assustada e viu o gato entrar maciamente, em passos de arminho, com a cauda hirta. Dando por ela, o animal fez uma volta, corcoveado, esfregou-se-lhe nas pernas, resbunando; depois, fitando-a, com um surdo miado, formou o pulo e saltou-lhe ao colo, como a pedir carinho. Ela acolheu-o, afagou-o passando-lhe a mão pelo dorso flexuoso e macio;
o animal, lambendo as patas, deixou-se ficar encolhido e, afundando a cabeça, adormeceu.
O sono chumbava-lhe as pálpebras, ardiam-lhe os olhos e, de quando em quando, a boca se lhe escancarava em largo bocejo ao qual, religiosamente, acudia com o polegar traçando uma cruz.
Mas como havia de o deixar? E se sobreviesse alguma coisa? Estava tão agitado... Foi, então, que se lembrou da enfermidade do filho. Noites de sofrimento e de apreensões: ele abrasado em febre, delirando, ela, sozinha, ainda com o luto pesado do marido, a acompanhá-lo, acudindo com os remédios ou a contar-lhe histórias quando, nas horas de acalmia, ele a chamava para junto do leito, muito humilde, com medo da morte.
Os bocejos amiudavam-se, sentia-se mole, estafada pelo dia de insano trabalho que tivera a desarrumar a casa para a mudança. Pensou em deitar-se no sofá da sala, mas o filho prendia-a.
Um galo cantou longe, tristonhamente e, na Estrada, houve um longo chiar de vapor. Eram as viageiras que despertavam para a vida laboriosa. Não tardava a manhã.
Levantou-se lentamente, deixando o gato no chão. O animal corcoveou espreguiçando-se e, vendo que a senhora saía, acompanhou-a em passo sutil. Dona Júlia abriu a janela devagarinho. Uma brisa fresca soprava, o céu estava estrelado e o alvo clarão das lâmpadas da Estrada dava uma ilusão de luar.
Varriam a rua e, numa densa nuvem de pó, uma carroça arrastava-se, moviam-se vultos.
"Também agora não vale a pena, disse ela; com pouco mais está aí o dia." E, debruçada, ficou a olhar fundamente, para muito longe, para o tempo d'outrora, o doce tempo!
Lá o via todo, feliz e calmo, lá longe, no irregressível. Dois homens passaram em mangas de camisa, fumando; um levava uma picareta ao ombro. 'Meu Deus..." e ficou-se nesta exclamação que resumia todo o seu espanto, porque parecia impossível que padecesse tanto, sendo tão virtuosa e tendo tamanha fé na Providência. "Não! também é demais!" E à janela, só, dentro do seu desespero, cercada pela noite negra e muda, pôs-se a falar gesticulando.
- Uma sai, vai-se embora; o outro, tão bom menino, faz isto, meu Deus... Que tenho feito eu?!
Vejo por aí outras mães tão felizes com os seus maridos, com seus filhos... só eu, então, é que hei de ser a desgraçada? Por quê?
Baixou os olhos e viu a rua mais negra como se a noite houvesse recalcado a sombra. Ao longe havia ainda dois pontinhos luminosos, mas esses mesmos desapareceram - um primeiro, outro depois, e a treva ficou absoluta. "Por que, meu Deus?!" Passou o braço pelos olhos e, chorando, bebendo as lágrimas salgadas, ficou a tamborilar na janela, vazia, inconsciente, dolorosa, com os olhos voltados para o céu mudo.
Um silvo sacudiu-a e toda a rua abalou-se, como a um surdo fragor subterrâneo. Era um trem que partia e, como se nele fossem as suas derradeiras esperanças, rompeu a chorar e retirouse.
No céu branco, madreperolado, estendiam-se os primeiros laivos d'ouro e púrpura, Ouvindo-lhe os passos na sala de jantar atravancada, Felícia levantou-se à pressa e, entreabrindo a porta do corredor, exclamou, surpresa:
- Uê, minh'ama, vosmecê já se levantou, tão cedo?!
- Então, respondeu Dona Júlia, abrindo a janela. Quando há que fazer...
Uma luz baça invadiu a sala, e o ar puro e fresco da manhã circulou. A velha tomou uma toalha e saiu ao quintal para lavar o rosto, enquanto a negra catava gravetos para acender o fogo. O
gato ia e vinha, miando, a esfregar-se em Felícia, e o gaturamo pôs-se a cantar contente, vendo a primeira luz do sol no muro verdinhento e ouvindo o estalar das asas dos pombos.
8 Com a chegada das andorinhas, Dona Júlia resolveu acordar o filho e, pé ante pé, entrou no quarto. Paulo dormia profundamente; sacudiu-o:
- Paulo, estão aí as carroças. - Ele abriu os olhos, encarou-a pisco e voltou-se para a parede;
ela insistiu: Estão aí as carroças.
- Ah! mamãe... A senhora também... nem me deixa descansar.
- Que queres, se os homens já estão aí para a mudança? Tem paciência.
Paulo resmungou, espreguiçando-se, e a velha saiu, para o deixar à vontade, indo falar aos homens que conversavam à porta, retirando das carroças barricas, velhas esteiras, trapos.
- Por onde quer que comece? perguntou um deles.
- Pela sala de jantar.
O homem foi entrando, dois outros acompanharam-no, e logo, tomando cadeiras, foram-nas conduzindo para a rua, enquanto um ruivo, de cócoras, assobiando, desarmava as camas.
A sala como que se tornava mais vasta à medida que se ia esvaziando. Apareceram buracos no rodapé, blindagens de lata nos ângulos. Um velho chapéu de boneca, empoeirado e roído, rolou imundo na sala. Dona Júlia apanhou-o, sacudiu-o e guardou-o veneradamente. Os homens discutiam, arrastavam móveis e foi um trabalho quando tiveram de transportar a mesa e a grande cômoda de jacarandá que, empurrada, ia deixando lustrosos vincos pelo soalho.
Paulo apareceu, por fim, abatido, os olhos muito vermelhos, mole. Dando com a mãe, baixou a cabeça, resmungou "a bênção", seguindo para o quintal. No banheiro, pôs-se a pensar nos horrores da véspera, com uma ponta de remorso. Arrependia-se de não haver ido à polícia. mas o Mamede... Começou a despir-se, pensando.
Fora à estalagem procurá-lo e encontrara Ritinha só, sempre dengosa, que o recebera toda risonha, com os seus dentinhos miúdos muito brancos e os seus olhos quentes como dois carvões acesos. Não o deixara sair: que esperasse um instante: Mamede não se demorava. E
ele, vencido, dominado por aquela viçosa criatura de amor que, quando andava, bambaleando os quadris e balançando molemente os braços roliços, deixava no ar um cheiro acre de carne, um almíscar estonteante de mulher ardente, não teve ânimo de sair e ficou sentado até que ela, ouvindo as horas no lento relógio, veio do fundo da casa, penteando os cabelos lisos, dizer, com espanto: "Que, deveras, Mamede estava demorando muito. Ele não costumava ficar até aquelas tantas na rua".
Transpirava: no lábio superior brilhava um leve rorejo e, como levantava os braços, em curva, o casaco aparecia com duas manchas úmidas nas axilas. Paulo estava enervado: olhava, e Ritinha, como se percebesse que os eflúvios do seu corpo novo venciam o homem, quis, como uma fera lasciva, brincar com ele, atormentando-o, para gozo da vaidade, e sentou-se no banco, curvou o busto à frente, baixou a cabeça, atirando despejadamente os cabelos, que chegaram quase ao chão, fartos e luzidios, como a cauda de um ginete de raça.
A nuca morena aparecia úmida, e ela torcia os cabelos, torcia-os como se os espremesse. De repente atirou-os para trás e ergueu-se. O colo teso forçava o corpinho com esforço e, como ela enrolasse os cabelos no alto da cabeça, em torre, um grampo caiu. Paulo abaixou-se. apanhouo - os dedos tocaram-se e a mulatinha, faceirando ao espelho, perguntou, como se falasse à própria imagem:
- O senhor é daqui?
