O Sonho das Esmeraldas
A
HÉLIO LOBO
ALTA E NOBRE
INTELIGÊNCIA, CARÁTER DE OURO, AMIGO DILETÍSSIMO.
O Sonho das Esmeraldas completa o O Romance da Prata. Evocam-se nesses dois livros, consoante o que contam velhos papéis, as duas mais antigas, e, ao que me parece, as duas maiores lendas do passado brasileiro. Lendas que tiveram conseqüências capitais na formação do território nacional: "A Serra da Prata" e "A Serra das Esmeraldas".
Neste volume, a certa altura, fui forçado a tratar novamente da personalidade de Fernão Dias Paes Leme. Novamente, sim, porquanto a personalidade do nosso herói sertanejo, que creio ser a mais gigantesca, e, ao mesmo tempo, a mais fascinante do bandeirismo paulista, já havia eu, bem ou mal, tratado fantasiosamente em um romance: "A Bandeira de Fernão Dias". Hoje, volvidos vários anos, e, sobretudo, depois de estudar mais minudentemente a documentação que tem vindo à luz sobre o intrépido cabo, aqui estou, não como romancista, mas tão-somente como cronista, a pôr Fernão Dias Paes Leme mais uma vez, em alguns capítulos, debaixo dos olhos do leitor. E tenho a impressão de que, fora da novela, mas dentro da História, rigorosamente dentro da História, sem outro atavio a não ser o que diz a bolorenta papelama dos arquivos, o vulto do sertanista ressalta mais nítido e mais engrandecido.
São Paulo. 964.
PAULO SETÚBAL.
PRIMEIRA PARTE:
A SERRA DAS ESMERALDAS
A SERRA VERDE
Não foi apenas o sonho da prata que arrastou aventureiros e desbravadores para dentro das brenhas selváticas do Brasil que nascia. Não. Houve ainda outro sonho. E este, também, escaldante e fascinador: o sonho das esmeraldas. Sonho que nasceu, tal como o da prata, duma frágil lenda encantadora, lenda saborosa, trazida ingenuamente por bugres: A SERRA VERDE. Sim, a Serra Verde! A Serra das Esmeraldas! "... chegaram certos indios do Sertão a dar novas de humas pedras verdes que haviam numa serra. E
traziam algumas dessas pedras por amostras, as quaes eram esmeraldas. E os mesmos indios diziam que daquellas esmeraldas haviam muytas; e que aquella serra muy fermosa e resprandescente..." conta-o o velho Gandavo. E, com o velho Gandavo, todos os que, no alvorecer do Brasil, tiveram contato com a terra do pau-de-tinta, todos ouviram da boca dos selvagens os mesmos tentadores informes sobre a serra verde, essa encantada serra verde, fermosa e resprandescente."... afirma o gentio haver no sertão pedras verdes, muy resprandescentes, diz um vetusto papel. E, para a banda de leste, pouco mais de uma legoa, está uma serra, a qual cria em si muytas esmeraldas".
Mas não eram só os índios, nem antigos cronistas deslumbrados, que davam notícias da extraordinária montanha. Havia grandes sertanistas, homens de verdade e peso, que contavam coisas as mais pasmantes de certa pedreira verde, muito fuzilante, que haviam topado nas suas jornadas. "... a cata que mandey abrir deu numa pedreira verde, narra-o Barbosa Leal; e ha grande expectassão que tem nella esmeraldas; pois daquella serra sahem pedras de cor verde, da mesma casta da pedreira verde". E que estranha pedreira verde era aquela pedreira encontrada pelo sertanejo! Tão verde, tão verde, que tudo, em derredor, seres e coisas, tudo era também verde: "... o ryo que say daquella pedreira tem a agua verde; as hervas que dentro delle se criam são verdes; athé o peixe ally he verde.
Sertão assombroso, não há dúvida, sertão das mil-e-uma-noites, Esse abruptado sertão do país novo, misterioso, onde havia tanta pedraria faiscante! "... por todo o mesmo sertão ha muytas pedreiras de pedras verdes, coalhadas, muy rijas..." De tais pedreiras é que brotavam aquelas esmeraldas muy limpas e de honesto tamanho que se criavam nos matos, como diz o conspícuo Gabriel Soares. E se criavam do jeito o mais espantoso: "...
as esmeraldas nascem dentro em chrystal; e os indios quando as acham dentro delle, poem-lhe fogo para o fazerem arrebentar de maneira que lhe possam tirar as esmeraldas de dentro..."
E como alcançar dentro da mataria virgem, brutíssima, daquele Brasil bárbaro que acordava, a serra verde onde se criavam tais pedras? Eis a acutilante empreitada que tentava a todos. Mas que empreitada perigosa! Havia sobre a montanha verde lendas terríveis. Certo padre, na Jacobina, contava que um dia "... dando o gentio noticia da serra onde havia as pedras, intentara descobrillas". Mas não o conseguiu porque "entre os muytos embarassos que então teve, foi hum os grandes estrondos que se ouviram naquella serra". Estrondos tão grandes, tão grandes, com tantos bulcoens de fogo que subiam pelo ar - lá vai contando saborosamente o padre, "que os selvagens, atemorizados, protestarão que não se hiam á serra sinão morriam todos; e se precisou mudar o rancho naquella mesma hora e fugir do sitio em que estavam."
Tarefa rudemente amedrontadora, perigo medonho, não havia dúvida, era o buscar por essas silvas a pedreira das pedras verdes! Mas que importava o perigo? O sonho das esmeraldas era fascinador. E fascinava tanto, com tal engano, que não houve matos, nem bichos peçonhentos, nem estouros, nem bulcoens de fogo, nem estorvo de porte algum, que tolhessem o ânimo deslumbrado dos sertanejos. E tal como aconteceu com a prata, durante duzentos longos anos, rumo ao sertão, saíram as entradas, visionárias e desabusadas, no encalço da serra verde.
OS PIONEIROS
Fascinantes, muito espicaçadoras, deveriam ter sido as velhas falas que corriam o Brasil primevo sobre as esmeraldas do sertão. Pois o velho Tomé de Sousa, o próprio Tomé de Sousa, governador notadamente frio e prático, deixou-se contagiar por aqueles contos afogueados que então bailavam no ar. E mandou que um castelhano, certo Felipe de Guilhem, antigo boticário em Sevilha, homem que os sabedores muy folgavam de ouvir, se fosse pelo mato adentro à procura das pedras. "Descobrir (diz Felipe de Guilhem em carta a D. João III), tomar altura, olhar a disposição da terra, e o que nella ha; porque, sem duvida, ha la esmeraldas e pedras finas..."
O castelhano, contudo não se sentiu com ânimo bastante para se meter pelas brenhas atrás das esmeraldas e das pedras finas. "... homem tão velho como eu atrever-se a tão comprido caminho, seria dizerem que me falta o que cuidam que me sobeja". Tinha bem razão o velho Guilhem! O caminho das esmeraldas era comprido e áspero. Mas a ambição de topar com a pedreira verde, aquela coruscante pedreira encravada no âmago dos matos brutos, atiçava e escandia o ânimo sôfrego dos sertanistas. E outros, outros e muitos, a partir de então, se botaram por aqueles escuros silvedos à cata da serra verde.
Encontrá-la-ão?
* * *
Um dos primeiros foi, sem dúvida, Bruzo Spinosa. Partiu éste em companhia do jesuíta Aspilcueta Navarro. "Dar-lhes conta de todo o nosso caminho, seria um nunca acabar..."
escreve o jesuíta aos irmãos caríssimos. E vai narrando, aos irmãos caríssimos, que "...
entramos pela terra a dentro sempre por caminhos descobertos, por serras muy fragosas que não tem conta, e por tantos ryos que, no espaço de quatro ou cinco legoas, passamos cincoenta vezes contadas por agua..."
1 Duríssimo jornadeio foi aquele jornanadeio de Spinosa e de Aspilcueta! Mas inútil.
Voltaram ambos com a sacola vazia. Que montava lá isso? Os bugres, sem cessar, continuavam todos a dizer que "... no sertão, muytas legoas pela terra a dentro, está uma serra onde ha umas pedras verdes, as quaes são esmeraldas. Essa serra he muy fermosa e resprandescente..." Diante de tais falas, assim insistentes, assim espicaçadoras, esbraseava-se o ânimo rústico daqueles primitivos rompedores-de-sertão.
E conta o delicioso Gandavo "... tanto que os moradores desta capitania de Porto-Seguro foram disto certificados, fizeram-se prestes cincoenta ou sessenta Portuguezes, com alguns índios da terra, e partiram pelo sertão a dentro com determinação de chegar a essa serra resprandescente onde as esmeraldas estavam. Hia por capitám desta gente hum Martim Carvalho..."
Longamente, a atacar aqueles mataréus impenetrados, Martim Carvalho, o desbravador seduzido, vagueou errabundo. Viagem tremenda! "... muytos dias a padecer fome; outros sem comer outra cousa senão alguma cobra que matavam". E andara, tendo ã frente a miragem verde a acenar-lhe com o seu facho mendaz, "andara duzentas e vinte legoas pela terra, onde as mais das serras que achou, e viu, eram de muy fino chrystal; e toda a terra em si muyto fragosa; e outras muytas serras que vio eram de huma terra azulada..."
A leva, contudo, batida de crudelíssimas desgraças, não atingiu a pedreira verde.
Desbaratou-se pelo caminho. Não faz mal! Martim Carvalho (afirmavam-no, convencidíssimos, os poucos sobreviventes da entrada), Martim Carvalho estivera no rumo certo das esmeraldas. "... podiam estar cem legoas, se tanto, distante da serra das pedras verdes" 2 Quê? Estiveram no rumo certo? Cem léguas só distante da serra das esmeraldas? Ao ouvir o relato dos que voltaram, com o sonho das pedras também a acender-lhe fantasmagorias na alma, Sebastião Fernandes Tourinho, homem de cabedais, parente do donatário da Capitania, mete por aqueles dédalos selvagens, atrevido e desassombrado, uma larga tropa de minas e de arcos. Lá foi atrás da quimera esplendorosa. E teve, dentro daqueles negros bosques emaranhados, as surpresas as mais deslumbradoras.
SERTÃO DESLUMBRANTE
"Sebastião Fernandes Tourinho, morador em Porto-Seguro, com certos companheiros foi pelo sertão; e andou alguns mezes á aventura..." Que aventura radiosa! Principiaram estes viajeiros por se engolfar, muito audaciosamente, nos longínquos e bárbaros matagais do rio Doce "... andando esta gente ao longo de um ryo, por mais de trinta legoas, ahi se detiveram. Tornando a caminhar, andaram quarenta dias, ao cabo chegaram aonde se mette este rio no rio Doce..." E aí atacaram o sertão medonho da paragem brutíssima. Medonho, mas deslumbrante. Sim, que sertão deslumbrante! Quanta pedreira rara! Quanto cristal! Quanta serra resplandecente! "... aqui neste sertão achou esta gente umas pedreiras de pedras verdoengas, que parecem turquescoas..." E nem só turquescoas ".... . indo mais acima, quatro ou cinco legoas da banda do sul, está outra serra, em que o gentio tambem afirma haver pedras verdes, e vermelhas, e azues, e todas muy resprandescentes..." A tropa, deslumbrada, pôs-se a vaguear por aquelas selvas prodigiosas. Selvas das mil-e-uma-noites! Dentro delas, cheias do fogaréu de tanta pedraria fuzilante, estaria certamente a tão sonhada Serra das Esmeraldas. E estava de fato! Lá conta a palavra empoeirada de Frei Vicente: "... e quando esta gente passou o ryo pela derradeira vez, dalli a cinco ou seis legoas, da banda do norte, achou Sebastião Fernandes Tourinho a pedreira das esmeraldas..." A pedreira das esmeraldas! Enfim, dentro daqueles matos, na banda do norte, a pedreira das pedras verdes! E como Tourinho era bandeirante afortunado, desses que vinham guiados pela vareta mágica dum deus amável, não achou ele apenas as sonhadas esmeraldas: achou também safiras. "... O cabo descobrio a pedreira das esmeraldas e também uma outra de safiras, as quaes estão ao pé de uma serra cheia de arvoredo."
Esmeraldas! Safiras!
Não podia haver remate mais fúlgido à entrada do sertanejo...
Tourinho trouxe ao povoado, por entre encantados relatos, a notícia maravilhadora da montanha verde. E a notícia da montanha verde reboou por toda a Bahia com fragor! Os ânimos incendiaram-se. Toda gente queria embrenhar-se pela terra adentro à busca das pedreiras de Tourinho. Antônio Dias Adorno foi um dos tentados...
3 * * *
"Entre estas entradas no sertão, fez huma Antonio Dias Adorno...". Fez - acentuemo-lo aqui - com o intuito de descobrir esmeraldas e de descobrir ouro. "El Gobernador Luiz Brito embió esta año Antonio Dias, com muchos soldados y indios, a descubrir oro..."
4 Antônio Dias Adorno investiu, desabusado, por aquelas rechãs onde moravam as pedrarias. Viu, tal como Tourinho, num aturdimento, grandes serranias que fuzilavam, e pedreiras de cor, e picos de cristal, e rios encachoeirados a correr por entre ribanceiras de mármore. Não achou, é verdade, dentro desses estupefacientes matos onde se atufara, o ouro que Luiz de Brito embio a descubrir. Mas achou esmeraldas! "... entrou pelo Rio das Contas, e, seguindo a sua corrente, que vem de muy longe,. rodeou grande parte do sertão, onde achou esmeraldas. . "
5 Esmeraldas de novo! Esmeraldas como as de Tourinho! O sertanista fá-las pressurosamente examinar. Os práticos, porém, constataram que aquelas pedras, tal como se constatava ao mesmo tempo na Bahia com as de Tourinho - "eram esmeraldas de superficie tostadas de sol"; "... esmeraldas que a terra despede de si, e, por isso, escoria das bôas que se criam por debaixo". A desilusão foi crua. Esboroou-se, ante aquelas pedras de superfície, tostadas de sol, a rútila quimera que afogueara a todos. E quem, já agora, desfeito o sonho, haveria de correr de novo atrás das esmeraldas? Daquelas esmeraldas finas, das boas, das que se criavam debaixo da terra?
MARCOS DE AZEREDO
Rodaram vinte e dois anos. E durante esses vinte e dois anos não se cuidou mais de esmeraldas. Só se cuidou de ouro. Os paulistas, como bandos de caitetus selvagens, embrenhando-se pelos matagais os mais remotos, corriam agora a terra virgem, desassombrados e cúpidos, à busca das minas douradas. Ninguém mais falava nas pedras.
E eis que, de repente, não se sabe como, principiaram de novo a correr falas sobre a Serra das Esmeraldas. Essas falas, agora, não mais vinham da Bahia. Vinham do Espírito Santo. A lenda descera para o sul... Sim, era no Espírito Santo, nos sertões ásperos daquelas paragens ainda não devassadas, que (diziam) ficava aquela serra coruscante, mui fermosa e resprandescente, onde havia pedreiras de pedras verdes. Tantas, tão insistentes cresceram essas vozes, que Martim Cão, o célebre matante negro, botou, fascinado, a sua horda selvagem no encalço da montanha enganosa. Não a encontrou, é certo. Mas o sonho das esmeraldas acendeu-se de novo. E no cenário das pedras verdes surge, neste momento, uma figura capital: Marcos de Azeredo Coutinho.