- Sou, por quê?
- Por nada. Pensei que era do Norte. Parece muito com um moço que eu conheci na Paraíba.
- A senhora é da Paraíba?
- Com a graça de Deus. E não estou aqui por minha vontade. Pudesse eu que amanhã mesmo tomava um vapor e voltava para a minha terra.
- Então não gosta do Rio?
- Eu!? Posso lá com isto! Estou aqui porque não há remédio. Não me dou com esta gente. Uma terra de miséria. Deus me livre! Não estou acostumada com estas coisas.
- E Mamede?
Ritinha encolheu os ombros, dizendo, com um risinho:
- Mamede? Uai! Não sou cativa de ninguém. Mamede é daqui: que fique.
- Então não gosta dele?
- Não digo que não goste, não tenho queixa; mas o senhor sabe, a gente sempre tem saudade da terra em que nasceu, eu tenho lá os meus, e aqui? Se cair amanhã numa cama, como há de ser? Não conheço ninguém, não me dou com esta gente da estalagem, e então? É a Misericórdia, não é? Deus me livre! Eu só espero uma ajuda de Deus para voltar, tão certo como estar aqui falando com o senhor.
Houve um silêncio. Paulo arfava, as narinas batiam-lhe sôfregas. Veio-lhe à mente uma proposta, mas receou que a mulata, indignada, o denunciasse a Mamede. E ela continuava a torturá-lo sorrindo, suspirando, firmando-se ora em uma, ora em outra perna, com um movimento sensual das ancas, Felizmente o mulato apareceu, suado, esbaforido e, vendo-o, exclamou:
- Ah! vosmecê adivinha. Eu já ia mandar um recado lá em casa.
Paulo ergueu-se sobressaltado e, enquanto Mamede descansava o bengalão e o chapéu, perguntou, sôfrego:
- Achaste?
- Uai! Achei não, também não é assim, nhozinho. Estive com um cocheiro, que me deu umas luzes. Ele já teve uns toques da marosca. Foi um companheiro dele que, no sábado, à noite, saiu detrás do quartel com uma moça e um homem, tocando para a Tijuca. Eu agora ando na pista do bicho, e achando, nhozinho... Só se Deus mesmo não quiser.
Entrou a dar o seu plano de captura, e como Paulo, ao fim da tarde, se despedisse, o mulato, que fizera libações seguidas, opôs-se:
"Que não, ué? Havia de ir sem jantar? Isso não..." E saiu para ir à venda fazer umas compras. O
curto instante da ausência de Mamede foi de sofrimento para o rapaz: o esto lascivo recrudesceu com maior intensidade, torturava-o uma estranha emoção de medo, faltava-lhe o hábito como em grande fadiga. Chegou a levantar-se, trêmulo, em pontas de pés, mas ficou parado, com as pemas bambas, os olhos cravados na cortina que encobria o corredor.
Um choro irritado de criança, vindo de fora, assustou-o. Sentou-se, nervoso, revoltado, com o sangue a referver-lhe nas veias. Ritinha pôs-se a cantar e ele, mordicando os lábios, meneou com a cabeça, arrepelou os cabelos com fúria, atirou um murro à coxa e voltou-se olhando para a latada.
O céu, violeta, tinha uma serenidade suave àquela hora da tarde. A gente da estalagem ia abandonando o trabalho, esvaziavam-se as tinas gorgorejando; recolhiam-se as roupas.
Faziam-se aos pombais os pombos, e Ritinha, sempre a cantar como uma sereia lúbrica, a atraílo, a enfeitiçá-lo. Felizmente Mamede reapareceu... Paulo respirou, aliviado. O mulato abarcava embrulhos e garrafas e, logo que entrou, parando um momento no limiar, disse, risonho:
- Vosmecê há de desculpar a demora.
- Ora! - fez o estudante, complacente.
- A gente quando entra numa dessas vendas sempre encontra uns parceiros e cai na prosa mesmo que é serviço. Com licença, nhozinho. - Puxou uma cadeira, sentou-se, com o espaldar para a frente, as pernas escarranchadas. - Ah! meu senhor... Eu já não sei mesmo onde é que hei de ir cavar dinheiro - isso está preto! Vosmecê não é da Guarda Nacional, nhozinho?
- Eu? Não.
- Dê graças a Deus. É um gastar de dinheiro que não tem conta. A gente, para não ficar por baixo, vai dando e, quando menos pensa, tem soltado das mãos uma cobreira surda. Mas eu gosto; é uma cachaça. Quem foi soldado, vosmecê sabe, tem sempre a sua quedazinha pela farda, e, depois, os manos me deram um posto...
- Que posto?
- Vosmecê ainda não me viu fardado?
- Não.
- Sou alferes.
- Ah!
- Nhozinho, toma alguma coisa, disse de repente o mulato: um gole de vinho do Porto.
Paulo acedeu, e Mamede, num salto, desapareceu no corredor, voltou pouco depois, com a garrafa e dois copos.
- Isto não faz mal. A bebida, com conta, até faz bem - e despejou.
Beberam. E a conversa caiu em Violante. Mamede, confiado no cocheiro que levara o casal para a Tijuca, Paulo, a jurar que se encontrasse o homem, não respondia pela sua vida.
Várias vezes Mamede encheu os copos e, distraído ou excitado, o estudante ia bebendo, até que Ritinha, com um casaco branco enfeitado e rendas largas e uma saia vermelha, apareceu para arranjar a mesa, aliviando-a dos objetos que a atravancavam. E, enquanto ela estendeu a toalha clara e pôs os pratos e os talheres, as garrafas, a farinheira e a fruteira de louça esvazada, Paulo, com o olhar cúpido, acompanhou-a, e o mulato, como se percebesse o entusiasmo do estudante, disse, com orgulho:
- Mulata faísca, hem, nhozinho? Isto tem dengues...!
Lançou-lhe o braço à cintura, atraiu-a e ela, abandonada, lânguida, derreou-se sobre ele, deixando-se afagar, até que, coleando colubrinamente, livrou-se, atirando um muxoxo.
Servido o jantar, Ritinha sentou-se à cabeceira da mesa, entre os dois. Os copos não demoravam vazios, e Paulo já começava a sentir-se atordoado quando, ao fim do jantar, Mamede foi a um canto buscar a laranjinha.
O receio de parecer fraco à mulher desejada fez com que não rejeitasse o cálice que o mulato lhe oferecia - levou-o, porém, à boca, com repugnância e, como para livrar-se mais depressa daquele asco, virou-o e um trago.
O luar subia docemente, branqueando a latada. Um violão gemia perto e Mamede, romântico, enlevado naquela luz visitadora que lhe entrava pela casa, não permitiu que Ritinha acendesse o lampião, e, fora, ao alvor, ficaram conversando: a mulatinha a falar do seu Norte, a recordar as noites poéticas no Cabedelo, entre os coqueirais ou na roda sombria das ramas das gameleiras;
Mamede, recordando os dias heróicos, as suas bravuras no Sul e os feitos do major; Paulo, a ouvir, num enternecimento mole, entre os filtros da lua e do perfume da Ritinha que, já íntima, roçava por ele, como a oferecer-se.
Ela não bebia, mas ia servindo cálices sobre cálices, e o estudante não se sentia com ânimo de os recusar até que o mulato, sem dizer palavra, saltou na sala, mergulhou no corredor e, pouco depois, sons trêmulos vieram do fundo da casa e ele apareceu experimentando o violão.
Sentou-se no batente da porta, picando as cordas, apertando as cravelhas; depois, esticando uma perna, pigarreou e, com os olhos no céu, numa voz afinada, pôs-se a cantar uma modinha.
A mulata encostou-se ao umbral, com a cabeça para trás, pensativa; Paulo, cabisbaixo, ouvia.