* * *
"... um Azeredo entrou pelo paiz das esmeraldas", diz um papel velho. E outro: "fez Marcos de Azeredo huma entrada para o descobrimento das esmeraldas que havia no sertão do Espirito Santo"
6 . Sim, lá foi o sacudido mateiro, com grandeza de arcos, a rasgar o emaranhado pego daquelas silvas misteriosas.
Pleno sertão do Espírito Santo!
Tal como a prata, as esmeraldas cumpriam ali, com Marcos de Azeredo, o seu destino fulgurante: a conquista do território. Graças ao sonho das esmeraldas, graças à quimera da serra verde, tão saborosa e tão lírica, nem só a Bahia, mas a terra do Espírito Santo vai ser agora talada, devassada, desbarbarizada...
O novo buscador das pedras arremeteu-se impávido por aqueles ermos. Quanto tempo?
Em que rumo? Difícil dize-lo. Mas o certo é que um dia, ao pé de certa lagoa, que os da terra chamavam vupabuçu, topa o bandeirante, festivamente, com estranha serrania, toda de cristal, que chispava ao sol com rebrilhos ofuscantes. Azeredo manda abrir uns buracos naquela serrania. E recolhe deles umas pedras verdes. E ao recolhê-las, Marcos de Azeredo é um júbilo só: -Esmeraldas!
E eram realmente esmeraldas! "... de chrystal sabemos certo haver uma serra na Capitania do Espirito Santo; em dita serra é que estão mettidas muytas esmeraldas;
destas esmeraldas levou Marcos de Azeredo amostras a el-Rey", conta-o Frei Vicente.
Sim, o cabo venturoso, com o esplendente achado dentro da sacola, embarca num galeão e toca-se para Portugal. O Rei recebeu-o com grande acolhida. E mandou logo que os lapidários averiguassem as amostras. Foi então que, feitos os exames, declararam os lapidários - supremo acontecimento! - que as pedras verdes do sertanejo não eram pedras à-toas: eram esmeraldas verdadeiras e finas. "... um Azeredo descobrio no sertão da capitania do Espirito Santo uma grande serra de esmeraldas, que foram trazidas a este reino e reconhecidas pelos lapidarios por verdadeiras e finas esmeraldas" 7 - Esmeraldas!
Tão alvoroçado ficou el-Rei, tão radioso, que ali mesmo, ao ouvir os práticos - "fez mercê a Marcos Azeredo do habito de Christo e de quatro mil cruzados" 8 E ordenou ao ditoso achador que tornasse imediatamente ao sertão em busca de mais pedras. Mas, segundo o conselho dos lapidários - que cavasse mais fundo, bem mais fundo, pois "as mais interiores da serra, que decerto não se tiraram por não haver instrumentos, seriam perfeitíssimas".
Marcos de Azeredo tornou. Aqui, no Brasil, antes de ir-se novamente pelo mato adentro, pediu ao governador que se lhe pagasse o prêmio de quatro mil cruzados que lhe prometera o Rei. Pediu e esperou. Em vão! Não havia, no erário colonial, dinheiro que sobejasse para o pagamento do sertanejo. "... para a minha necessidade ser maior (dizia o governador em carta) aperta ainda Marcos de Azeredo pelos quatro mil cruzados que V.
Magestade lhe mandou dar pelo descobrimento das esmeraldas; e não sei de onde sair esses cruzados pela estreiteza em que tudo está".
Sem o dinheiro embirrou o sertanejo em não tornar à pedreira. Embalde lhe suplicavam, com muitos rogos, que tornasse. Embalde lhe afirmavam que lhe seriam dados, mais adiante, os quatro mil cruzados. E, com os quatro mil cruzados, mercês, honrarias, cargos, tudo! Nada o demoveu. Marcos de Azeredo turrou em receber de antemão o dinheiro prometido. Sem o dinheiro, dizia firme - não revelaria jamais o sítio das pedras. E
eis que, em meio a essa pendência, Marcos de Azeredo cai subitamente doente. Cai atacado de câmaras de sangue. Diante da gravidade da doença, todos tremeram pela sorte das esmeraldas. Onde ficavam elas? Em que serra? De que banda? Onde? Marcos de Azeredo continuou trancado no seu mutismo. Não houve quem lhe arrancasse uma só palavra esclarecedora.
E morreu.
Morreu sem revelar o segredo das pedras verdes.
VERDADEIRA ALUCINAÇÃO
A morte súbita de Marcos de Azeredo veio atear labaredas na alma aventureira dos sertanistas. Ela foi, para a história das esmeraldas, o que morte de Meichior Dias foi para a história da prata. Toda gente, agora, não sonhava com outra coisa senão desvendar o segredo do bandeirante. Senão alcançar aquela serra verde que se escondia, coruscante, dentro do mato bruto. Sim, onde estavam as esmeraldas de Azeredo? Onde a pedreira?
Onde? E umas após outras, numa arremetida desabalada, verdadeira alucinação, pegaram de sair entradas sobre entradas no encalço da mina falaz. Nada pinta com mais viveza a desmesurada febre que então contagiou todos os ânimos do que este extraordinário caso: os jesuítas até os próprios jesuítas! - foram arrastados pelo fascínio da quimera verde. Extraordinário caso, não há dúvida. Mas verdadeiro! É que a Companhia de Jesus estava a dever, na Bahia, 150.000 cruzados. Dívida pesadíssima, como se vê. Como se livrar a província de tão carrancudo encargo? Ocorreu ao padre Ignácio Siqueira, então Superior, esta idéia salvadora: as esmeraldas! E nada mais natural. Marcos de Azeredo, dizia o padre, não as havia descoberto? Havia. Os lapidários, no Reino, não haviam dito que eram finas e verdadeiras? Haviam. Pois então, irmãos caríssimos, toca a buscar as esmeraldas de Marcos de Azeredo! E, com as esmeraldas, pagar os 150.000 cruzados! Padre Inácio foi logo requerendo ao governador que lhe permitisse "... proseguir os descobrimentos que Marcos de Azeredo iniciára nos sertões do Espirito Santo..."
O governador deferiu. E os jesuítas partiram. Partiram e fracassaram como todos os demais haviam fracassado. Mas que montava lá isso? Atrás dos jesuítas, sonhando o mesmo sonho, lá se arremessaram os dois filhos de Marcos de Azeredo, Antônio e Domingos. E atrás dos filhos de Marcos de Azeredo, o próprio governador Salvador Correia de Sá. E atrás do governador, o filho, João Correia de Sá. E atrás de João Correia de Sá, Agostinho Barbalho de Bezerra...
Mas tudo em vão! Tudo desoladoramente inútil! As crônicas do tempo, num só tom, apenas contam lamurientas, fracassos sobre fracassos: "... as muytas despezas dos filhos de Marcos de Azeredo se malograram, porquê não foi Deus servido que dellas resultasse o apetecido effeito." Ou: "por muyto tempo esquadrinhou o Governador o interior das florestas em busca da misteriosa serra; mas o encantado tesouro não apareceu". E ainda:
"... partiu João Correia de Sá com grande concurso de gente em busca das encantadas minas. Mas a Serra das Esmeraldas, ainda desta vez, não foi encontrada".
"... ainda, desta vez, não foi encontrada..." Pouco importa! O sonho das esmeraldas, aquele sonho escaldante, alucinador, verdadeiramente incrível, continuou sem arrefecer.
E vai ter agora o seu momento supremo: soou a hora de Fernão Dias Paes Leme.
SEGUNDA PARTE:
FERNÃO DIAS PAES LEME
O POTENTADO
Fernão Dias Paes Leme era um potentado de grande raça. Já fora o pai, Pedro Dias Paes Leme - "um paulista de grande estimação e respeito, que muytas vezes occuparam os cargos da republica". E a mãe, D.Maria Leite, senhora muito abastada de bens, era, por seu turno, filha de Pascoal Leite, fidalgo dos Açores, que se havia passado "ás minas da Capitania de S. Vicente a serviço da Corôa". Os Lemes, além do mais, entroncavam-se luzidamente em uma das estirpes mais velhas de Portugal. "Desta familia, e dos grandes varões que ella produziu, por espaço de quinhentos annos, já fala Manoel Soeiro nos seus Annaes de Flandres", diz o velho Taques. Nos Annaes de Flandres, sim, porquanto os Lemes descendiam daquele Martim Leme, cavalleiro nobre e rico, senhor de muytos feudos na cidade de Bruges, nas Flandres, que tinha no seu brasão, já nesses recuados tempos - as armas da casa em campo de ouro, com cinco melros pretos, sem pés nem bicos, e, por timbre, um dos melros entre aspas de ouro".
Ora, Fernão Dias Paes Leme, assim fidalgo, assim curioso gentil-homem rústico, vivia em São Paulo, respeitado e poderoso, a plantar lavouras de mantimento nos seus muitos chãos. Era o patriarca da terra. Chefe de autoridade sem contraste. Não houve, por essas eras, na terreola de Anchieta, acontecimento de monta em que seu nome não pompeasse. A história de Piratininga está cheia dele. Vede:
* * *
Rompe em S. Paulo, de golpe, enraivada luta entre jesuítas e bandeirantes. Tão encarniçada cresceu a briga, tão vermelha, que os preadores-de-bugre não trepidaram em liquidar a contenda com este cautério radical: expulsar os sacerdotes da vila. E
expulsaram. Anos a fio, apartados uns dos outros, viveram os padres e os paulistas como duas greis assanhadas. Foi o velho Fernão Dias, com a sua palavra de peso, quem chamou à razão os dois inimigos. Apaziguou-os. Reconciliou-os. Fez mais: um dia, sob fragorosos repiques de sinos, o bandeirante trouxe de novo à vilota, triunfalmente, os continuadores da obra evangélica de Anchieta. E solucionou assim, com a sua autoridade, o caso mais agudo e mais melindroso da época.
Mas não é tudo. Desencadeara-se em São Paulo, por esse tempo, procela fervilhante de cóleras. Duas famílias defrontaram-se, aterrorizadas: os Pires e os Camargos. E entre elas estrondeja medonha luta de ódios. Luta acirradíssima, medieval, que marcou época.
As duas clãs, altaneiras ambas, ferozes ambas como os Montequis e os Capuletos, encharcaram de sangue o burgo nascente. Houve assassínios. Houve massacres. São Paulo atroou sob o fragor de iras desencadeadas. Fernão Dias tomou o partido dos Pires.
Mas procedeu, no esbrevejar da refrega, com tal retidão e limpeza, que os dois partidos, nas eleições para juiz ordinário, que era o cargo mais alto da vila, botaram ambos o nome de Fernão Dias no pelouro. Assim, surpreso e envaidecido, o potentado se viu, por escolha concordante de Pires e de Camargos, o chefe eleito das coisas da república.
Os fatos, pois, diziam com estridência do destaque do paulista. Ele tornou-se a figura maior da capitania. A maior e a mais rica. Sobretudo a mais rica. Pois "... vivia nobre e decorozamente em sua patria, sendo dos homens mais ricos da Capitania", dizia a Câmara de S. Paulo. "... homem dos de maior cabedal e gente que havia nesta Capitania", afirmavam os homens bons de S. Vicente. Ao que ajuntava D. Rodrigo de Castel Blanco: "... era uno de los mais ricos de aquella billa". E tudo reforçado pela palavra do protonotário apostólico: "paulista dos mais possantes dos bens de fortuna".
CARTAS... PROMESSAS...
HONRARIAS...
Ora, nesse momento, exatamente, o governo de Portugal estava empenhadíssimo na descoberta das esmeraldas e da prata: das esmeraldas de Marcos de Azeredo e da prata de Sabarabuçu. Aquela velha ambição de topar, por esses matareus adentro, com as tão faladas minas brancas e com a tão falada pedreira verde, tinha naquele momento tocado o seu auge. Nada mais natural, pois, que Lisboa tivesse os olhos cravados em Fernão Dias Paes Leme. E tinha de fato! Fernão Dias Paes Leme, o rico-homem paulista, era o cabo mais acertadamente talhado para a empresa das esmeraldas e da prata. "... o Principe regente destes remos recommendara muyto o descobrimento das esmeraldas e da prata. Estas foram sempre muyto apetecidas desde o principio do descobrimento do Brasil. Foi então lembrado Fernão Dias Paes Leme..."
E o Rei de Portugal, com uma insistência jamais vista, principiou a estimular o seu longínquo súdito sertanejo. Eram cartas, e rogos, e promessas, e palavras envaidecedoras. Não sei se houve, na história brasileira, outro homem, outra simples figura privada, tão calorosamente assediada de cartas reais, e de cartas de governadores, como o foi aquele tosco paulista rompedor-de-sertão.
* * *
Sim, quanta carta! O Príncipe Regente, o em breve D. Pedro II, esse, notadamente, inundou de letras os baús encourados do sertanejo. E era tudo assim:
"Fernão Dias Paes. Eu, o Principe, vos envio muyto saudar... agradeço muyto o zelo que tendes para o meu serviço; e espero que, com a vossa diligencia, se obre o que tanto se deseja; e fico com lembrança para que a vós, assim como aos que vos acompanham, mande fazer as mercês que merecem por tal serviço..."
É verdade que essas mercês prometidas - príncipe cauteloso! - só teriam lugar caso tivesse effeito o descobrimento que se deseja."... quererá Deus que, por vosso intermedio, se effectuem os descobrimentos das minas de esmeraldas para melhoramentos desta corôa e suas conquistas; podeis esperar de mim toda a mercê e accrescentamento, como tambem as pessoas que vos acompanharem, caso tenha effeito o que se deseja".
Essas mercês e esses acrescentamentos, não só prometia ao paulista a palavra alta do Rei: prometia-os também, em reiteradíssimas cartas, a palavra poderosa do governador Afonso Furtado. "... certifique-se vosmecê que lhe hei de alcançar grandes mercês e honras". Ou então: "... espero que vosmecê obre nesta empreza de maneira que lhe resultem grandes honras, e augmentos de sua casa, e augmentos de sua familia; e a mim o gosto de ser quem lhas solicite com maior efficacia, assim por cartas, emquanto estiver neste governo, assim como pessoalmente quando estiver na Corte..."
* * *
Diante de palavras tais, de promessas assim sem conta, o velho Fernão Dias não considerou a sua idade, nem os seus sessenta e seis anos, nem os perigos, nem os gastos, nem os estorvos, nem as canseiras tremendíssimas da jornada. Não considerou nada. Decidiu-se apenas, com rústica firmeza, a entranhar-se pelo mato em busca das esmeraldas e da prata. "... já elle não estava em idade de penetrar sertões, diz o Taques;
porém ás suas enfraquecidas forças deu briosos alentos o amor e o zelo do real serviço.
E Fernão Dias Paes dispoz-se para a jornada..."
Dispôs-se e, sem tardança, deu conta a Afonso Furtado da sua decisão. Que alegria a do governador! Enviou ele açodadamente à corte, por vários correios, a notícia auspiciosa "...
por differentes duplicados tenho dado conta a Sua Alteza do grande serviço que Vossa Mercê lhe vae fazer no descobrimento da prata da Sabarabussú e da serra das esmeraldas". E nem só enviou ao Príncipe a grande notícia, como também enviou a Fernão Dias uma carta muito ardorosa, em que lhe rogava se metesse logo, logo, pelo sertão em busca das esmeraldas e da prata."... que partisse, e partisse com todo o calor e brevidade possivel, a antecipar a felicidade que parece guardada ao Principe, Senhor de nós ambos". Com tal carta, assim premente, também despachou Afonso Furtado ao paulista a famosa patente de "governador". Vinham nela poderes imensos. Ajudas.