Grilos guizalhavam e, mais longe, como se o misticismo da noite meiga influísse em todos os corações, vozes ternas cantavam em uníssono suavíssimo. Cães ladravam na montanha, onde as casas, muito brancas, como de puro mármore, destacavam-se da verdura que resplandecia alvejante e pelo céu limpo, serena, a lua caminhava magnífica, toda de neve.
Era tarde quando o estudante pediu licença para retirar-se, sentindo-se mal; todavia aceitou o último cálice que lhe ofereceu a mulata.
- A noite está fresca, não faz mal.
Bebeu a custo, arrevessando; apanhou o chapéu e a bengala e despediu-se. Ritinha pediu desculpas do jantar e Mamede quis acompanhá-lo ao portão da estalagem e, sem deixar o violão, lá foi com ele, guiando-o. Ao despedir-se deteve-o e, baixinho, num tom de mistério ofereceu-se para levá-lo a casa. Ele recusou.
O ar fresco da noite, longe de aliviá-lo, como que mais o excitava. O atordoamento tornava-se mais forte: por vezes cambaleava, ia de encontro às paredes. As pernas. ora amoleciam, bambas, ora pareciam retesadas e duras. Ia devagar, sentindo náuseas, a boca saburrosa, os olhos nublados. Caminhava instintivamente, dobrando esquinas - ora pela calçada, ora pelo meio da rua e foi com surpresa que reconheceu a Praça da Aclamação.
Lembrava-se vagamente de haver chegado a casa e do seu sofrimento.
Atirou uma cusparada a um canto e entrou no banheiro. Ao jorro d'água sentiu um choque violento e recuou espantado, com a mão sobre o coração. "Não bebo mais!" exclamou, como num juramento e, curvado, meteu-se sob o chuveiro.
9 Quando saiu encontrou a sala de jantar vazia, já todos os trastes haviam sido retirados; ficou a olhar, distraído, até que Felícia apareceu com o café. Tomou-o a pequenos goles, com repugnância, sentindo-o muito quente, a escaldar-lhe o estômago. Ouvindo os passos arrastados da mãe teve um estremecimento e pousou a xícara na janela, receoso que lhe caísse da mão trêmula. A velha mantinha o seu ar de bondade, e, como se nada houvesse acontecido, disse-lhe:
- Estive guardando a tua roupa. E os livros?
Àquela meiguice, toda de perdão, ainda mais se lhe agravou o vexame.
- Podem ir na cesta.
- Os homens ainda têm uma barrica; se queres...?
- Pois sim. Já estão no meu quarto?
- Não, estão ainda na sala. Deixei fora o terno azul e a tua roupa branca está no quarto de Violante. É melhor que te vistas já para mandarmos o resto nas carroças.
- Sim, senhora.
Foi para o quarto da irmã. Se houvesse voltado o rosto teria visto o ar enternecido com que a velha o acompanhava. Encontrou toda a sua roupa no chão, sobre um jornal, e, vestindo-se, ouvia os passos da velha no quarto contíguo.
Quando saiu já Dona Júlia, com a sua capota de vidriIhos e o seu vestido de merinó, dava ordens à Felícia. Iam indo para as carroças as tinas, os arames em que secavam as roupas, as galinhas, amarradas pelos pés, a gaiola do gaturamo, que esvoaçava assustado e, num saco, no canto da casa, o gato miava desesperadamente, rebolcando-se. Dona Júlia calçando as mitaines cerzidas, disse, d'olhos baixos, tímida:
- Olha, meu filho, eu vou dizer adeus a esta gente aqui do lado, não custa. Não sei que parece sairmos assim. Descansa que ninguém nos visita. Esta gente é boa... Lá os outros... que Deus lhes acrescente.
- Mamãe pode ir, eu não vou. É tudo a mesma súcia.
- Pois sim. Então, até já.
- Mas não se demore: precisamos seguir para que os homens não fiquem à nossa espera.
- Sim. É só um adeus.
Paulo, de mãos enfiadas nos bolsos, passeando ao longo da sala vazia, enquanto os homens retiravam os móveis do seu quarto, pensava em Ritinha: a mulata obsediava-o. Foi ao quintal e deu com Felícia agachada, desenterrando um pé de arruda.
- Vais levar isso, Felícia?
- Então, nhonhô? Arruda é muito bom. A gente deve ter sempre em casa um pé de arruda para uma dor. E, com a planta na mão, ergueu-se e foi acomodá-la em um vaso de barro.
- Vê lá! não esqueças por aí alguma coisa. Olhe os homens. Varre a casa e seque logo. Tomas o bonde na Estrada e segues. Sabes onde é?
- Então, nhonhô? Uai!
Dona Júlia apareceu à porta da rua.
- Vamos, Paulo.
O estudante tomou o chapéu e saiu. Uma das carroças já estava cheia, com a grande mesa suspensa ao fundo, toda enleada em cordas; duas outras esperavam. A vizinhança estava agitada: mulheres às janelas, crianças às portas, olhando. Paulo segredou:
- Vamos para o outro passeio, mamãe; e atravessaram a rua.
Uma mulher gorda, esborrachando à janela o seio espapaçado, disse: "Seja feliz!" "Obrigada", agradeceu Dona Júlia. "Lembranças a Violante... E não se esqueça da gente. Apareça."
Paulo sentia o sangue subir-lhe às faces como se o estivessem injuriando. Das janelas acenavam adeuses, Dona Júlia correspondia; ele, d'olhos baixos, mal tocava no chapéu, muito cosido à mãe, brincando com a bengala. Quando voltaram a esquina sentiu um grande alívio. A
velha caminhava lentamente, deslumbrada com aquele esplendor, ela que, tão raramente, deixava a sombra da sua casa, vendo o sol apenas no quintalejo ou no trecho da rua.
Os pesados caminhões, que entravam para os armazéns da Estrada, causavam-lhe medo.
Detinha-se de instante a instante agarrando-se ao braço do filho, e diante da estação, atropelada pelos que transitavam, entre carros e tílburis, ficou estonteada, sem saber dirigir-se e foi necessário que Paulo lhe desse o braço levando-a para a calçada onde deviam esperar o bonde da Lapa.
Sentia a vista perturbada com a vida tumultuosa da praça; a claridade intensa ofuscava-a, os ouvidos zuniam-lhe. "Que barulho, minha Nossa Senhora!" Junto a um quiosque, vários homens descalços, em mangas de camisa, discutiam e, como um pequeno, a correr, esbarrasse com ela, Paulo revoltou-se; a velha, porém, serenou-o.
- Deixa, é uma criança; não foi por querer.
O bonde apareceu. Entraram e ela, antes de sentar-se, voltou-se para o lado da casa que deixara, suspirando. Estou só pensando em Violante... e, depois dum silêncio, perguntou baixinho: Soubeste ontem alguma coisa?
- Mamede disse-me que está na pista do cocheiro.
- Que cocheiro?
- Do carro em que ela fugiu.
- Foi de carro!?
- Naturalmente.
Calaram-se. O bonde fez uma parada perto da Rua do Núncio. para a Muda.
- E se prendessem o cocheiro? Ele deve saber onde ela está.
- Mamede vai ver.
Depois dum longo tempo de recolhimento, levada aos trancos pelo bonde, Dona Júlia levantou os olhos e, na sacada duma casa, viu duas mulheres de penteadores brancos: uma sentada, a ler, deixando à mostra um pedaço de perna gorda, a outra muito debruçada, com os cabelos soltos, esvoaçando.
- Que rua é esta?
- Lavradio.
A velha acenou com a cabeça e, como se lhe bastasse a informação, aquietou-se.
- Aqui é a Polícia. Foi aqui que eu estive, disse Paulo.
D. Júlia inclinou a cabeça e foram-se-lhe os olhos por um largo portão, ao longo dum túnel sombrio.
- Ah! meu Deus, se essa gente quisesse!...
Quando chegaram ao Largo da Lapa a timidez retomou-a. Ergueu-se pesadamente e, agarrando-se aos balaústres, foi descendo com esforço.