Grandes honrarias...
"... tenho encarregado ao Capitão Fernão Dias Paes do descobrimento das Minas de prata, e de Esmeraldas; e como ora está para partir, e sendo este negocio de tanta ponderação, e de tão grandes conveniencias para o serviço de Sua Alteza, augmento de sua Real Fazenda a conservação deste Estado... ordeno ao Capitão-Mór, aos Officiais maiores e menores, ás camaras de quaesquer villas, que o hajam, honrem, estimem e reputem como Governador; e o obedeçam, cumpram e guardem todas as suas abras de palavra, ou por escripto, tão pontual e inteiramente como devem e são obrigados..."
OS APRESTOS
Que enormes, que fulgurantes os preparativos de Fernão Dias! Bruacas de sal, fumo de rolo, panos de toicinho, barris de pólvora, azougue, espingardarias, cargueiros sem conta de fazendas secas... O burgozinho atroou com o fragor daqueles aprestos. Nunca se vira bandeira tão opulenta! Os gastos dela causaram assombro. Fernão Dias abriu a bolsa rasgado e largo. E como era gentil-homem, e de ânimo largo, muitíssimo soberbo, timbrou em pagar do seu bolso, só do seu bolso, aqueles gastos tremendos."... todas as despezas, que a prudencia de qualquer deve conjecturar quaes seriam, foram todas feitas á custa de Fernão Dias". Nem sequer, no seu exaltado escrúpulo, aceitou que os bugres das aldeias do Príncipe o acompanhassem de graça."... a nenhum dos aldeiados das aldeias de Sua Alteza deixou de dar oito mil reis". O governador Afonso Furtado agradecia-lhe com rasgadas palavras aquelas fidalgas grandiosidades. O Rei, encantado com larguezas tão esplendorosas, mandava-lhe, lá do longínquo Portugal, assinado da sua mão, o seu real agradecimento: "... e como, para este fim, tenhaes preparado gente e feito despeza consideravel, me pareceu mandar agradecer-vos ..." Ou então: "... me foi presente como partieis ao descobrimento das minas do sertão da Sabarabussú e da serra das Esmeraldas, assim como o dispendio que para este effeito fizestes; o que vos agradeço muito..."
As despesas do paulista foram realmente esmagadoras. Tamanhas, tão desmarcadas, que toda a fazenda de Fernão Dias não bastou para supri-las. Teve o bandeirante que recorrer aos grandes capitalistas da Capitania. Pediu de empréstimo a Fernão Pais de Barros mais de conto de réis. A Gonçalo Lopes um conto. A João Monteiro outro conto.
"... além de outras dividas menores, sem contar os gastos dos fornecimentos que por ordem do padre João Leite, seu irmão, lhe foram remettidos," remata o eminente Taunay.
Sim, Fernão Dias apurou o dinheiro que pode para botar na empresa. Só poupou (e mal se explica naquele homem tão rude a galante gentileza!) só poupou umas poucas jóias da mulher e umas poucas jóias das filhas. E essas mesmas jóias, esse mísero resto de opulência, a mulher, dentro em breve, vendê-las-á para acudir às aperturas do marido. "...
ouvi dizer a pessoas muito fidedignas, e totalmente desinteressadas (diz o jesuíta Domingos Dias, reitor do Colégio), que Fernão Dias deixou a sua casa em miserável estado de pobreza...". "Fora Fernan Dias (diz o irmão, o padre João Leite) em descobrimento da prata e das esmeraldas, fazendo grandissimos gastos, deixando a sua caza em grande penuria... E é a verdade nua. Pois gastou com aqueles preparativos, de olhos vendados, como um dementado, tudo o que tinha e o que não tinha. "... decian que estaba loco (conta-o D. Rodrigo de Castel Blanco) pues gastaba el caudal de sus hijos y muyer en locuras que no habian de ter fin..." Mais de seis mil cruzados! Diz a Câmara de São Paulo. O que, nesses velhos tempos, era quantia realmente deslumbradora.
E a entrada formidanda aprestou-se afinal. É a mais grandiosa, a mais rica, a mais potente de quantas já se arremeteram pelo sertão em busca de riqueza. E ei-la, com as suas quatro tropas, com a sua multidão de arcos, com a sua multidão de minas, com os seus quarenta homens brancos, com os seus cargueiros entupidos de mantimentos, pronta para abalar.
Fernão Dias marcou o dia da partida.
* * *
Nesse entretanto a mulher do bandeirante, D. Maria Betim, cai doente. E cai de doença grave. Na sua doença, quebrada de forças, tem ela um fugaz e reprochável sucumbimento. Pede ao marido "... que dilatasse a jornada para mais tarde..." Dilatar a jornada para mais tarde? Por causa de doença? Nunca! Seria fraqueza que um bandeirante não cometeria jamais. E o áspero potentado responde à mulher com dureza:
"... mesmo que a deixasse com a Santa Uncção, ainda assim havia de partir". Nada, pois, de delongas. O dia da partida estava marcado? Pois partiria no dia marcado! E esse dia da partida, assim intransigentemente marcado, chegou afinal.
É um sábado, 21 de julho de 1674.
A PARTIDA
Na manhã brasileira, vivamente pincelada de sol, Frei Gregório de Magalhães reza a missa. Missa campal. É em frente ao mosteiro de São Bento. Em frente àquele igrejó de taipa, humilde e tosco, que o mesmo Fernão Dias erguera, com piedades devotas, em honra do monge santo. Vasta multidão entope a praça. Mescla desordenada de dons e donas. Os homens são barbaçudos, encoscorados, têm o aspecto selvagem de mateiros, chucros. Trazem gibão de couro, sombreiro, trabuco, botas altas de bezerro. As donas, porém, com os seus vestidos rodados, pintalgam a turba bravia de cores álacres. Há pelo pátio muita coifa, muito corpilho de seda, muita manga-de-muda, muita vasquinha de chamalote. S. Paulo inteiro acorreu à missa da bandeira. S. Paulo inteiro acorreu à despedida do potentado.
E agora, ali, diante deles, desenrola-se uma cerimônia bela. Bela e emocionadora. Fernão Dias, majestoso, barbas derramadas, a figura autoritária e patriarcal, toma das mãos do sargento a haste da bandeira. E, com a haste em punho, bem ao alto, o paulista caminha pausado até o altar. Ajoelha-se. Os sertanistas ajoelham-se. Frei Gregório lê o seu latim.
E então, na manhã gloriosa, sob o céu largo e azul, o frade, num lento gesto em cruz, abençoa solenemente a bandeira. Logo, no ar claro, os sinos rompem! Estrondam rouqueiras! Bombas! E os sertanejos, sacudidos:
- Viva Fernão Dias! Viva Fernão Dias!
O paulista levanta-se. Alça de novo, bem ao alto, a bandeira que tremula ao vento, airosa, toda dourada de sol. E parte, com altanaria e garbo, em direitura à tropa que estaciona ao longe. Seguem-no todos. É Matias Cardoso, o imediato. É Garcia Paes, o filho de Fernão Dias. É Borba Gato, o genro. É Francisco Dias, o sobrinho. O capitão Manuel de Góis. O
capitão Baltasar da Veiga. O capitão João Bernal... Decambulhada com aqueles homens brutais passam dois frades. Um frade carmelita e um frade franciscano. Os dois religiosos - nota curiosa! - com a garrucha metida nos coldres, o arcabuz ao ombro, vão também aventurar-se com os mateiros atrás das pedras verdes. Com eles, o ar atrevido, um sertanejo moço e viçoso, mameluco, olhos negros e coruscantes. Chama-se José Dias. É um filho bastardo de Fernão Dias. É quem vai ser, nas aventuras da jornada, o herói sinistro da página mais trágica da bandeira.
E os cabos desfilam... O povo, num quente vozerio, lá vai borborinhando empós eles. Lá, ao longe, estão os escravos, os índios, as cangalhas, a tropa da carga, os cavalos de montaria. A multidão estaca aí. É aí a despedida. Começam os adeuses. Ah, o sertão!
Quem voltará daqueles negros matos devoradores? E há então muita reza. Muita benzedura. Muita mãe dependurando figas no pescoço do filho. Uma negra, velha e bruxa, que sabe esconjurar feitiços, brada em meio ao povo com a sua voz rouca:
- Em nome de Deus Padre, em nome de Deus Filho, em nome de Deus Espírito: ar vivo, ar morto, ar de perlesia, ar de estupor, ar excomungado, ou te arrenego em nome da Santíssima Trindade! Vade retro, ar do demo, para que saia desta bandeira e vá parar no mar sagrado, onde viva são e aliviado...
Na turba, em meio dos abraços, destaca-se um grande quadro impressionador. Quadro bem bandeirante: Fernão Dias Paes Leme diz o seu adeus à mulher. Diz adeus a D.
Maria Rodrigues Garcia Betim. Doente, D. Maria tivera, é certo, um minuto de fraqueza.
Mas soerguera-se logo. E agora, de olhos enxutos, decidida e forte, redime com grandeza de ânimo o pequeno desfalecimento da véspera.
- Adeus, dona Maria!
- Adeus, sô Fernão! Vá com Deus...
Ambos olham-se fito. Não há entre eles emoção nem ternura. São dois bandeirantes. E
bandeirantes não se comovem nunca. Fernão Dias diz:
- Não sei quando há de ser a volta, dona Maria. A jornada é longa e sem prazo.
- Vosmecê não se amofine com isso, sô Fernão. Vá sem arreceio. Eu aqui proverei tudo.
Fez uma pequena pausa:
- Só peço a vosmecê uma coisa.
- Diga, dona Maria!
- Uma coisa só.
E com firmeza:
- ... não volte de mãos vazias, sô Fernão! Traga as pedras ou a prata.
Fernão Dias sorriu:
- Fique sussegada, dona Maria!
Botou a mão peluda no ombro da mulher. E com rude convicção:
- Eu trago a prata ou trago as pedras, dona Maria; trago ou morro!
Soa um toque de trompa. É o sinal. Fernão Dias abraça a mulher. D. Maria Betim abraça o marido. E, sem mais palavra, o governador pula para riba do seu cavalo. Esporeia-o. O
alazão arranca.
- Vá com Deus, sô Fernão!
E tudo aquilo, cabos e peões, capitães e frades, mamelucos e cafusos, índios e minas, tudo aquilo, em massa, tudo se movimenta, serpeia, lá vai no rastro do bandeirante desempenado. Ah, que festa! A manhã azul, toda sol, enche-se de alegrias barulhentas.
São estrondos de morteiros, pelouradas, roncos de trabuco, repiques frenéticos de sinos!
E a bandeira caminha. Caminha com a flâmula à frente. Vai no rumo ilusório das esmeraldas e da prata. Vai no encalço da Serra Verde e da Serra Branca. No encalço das pedras de Tourinho e das pedras de Marcos de Azeredo... No encalço da prata de Melchior Dias e da prata da Sabarabuçu. Achá-las-á? Ninguém sabe... Mas a bandeira lá vai cheia de cálidas esperanças. E afasta-se. E diminui. E caminha ainda. E é quase nada. E some...
Lá, muito longe, há apenas, agora, fulva poeira de ouro boiando no ar...
Vai, Fernão Dias Paes Leme! Mal sabes tu, nesse teu sonho de riqueza, que não vais apenas caçar pedras para a cobiça do teu Rei: vais, Fernão Dias Paes Leme, com a tua corajenta jornada, ajuntar mais uma grande página, grande e imorredoura, a essa esplendorosa e rústica ilíada nacional: a conquista do território!
PLENO SERTÃO
Fernão Dias rumou a sua tropa em direitura aos matos aspérrimos dos Cataguazes. E
investiu intrepidamente, peito a peito, contra aquelas lombas selvosas de alémMantiqueira.
9 Camandocaia... Lopo... Sapucaí...
Em cada pouso, com febrentos entusiasmos, toca a buscar a montanha branca e a montanha verde! Onde estava a Sabarubuçu? Onde a Serra das Esmeraldas! E dia e noite, durante meses, fervidamente, talaram os peões aquelas rechãs bravias e ermas.
Nada! E o bandeirante, com a sua firmeza, serenamente metia a sua tropa em outros rumos.
Sapucai... Vituruna... Paraopeba...
Em Paraopeba, no lugar chamado S. Pedro, a bandeira acampou. De novo, toca a devassar todos os mataréus da redondeza! E a atacar todas as serras! E a correr todos os socavões! E a bater todas as furnas! E onde as esmeraldas? Onde a prata? Onde?
Ninguém topava com a pedreira verde. Nem com minas brancas.
Aqueles pousos, no entanto, em que se haviam arranchado, eram todos distantes uns dos outros. As estadas neles foram longas. E o tempo rodou. Meses, compridos meses, gastara já Fernão Dias naquele peregrinar. E, naquele peregrinar, os víveres principiaram a minguar nos cargueiros. Minguaram. Acabaram.
Que era lá isso? Fernão Dias ordenou, simplesmente, que os seus homens plantassem lavouras de mantimento. Sertanejo de ferro! Acampar, cavocar chãos, semear, esperar luas inteiras pela colheita, colher, encher as bruacas, toda essa coisa enorme, obra gigantesca de tenacidade, realizou o paulista singelamente, obscuramente ali, dentro da lôbrega selvatiqueza daqueles sertões. Realizou, e, com a mesma flama e com o mesmo ímpeto, arremessou-se de novo empós o desconhecido.
Paraopeba... Rio das Velhas.. . Roça Grande...
Os matos, por ali, eram povoados de bugres carniceiros. A cada passo - donde vinham? -
zargunchavam traiçoeiras flechas ervadas. E muito mameluco tombava estrebuchante. E
muito negro tombava com a vareta afincada no coração. Em meio àquelas cruas lutas, que assim espedaçavam a bandeira, dentro daquelas sombrias selvas tragadoras de vidas, eis que iam chegando, a cada passo, mais e mais cartas de Afonso Furtado de Mendonça. E, nas cartas, aquela mesma, eterna, intransigente certeza do governador de encontrar as pedras e a prata. "... estou na esperança das esmeraldas e da prata em Sabarabussú, de cuja infaílibilidade não duvido." Dizia aquilo, e tornava a uma certeza que não arrefecia nunca.
Mas se o paulista acaso não as encontrasse? Oh, era hipótese que o governador nem sequer considerava! Tão convicto estava ele do descobrimento que escrevia:
"... tanto que receber esta me remetta por todos os meyos pociveis as amostras da prata e das pedras..." E nem só remetesse as amostras, como também - oh, extraordinário Afonso Furtado - "mande um papel authentico em que V. Mercê declare, com toda a especificação e meudeza, a altura em que fica a mina, que praia do mar ficará della menos distante, para que rumo correm as betas, os ensayos, a quantidade de pedra que se beneficiou..."
Fernão Dias recebia as letras. Sentia bem a ardente confiança do governador. Aquela confiança, integral e absoluta, depositada irrestritamente na sua ação. E, esporeado, com as cartas na bruaca, levantava animosamente o acampamento de Roça Grande.
E lá ia, tenaz e porfioso, por aqueles chãos agressivos. Lá ia, tendo à frente da tropa, como um facho, a esperança de alcançar, lá, ao longe, no desconhecido, essas enlouquecedoras serras, tão desejadas, onde viviam fuzilantes as esmeraldas e a prata.
Roça Grande... Sumidouro... Tucambira...
E, em Tucambira, de novo a pesquisar com acirramento aquelas serranias, e aquelas aguadas, e aqueles cerradões, e aquelas pedreiras. Mas tudo baldado! Ninguém topava com as esmeraldas de Tourinho. Nem com as esmeraldas de Azeredo. E, muito menos, com a prata da Sabarabuçu. Eram só desilusões e fracassos. E com as desilusões e com os fracassos, a maleita grassando na tropa. E os homens morrendo pelo caminho. E os animais comidos de bicheiras. E os mantimentos acabando nas cargas. Todo um rol de misérias a desabar, arrepiante, pela bandeira. Não importa! Fernão Dias, sem baquear, sempre decidido e firme, mandava levantar de novo, mais uma vez ainda, aquele acampamento nômade.
- Para frente, moçada! Para frente! Para frente!
O PORTADOR
Recomeçou, mato adentro, o vaguear apavorante. A mesma correria fantástica atrás das serras quiméricas. Fernão Dias conservava no ânimo inquebrantável, intatos, tal como na hora da partida, os mesmos sonhos e as mesmas esperanças. Mas esses sonhos e esperanças, tinha-os agora apenas o paulista. Só o paulista. Os companheiros, esses esfriaram. Andavam murchos. Desalentados. E com razão! Não eram só, agora, dentro daquelas emaranhadas silvas, as canseiras, as durezas, os fracassos, a luta feroz contra as misérias da jornada. Não! Eram agora, acima de tudo, febres ruins, câmaras de sangue, doenças de frialdade, bobas. Nada atalhava as pestes. Em vão corriam pelos ranchos cuias de mezinhas. Os caboclos iam sendo implacavelmente dizimados. Não havia dia, no acampamento, que se não lançasse um morto à cova...
Foi em meio a essas misérias que certo dia surgiu de improviso um portador por aqueles sítios. Trazia, ali, em pleno sertão para Fernão Dias, uma carta do Príncipe Regente.
Carta em que o Príncipe, dentro das alcatifas do seu paço, sem imaginar ao de leve os dias trágicos e brutais que vivia o paulista por aquelas hórridas brenhas, rogava - mais uma vez ainda! - que Fernão Dias desse acolhida e auxílio a Manuel Lobo, que vinha ao Brasil em busca de minas de ouro. "... espero que ajudeis a D. Manuel Lobo com a vossa pessoa, escravos e o mais a que a vossa possibilidade der lugar, para que se consiga o bom effeito deste negocio. E me fica na lembrança para, com a informação do que obrardes, vos fazer a mercê que houver por bem." Fernão Dias leu. Aflorou-lhe ao lábio um sorriso amargo. Aquele pedido de auxilio, vindo ali, naquela hora, a homem tão desajudado, era como afrontoso sarcasmo. E disse apenas:
- Veja vosmecê, com os seus olhos, as aperturas em que estou.
E apontou, com um gesto, os seus homens em molambos. O portador tornou com um meneio de cabeça:
- Eu estou vendo, sô Fernão. Vosmecê não tem precisão de dizer o que está acontecendo na bandeira...
* * *
O portador, além da carta, trazia esta grande notícia de São Paulo: D. Rodrigo de Castel Blanco, o castelhano, o mineiro da confiança do Príncipe, estava de jornada para aquele sertão. Vinha em busca da Sabarabuçu. Fernão Dias admirou-se.
- D. Rodrigo, quando eu parti, estava de saída para Paranaguá em busca da prata de Lemos Conde. Será que D. Rodrigo não descobriu aquela prata?
- Não descobriu. Aquela empresa resultou só em perda de tempo e mortandade de gente.
E agora o castelhano botou-se, com os seus caldeirões e com os seus azougues, a caminho destas paragens. Ele não tarda a aparecer por aqui. .
- ?
- E vem dizendo pelo caminho que é ele, e não vosmecê, o governador de todas as minas descobertas e por se descobrirem.
- Que?
Fernão Dias, picado, quedou-se um instante sombrio. Mas foi um instante só. Tornou logo, altaneiro, com serena convicção:
- Pois que venha D. Rodrigo de Castel Blanco! Que venha com os seus caldeirões e com os seus azougues! Quando chegar por aí - vosmecê pode escrever isso! - hei de mostrar ao castelhano a minha bruaca cheia de pedras verdes.
E dando à conversa novo rumo:
- Quando torna ao povoado?
- Amanhã. Vosmecê carece de mim?
- Careço. Quero que vosmecê, mal chegado, busque a D. Maria Betim. Conte a ela o que vosmecê está presenciando neste cabo do mundo. Conte a miséria em que me vejo.
Sobretudo, meu amigo, conte que a bandeira não tem mais provisão seca. Nem sal, nem azougue, nem chumbo, nem pólvora. D. Maria Betim é mulher de grandes brios. Ela saberá o que há de fazer...
A GOTA DÁGUA
O portador partiu. E a bandeira, no mesmo dia, atufou-se de novo pelo sertão. Que bando lúgubre aquele bando de Fernão Dias! Os homens eram verdadeiros espectros. Todos escaveirados. Todos rotos. Todos cabeludos. Que montava lá isso? A bandeira, aquele mísero frangalho de bandeira, lá foi, chuçada, aos arrancos, por aquelas terras bravias.
Mesmo assim, chuçada e aos arrancos, varou compridos matagais, chapadas longas, muita serrania dentada... E a prata? E as esmeraldas? E os buracos que Azeredo abrira?
Ninguém topava vestígio pelo caminho... Mas Fernão Dias não esmorecia. E sempre firme, e sempre decidido, com o velho sonho aceso dentro do peito:
- Mais um eito ainda, moçada! Mais um eito! E a pedreira aparece já aí pelo mato...
Naqueles dias tremendos, alastrando-se por tudo, invadindo peões e chefes, tombou sobre a bandeira um desânimo imenso. Imenso e fúnebre. Morreu a coragem na caravana. Começaram pelos ranchos palavras amargas. Cresceram. Tornaram-se palavras raiventas. Cresceram ainda mais. Tornaram-se incitações a revolta. Já havia sertanista de peso que dizia alto:
- É baldado! Não há esmeraldas nem prata pelo sertão. Isso é loucura de Fernão Dias.
Mas o paulista era de ferro. Homem gigantesco! Não havia empeço, por mais brutal, que o quebrantasse. Ele tinha dentro de si energias sobre-humanas. Tinha mananciais inexauríveis de entusiasmo. Quanto mais estorvos, mais chama! E Fernão Dias conseguiu ainda, em meio a murmúrios violentos, esta coisa enorme: botar de novo a sua bandeira a caminho. E a caravana, trôpega e rota, arremeteu-se de novo por aquele desconhecido afora.
Itamarendiba... Mato das Pedrarias...
Naquele mato das pedrarias havia muita pedraria fuzilante. Ah, quem sabe se ali... Fernão Dias fez acampar a bandeira miserável. E toca, outra vez, a sondar esmiuçadamente as vizinhanças! A devassar a terra palmo a palmo! A bater as serras crista por crista! E
aquilo sem esmorecer, dia e noite, como um bando de obcecados. E as esmeraldas? E a prata? Nada! Sempre nada! Era de enlouquecer... Uma palavra então, uma palavra só, firme e atrevida, principiou a andar de boca em boca:
- Basta! Basta!
Não havia mais caboclo que quisesse ir para frente. Caíra nos sertanejos o horror do mato. Já não os ferretoava sombra de ambição. Nem esperança a mais tênue. E todos, a um só tom, braviamente:
- Não há pedras no sertão! Nem prata! Isto é aventura de louco...
Fernão Dias, no entanto - mal se acredita! - Fernão Dias, em meio àquelas crudelíssimas misérias, logrou, ainda mais uma vez, soerguer o ânimo daqueles homens. Bandeirante único! Só mesmo ele, com a sua dureza, com aquela sua autoridade esmagadora, e, sobretudo, com o fascínio contagiante da sua fé inquebrantável, podia realizar o incrível milagre de arrastar novamente aqueles rotos e aqueles rebelados. Arrastou-os, sim!
Arrastou-os, por aqueles matos afora, durante compridos meses.
Serro Frio... Rio Doce... Sertões da Bahia...
E nada! E sempre nada! E sempre nada! Fernão Dias virou de rumo. Tornou de novo para o Mato das Pedrarias. Era ali, nas proximidades daquelas pedras fuzilantes, que talvez estivessem as esmeraldas. E a bandeira voltou. Ah, foi o desastre! A paragem, naquele pouso, tinha miasmas ruins. Voavam pelo ar bafos pestilentos. Vinha daquelas redondezas toda a casta de doenças bravas. O peão, mal clareava o dia, erguia-se, tomava do almocafre, entrava no mato. De repente, calefrios. Calefrios fortíssimos. O
queixo a bater desesperadamente. Era a terçã. O homem tornava, metia-se na rede, engolia a beberagem que os bugres preparavam. Inútil. O homem não agüentava. Morria.
E morria gente assim todos os dias. Nada atalhava o mal. Um inferno!
- E as esmeraldas? E a prata? E os buracos de Marcos de Azeredo?
Fernão Dias apontava o sertão que enchia aquelas cercanias:
- É ali... Naquele mato... É ali que estão as esmeraldas! É ali que está a prata!
E tangia os homens para o mato. Não havia mais quem resistisse. Aquilo estava acima de todas as forças. A bandeira não pôde mais. E arrefeceu definitivamente.
Foi então que Matias Cardoso, o imediato da tropa, procurou o paulista no rancho. E
falou-lhe claro e firme:
- Sô Fernão, eu vou deixar a bandeira.
Fernão Dias arregalou dois grandes olhos surpresos:
- Deixar a bandeira? Vosmecê?
- Eu, sô Fernão! Já não tenho mais fé. E não continuo mais nesta aventura.
Fernão Dias escutou, sucumbido. Podia esperar tudo, tudo, menos ouvir de Matias Cardoso o que estava ouvindo.
- Vosmecê, Matias Cardoso? Vosmecê?
- Eu mesmo, sô Fernão! Digo e repito: desanimei. Não continuo mais. Já reuni os meus homens. Hoje mesmo deixamos a bandeira.
Fernão Dias refletiu um instante. Como conter a Matias Cardoso? Impossível. Era coisa que as suas forças não podiam tolher. E respondeu apenas:
- Está bem, Matias Cardoso. Pode partir...
A notícia reboou logo. Que estouro! o acampamento ferveu com a partida de Matias Cardoso. Aquela deserção cravou na alma dos que ficaram desalentos insopitáveis. Foi a gôta dágua. Ninguém mais, dai por diante, se conformou em ficar. Ninguém! Alastrou-se pela bandeira uma idéia só: voltar! Sertanejo não havia mais que aceitasse sem revolta aquele destino absurdo que iam todos vivendo. Aquele destino de correr às tontas pelo mato, sem esperanças, com a só certeza de morrer ali, no sertão agressivo, comido de febres e chagado de bobas...
A TRAGÉDIA
Daí por diante, umas após as outras, principiaram as deserções. Dias cruéis, dias tremendos e dilacerantes viveu então, lá no fundo do mato, o bandeirante implacável. Que debandada!
Antônio Prado da Cunha, outrora o seu grande amigo (mas antes nunca o houvera sido, diz a crônica), foi o primeiro. E, como Antônio Prado, o velho Manuel da Costa, com todos os seus peões. E, tal como o velho Manuel da Costa, o capitão Manuel de Góis. E o capitão João Bernal. E o capitão Baltasar da Veiga... Quê? Baltazar da Veiga?... "nisso não queria elle acreditar..."
Não queria acreditar! E, no entanto, era bem a verdade. Baltasar da Veiga partiu. E, com Baltasar da Veiga, partiu o capitão Belchior da Cunha. E com Belchior da Cunha, naquela hora crua, um por um, partiram todos os cabos. . . Até os dois frades! Sim, até os dois frades foram arrastados pela debandada contagiante. Certa manhã, murchos e vencidos, o carmelita e o franciscano apareceram no rancho do bandeirante:
- Sô Fernão... principiou o franciscano; sô Fernão, esta jornada já vai sendo comprida demais.
Fernão Dias não o deixou terminar:
- Vosmecês também? Pois podem partir! Partam como os outros. E partam com todos os que quiserem partir! Eu aqui ficarei, neste cabo do mundo, sozinho, até descobrir as esmeraldas.
E com uma chispa de cólera nos olhos:
- Ficarei! Não preciso de ninguém, ouviram? De ninguém! De ninguém! E hei de descobrir as esmeraldas.
Os frades partiram "... mas não retrocedeu o animo do capitám, vendoce sem os Capellaens". Não retrocedeu, é certo, o ânimo virilíssimo daquele gigante! E precisava ser realmente virilíssimo, inquebrantável, para não sucumbir à dor daquelas deserções. .... se despediram todos; e deixaram só a seu Governador, com seu filho Garcia Paes, e seu genro Manuel Borba Gato, seus indios obrigatorios e alguns auxiliares da sua casa".
Pois mesmo assim, abandonado e desbaratado, o sofrimento do bandeirante não teve paradeiro aí. Desenrolou-se ainda, naquele tosco acampamento, para anavalhar até o fundo a alma agoniada do velho, uma tragédia arrepiadora. Tragédia de fazer estalar, uma a uma, por mais empedernidas que possam ser, todas as fibras dum coração de homem. É que um dos remanescentes da bandeira, alma diabólica, não saciada com tantos e tão cruciantes abandonos, insuflou entre aqueles homens vencidos, naquele desesperante fim de jornada, esta odiosa trama carniceira: assassinar a Fernão Dias!
Sim, assassinar a Fernão Dias! Fazer com que aqueles escassos "indios obrigatorios" e aqueles escassos "auxiliares de sua casa" que, por comovedora fidelidade, haviam permanecido ao lado do paulista, liquidassem de vez com o bandeirante implacável. E
quem foi, naquele momento tremendo, o miserável atiçador do lance ignominioso? Aqui a angústia do paulista tocou o mais alto da dor: foi José Dias. Foi o próprio filho de Fernão Dias! Filho bastardo, é verdade, filho dos delírios da mocidade, diz o cronista, mas filho amado, carne da sua carne, sangue do seu sangue! Não há que buscar, para retratar o horror dessa página dilacerante, cores que flamejem. Conte o episódio terrível, com a sua desenfeitada palavra, mas na sua dureza dramática, o velho Pedro Taques.
"Foi o autor deste sacrilego e barbaro attentado o mameluco José Paes, filho bastardo dos delirios da mocidade do Governador Fernão Dias Paes Querendo José retirar-se para o povoado, com temor de perder a vida ao rigor de tantas cousas, a que viviam sujeitos todos os que restavam do grande numero de pessoas, de que se tinha composto o troco e discorrendo que esta acção não podia verificar-se sem primeiro tirar-se a vida ao governador Fernão Dias, seu pai, fez conciliabulo dos seus parciaes, que, sujeitando-se ao infernal arbitrio, consentiram na proposição de tirar-se a vida ao dito governador para se retirarem livremente com todas as armas e a limitada porção de polvora e bala que ainda havia, e assim deixaram em total desamparo aos poucos brancos que ainda restavam do numeroso corpo que sahira de S. Paulo. Mas foi Deus servido que, estando em uma noite nas diabolicas assembléas, em consulta da resolução que tinham tomado, transpirassem algumas vozes aos ouvidos de uma mulher, guayanan, já velha e casada, que, por occulta Providencia de Deus, tinha sahido n'aquela hora da sua cabana, e, sentindo rumor na casa do conciliabulo, applicou os ouvidos ás paredes d'ella, que eram de tabique, e esfuracadas ao rigor dos invernos. Percebeu ella muyto bem a crueldade do assumpto tomado na assembléa, e, no mesmo ponto, com discretas cautelas, veiu informar de todo o facto ao governador. Este promptamente se armou: e, sem mais companhia, veiu examinar as vozes dos agressores que ainda existiam naquelle ajuntamento. Retirou-se para casa, e, com as cautelas e silencio que pedia o caso, passou o restante da noite. Amanheceu o dia; e communicando a gravidade da materia a seu filho legitimo e aos officiaes parentes e amigos, procedeu a prisão dos culpados; e, fazendo-os separar uns dos outros, se averiguou a verdade da capital culpa, que toda recahiu no filho mameluco".