- Já não sei andar. Se eu saísse sozinha perdia-me por aí. Por onde é? Que sol, Paulo! Isto faz mal. Estou tonta - parece que sai fogo das pedras.
Abriu a sombrinha e convidou o filho. - Chega para nós dois.
- Não, mamãe; eu estou acostumado. Não se incomode comigo.
Ela voltava-se de quando em quando, assustada, como se houvesse ouvido rodar de carros.
- Aquilo ali é o Passeio Público, não é?
- É sim, senhora.
A velha suspirou fundamente.
- Quando vocês eram pequenos, vínhamos quase todos os domingos aqui, com o velho. - E
ficou a olhar saudosamente o arvoredo.
- Mas acho isto mais largo...
- Sim, senhora: é que foi aproveitada uma parte do terreno do Convento.
- Logo vi.
Tudo lhe causava admiração: os bondes, em tandem, os carros, os prédios novos. Diante do mar não se pôde conter: parou, lançando os olhos livremente pelas águas que faiscavam;
dando, porém, com a Igreja do Outeiro, tremeram-lhe os lábios numa prece. E confessou que estava mais contente porque tinha aquela alegria ante os olhos.
- E os meus santos! - exclamou de repente, estacando.
- A senhora não os arrumou?
- Sim, mas com os balanços da carroça...
- Fique descansada.
- A casa é ainda muito longe?
- Não, senhora. Não vê aquela árvore? É ali. O ponto é magnífico, não acha? Aqui está tudo à mão. Depois, a vantagem de não termos vizinhos fronteiros.
- Lá também não tínhamos.
- Pois sim, mas aqueles trens, aquela lufa-lufa de máquinas... Quem podia com aquilo?!
- Eu já estava acostumada; até me distraía.
- Mau gosto. É aqui, mamãe.
Júlia levantou o olhar, examinando a casa, chegou um pouco adiante para ver o jardim vizinho e, como Paulo empurrasse a porta, a mulher do lado debruçou-se à janela, curiosamente.
- Quem é essa moça?
- Não sei.
- Não vá ser uma dessas mulheres...
Entraram. O cheiro das tintas enchia toda a casa como um hálito mau. Paulo, porém, abriu de par em par as janelas e o ar penetrou correndo os aposentos, purificando o ambiente. Dona Júlia detinha-se, examinava os papéis, o soalho, ainda úmido da lavagem, o teto; abria as bicas, para que a água corresse e, no quintal, ficou um momento parada, pensativa, até que o filho apareceu à porta da cozinha.
- Então?
- É boa. Só o que tem é que é muito devassada.
Paulo levantou os olhos. Pela janela de uma casa alta via-se o interior de um quarto, onde um homem ruivo, em mangas de camisa, meio curvado, fazia o laço da gravata ao espelho.
- Sim, tem esse defeito, mas também pelo preço, neste ponto, não se podia achar coisa melhor.
Dona Júlia concordou, voltando a examinar os aposentos, um a um, com cuidado minucioso. Na sala, chegou um instante à janela, voltou-se para a montanha: lá estava a igreja, muito branca, dominando o mar, como uma atalaia.
Tão embevecida ficou que não via os bondes passando, cheios, rápidos como os trens que, diante da outra casa, iam e vinham, dia e noite, abalando a rua tranqüila. A mulher, à janela da casa contígua, com o colo farto achatado no peitoril, acompanhava os bondes com um olhar cobiçoso, sorrindo e, quando a rua reentrava no sossego, punha-se a cantar, bambaleando-se.
As andorinhas não tardaram. Como Dona Júlia já conhecia a casa, tirou a capa e foi determinando a colocação dos móveis. As duas da tarde, pouco depois de haver partido a última carroça, chegou Felícia, cansada, suada, com embrulhos, queixando-se da soalheira.
Paulo, descalço, armava os móveis, enquanto a velha arranjava alguma coisa para o jantar. O
gato, em liberdade, corria a casa, desconfiado, miando, a saltar de móvel em móvel, farejando, e o gaturamo, virando e revirando a cabecinha, piava, saudoso, como se sentisse falta do seu antigo retiro e do trecho de céu que costumava namorar do fundo da sua prisão estreita.
A noite já a casa tinha largueza e conforto, arrumada e, diante dos santos, na cômoda, ardia a lamparina vigilante. Paulo, estafado, bocejava estendido no sofá, sem fome; à mesa mal debicou, queixando-se da cabeça. Recolheram-se cedo. Só Felícia andou até tarde na cozinha a bater marteladas, arranjando as prateleiras.
Dona Júlia não pôde conciliar o sono: sentia-se oprimida, pensando na filha. Que seria dela?
Talvez que, àquela hora, a pobrezinha estivesse a bater à porta da casa abandonada, arrependida, infeliz, procurando os seus. E onde iria repousar? Quem lhe daria agasalho?
Suspirou, com os olhos nas duas imagens que brilhavam à luz trêmula da lamparina. Sentia como um remorso, parecia-lhe que, com aquela mudança, abandonara, de vez, a filha.
Ah! nunca mais a veria! nunca mais! Orgulhosa, como era, sentindo-se desprezada, nunca mais tornaria a casa, preferindo à humilhação a vida miserável. Felícia, arrastando um móvel na sala de jantar, interrompeu o silêncio. A velha sentou-se na cama e chamou a negra, que acudiu logo, com um martelo na mão.
- Ah! Felícia, não posso dormir pensando em Violante.
A negra coçou a cabeça e, encostando-se à cômoda, pensativa, disse baixinho, depois de um silêncio:
- Olhe, minh'ama, eu me lembrei de uma coisa... Tenho medo de falar por causa de nhonhô.
- Que é?
- Hum! para vosmecê ir dizer... Eu, não. Não quero história comigo.
- Eu sou criança, Felícia?
A negra ainda hesitou, mas aproximando-se da cama, cochichou em voz misteriosa:
- Minh'ama não se lembra do meu reumatismo?
- Sim.
- Vosmecê sabe que eu andei por aí tudo, na mão de uma porção de médicos, gastando os cabelos da cabeça, e nem para trás, nem para diante. Vosmecê sabe.
- Sim.
- Nem vosmecê é capaz de imaginar como foi que fiquei boa.
- Não.
- É, mas se eu disser vosmecê não acredita; é até capaz de pensar que estou maluca. Eu sei.
- Ora, Felícia...
- Vosmecê acredita?
- Não sei: fala.
- Pois foi com o espiritismo - sussurrou, curvada, d'olhos muito abertos.
- Com o espiritismo?
- Sim, senhora. Foi com uma água que eu trouxe lá da sociedade.
- E tu acreditas nessas coisas, rapariga?
- Como acredito em Nosso Senhor que está no céu, minh'ama, - afirmou de mãos postas.
Dona Júlia acomodou-se na cama e a negra, caminhando em pontas de pés, encostou a porta do quarto, voltando para junto da velha, com uma ânsia de proselitismo.
- Olhe, minh'ama, quando Nhá Violante saiu, eu quis ir lá perguntar por ela; não fui porque não tive tempo, mas estou certa de que os espíritos hão de dizer a verdade. A gente, pedindo com fé, consegue tudo. Eu vi, minh'ama. Quando foi pela revolta, uma perda, que tinha um filho soldado, foi lá saber notícia dele, e apareceu um espírito dizendo que ele tinha morrido num lugar desses.
Dona Júlia puxou o lençol, sentindo um grande frio nas costas como se, pela fresta da porta, esfuziasse uma corrente de ar; e Felícia continuou:
- Depois, quando tudo acabou, os companheiros do rapaz procuraram a mulher e repetiram, tintim por tintim, tudo quanto o espírito tinha dito. Eu vi, minh'ama! - e, inclinando-se, rebaixou com dois dedos as pálpebras moles, mostrando os grandes olhos brancacentos. - Vosmecê com essa gente da polícia não arranja nada. Se vosmecê quiser experimentar, como nhonhô sai todas as noites, eu levo vosmecê lá. Todo o mundo fala, mas vendo é que é.