Recaiu no filho mameluco a culpa capital! Fernão Dias, diante das provas, fita iradamente o bastardo nos olhos. E com a sua voz terrível:
- Miserável!
Borba Gato quer amenizar o transe. Bem sente o caboclo que o sofrimento do pai deve ser esmagador. E intervém:
- Foi cabeçada, sô Fernão! Cabeçada de rapaz novo. Vosmecê perdoe! E deixe que o Zé Dias volte para São Paulo.
- Voltar para S. Paulo?
Um sorriso colérico enruga sombriamente os lábios do bandeirante.
- Para crime destes, Borba Gato, há uma pena só: morrer! Zé Dias é meu filho? Pouco importa! Morrerá...
E, sem tremer, ríspido, com a severidade a mais brutal:
- Borba Gato, enforque o culpado!
É formidável. A bandeira gela. Aquela ordem, assim espedaçante, ali, dentro daqueles matos ermos, põe arrepios no coração de todos. Borba Gato está chumbado no chão.
Não sabe o que fazer. Mas Fernão Dias é inquebrantável:
- Traga a corda!
A voz autoritária não admite tergiversação. Borba Gato traz a corda. Os peões põem-se logo a armar a laçada. Enquanto a armam, dois homens sobem aos galhos de vasta maçaranduba que ali se alteia. E Fernão Dias ordena friamente:
- Passem a corda no pescoço!
Os peões, cá em baixo, enfiam a laçada no pescoço do bastardo. E o pai, sem vacilar, com sobre-humana firmeza:
- Suspendam!
Aqueles sertanejos são gente rústica. Gente quase selvagem. Mas aqueles caboclos, diante da cena brutíssima, sentem um estremeção que os sacode. Fernão Dias, em pessoa, a ordenar o enforcamento do próprio filho! É de esmagar o coração mais bravio.
E a bandeira tem a respiração suspensa. Todos os olhares estão cravados na corda. E a corda começa a subir. E o corpo do bastardo a balouçar-se no ar. O miserável tem os olhos saltados, a boca arregalada, a língua de fora. E o corpo vai subindo, vai subindo...
Até que Fernão Dias, impassível, com a mesma férrea serenidade:
- Basta! Amarrem a corda no galho.
E assim, com aquela pasmante inflexibilidade, sem um tremor na voz, sem um gesto de comoção, Fernão Dias Paes Leme, roto, escaveirado, desbaratado, ali, na suprema apertura da jornada, ainda achou dentro de si forças bastantes para, em pessoa, diante da bandeira aterrorizada, enforcar o filho que se rebelara. Alma de bronze, não há dúvida!
Bandeirante formidando aquele velho bandeirante paulista!.
NÃO VOLTE SEM AS PEDRAS OU SEM A PRATA
No outro dia, madrugada ainda, Fernão Dias ergueu o acampamento. O pequeno bando arrastou-se, com os seus molambos e com as suas misérias, mais uma vez ainda, atrás do desbravador inquebrantável. Vai senão quando, por aqueles mataréus bravos, a bandeira dá de encontro com as águas de inesperada lagoa. Lagoa estagnada e verde.
Chamavam-na: Vapabuçu. Fernão Dias sondou o lugar. Achou a paragem no jeito.
- Acampar aqui, moçada!, Os peões botaram-se a levantar ranchos ã beira dágua. E eis que, imprevistamente, ecoam naqueles ermos rumores festivos. O acampamento da Vapabuçu alvorou-se risonhamente: chegara portador de S. Paulo. Portador enviado pela mulher de Fernão Dias. E vinha com os cargueiros cheios de mantimento! E com sal! E com roupas! E com fazendas secas!
Fernão Dias ouviu o chegadiço no seu rancho. E o chegadiço lhe contou coisas de fazer chorar. Contou-lhe que D. Maria Betim, mal soube das aperturas em que estava o marido, se botou de porta em porta "a vender a prata e o ouro que restavam de sua casa". E
como essa prata e esse ouro, que eram poucos, não bastassem para prover a bandeira do necessário, D. Maria Betim "não perdoou as joias de adorno de suas proprias filhas. E
assim, igualmente liberal e discreta, D. Maria não duvidou estragar o seu cabedal para que o marido conseguisse uma acção em que estava empenhada a honra, o credito, e o nome do marido"
10 .
Vendera tudo! Nem sequer poupara as jóias das filhas! E lá de S. Paulo, após sete anos de ausência, com a mesma rude firmeza do dia da partida, a nobre paulista ainda achou forças bastantes para mandar ali, com os cargueiros de mantimento, este pequenino recado heróico:
- Sô Fernão, não volte sem as pedras ou sem a prata!
Sem as pedras ou sem a prata... Aquelas palavras bailavam-lhe diante dos olhos febris.
Sim, era preciso achar as pedras, custasse o que custasse! E os sertanejos, naquele dia, chuçados pelo recado incitador, lançaram-se de novo, e com mais ímpeto, febrentamente, ao trabalho das pesquisas. Não volte sem as pedras ou sem a prata... Fernão Dias, em pessoa, meteu-se com eles a sondar toda a redondeza de Vapabuçu. As serranias da paragem selvática encheram-se do afã escandente daqueles titãs esfarrapados. E eis que, tardinha já, Borba Gato buzina o toque de recolher. Terminara a tarefa. Os homens principiaram a descer uma encosta de serra. Nisto, sem que ninguém o esperasse, um grito áspero estrondeja de golpe no ar. É um grito louco, sacolejante, saído desvairado da alma:
- Esmeraldas!
Os sertanejos estacam. Que é? E olham surpresos: lá está, na rampa do morro, de braços abertos, gesticulando, a figura desordenada de Fernão Dias. Lá está o velho, com os seus cabelos brancos, com as longas barbas tombando-lhe emaranhadas pelo peito, a gritar como um dementado:
- Esmeraldas! Esmeraldas!
Os sertanejos correm precipitados. Acercam-se do paulista numa algazarra bravia.
Esmeraldas? Sim, esmeraldas! E Fernão Dias, com o prático, aponta a descoberta fascinadora:
- Esmeraldas!
No chão, diante dos caboclos, escancaram-se vários buracos que o tempo cobrira de limbo. São os velhos e famosos buracos que Marcos de Azeredo abrira. "... continuando a examinar os centros e serras daquelle sertão, Fernão Dias descobriu a celebre lagoa de Vapabussú; e, em uma espessa matta, a Serra das Esmeraldas. Dos socavões que fez dar, extrahiu ditas esmeraldas dos mesmos buracos onde Marcos de Azeredo, antes de fallecer, tinha achado estas pedras...?
Fernão Dias, ali, diante daqueles miseráveis, tem as mãos cheias das pedras verdes que topara. Os caboclos tocam-nas. E examinam-nas. E desmancham-se em exclamações alvoroçadas:
- Esmeraldas!
Borba Gato arranca do trabuco: dois tiros estrondam no ar. E logo, enchendo a tarde, sacudindo a mataria - gritos, vivas, chapéus ao ar, algazarra, todo um fogoso escachôo de júbilos!
- Esmeraldas! Esmeraldas!
A bandeira vive ali a sua grande hora. Enfim, as pedras! As pedras tão longamente, tão ardorosamente, tão sofregamente ambicionadas! As pedras que custaram sangue! Que custaram sete anos de sertão bravio! Sete anos de canseiras, e de pestes, e de fomes, e de desgraças, e de mortandades. Sete anos! E agora estavam elas, ali, verdes!
Esmeraldas! Esmeraldas!
* * *
Naquela mesma noite, à porta do seu rancho, Fernão Dias está a contemplar, vitorioso o largo céu brasileiro que se arqueia engalanado. Aquele céu, claro, tropical, que acendera no alto, festivamente, todas as suas luzes. O cruzeiro, muito límpido, abrira no azul os braços trêmulos. E o bandeirante, naquela hora, ali, à beira da Vapabuçu, tem a alma em festa. Que viesse agora D. Rodrigo de Castel Blanco! Que viesse com os seus caldeirões e com os seus azougues! Era ele, o paulista...
Súbito, um tremor estranho. Calefrio fortíssimo. Fernão Dias sente a cabeça oca. Os queixos começam a bater-lhe. A bater-lhe desabaladamente. Que é? Borba Gato acode precípite a amparar o velho. Condu-lo para dentro do rancho. Bota-o no catre.
- Traga a beberagem, Garcia Paes!
Garcia Paes sai angustiado à cata da beberagem. E Borba Gato, com profundo desconsolo, deixa tombar os braços para o chão:
- É a carneirada!
- Sim, era a carneirada! Era a terçã. As redondezas da Vapabuçu não tinham somente pedras verdes: elas tinham também febres bravas.
UMA CARTA
Saiu um mina a correr as roças que Fernão Dias havia deixado ao longo do caminho.
Levava a todos os pousos a nova das esmeraldas. E quando, no lugar chamado S. Pedro, apareceu o negro com a palavra radiosa, eis que também aparece, de improviso, a comitiva de D. Rodrigo de Castel Blanco. E o castelhano ouve, com fortíssima surpresa, a nova deslumbradora. Esmeraldas! D. Rodrigo chama imediatamente o escrivão da bandeira. E ordena-lhe que escreva uma carta a Fernão Dias. Que carta desastrada!
Dizia, entre outras coisas, isto:
"... chegado aqui me disseram que V. S. tinha descoberto as esmeraldas. Dou-lhe repetidos parabens, como merece o serviço que tem feito V. S. á coroa do principe Nosso Senhor; e espero que o Principe ha de premiar tantos trabalhos e assistencias como V. S.
tem feito em tão dilatados annos.
Eu fora de parecer que V. S. não fizesse aviso á Sua Alteza antes que nos avistemos;
veja eu primeiro se as pedras têm aquella fineza que se necessita para o seu valor; com isto poderá V. S., depois de eu fazer aviso á Sua Alteza, colher o logro do seu merecimento. Não se me offerece outra cousa mais, pois o resto deixo para a nossa vista.
E Nosso Senhor guarde a pessoa de V. S. como merece e desejo."
O castelhano tomou daquelas letras que o escrivão secara com areia. E tornou a ler devagar. Ali estava, bem claro, o que ele desejava dizer: "... eu fora de parecer que V. S.
não fizesse aviso a Sua Alteza antes que nos avistemos" "... veja eu primeiro se as pedras têm aquella fineza..." "... depois de eu fazer aviso á Sua Alteza..." Era isso mesmo, tal qual, o que o castelhano queria: ver as pedras, tê-las na mão, e, em primeiro lugar, antes mesmo de Fernão Dias, mandar ele próprio aviso à Sua Alteza de que as esmeraldas estavam descobertas! D. Rodrigo pegou do papel, e, do seu próprio punho, bem castelhanamente, subscreveu assim a famosa missiva:
Beso las manos de Vuestra Señoria, su servidor, D. Rodrigo de Castel Blanco".
Mal imaginava D. Rodrigo que aquela carta iria ser, entre aqueles caboclos desconfiados, já envenenados por áspera aversão contra ele, a faísca que tomba em rastilho de pólvora, isto é: vai desencadear, naquele fundo de sertão, grande tragédia sanguinolenta.
MORTO!
Noite. Dentro, no rancho onde repousa Fernão Dias, a cena é confrangedora. Tudo fúnebre. Tudo acabrunhante. Garcia Paes vela à cabeceira do catre em que jaz o bandeirante maleitoso. Borba Gato, a um canto, tem a cabeça afincada entre as mãos.
Mortiço, o candeeiro de azeite põe tonalidades sombrias no ambiente. Fernão Dias tem o aspecto revolto. As barbas emaranhadas. O cabelo empastado. O suor borbulha-lhe grosso na testa. Está escaveirado e lívido. Mas o olhar, limpo e ágil, lampeja-lhe com fogo nas órbitas cavadas. E aquele olhar, limpo e ágil, olhar de louco, o miserável maleitoso vagueia às tontas pelo rancho. Às vezes, na sua inconsciência, pousa-os abobadamente no filho. E, como ferreteado, Fernão Dias encoleriza-se de pronto. Na sua cólera, cerrando os punhos, rouqueja com voz febrenta, soturna, voz de dementado:
- Enforquem! Enforquem!
Fora, na noite sertaneja, os caboclos têm as fogueiras acesas. Rodam, como queixadas, a toca fúnebre do bandeirante. E aqueles homens rústicos, à luz vermelhaça do braseiro, escutam angustiados o ancião moribundo, aceso em febre, a bradar comovedoramente palavras desvairadas...
- Enforquem! Enforquem!
De repente, num arranque, o maleitoso salta enfunado do catre. Garcia Paes e Borba Gato correm a ele. Amparam-no. E, amparado, o louco dá uns passos trôpegos até a soleira da porta. A noite é bela. Noite de sertão, tropical. Todas as estrelas estão pregadas lá em cima, fuzilando. Fernão Dias ergue os olhos para aquele céu brasileiro, imenso, ensartado de pedraria coruscante. Ergue os olhos, e, no seu delírio, esboça um sorriso enamorado:
- As esmeraldas! As esmeraldas!
E eis que ali, na porta do rancho, os olhos embevecidos nas esmeraldas lá de cima, o velho subitamente fraqueja. A cabeça, de repente, descai brusca para um lado.
As pernas bambeiam-lhe. Os braços tombam, largados. O filho e o genro, assustados, erguem o ancião nos braços. De novo o carregam até o catre. E aí o sacodem. E aí gritam por ele. Tornam a gritar. Em vão! Fernão Dias não responde. Borba Gato bota-lhe o ouvido na caixa do peito. Escuta-o. Em vão! O coração do velho está parado: Borba Gato, com um gesto de desconsolo, aponta então o corpo enorme estendido no leito:
- Morto!
Morto? Pelo acampamento, dolorosa e fulminadora, voa, como um relâmpago, a palavra tremenda. Os caboclos acorrem precipites. E ali, no rancho tosco, estranhamente aclarado por lúgubre candeeiro de azeite, ali, diante do ancião inerte, rústico jequitibá caído, descobrem-se todos com respeito. E, com respeito, murmuram todos a palavra terrificante:
- Morto!
BORBA GATO E GARCIA PAES
Garcia Paes tomou a si a tarefa sagrada de reconduzir a S. Paulo os restos do pai. E
principiou a embalsamá-lo como o faziam os sertanistas. "... consumiam as carnes do cadaver, sepultando-o, e aplicando fogo continuado em cima da sepultura, até que, em 20 dias, pudessem limpar e lavar os ossos, recolher em hum limpo lençol e metter em hum caixote..."
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Enquanto iam sendo, assim tão primitivamente, mas tão comovedoramente conservados pela piedade filial os ossos do bandeirante, imprevistamente aparece no acampamento um portador de D. Rodrigo de Castel Blanco. É Francisco João da Cunha. Vem ele do pouso do Paraopeba com a carta do castelhano. A carta era dirigida a Fernão Dias. Mas, diante da desgraça, Borba Gato é quem recebe as letras. Recebe e lê-as.
"... eu fora de parecer que V. S. não fizesse aviso á Sua Alteza antes que nos avistemos;
veja eu primeiro se as pedras têm aquella fineza de que necessita para o seu valor; com isto poderá V. S., depois de eu fazer aviso á Sua Alteza, colher o logro do seu merecimento..."
Borba Gato sente o sangue referver-lhe nas veias. "... depois de eu fazer aviso á Sua Alteza..." "... veja eu primeiro as pedras..." Aquelas letras bailam-lhe diante dos olhos coruscantes. E de si para consigo:
- Eu me entenderei com esse castelhano dos diabos!
E passa a carta às mãos de Garcia Paes. Garcia Paes, porém, é homem cordato. Não tem contra o espanhol aquelas fúrias de Borba Gato. Ao contrário! Respeitava a D.
Rodrigo de Castel Blanco como deve um vassalo respeitar o enviado do seu Príncipe. Por isso lê a carta sem esbravejamentos. E vai logo respondendo ao emissário que, em breve, ao ir-se para São Paulo com os restos do seu pai, passaria pelo pouso de Paraopeba a fim de se avistar com D. Rodrigo de Castel Blanco. Que aí, no pouso de Paraopeba, faria a D. Rodrigo de Castel Blanco, perante testemunhas, solenemente, a entrega das esmeraldas que Fernão Dias descobrira. Que, com as esmeraldas, entregaria ao mesmo tempo a D. Rodrigo o governo da pedreira verde. E que, além da pedreira, também entregaria o governo de todas as roças, assim como o governo de todos os arraiais que seu pai abrira no sertão.
Francisco João da Cunha, diante do tom amistoso de Garcia Paes, transmite-lhe os recados verbais que D. Rodrigo enviara:
- Que D. Rodrigo, com a longa jornada, estava muito falto de sustento de boca; por isso, como Fernão Dias havia plantado muitas roças, pedia que Garcia Paes lhe vendesse uns cargueiros de mantimento.
Ao que o moço bandeirante, com aquela largueza e aquela fidalguia herdadas do pai, tornou sem hesitar:
- "Que todos aquelles mantimentos q. havião na feitoria, mandara o seu defuncto Pay fabricar e prantar para o beneficio e descubrimento das minas em servisso de Sua Alteza.
Mas que nunca consentiria dito defuncto seu Pay vender-se algum, sem embargo da muyta conveniencia que dahy podia ter; e, muyto menos, podia elle, Garcia Paes, agora fazer isso a D. Rodrigo de Castel Blanco; que todos os mantimentos estavam a ordem do mesmo D. Rodrigo..."
Borba Gato ouve aquilo, calado. E lá no íntimo, bem lá no fundo do seu íntimo, diz com ira:
- Não faz mal! Garcia Paes faça o que quiser... Eu me entenderei com esse castelhano dos diabos!
Francisco João da Cunha retorna nesse dia ao acampamento do Paraopeba. E com ele, rumo de S. Paulo, parte também um próprio a levar a D. Maria Betim os desgraçados sucessos da jornada.
* * *
- Garcia Paes faça o que quiser... Eu me entenderei com esse castelhano dos diabos!
Fique sossegado o bravio Borba Gato! Ele tem, muito simpaticamente, para defender as pedras, aqueles rompantes e bravuras. Garcia Paes, sem ser impetuoso nem árdego, é, debaixo daquela aparência submissa, um sertanejo astuto, muito sabido, suficientemente velhaco para não se deixar burlar. Ele, dentro em breve, cumprirá realmente o que prometeu. Sobretudo (era este o ponto melindroso do negócio) entregará a D. Rodrigo de Castel Blanco as pedras verdes. Mas entregará tão-somente uma pequena parte das tão preciosas pedras. As melhores, as mais belas - quarenta e sete pedras! - ele as esconderá finoriamente na sua sacola de couro. Sim, escondê-las-á daquele perigoso D.
Rodrigo de Castel Blanco (sabia lá alguém o que ia acontecer?) a fim de apresentá-las, pessoalmente, aos homens-bons da Câmara de São Paulo. E, para evitar qualquer raposia do castelhano, envia-as ao Príncipe, bem cautelosamente, como esmeraldas descobertas por seu pai...
A ÚLTIMA JORNADA
Garcia Paes findou o embalsamamento do pai. Recolheu dentro de uma urna de madeira os despojos pios. E lá se meteu pelas brenhas afora, devotado e carinhoso, a conduzir para S. Paulo os ossos sagrados. Foi a última jornada de Fernão Dias. Mas que sina, tumultuada e desastrosa, a sina do paulista! Não pôde o rude desbravador, mesmo depois de morto, fazer sossegadamente aquela fúnebre viagem. Certo dia, ao vadear um trecho aparcelado do rio das Velhas, a canoa, levada pelo ímpeto da corredeira, bate em cheio numas pedras. Bate e soçobra. Garcia Paes e os remadores saem a nadar. Mas a urna, com os ossos, vai ao fundo. Não bastou, em vida do bandeirante, todo aquele desesperante rol de misérias que padeceu. Foi preciso mais. Foi preciso que um deus sem entranhas, na sua selvageria, nem sequer poupasse os restos do temerário rompedor-de-matos. Fernão Dias teve ainda que padecer ali, com aquele naufrágio, a sua derradeira desgraça. A sua última canseira "... mesmo depois de morto (conta-o a Câmara de Parnaíba) o perseguiram as calamidades do certam, porque o seu cadáver e as amostras padeceram o naufrágio no rio que chamam das Velhas".
Garcia Paes acampou nas margens do rio. E meteu-se com acirramento a reaver a urna sagrada. Que grandes e tremendas fadigas! O filho e os remadores a mergulharem, sem arrefecer, briosamente, nas águas fervilhantes do rio aparcelado em busca do bandeirante morto! As ribanceiras brutas da paragem selvagem viram, longos dias a fio, a bela e nobre dedicação do moço piedoso. E os fados abençoaram aquela piedade: eis que, do fundo da correnteza brava, surge um índio com a urna veneranda! Os restos de Fernão Dias! Garcia Paes, mateiro embora, despolido embora, mal podia, ao receber do selvagem a caixa sagrada, conter as lágrimas que lhe brotavam dos olhos: estavam salvos os ossos do pai!
Naquele mesmo dia enveredou-se Garcia Paes de novo a caminho de São Paulo. E
Fernão Dias, o caçador de esmeraldas, reencetou a sua última jornada pela mataria brava...
EM S. PAULO
A notícia da descoberta das esmeraldas desatou alegrias ruidosas no burgo piratiningano.
S. Paulo inteiro, que vira partir à busca das pedras, tão grandiosamente, o seu poderoso e intrépido potentado, quedara-se entre as suas taipas e rótulas, ansioso e pálpite, a esperar o desenlace da gigantesca jornada. Sete anos de comovida expectativa! Sete anos a seguir, de longe, as aventuras trágicas daquela avançada sem similar na história do sertão. Vai senão quando, depois daqueles ansiados sete anos, estronda um dia no vilarejo a nova tão longamente cobiçada: Fernão Dias, à beira da Vapabuçu, descobrira as pedras verdes! Esmeraldas! As esmeraldas de Tourinho! As esmeraldas de Marcos de Azeredo! E foi, pela vilota rude, um júbilo só...
Estavam ainda os de S. Paulo embalados pelo fragor de tais júbilos, quando, de golpe, chega dos Cataguazes outra notícia. E essa, brutalíssima. Essa, na sua crueza, digno remate às desgraças dramáticas da bandeira: morrera Fernão Dias Paes Leme! Sim, dentro do sertão, comido de maleitas, tombara vencido o herói das pedras verdes. E a nova ecoou aterradora pelo burgozinho. Mas não foi só. Chegam também do sertão, com a nova terrível, aquelas falas espantosas, verdadeiramente estupefacientes, de que Garcia Paes decidira entregar a D. Rodrigo de Castel Blanco as esmeraldas, e a pedreira verde, e as roças, e os arraiais. Quê? Entregar tudo ao castelhano? Pois não via Garcia Paes que o castelhano, de posse das descobertas, iria apregoar no Reino que fora ele, D.
Rodrigo, e não Fernão Dias, o descobridor das esmeraldas? Aquilo desencadeou entre os paulistas as iras as mais assanhadas. O burgozinho revolucionou-se todo. O padre João Leite, irmão de Fernão Dias, correu açodadamente à Câmara. E requereu contra o enviado do Príncipe, alto e bom som, esta coisa enorme:
"Eu, o Padre João Leite, por mim e como irmão do defuncto, o Capitám Fernan dias paes, descobridor das esmeraldas, e em nome da viuva, sua mulher, Maria garcia, requeiro a suas mercês, huma e muytas vezes, da parte de Sua Alteza, q. Deus goarde, atalhem e privem, pelos meios convenientes, a dom Rodrigo de castell branquo, os intentos que tem de mandar apoderar-se das minas de esmeraldas que o dito meu irmão descobrio..."
E ali, na sua compridíssima arenga, o padre pede ainda que os homens-bons, tomando conhecimento das suas palavras, mandem o mesmo ajudante, João da Cunha, que trouxe o aviso, tornar e intimar este meu protesto e requerimento ao dito Dom Rodrigo e ás pessoas de sua comitiva..." Pois assim, intimado o castelhano e sua gente, caso estes "forem ou mandarem bolir nas esmeraldas, sem ordem expressa da Sua Alteza, protesto haver do dito Dom Rodrigo e dos mais que nisto concorrerem, todas as perdas e damnos que dahi resultarem..." Estava instaurado, por causa daquelas extraordinárias esmeraldas, um verdadeiro processo contra o enviado do Príncipe...
* * *
Correu o tempo. E, quando menos se esperava, eis que aparece em São Paulo um correio de D. Rodrigo de Castel Blanco. É, de novo, Francisco João da Cunha. O senado da câmara reúne-se às pressas para recebê-lo. E Francisco João da Cunha, naquela sessão memorável, uma das mais memoráveis da vida pública da vilota, apresenta aos homens--bons, solenemente, um saquinho de chamalote. Abrem-no: dentro daquele saquinho de chamalote - enfim! - estavam as esmeraldas de Fernão Dias. "... á presença da camara compareceu o ajudante Francisco João da Cunha com carta de prego para Sua Alteza e hum saquinho todo lacrado e cozido com as pedras que mandava D.
Rodrigo Castel Blanco"; "... pelo dito Francisco João da Cunha foi dito que as pedras foram descobertas pello governador Fernão Dias Paes, na mesma mina ou cerro de onde antigamente tiraram os Azeredos".
Foi um alívio. Os camaristas receberam venturosíssimos as amostras apetecidas. Morrera Fernão Dias, sim! Mas, ao menos, depois da arrasadora desgraça, as esmeraldas não foram surripiadas. Estavam ali. Estavam ali, naquele saquinho, as pedras que custaram tanto sangue e tanta vida... E o escrivão anotou, corri meticuloso cuidado, o relato que o castelhano fazia do sucedido no sertão: "... al arrayal de Paraupeba, llegó Garcia Rodrigues, hyjo ligitimo del gobernador Fernan Dias Paes, ya defuncto, y me trujo a manifestar unas Piedras Berdes, transparentes, diciendo ser esmeraldas".
E anotou mais que D. Rodrigo:
"... tomara posse de la pedrera, y de unas rossas que el defuncto tenia en el sumidoro, tucambira, y mato de las Pedrarias."
* * *
Assim, com surpresa de toda gente - mais do que com surpresa, com a estupefação daqueles paulistas desconfiadíssimos - D. Rodrigo procedera honestamente e limpamente. Recebera as pedras e, precavidamente, separou-as em dois lotes. Um lote, enviou o castelhano imediatamente, e com a maior lisura, à Câmara de Guaratinguetá;
outro lote, enviou imediatamente, e também com a maior lisura, à Câmara de S. Paulo.
Declarava, em ambos os envios, que fora Fernão Dias o descobridor, e que as Câmaras, com a maior brevidade, remetessem agora as pedras ao Príncipe. "... Fernan Dias, havia falesido, largas jornadas de este arrayal, traiendo en su compañia las dichas piedras; las cuales en su presencia se hizo assiento en el libro y se remetieron a S. Altesa, que Dios gde, por dos bias; la una por la camara de Guaratinguetá; la outra por l camara de S.
Pablo".
As esmeraldas destinadas a S. Paulo, trouxe-as, com grande urgência, o ajudante de D.
Rodrigo. "... destas esmeraldas fez D. Rodrigo remessa à Sua Alteza n'um saquinho de chamalote, que conduziu até S. Paulo o ajudante Francisco João da Cunha com carta aos camaristas...
A Câmara de S. Paulo, sem mais delongas, ordenou que se remetesse tudo ao Príncipe por intermédio da Câmara de Santos. Um próprio partiu então rumo de Santos com o famoso saquinho. Depositou-o em mãos do tabelião Matias Machado. E este veio logo a S. Paulo exibir o recibo da "entrega que pessoalmente fizera à Camara de Santos das cartas e do saquinho de pedras verdes. Pesara este meia libra menos cinco oitavas".
A Câmara de Santos, pela primeira nau, enviou tudo, lacrado e selado, ao Príncipe. A
remessa daquelas pedras, que significavam a realização do maior sonho da época, foi, bem se vê, coisa melindrosíssima e importantíssima. E impossível seria, para se evitar qualquer descaminho ao precioso tesouro, que se enviasse o saquinho de chamalote com cautelas mais rigorosas do que foi enviado.
DESENLACE DE SANGUE
Enquanto, em S. Paulo, antes da chegada das pedras, iam cóleras e ódios contra D.
Rodrigo de Castel Blanco, no sertão bruto, ao pé do Sumidouro, as mesmas cóleras e os mesmos ódios escaldavam o ânimo chucro dos sertanejos. Derivou-se daí a violenta tragédia de Borba Gato. Essa tragédia principiou na primeira fala que teve o paulista com D. Rodrigo. E principiou atrevidamente. O encontro dos dois homens foi áspero e sacolejante.
D. Rodrigo:
- É preciso que vosmecê, Borba Gato, uma vez por todas, fique sabendo bem claramente disto: de hoje em diante sou eu, e mais ninguém, o governador destas paragens!
Borba Gato:
- E é preciso que Vossa Senhoria, D. Rodrigo de Castel Blanco, uma vez por todas, também fique sabendo bem claramente disto: eu, neste arraial do Sumidouro, não recebo ordens de Vossa Senhoria!
- Vosmecê?
- Eu!
- Quase não quero acreditar no que estou a ouvir, senhor paulista! Eu tenho em mãos, e vosmecê bem o sabe, um alvará do Príncipe, nomeando a mim, D. Rodrigo de Castel Blanco, administrador geral de todas as minas descobertas e por se descobrirem!
- Vossa Senhoria pode ter em mãos o alvará que bem entender. Mas eu, neste arraial, não recebo ordens de ninguém. Nem as de Vossa Senhoria!