Dona Júlia meditava, sentindo-se atraída pelo mistério e, longo tempo calada, as mãos cruzadas ao colo, os olhos baixos, esteve pensando nas palavras sibilinas da negra. Por fim levantou a cabeça:
- E para entrar?
- Vamos juntas. Olhe, Dona Castorina, lá da outra rua, foi uma noite comigo por causa da doença do marido e agora vai sempre: é sócia.
- E se Paulo souber?
- Como é que ele há de saber? Só se vosmecê disser. Olhe, daqui - e bateu nos beiços afunilados - daqui não sai nada. A gente vai, minh'ama faz a sua consulta e está aí.
- Em que dias é?
- Todos os dias há reza e depois há consulta; amanhã mesmo.
Dona Júlia pôs os olhos no Senhor dos Passos, como a pedir-lhe conselho; ouvindo, porém, a tosse do filho, estremeceu assustada, mostrando a porta à negra. Felícia foi-se à sorrelfa.
Só, no quarto novo, impressionada com o que ouvira, com a acuidade dos sentidos própria dos assombrados, Dona Júlia ouvia arrepiadamente os mais leves ruídos: ora era um móvel que estalava ríspido, ora a crepitação da lamparina. Na rua tiniam as campainhas dos bondes. O
cheiro oleoso de tinta tornava-se mais forte e denso e, de instante a instante, um golpe de ar frio, penetrando, ia gelar-lhe o corpo.
Idéias sinistras esvoaçavam-lhe no espírito alvoroçado. Passeava olhares pelo quarto, ainda desconhecido, como a procurar a causa da estranha sensação que a aterrava. A negra, que, até então, tivera como uma criatura simples, assumira aos seus olhos o aspecto macabro duma bruxa evocadora de mortos. Sentia no quarto a passagem fluídica dos imateriais, as invisíveis borboletas da morte andavam por ali como as falenas noturnas esvoaçando em redor da luz.
Faltava-lhe o ar, um grande peso oprimia-lhe o peito, sombras tênues fluíam diante dos seus olhos escancelados e, de quando em quando, feria sinistramente o silêncio o estalo seco dum móvel.
"Ah! minha Nossa Senhora, para que Felícia veio falar dessas histórias agora de noite!? A gente já anda com a cabeça tão cheia de coisas..." A porta foi-se abrindo lentamente, surdamente.
Com o coração precipitado voltou-se hirta, agarrando-se à maçaneta da cama, a boca meio aberta e seca e, de olhos na porta, viu as pupilas fosforescentes do gato que alimiavam como dois fogos-fátuos. Enxotou-o e o animal, escabreado, num pulo, desapareceu.
Deitou-se muito encolhida, com os olhos nos santos, rezando. Mas um surdo rumor, que parecia subir do soalho, como um gemido abafado, aterrou-a. "Ah! meu Deus, Felícia não podia ter deixado essas conversas para amanhã?..."
Falando, porém, não tirava a atenção do rumor soturno que vinha tristonhamente, de instante a instante, como o arquejar oprimido de um emparedado. O ouvido, porém, foi-se habituando e ela reconheceu a voz grave do mar que desenrolava as ondas ali perto, na praia. "Ah! minha filha..."
Fechou os olhos, logo, porém, abriu-os, por lhe parecer haver sentido leve sussurro como de asas de beija-flores - nada: a chama da lamparina, esguia no morrão em forma de cravo, esfiava um filete de fumo. Passou a mão pela fronte, encolhendo-se mais. O sono fugia-lhe dos olhos, o coração batia-lhe com tanta força que ela o ouvia distintamente. Era o medo que a empolgava -
tinha vontade de mover-se e temia esticar uma perna, dobrar um braço, respirar mais alto. Que haveria debaixo da cama? e lá fora? e dentro da noite? sombras, sombras peregrinas, sombras errantes, o hálito apavorante que os sepulcros exalam. "Ah! minha Nossa Senhora!"
Violante, porém, voltou-lhe à lembrança foi como uma luz rompendo trevas. Era também uma visão de morta. Reminiscências surgiram como espectros; o marido, um menino que ela vira morrer de febres, e a mãe, tão velha na morte! sorrindo e sumindo-se vagarosamente como se, além mesmo, no espaço, lhe fosse penoso andar.
Uma recordação, porém, assombrou-a: a morte dum velho negro. antigo escravo da família. Viuo esgrouviado, agonizando, contorcendo-se, a boca escancelada, os olhos em alvo, numa aflição inconcebível. grugulhando, com o peito nu, ripado pelas costelas salientes, o ventre cavado, a pedir ar, ar, ar...! Levantou-se da cama descalça, a tremer e medrosa, como se sentisse duendes pela casa, passou à sala de jantar e, no escuro, pôs-se a bater na mesa com a mão espalmada, chamando:
- Felícia! Felícia!
A negra, em fraldas de camisa, apareceu sobressaltada:
- Que é, minh'ama?
As duas mulheres encontraram-se na sala escura.
- Ah! Felícia, para que havia você de falar dessas coisas agora... Não posso dormir.
- Minh'ama está com medo?
Dona Júlia respondeu com um fundo suspiro recolhendo-se ao leito.
- Agora tem paciência: vem ficar comigo.
- Eu vou buscar a minha cama. - E tornou à sala voltando, pouco depois, com uma esteira enrolada; estendeu-a e, forrando-a com um cobertor cinzento, sentou-se. O seu busto negro, magro, destacava-se da camisa branca, que lhe escorria pelo peito linguajado pelas mamas pelancudas. Baixinho, com a sua voz misteriosa, perguntou de novo: Minh'ama está com medo?
- Não sei: ando nervosa, tudo me impressiona.
- Quanto mais se vosmecê visse o que eu vejo. Não se lembra daquela noite em que vosmecê me encontrou de joelhos, na cozinha, rezando e chorando?
- Sim...
- Pois eu estava conversando com meu filho. Ele não me deixa - é de noite, é de dia - está sempre comigo. Como é que eu não tenho medo? A gente estando bem com Deus não deve ter medo. Que é que vosmecê pensa? Eles andam pela casa. Há gente que vê. Eu não vejo, mas ouço: eles falam, eles gemem; às vezes até cantam...
- Está bom, Felícia, vamos deixar isso para amanhã. É tarde; preciso dormir.
- Eu falo mesmo por vosmecê.
Deitou-se e, cobrindo a cabeça, o seu corpo magro e comprido, muito enrolado no lençol, ficou imóvel e hirto como o de uma múmia. Dona Júlia esteve algum tempo d'olhos abertos, a pensar naquele mistério das almas visitadoras. Felícia ressonava e, pouco a pouco, o sono foi-lhe também pesando nas pálpebras. De instante a instante abria os olhos já empanados, logo, porém, os fechava e adormeceu, por fim, cansadamente.
No dia seguinte, muito cedo, Paulo reclamou o almoço: tinha umas voltas a dar na cidade; não podia continuar naquela vida de malandrice, precisava arranjar-se, o meio-soldo que recebiam mal dava para a casa. Dona Júlia concordou, posto que sofresse, compreendendo que ele abandonava Violante. Quando o viu sair meteu-se na cozinha em conversa com a negra, pedindo informações sobre a sociedade espírita: "Se era decente, se iam lá senhoras". Restavalhe o sobrenatural como última esperança.
O dia correu tristonho, abafadiço, em pesado torpor. O mar, grosso e liso, parecia d'óleo e, para a tarde, acumulando-se o céu de nuvens negras, ela começou a preocupar-se com o filho, tanto, porém, que o viu entrar, respirou desafogada. Paulo estava irritado: ia e vinha pelo corredor a resmungar.
- Que tens?
- Que tenho? A senhora ainda pergunta?! Estou sem nada e tudo causa da senhora minha irmã.
Fui dispensado da revisão do Equador, porque não mandei um aviso ao secretário, prevenindoo da minha falta. É isto! E eu que cave!