Os dois homens desandaram a altercar com violência. E não foi possível, naquele encontro, entendimento algum. Separaram-se ambos como duros inimigos. O castelhano, no entanto, era astuto e labioso. Ao outro dia, depois de longa noite bem pensada, D.
Rodrigo fingiu ceder. Mandou pedir, com boas maneiras, novo encontro com o sertanejo.
E deu-se, nesse mesmo dia, a entrevista dos dois homens. Deu-se à beira duma cata, escancelada e funda, rasgada na terra como imenso boqueirão.
- Vosmecê, Borba Gato, diz que não recebe ordens de ninguém neste arraial do Sumidouro. Pois seja! Não discutamos mais o ponto...
- Ainda bem, senhor D. Rodrigo! Não discutamos mais o ponto...
- Fique vosmecê aqui no Sumidouro. Eu continuo a minha jornada adentro. No entanto, como vosmecê sabe, eu trago comigo pouca provisão e pouca ferramenta. E como, por alvará do Príncipe, é direito meu requisitar de qualquer vassalo o de que careço, eu ordeno a vosmecê, em nome de Sua Alteza, que me forneça a ferramenta de mineirar que vosmecê traz aí na bandeira. E também um barril de pólvora que vosmecê carrega nas suas cargas..
- Ferramenta e pólvora?
- Ferramenta e pólvora. E não queira vosmecê, desta vez, desobedecer ao Príncipe. Eu posso desculpar, como desculpo, algumas arrogâncias que se me fazem a mim. Mas desobedecer ao Príncipe - não! Ah, isso não....
Borba Gato coruscou no castelhano dois olhos raiventos. E seco:
- Pois é bom que Vossa Senhoria, com o seu alvará, e com o seu Príncipe, saiba que eu não forneço nem uma só ferramenta da bandeira e nem um só grão da pólvora que eu tenho aí.
- Não fornece?
- Não!
E com grande ira:
- Era só que me faltava! Dar a Vossa Senhoria a minha pólvora e a minha ferramenta! E
onde vou eu, ao depois, achar ferramenta neste cabo do mundo? E como deixar, no meio destes matos, os meus homens sem munição? Era só o que me faltava!
E azedíssimo:
- Isso, aqui neste sertão, nem é ordem que um homem dê a outro homem. Isso, senhor D.
Rodrigo, é até desaforo que Vossa Senhoria fez a mim.
D. Rodrigo, picado:
- Desaforo? Vosmecê é fácil de língua, moço! Não se esqueça, porém, de que está falando com o enviado do Príncipe...
- Desaforo, sim, senhor! E eu - Vossa Senhoria de certo já ouviu falar! - eu não sou homem de me acomodar com desaforo de ninguém. Nem do enviado do Príncipe!
D. Rodrigo, ao ouvir o atrevimento, não se contém:
- Que estás tu dizendo aí, perro? Eu vou te ensinar, boca do diabo...
E leva a mão à espada. Mas Borba Gato não dá tempo ao castelhano de arrancá-la: cai sobre ele com um pulo de onça. E ali, numa cena de relâmpago, agarra-o, enrodilha-o, ergue-o no ar e, no seu desvario, arremessa-o com fúria pelo boqueirão abaixo.
"...travando-se de razões menos comedidas (conta-o com a sua autoridade e com a sua sobriedade o velho Taques), Borba Gato se precipitou tão arrebatado de furor que, dando em D. Rodrigo um violento empuxão, o deitou ao fundo de uma alta cata, na qual o castelhano cahiu morto"
12 .
Morto D. Rodrigo de Castel Blanco! Morto o enviado régio! Não podia suceder, como remate à jornada das pedras verdes, acontecimento mais arrepiador. Tinha ali um epílogo de sangue, e mais do que um epílogo de sangue, terminava em crime de lesa-majestade a fulgurante bandeira do Caçador de Esmeraldas.
O EPILOGO
Que reboliço, em Lisboa, desencadeou a chegada do saco de chamalote! "... gratissima foi a impressão da metropole (di-lo Calógeras) quando, em 1682, chegou a primeira remessa das pedras..." Esmeraldas! Esmeraldas! E os lapidários meteram-se logo a fazer os seus exames naquelas pedrarias...
Enquanto o faziam, chegava em São Paulo Garcia Paes. Chegava com os ossos de Fernão Dias. E aqueles ossos sagrados, que são hoje relíquias as mais venerandas às gentes do Tietê, depositou-os o filho no mosteiro de S. Bento, em terra paulista, tal como o bandeirante o rogara no sertão.
Cumprida assim a última vontade do grande morto, Garcia Paes corre à Câmara, que se reunira expressamente para tal fim, a exibir as esmeraldas que trazia escondidas na sacola de couro. "... exhibiu Garcia Rodrigues Paes á Camara quarenta e sete pedras verdes, entre grandes e pequenas, pesando um arratel e cinco oitavas; mais um saco de finas e outro de pedras meudas". Fora quase inútil aquela astuta precaução do filho de Fernão Dias: D. Rodrigo já havia, com a mais inesperada lisura, enviado à Câmara as esmeraldas que recebera. Mesmo assim, por excesso de cautela, as pedras de Garcia Paes, tal como as do castelhano, também partiram para Portugal.
E. S. Paulo ficou na mais fervente expectativa. Que mandaria dizer o Príncipe a vassalos tão preciosos? Que prêmios reservaria ao filho de Fernão Dias? E à gente que o acompanhara na bandeira? Há mil conjeturas. Mil esperanças. E, com essas conjeturas e com essas esperanças estão todos os da vilota ansiosamente à espera da nau portadora da carta real. E eis que chega a nau! E eis que chega a carta! E, com a carta, esta notícia decepcionante: os lapidários mandavam dizer que aquelas esmeraldas eram esmeraldas de superfície, pouco transparentes, queimadas de sol. Era preciso (ordenava ao mesmo tempo o soberano) que se cavasse melhor a pedreira. Melhor e mais fundo. Que se tirassem daí novas amostras e se remetessem as mesmas com urgência para Portugal.
"...profundar mais a terra por se entender que só assim se virão a achar mais perfeitas, e com differente bondade, em rezão das que trouxe serem de superfície, e isso para que, de uma vez, se tome desengano deste descobrimento ha tantos annos pretendido".
Lá partiu Garcia Paes, de novo, a cumprir as ordens do soberano. Cavou melhor e mais fundo. Trouxe as amostras que pôde. Pedras verdes, grandes, finíssimas. E enviou-se tudo de novo à corte.
A vila de S. Paulo, mais uma vez, ficou à espera da carta do Rei. Que dirão agora os lapidários das novas amostras? Não foi longo o silêncio do Reino. O primeiro galeão que apareceu trouxe à Câmara uma carta assinada da mão real. E a carta foi simplesmente embasbacante. Desnorteou a todos. Esmagou a todos. Ela dizia apenas isto: as esmeraldas não eram esmeraldas! Eram turmalinas à-toas..
Aquilo era arrasador! Mais de um século a correr atrás da famosa Serra das Esmeraldas!
Adorno... Tourinho... Azeredo... Fernão Dias... Tanto gasto, tanta perda de gente, tanta peste, tanta ruína, tanta miséria! E eis que, atingida a pedreira verde, alcançada a Serra das Esmeraldas, os lapidários verificam que aquele sonho de mais de um século tinha sido um sonho vão: as esmeraldas não eram esmeraldas! Eram falsas. Eram turmalinas à-toas!
O epílogo da fulgurante jornada foi, não há duvida, tremendamente desolador. Um fracasso integral! Mas, oh, meu bravo paulista, oh, Fernão Dias Paes Leme, pouco importa que as tuas esmeraldas tivessem sido falsas. Pouco importa que o teu sonho, aquele fúlgido sonho das pedras verdes, tivesse sido um sonho vão! Tu não atingiste as esmeraldas, é bem verdade. Mas tu fizeste mais: tu rompeste matos, talaste terras, vadeaste águas, abriste roças, levantaste acampamentos no ermo, subjugaste o sertão.
Tu, Fernão Dias Paes Leme, tu conquistaste e devassaste um pedaço inteiro do Brasil: o Estado de Minas Gerais. Tu escreveste, no poema sertanejo da conquista do território, o canto mais alevantado e a página mais dramática. Tu foste, meu belo e rústico herói, a encarnação mais fascinadora da capacidade bandeirante.
TERCEIRA PARTE:
O MATADOR DE MULATAS
SEBASTIÂO RAPOSO PINHEIRO TAVARES
São Paulo inteiro assombrou-se com a coragem daquele bruto:
Homem de peito! Vai de novo atacar o sertão na fiúza das pedras...
Era, realmente, de espantar! Pois o que é que restava daquele alucinante sonho das esmeraldas? Nada! Era uma quimera morta. Miragem que se apagara. Ninguém, por esses povoados afora, falava mais nas pedras. Ouro, só ouro, aquele ouro imenso que brotara como por encanto do chão fuzilante dos Cataguazes, era o que agora empolgava o Brasil inteiro. No entanto, em meio às escaldantes falas de riquezas que vinham tão rumorosas das minas de Ouro Preto, das de Sabará, das do Ribeirão do Carmo, eis que aparece, mais uma vez ainda, seduzido pelo sonho das pedras verdes, um personagem verdadeiramente singular. É um homem de nomeada má. Tem a vida crivada de façanhas sanguinárias. O seu nome enche torvamente o sertão de assombro e de terror. Quem é?
Um que tem no apelido um apelido ilustre: Sebastião Raposo Pinheiro Tavares.
* * *
Vinha Sebastião Raposo Tavares em linha reta, por sua mãe, D. Antônia Raposo, daquele formidável Raposo Tavares que, com o ser o mais audacioso rompedor de brenhas que já tiveram as Américas, deixou pelas selvas brasileiras, imorredouramente, a fama estrondeante das suas façanhas. E era, como o avô, um grande e desabusado sertanejo.
Mas um sertanejo cru. Desses que invadiam aterradoramente o sertão, trucidando bugres, incendiando tabas, deixando atrás de si vermelho rastro de sangue e de rapina.
Com toda essa bruteza, no entanto, era Sebastião Pinheiro um enamorado das esmeraldas. Não se conformava ele com o descobrir-se apenas ouro no Brasil. A pedreira verde, com as pedras verdes, vivia a bailar diante dos seus olhos. Sim, onde estavam as esmeraldas de Tourinho? Onde as esmeraldas de Marcos de Azeredo? Onde? E
Sebastião Pinheiro, quando Garcia Paes tornou de novo aos Cataguazes em busca de pedras, botou uma leva de arcos na trilha do filho de Fernão Dias. E andaram ambos sertaneando por lá. Ao depois, sozinho, mais de uma vez, metera ele a sua desrespeitadora tropa pelos silvedos os mais longínquos daqueles rincões negrejantes de além-Mantiqueira. De lá, dessas paragens brutíssimas, vinham ecos arrepiantes das façanhas que praticava. Que coisas espantosas não se contavam de Sebastião Pinheiro!
Era homem de vida sem peias. Verdadeiro sultão rústico. Tinha no povoado, sem o mais tênue respeito humano, um grande harém de mestiças que lhe serviam de mulheres. E
não as tinha apenas no povoado. Quando partia para as suas longas jornadas, levava sempre consigo, sertão adentro, o séquito de mancebas com que vivia. "... com toda a comitiva que tinha, escravos, índios, e mocambas com quem tinha varios filhos, se mettia por aquellas serras." Com isso, com esse despejo, era ainda o paulista um sertanejo intratável. Despótico. Homem que mandava matar pelo menor pretexto. "... ao que parecia a todos, a vida era má, o coração cruel, porque matava por cousas muy leves. A sua gente o servia muy violentada, pois a cada hora esperava cada qual delles a sua morte".
As ferocidades deste sertanejo cortaram o oceano e ecoaram em Portugal. Deviam ter sido ferocidades de grandíssimo porte. Pois a Inquisição, ao ter notícias delas, mostroulhe sombriamente as garras afiadas... este Paullista se retira de S. Paulo, e das Minas Geraes, receoso do Tribunal do Santo Officio..." Diante da ameaça, e para evitar a sanha do Tribunal sinistro, Sebastião Pinheiro pensou em prestar ao Reino um serviço de monta:
descobrir as esmeraldas! Depois de tanta bandeira desbaratada, depois de tanta mortandade de gente, depois de cem anos de fracassos ininterruptos, mal se acredita que houvesse ainda um homem com ânimo bastante para se embrenhar de novo pelo mato atrás da miragem verde! Pois houve. E Sebastião Pinheiro principiou por escrever a D.
Baltasar da Silveira, Capitão-General, dando conta da sua deliberação. O CapitãoGeneral recebeu jubilosamente as letras do mateiro. E mandou-lhe, sem mais delongas, como resposta, um alvará solene, muito incentivador, cheio de poderes e de promessas.
"... tendo em consideração o que me representou Sebastião Pinheiro, o qual tinha noticias de que havia esmeraldas no sertão, pela experiencia que fez no tempo em que andou com Garcia Paes, hei por bem encarregar ao dito Sebastião Pinheiro deste descobrimento. Tendo elle feito os preparos por sua via, e á sua custa, lhe prometto, em nome de Sua Magestade, a mercê effetiva do habito de Christo, para si e para seu filho, Antonio Raposo Tavares, com a tença que Sua Magestade fôr servido; e mais ainda o fôro de cavalíeiro fidalgo de sua casa..."
Com o alvará nas mãos, Sebastião Pinheiro encheu os cargueiros, chamou o filho, botou Tonho Proença como capataz da leva, e um dia, tangendo o seu largo séquito de bugres, o neto de Raposo Tavares abalou atrevidamente rumo ao desconhecido.
Levava na bandeira, como de costume, o seu bando de mancebas. Neste bando, como favoritas, iam duas belas e jovens mulatas. Duas mocambas, como lá diz a crônica.
E partiu.
13 ANTÓNIO DE ALMEIDA LARA
A leva do soturno paulista transpôs a Mantiqueira. Cortou os Cataguazes de ponta a ponta. E rumou em direitura ao sertão do S. Francisco. Aí acampou. Acampada, principiou a bandeira de Raposo, como todas as demais bandeiras, a faina costumeira das batidas.
E a faina da bandeira, como a de todas as demais bandeiras, resultou inútil. Nem traço das pedras verdoengas. Nem sombra da montanha das esmeraldas.
- Aqui por estas bandas não há nenhuma pedreira verde... Toca prá diante, mocada!
Sebastião Pinheiro levantou o acampamento. E eis que, na hora da partida, o filho surge alvoroçado à presença do pai.
- Antônio de Lara tá aí, pai!
- Antônio de Lara?
- Chegou de S. Paulo. Veio por ai, no rastro de vosmecê, varando essa barbaridade de mataria...
Sebastião Pinheiro, surpreendido, manda buscar o chegadiço. E o chegadiço, que é filho da grande matrona piratiningana, D. Maria de Lara, e, ao mesmo tempo, sobrinho do próprio Sebastião Pinheiro, conta ao sombrio bandeirante, que o recebe de cenho franzido, a razão daquela sua aventura pelos matos 14 .
* * *
D. Maria de Lara, em S. Paulo, era dama relevantíssima. As antigas crônicas falam dela como "uma das matronas de maior respeito que já venerou a pátria". A sua linhagem era clara. Linhagem de sangue velho e limpo. Essa nobreza, unida à grandiosidade fidalga do seu viver, dava um destaque altíssimo à sua casa. E a casa de D. Maria de Lara, segundo a palavra empoeirada do nosso saboroso Taques, destacava-se na Capitania como "uma de maior abundancia de capitaes, de muyto ouro, de muyta prata, de muyta escravatura."