A velha, acabrunhada, não disse palavra: ficou a olhar o céu. Relâmpagos luziam, o calor abafava.
- E agora?
- Ah! agora...
- Por que não falas ao compadre?
- Qual compadre! Eu arranjo-me, descanse.
A tormenta desencadeou-se nas primeiras horas da noite. Ríspido o vento batia com as portas, vergava as árvores e o mar arrebentava com fúria de encontro à muralha transbordando, alagando a rua. Paulo recolheu-se ao quarto e abriu um livro. Lia sem entender - eram os olhos que passeavam sobre as letras, o espírito andava longe, ora na estalagem ao lado de Ritinha, ora na revisão do Equador.
Já teriam os rapazes conhecimento da fuga de Violante? Encolheu os ombros com indiferença e, acendendo um cigarro, pôs-se a soprar baforadas para o teto. Ergueu-se revoltado contra a vida e pôs-se a passear pela casa, a conjeturar. Quando se deitou estava animado de esperanças, com grandes planos de trabalho: via-se feliz, independente, com auras propícias de fortuna. O dia amanheceu chuvoso; às nove horas, com um ligeiro almoço, lá saiu o estudante a perseguir o sonho.
Correram dias tristes e vazios. Paulo, inteiramente esquecido da irmã, entregou-se a outros cuidados. Saía cedo, a pretexto de arranjar a vida, voltava para jantar ou entrava tarde, noite alta, sempre a queixar-se da sorte, mal-humorado.
Dona Júlia não descorçoava, posto que a vida se fosse tornando, a mais e mais, apertada e difícil. Aproximava-se o fim do mês e, como o filho ainda não houvesse encontrado colocação, uma manhã a velha foi procurá-lo e, carinhosa, lembrou-lhe que tinha "algumas jóias e umas pratas". Que não se amofinasse, não haviam de viver sempre em dificuldades. Deus havia de ter pena deles. Paulo revoltou-se: "Não! não empenhava jóias. Ela que escrevesse uma carta ao Fábio, ele não fazia favor nenhum. Mais pedira ele ao pai." A velha meneou com a cabeça:
- Não, meu filho; não escrevo. Para quê? Pois não viste que nem mais aqui apareceu para me ver? Falou, prometeu e... até hoje, nada. Não! Que tem? empenhas hoje, tiras amanhã; não é vergonha. Nós não podemos ficar desprevenidos. Não estás procurando emprego? Então... Eu também farei, por meu lado, o que puder. Já agora não penso em Violante... Que Deus tenha pena dela. Não me escreve, não se lembra de mim... paciência, não vou amaldiçoá-la por isso.
Leva; não saio, não uso jóias. Que tem? É melhor do que ficarmos aqui sujeitos a alguma coisa.
Quando puderes tiras.
Ele recebeu o embrulhinho, deixou-o sobre a mesa, e a boa velha, satisfeita por lhe haver acalmado o espírito, saiu do quarto, sorrindo. Ele desfez o pacotinho e viu um grande broche antigo, de ouro, cravejado de pedras. Não se lembrava daquela jóia, nunca a vira ornando o colo materno. Era uma relíquia do passado, um remanescente dos tempos felizes. Calculou que daria uns quatrocentos mil-réis e, como andava com Mamede em excursões noturnas, de tasca em tasca, de espelunca em espelunca, lembrou-se de tentar a sorte com o que sobrasse do dinheiro, pagas todas as contas.
- É possível que eu não venha jantar, disse ao sair; vou dar uns passos por aí a ver se encontro alguma coisa.
- Não te esqueças da casa.
- Não me esqueço.
- E olha: Eu também talvez saia um pouco com Felícia, à noite.
- A senhora?!
- Sim.
- Onde vai? - perguntou sorrindo, achando um "quê" de cômico naquela resolução da velha.
Dona Júlia hesitou um momento, depois, também sorrindo, disse:
- Vou aí a um lugar... Quero ver se arranjo umas costuras.
- Pois a senhora quer coser para fora?
- Então, meu filho?!
- Ora, mamãe... deixe-se disso. A senhora pode lá com costuras!
- Não te importes. Tenha eu saúde.
- Pois sim... E a chave?
- Isto é que é... Já me lembrei de a deixar à janela, por dentro, com um barbante para se puxar.
- Ou embaixo da porta, lembrou.
- Sim, é melhor. Pois fica assim: deixo embaixo da porta, do lado esquerdo.
- Bem. Até logo.
- Até logo. E Deus te acompanhe.
Paulo saiu com ânsia de chegar à casa de penhores, para conhecer o valor da velha jóia. Dona Júlia foi à cozinha. Felícia estava no quintal, lavando, ao sol, com o cachimbo nos beiços.
Chamou-a. A negra levantou o busto, passando as mãos pelos braços, a raspar a espuma que os cobria, e caminhou para a velha, que se encostara a um dos alizares da porta:
- Estou com vontade de ir hoje, Felícia. Pode ser?
- Como não? Mas minh'ama falou a nhonhô?
- Falei.
- Dizendo que ia lá? - exclamou alarmada.
- Estás doida!
- Ahn... E vosmecê há de ver como se descobre tudo. - A fisionomia da negra iluminou-se. -
Vosmecê já devia ter ido.
- Não acredito nessas coisas.
- Por que, minh'ama? Então vosmecê não acredita nas almas?
- Não sei. Depois, tenho tanto medo... Tanta gente tem endoidecido por causa dessas histórias.
- Ora o quê, minh'ama!
- Ora o quê?!
- Pois eu sei de muitas pessoas que ficaram sofrendo depois que se meteram com o espiritismo.
Enfim, seja o que Deus quiser. Como não faço mal a ninguém, nem vou com más intenções... A
que horas começa?
- Às sete e meia. A gente saindo daqui às sete, chega lá com tempo.
- Pois sim.
10 Era noite fechada. Na sombra vasta do mar fogos piscavam e, longe, fulgiam as luzes litorâneas de Niterói, como pedras de um adereço em escrínio. Dona Júlia, enquanto a negra fechava portas e janelas, com os cotovelos na cômoda, a face inclinada sobre as mãos postas, rezava.
Quando Felícia apareceu, traçando o xale, persignou-se e soprou a lamparina. A luz de um fósforo, foram as duas seguindo vagarosamente pelo corredor escuro.
O céu estava negro e pesado e um vento frio soprava do mar. Felícia fechou a porta e, cautelosamente, raspando a soleira, escondeu a chave no lugar convencionado.
- Vamos, minh'ama.
Foram caminhando. A negra ia orgulhosa da conquista que fizera, já imaginando as perguntas com que a haviam de assaltar no Centro, quando a vissem entrar com uma senhora respeitável.
Sentia-se superior com aquela glória de iniciadora e, sôfrega, bem que Dona Júlia não pudesse sair do passo vagaroso, apressava-a: "Que já era tarde. Podiam encontrar a sessão no meio". E
a velha, de cabeça baixa, sondando o terreno com o guarda-chuva, lá ia.
- Mais devagar, Felícia; eu não vejo bem e a noite está tão escura. Não há um bonde para lá?
Eu a pé não agüento.
- Há bonde, sim senhora: ali no largo.
- Sim, porque eu já não sei andar; depois com a falta de vista, está sempre me parecendo que vou cair num buraco. - De repente, como ia pensando na sessão, cochichou: Não vá aparecer por lá algum conhecido. Deus me livre que Paulo saiba que ando metida nessas coisas.
- Não tenha medo, minh'ama: eu conheço todo o mundo que vai lá.
No Largo da Lapa, diante dos tílburis estacionados junto à igreja, Dona Júlia teve um sobressalto, aconchegando-se à Felícia.
- Não vá um desses cavalos disparar, rapariga.
- Não tem perigo, minh'ama. Que medo de vosmecê. Vamos por aqui.
Mas um bonde partia, e a negra, esquecendo a senhora, precipitou-se, a correr, com o xale a espadanar, aos psius! A velha fez um esforço supremo e foi levando o pesado corpo aos rebolos, arquejando e, ao alcançar o bonde, com as pernas trêmulas, ofegante, agarrou-se aos balaústres, guindando-se.
- Você foi correr, Felícia... sabendo que eu não posso - repreendeu esbaforida. - Estou aqui pondo a alma pela boca.
O bonde partiu.
A velha encolhia-se, receosa; mal olhava para os lados, indiferente às casas que fulguravam, profusamente iluminadas, com refletores radiantes; às músicas, que ressoavam em tarambotes;
à multidão que formigava às portas dos chopes, como nuvens de mariposas em torno de claridades. Aterrava-a a idéia de um encontro com o filho e, quando a negra mandou parar o bonde em frente ao teatro São Pedro, teve um choque e perguntou baixinho:
- É aqui?
- É ali adiante.
Atravessaram a praça em direção à Travessa da Barreira. Na esquina, junto a um quiosque, marinheiros chalravam. Entraram em uma viela escura e, diante duma porta estreita, Felícia deteve-se segredando com mistério:
- É aqui, minh'ama...
Dona Júlia sentiu um grande abalo, as pernas curvaram-se-lhe e, hesitante, lançando os olhos pela comprida escada, sussurrou:
- Não sei que é, Felícia... mas estou com medo.
- Medo de que, minh'ama? Aqui não há nada que meta medo, é uma casa santa, vosmecê vai ver Nosso Senhor lá dentro. Vosmecê tem medo de entrar na igreja?
- Ah! na igreja...
- Pois isto aqui é como uma igreja - a gente reza e ouve os conselhos do irmão.
Um homem magro passou por elas encolhido, sem voltar o rosto e foi-se vagarosamente, escada acima, a tossir.
- Quando me lembro de Dona Amélia...
- Então vosmecê pensa que Dona Amélia ficou maluca por causa do espiritismo? Ela nunca veio aqui, isso eu juro a vosmecê; nunca veio. Pode ser que em outros lugares haja falta de respeito, aqui não. Mas vamos, minh'ama. Não sei que parece a gente aqui parada, feito duas tolas.
Minh'ama experimenta; se não gostar não volta e está acabado.
- Pois sim.
Entraram. Dona Júlia, com as mãos geladas, o peito oprimido, subia lentamente. Em cima, suspirando, cansada, lançou os olhos pela sala vasta e sombria, escassamente alumiada por dois amortecidos bicos de gás. Junto à escada havia uma caixa de esmolas e ela procurava dinheiro no bolso fundo do vestido, quando a negra chamou-a para apresentá-la a um crioulo que estava de sentinela a um grande livro aberto sobre uma mesinha.
- Minh'ama, seu Damião.
O crioulo inclinou-se, estendendo a mão áspera e suada e, mostrando o livro, pediu: que assinasse. Trêmula e receando que, mais tarde, algum conhecido descobrisse ali a sua assinatura, escreveu simplesmente "Júlia" em letras tortuosas, mas o crioulo insinuou sorrindo:
- É o nome todo, minha senhora.
Tomou de novo a pena e completou a assinatura.
Logo o crioulo apresentou-lhe uma folha de papel implorando alguma coisa para o irmão Norberto, "que continuava enfermo, cercado e filhos". Ela deu-lhe uma nota, limitando-se a escrever na lista: Uma cristã. Felícia adiantou-se.
- Vamos, minh'ama. - Dona Júlia dirigia-se para a frente da sala quando a negra a deteve: É por aqui. Lá é para os homens.
Renques de cadeiras ocupavam todo o recinto abrindo uma estreita passagem central. As primeiras filas eram exclusivamente destinadas às mulheres. Dona Júlia sentou-se junto duma negra magra, de trunfa, que cabeceava com uma garrafa ao colo. Da sombra triste e calada rompia, de quando em quando, uma tosse rouca.
A sala não tinha outro ornamento senão as estrelas de ouro no papel azul que a forrava, dandolhe aspecto celestial. Ao meio do teto havia um embrechado de madeira como um imenso ralo, braços de gás pendiam de ponto em ponto. Duas portas ao fundo - a da esquerda fechada, a da direita aberta sobre escuro corredor. Estantes carregadas de livros ladeavam a grande mesa pousada sobre um estrado. Acima duma das estantes inclinava-se um quadro preto com a imagem de Cristo agonizante e, justamente por trás da mesa, na parede constelada, brilhava, em caixilho d'ouro, a legenda:
Fora da caridade não há salvação.
Mais adiante, em moldura esguia, o aviso: "É proibido fumar." Felícia, vendo que Dona Júlia andava atentamente com os olhos de um para outro lado, disse-lhe baixinho:
- Então? Vosmecê estava com tanto medo... e agora? Não é uma casa séria? Eu sei que muitos falam daqui, mas é de inveja, minh'ama. Vosmecê não imagina como a gente sai consolada desta casa.
A velha conservava-se calada, olhando sempre, examinando todos cantos. Passos soavam na escada, depois um toc-toc como de muletas que viessem batendo pelos degraus. Duas negras entraram, falando com intimidade ao crioulo da porta. Uma trazia uma criança pela mão e outra ao colo, tossindo, com a cabeça deitada sobre o seu ombro, em prostração doentia. Depois apareceu uma cabrocha magrinha, enfezada, com a pele toda em rugas, os olhos miúdos como vidrilhos, brilhando sinistramente no fundo das órbitas, muito corcovada, abordoando-se a uma bengala. E, pouco a pouco, a sala se foi enchendo - as mulheres tomavam os lugares reservados, iam os homens para as últimas cadeiras ou para as janelas.
Dona Júlia começava a impacientar-se, quando surgiu do corredor escuro, em mangas de camisa, arrastando chinelas, um mulato arremangado. Logo ao entrar na sala, reconhecendo uma das negras, estendeu-lhe a mão, muito alegre, detendo-se a conversar, mas passou adiante, afagando uma criancinha que choramigava. Por fim, levantando a cabeça, bradou com autoridade:
- Estamos na hora!
Os que entravam caminhavam em pontas de pés, sentando-se cautelosamente. Três marinheiros apareceram ao alto da escada, olharam, e já se dirigiam para as primeiras filas, quando o mulato falou: "Não, lá pra baixo, patrícios. Aqui é das senhoras." O mulato olhava insistentemente para Dona Júlia. Felícia chamou-o: ele adiantou-se risonho.
- Esta é minh'ama que vem fazer uma consulta.
Dona Júlia baixou os olhos, vexada, temendo que a negra falasse do seu tormento, contando a um estranho as angústias que lhe alanceavam o coração. Mas a um psiu, vindo do fundo corredor, o mulato voltou-se.
Na moldura de trevas, como essas figuras ebúrneas da arte bizarra dos japões, coladas sobre cetim negro, apareceu uma mocinha pálida, magrinha, de cabelos ruivos despenteados. O
mulato acudiu-lhe ao chamado, cochicharam e, logo em seguida, ele subiu ao estrado e acendeu os dois bicos de gás que iluminaram a mesa. Houve um sussurro na sala abafada -
cadeiras arrastadas, pigarros; uma criança pôs-se a chorar.
Da rua entraram na sala taciturna as rajadas alegres de um dobrado. Um dos marinheiros foi à janela, outro seguiu-o, mas a música perdia-se, morria na distância, como levada pelo vento, e o silêncio recaiu. Dona Júlia, vendo o movimento dos assistentes, compreendeu que se iam passar coisas estranhas, e chegou-se muito à Felícia, numa necessidade de proteção. Cortava apenas o silêncio uma tosse intermitente que vinha de um canto.
Súbito, rompendo da treva do corredor, um homem apareceu, ligeiro, irrequieto, com o lenço em volta do pescoço. Subiu logo para o estrado, sentou-se à mesa e disse: "Deus esteja convosco".
Um murmúrio correu pela sala, como a passagem do vento nas árvores. Uma mocinha, que ocupava uma das primeiras cadeiras, a cabeça pendida sobre o colo magro, estremeceu violentamente, com um suspiro entrecortado, e a cabrocha, persignando-se, deixou cair o cajado, com estrépito; todos voltaram-se, como assombrados.
O menor incidente para aquele bando passivo assumia o caráter de uma revelação superior; de tudo tiravam presságios, descobrindo nos mais ligeiros e insignificantes ruídos - o sussurro da chama do gás que o vento vergava, uma folha de papel que voava, o rangido de uma porta, influências misteriosas de espíritos visitadores. O homem, todo de preto, com uma barba curta, olhinhos miúdos, profundamente encovados, vivíssimos, o cabelo escorrido, empastado na testa, com o cotovelo fincado na mesa, a fronte apoiada na palma da mão, folheava atentamente um livro.
Um dobre de sino rolou longamente. Alguém suspirou com sofrimento: "Ai! meu Deus". Cabeças voltaram-se, curiosas daquela mágoa e o infeliz, um velho esquelético, de grandes barbas amarelecidas, pendeu a cabeça sobre o peito, como a um peso grande e insuportável.
Lentamente o homem pôs-se a ler uma passagem evangélica. As palavras saíam-lhe da boca engroladas, quase ininteligíveis; por vezes eram como um murmúrio, e todos tinham os olhos nele, imóveis, extáticos. Uma criança rompeu em pranto e, como se quisesse aproveitar aquele rumor, que interrompia a pregação, o enfermo, encantoado, pôs-se a tossir cavernosamente.
Em passos surdos um homem atravessou a sala - os sapatos gastos, sem salto, não faziam rumor. Velho, calvo, com uma barba rala emoldurando a face lívida, seguiu direito para a mesa, abanando-se ligeiramente com um leque. O que lia ergueu-se e, cedendo-lhe o lugar, pôs-se de pé, fechou o livro e entrou a falar da Piedade:
"O espírita não tem o direito de matar, mesmo em legítima defesa não deve levantar mão criminosa contra o seu semelhante. Se algum dia um de vós, meus irmãos, for atacado por um homem cuja razão obscurecida o leve ao crime, em vez de responder ao fogo com o fogo, ao ferro com o ferro, deve procurar chamar o transviado ao bom caminho com palavras virtuosas e, se não conseguir convencê-lo, é preferível deixar-se matar a cometer o crime nefando de assassínio, porque, na outra vida, esse ato de piedade cristã será premiado largamente por Deus.
"Os espíritos sofrem nas reencarnações. Eu, por exemplo, meus irmãos, fui Pedro Arbues, o grande inquisidor. E hoje, por que sofro tanto a calúnia, a ameaça de morte, as dores físicas, as provações morais? Pelo que faço nesta vida de agora? Não, porque, iluminado pela claridade divina, o meu espírito segue pelo caminho direito da Verdade.
"Sofro pelo que fiz na primeira encarnação; sofro porque fui surdo aos lamentos dos infelizes que eram levados às fogueiras; sofro porque não dei atenção aos gritos dos pobrezinhos, aos gemidos das crianças, aos soluços dos inocentes.
"E vede: Pedro Arbues, que foi um rancoroso, é santo, teve a canonização, a Igreja deu-lhe um lugar honroso no coro de Deus e eu padeço por ser justo, sofro vexames e tormentos porque não me desvio da virtude.
"Não julgueis, porém, que me revolto - resigno-me e bendigo todos os sofrimentos, que são a expiação de antigas culpas. Terei a recompensa quando deixar esta carne efêmera para residir, em puro espírito, à direita do Eterno. Nunca penseis em vingança, meus irmãos!" - exclamou fanhosamente.
O velho, d'olhos fechados, repoltreado na cadeira da presidência, abanava-se ligeiramente, como os acrobatas japoneses, virando, revirando a cabeça. O outro continuou: "Os nossos padecimentos são insignificantes em relação aos nossos crimes. Ainda penando devemos ser gratos à misericórdia divina". Dona Júlia acenou afirmativamente com a cabeça. "Quando virdes um homem torturado, lastimai-o, mas não o julgueis vitima de uma injustiça de Deus, não! Ele buscou, com atos, aquelas dores; ele mesmo abriu as feridas em seu corpo e preparou a ruína da sua casa. Os julgamentos de Deus são retos e inexoráveis."
Limpou o suor da fronte, depois, atirando o lenço à mesa, disse, inspirado, cravando os olhos em Dona Júlia:
"Não vos revolteis contra Deus. Por que duvidais do seu poder? Por que blasfemais? Por que o vosso filho, desvairado pelas paixões, desprezou o vosso carinho, enveredando, alucinadamente, pelo caminho do vício? Confiai na Providência e a ovelha tornará ao redil, trazida pelo arrependimento."
Dona Júlia estremeceu na cadeira e chegou-se mais à Felícia, com os olhos imensamente abertos, a boca em hiato, trêmula e fria. Era justamente a história lamentável da sua vida que aquele homem denunciava; era a sua chaga que ele esvurmava, expondo-a aos olhos de todos e ela, humilhada, envergonhada e medrosa, repuxava o xale da negra, chamando-a em voz surda:
- Felícia... Felícia. - A negra inclinou a cabeça para ouvi-la: Ele sabe?
- Como não, minh'ama!?
- Foste tu que lhe disseste.
A negra mirou-a sem dizer palavra. Mas o homem continuava pregando a misericórdia, mostrando Jesus a perdoar as ofensas, até quando as lanças se lhe embebiam nas carnes.
Dona Júlia não ouvia, preocupada com as palavras misteriosas que ele pronunciara, tão de feição à sua angústia e foi preciso que Felícia a chamasse para que ela saísse do êxtase doloroso e desse atenção ao pregador:
"Meus irmãos, concentremo-nos para que os nossos bons fluidos se convertam em medicina, preparando a água que deve curar os enfermos.
Uma velha ajoelhou-se e, d'olhos no teto, mãos postas, estatelou-se em ascese; e o homem pôs-se a dizer a prece lentamente, com o surdo e arquejado acompanhamento de toda a devota assembléia.
"Imploramos aos Bons Espíritos e aos nossos Anjos da Guarda, em nome de Deus, nosso Bom Pai de Amor, para envolver-nos com os seus fluidos salutares, a fim de transmiti-los a esta água, que será medicamento, porque servirá de veículo aos nossos bons fluidos. Desejamos, antes dos curativos dos nossos corpos, curar os espíritos, arrancando de nós o ódio, o crime, o orgulhoso egoísmo, que são enfermidades d'alma, piores que todos os sofrimentos da vida terrestre. Bom Pai, nós queremos nos regenerar e, animados pela fé ardente no vosso divino amor e pela certeza inabalável na vida futura, pedimos a proteção dos Espíritos Elevados, nossos filhos e nossos irmãos amados, em vosso santo nome, para que se faça em nós, sempre, a vossa santa vontade."
Terminada a prece, persignaram-se todos, com um murmúrio devoto, e o homem declarou:
'Que os doentes podiam ir encher as suas garrafas."
Produziu-se sôfrego alvoroço. As mulheres tiravam garrafas debaixo nos xales, desembrulhavam-nas e lá iam, aos apertões, arrastadamente, em direção à pia, cuja torneira jorrava gorgolejando.
Era a água santa, impregnada de fluidos espirituais, benzida pelos anjos de Deus, e aqueles que a recebiam veneradamente saíam consolados. Uns bebiam ávidos, não por sede, mas porque sofriam e logo, aliviados, como se os bálsamos angélicos houvessem operado instantaneamente, retiravam-se fazendo lugar aos que chegavam. E interrogavam-se sobre as melhoras: se já caminhavam com mais segurança; se viam melhor; se as dores haviam abrandado.
Um velho meteu-se a um canto com a sua garrafa e, despejando a água no côncavo da mão, pôs-se a banhar os olhos, e a negra, despertando a criança enferma, chegou-lhe à boca seca um copo d'


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