Ora, o largo tom de vida da grande matrona, "em que foi consumindo os seus cabedaes", juntando-se a desastrosa perda de teres "lhe roubou a grandeza em que se viu tão opulenta." E D. Maria de Lara ficou pobre. Pobre e sem amigos. Na pobreza, contudo, teve ela, como dádiva do céu, um consolo forte: o filho. Chamava-se Antônio. Antônio de Almeida Lara.
Antônio tinha sido até o momento da ruína, um rapaz largamente estúrdio. Não havia correria noturna, nem esbordoamento de mameluco, nem noitada com viola e modas, em que não estivesse metido o filho de D. Maria de Lara. A vilota de S. Paulo vivia alvorotada com o reboliço das suas tonteiras. Pois esse moço, assim folgazão e desbragado, não baqueou com o desbarato da mãe. Ao contrário! Cresceu nele, com a pobreza, vivo desejo de mostrar que era um homem.
- Mãe, não chore! O sertão do Brasil é grande. Há muita riqueza por ai... E eu já me arresolvi: vou, como Sebastião Pinheiro, à cata das pedras. A mãe, se Deus quiser, há de ter tudo de novo.
E Antônio de Almeida Lara entranhou-se então por essas brenhas afora no encalço de Sebastião Raposo. Varou, sozinho, a imensidão das Gerais. E deu com o tio, à beira do S. Francisco, acampado naquela paragem bruta. Contou-lhe a sua história. E terminou:
- Agora, se vosmecê não botar dúvida, eu fico na bandeira. Quero ver se acho, de a par com vosmecê, aí por esse mundo, a serra da pedreira verde...
Sebastião ouve o sobrinho. Ouve-o de carranca fechada. E com aquela sua desalmada dureza:
- Vosmecê veio. Me alcançou aqui neste sertão. O que é que a gente, ao depois disso, pode agora fazer? Nada! Eu não vou dizer prá vosmecê voltar. Mas é bom que vosmecê saiba claro: eu não dou a vosmecê, neste negócio, interesse de qualidade nenhuma. Se a sorte me ajudar, não quero parceiro na grandeza; se for mal-aventurado, também não quero parceiro na desgraça. Sabendo disso, e sem botar fito em ganho, vosmecê fique.
Vá aí com os homens da carga...
E frisou:
- Só na carga tem serviço prá vosmecê. Por isso, se quiser ficar, vá lidando com as bruacas.
- Pois tá combinado, tio! Fico sem botar fito em ganho. E vou lidando com a carga.
Sebastião Pinheiro abalou. A bandeira enviesgou pelo sertão baiano adentro. Lá foi, rumo ao desconhecido, empós a pedreira verde. E Antônio de Lara, atrás do bando, entre os negros, lá ia lidando com as bruacas da carga.
AS DUAS MOCAMBAS
Aquela horda bárbara deixa o S. Francisco. E investe, como rilhante vara de caetetus, por longa e áspera região de selvas emaranhadas. Pleno sertão baiano! E onde, naquele sertão, estaria a pedreira verde? Onde a Serra das Esmeraldas? Onde? Meses a fio, longos meses a fio, pousando aqui, pousando acolá, a tropa de Raposo lá foi, teimosa e porfiada, no encalço daquela misteriosa pedreira, tão buscada, que Tourinho topara a refulgir dentro do mato. Que dias tremendos! A bandeira varava por aqueles ermos tangida pelo sátrapa como um bando de animais. Gritos, vergastadas, blasfêmias, tronco... No entanto, naquela miséria, não havia um índio, um negro, um mameluco, ninguém, que alevantasse a cabeça contra o capitão sinistro. Ninguém! "... com o terror que inspirava, conservava Sebastião Pinheiro o seu respeito e despotico imperio". E
assim, sob a chibata, a leva alcançou uma paragem brutíssima. Chamavam-na: Mato Grosso. Estavam os paulistas no sertão do rio das Contas.
* * *
As duas mocambas de Sebastião Pinheiro vinham ali, atrás do soturno bandeirante, arrastando-se alquebradas por aqueles desertos. Estavam ambas maleitosas. Exaustas.
Com a doença, fugira-lhes a coragem para enfrentar aquelas infindáveis caminhadas através de serras e de chapadas. Não resistiram.
E uma delas:
- Vosmecê, pelo que escutei, não tá com jeito de botar arraial aqui nesta paragem. Vai de vereda, com a bandeira, atacar de novo o sertão. Pois eu, daqui prá diante, não tenho mais ânimo de andar com vosmecê. Desacorçoei. Vou voltar prô povoado...
Sebastião Pinheiro encara com assombro na atrevida:
- Que tá tu dizendo aí, mulata do diabo?
E a mulata, sem se acovardar, com pasmante destemor:
- Vou voltar prô povoado!
A outra mocamba, que ouvia do seu canto, intervém de súbito na conversa:
- E não é só ela, sô Sebastião. Eu também. Não ando mais com vosmecê. Também desacorcoei...
Sebastião Raposo mal acredita no que os seus ouvidos escutam. E chega-se, encolerizado, rente à mestiça que primeiro falara. Agarra-a pelo ombro.
- Então, peste, tu quer voltar prô povoado?
- Quero! E, com rude firmeza, a mulata aponta a companheira ao lado:
- Eu e ela!
Sebastião Raposo está simplesmente esmagado. É a primeira vez que alguém tem o desplante de dizer-lhe não.
- Não querem mais andar comigo, cambada do inferno? Querem voltar prô povoado?
Buscar outro homem? Pois esperem um pouco...
Vai até a porta da barraca:
- Tonho! Tonho!
Uma voz responde lá fora.
- Dê um pulo aqui, Tonho!
Tonho aparece. É o homem da confiança do cabo: "... confidente do dito Raposo; era o unico a quem permittia entrar nas suas lavras e tirar dellas alguma utilidade".
- Tonho, sabe o que tão dizendo aqui estas duas diabas?
- ?
- Que vão voltar prô povoado!
- O que, sô Sebastião?
- É o que tô dizendo! Mas eu mostro já prá elas quem é Sebastião Raposo Tavares...
Envereda-se para uma das mocambas. E ameacante:
- Você sabe, mulata desgraçada, que mulher que andou comigo não anda mais com outro homem?
A mestiça não responde. Faz apenas, com um dar de ombros, um muxôxo de indiferença.
O sertanejo envereda-se para a outra.
- Você sabe, mulata, que mulher que andou comigo não anda mais com outro homem?
A mestiça não responde.
- Pois eu vou ensinar a vocês duas.
Raivento, com a sua costumeira ferocidade, vira-se para o peão:
- Tonho, taque fogo nessas mulatas!
O mameluco, chocado, ergue para o amo dois olhos indecisos.
E o amo:
- Não ouviu, homem? Taque fogo nessas mulatas!
A ordem é categórica. Não há que vacilar. Tonho arranca do trabuco.
- Taque fogo!
Ouve-se o estampido dum tiro. E o corpo duma crioula desaba estrebuchando no chão. A
cena é um relâmpago. E, nesse relâmpago, a outra mulata, espavorida, galga dum salto a saída dos fundos. Foge. Mete-se a disparar desordenadamente pela várzea. Sebastião Pinheiro, agilíssimo, arremete-se com fúria atrás da fujona.
- Pára aí, mulata! Pára aí, mulata!
Mas a mulata corre como louca. Sebastião corre como louco. E atravessam ambos a várzea. E alcançam o morro. E sobem pelo morro acima. Vencida a rampa, no alto do cerro, a mulata não pode mais. Afrouxa. E então, alcançando-a, o déspota agarra-a com violência, ergue-a no ar, e, todo ira, arremessa-a num assomo pelo despenhadeiro abaixo:
- Mulata excomungada!
Diz textualmente o relatório mandado ao Vice-Rei: "... não podendo já o acompanhar as suas duas mocambas, de tão cansadas, no meio de huns serros matou a huma; e mandou matar a outra, dizendo que não queria deixal-as vivas para não servirem a outrem".
* * *
No outro dia, madrugada ainda, a bandeira levantou acampamento. Toca, de novo, a varar aquela imensidão de matarias no encalço da pedreira verde! Onde estariam as esmeraldas? Onde? E a tropa lá se pôs a seguir o sátrapa. A segui-lo, azedamente, resmungando, mas a segui-lo. Ninguém ousava uma palavra. Nem sequer o sobrinho, Antônio de Lara, o filho de D. Maria de Lara, que lá ia, atrás da leva, humilhado, a trabalhar como um negro entre os escravos da carga. E como, realmente, ousar uma palavra contra o paulista? Ele era, naqueles ermos, um senhor absoluto. E um senhor que não poupava a ninguém. "...cada qual, naquella jornada, esperava a toda a hora a sua morte..."
NO RIO DAS CONTAS
- Prá frente, moçada! Prá frente!
E o déspota lá foi atrás da miragem. Lá foi, de chibata em punho, tangendo os seus homens pelas terras marginais do rio das Contas. Mas não andou muito por aqueles chãos. Fizera Sebastião Raposo um jornadeio de apenas três léguas: e eis que, inesperadamente, topa naqueles sítios com um riacho desconhecido. Era um riacho que ia desaguar no Contas. Que curiosa paragem aquela paragem! Muita morraria, muito seixo pardavasco, muito areião solto que chispava. O filho de Sebastião Raposo, que andara por lavras de ouro, é homem prático de minerais. E crava olhos perscrutadores pelo caminho. Examina, com longas minúcias, aquelas areias brilhantes. Esbruga entre as mãos, a todo instante, grossos torrões de cascalho:
- Pai, esta terra, prá mim, é terra de ouro. Mande a bandeira acampar na barranca desta aguada.
Sebastião Pinheiro faz alto. E sai, curioso, a sondar o estranho sítio. Ali, pelas redondezas do riacho, um ou outro capão de mato ralo. Tudo o mais serranias escalvadas.
- Pai, mande abrir uma cata na beira deste córrego.
Os negros principiam a cavar. Dão logo na cama do cascalho. O filho de Sebastião Pinheiro, com o almocafre, bota-se a encher uma bateia com aquele cascalho. Mergulha a bateia na corrente da aguada. Põe-se a volteá-la. Súbito, lá no fundo da gamela, pintam grãos pequeninos e chispantes. O filho do sertanejo grita logo:
- Ouro, pai! ouro!
Correm todos. Não há dúvida: lá estão, faiscando no bojo da bateia, os grãos preciosos.
- Ouro! Ouro!
Sebastião Raposo, contudo, olha sem entusiasmo os granetes que fuzilam às mãos do filho. E frio:
- Ouro de lavage! Granetes à-toas! Que é isso, filho? Vosmecê aí alvorotado porque tem na mão uns pózinhos sem maior valia? Isso é ouro de bobagem. É ouro que a gente topa em tudo o que é aguada do sertão...
E com um muxoxo de desprezo:
- Largue mão disso, filho! E trate de descobrir a pedreira, isso sim! Que foi atrás da pedreira que eu botei a bandeira por estes matos. Eu não vim atrás desse ourinho de lavage, coisica à-toa, que vosmecê tem na mão...
Mas o filho não esfria o seu contentamento. E antes, com mais entranhada e mais quente convicção:
- Pai, esta paragem é paragem de ouro! E não é ouro de lavagem, não, como vosmecê tá dizendo. É ouro de veio, pai! Vosmecê vai ver...
A firmeza do filho impressiona o sertanejo. E Sebastião Raposo manda socavar as beiradas do córrego. Os minas apanham, aqui e ali, cascalho ao longo das duas ribanceiras, Fazem-se exames. E em todos os exames, sem escapar um, aparecem grânulos de ouro. E não apenas uns gráozinhos à-toas. Mas, a cada bateada, miríades e miríades de grânulos amarelos.
- Ouro! Ouro!
A abundância é realmente de espantar. Diante dela, não há quem pense mais em continuar a rota. E o sombrio cabo suspende a marcha empós as pedras. Assenta ali o seu arraial. "... como fizesse os seus exames no riacho, lhe agradou o sitio; assim plantou as suas roças nos capões de mato que achou visinhos, e fez o seu arraial".
UMAS ARROBINHAS
Principiou, então, naqueles despovoados, um férvido trabalho de cata e de lavagem. Ah, o Brasil, decididamente, não era a terra das esmeraldas! Debalde haviam tantos aventureiros se atufado por essas selvas brutíssimas com a esperança na serra verde.
Debalde os desvirginadores da terra brasileira vinham, há quase duzentos anos, com o fito nas pedras, varando de ponta a ponta o sertão inóspito do país que alvorecia.
Debalde! Ninguém topava com a serra encantada. Ninguém topava com a serra fermosa e resprandescente onde ha pedras, as quaes pedras são Esmeraldas... E quando um Sebastião Raposo, fugindo às garras do Santo Ofício, se bota desassombrado pela mataria, disposto a não tornar da jornada sem as pedras verdes, eis que o sertanista, por um desses gracejos sarcásticos do fado, ao invés de esmeraldas, topa, em pleno sertão, com um riacho fuzilante de ouro! Fuzilante de ouro, sim. Pois os grãos amarelos que o mateiro selvático pegou de apurar naquela aguada obscura, pequenina, perdida na paragem do rio das Contas, brotavam aos punhados a cada bateada, sem mãos a medir, com profusão estonteante.
* * *
Sebastião Raposo está deslumbrado. Dos escravos que tem, mandou a uns abrir lavouras de mantimentos. A outros, quantos pôde, botou à beira dágua a lavar cascalho. Que riqueza a daquele riacho! O ouro estava ali, à mão, a quatro ou cinco palmos de cava. E
vinha em tal quantidade, tão espantosamente copioso, que não houve ainda, na história do ouro brasileiro, outra mancha que sobrepujasse aquela mancha do rio das Contas.
Oitenta bateias, dia e noite, revolutearam sôfregas na corrente erma. Embora! Oitenta bateias não davam conta, nem de longe, da grandeza que exsurgia do cascalho.
Sebastião Raposo, diante da profusão, retirou das lavouras o resto da sua gente. E veio a tropa inteira a lavar areia. Velhos, crianças, mulheres... Até as mulheres, que não se ocupavam desse serviço, entraram na água com a gamela em punho. Em vez de oitenta, eram agora cento e trinta bateias que andavam por aquela aguada a arrancar das areias imensidade de grânulos e de folhetas!
"... teve este Sebastião Raposo tal fortuna, que achou ouro a quatro ou cinco palmos de cava da sua formação. Trabalhou ao princípio com ouro graudo, metteu toda a comitiva, colomins e até femeas, a trabalhar; com isso chegou a trazer no riacho cento e trinta bateias."
- Este diabo de riacho, não há dúvida, me deu umas arrobinhas... dizia, com a sua expressão predileta, desenferruscado, o sertanejo bravio.
CADA BRAÇO UMA LIBRA
Todas as tardes, na porta do seu rancho, Sebastião Raposo recebia os alforjes de couro que os escravos traziam. Vinha neles o ouro que cada bateador apurara no correr do dia.
O filho, ao lado, ia pesando os grãos que a peonada entregava.
- Quanto deu a lavagem do Chico?
- Duas libras, pai!
- E o ouro do Bermudes?
- Uma libra e duas onças, pai!
- E do Tuca?
- Uma libra e quatro oitavas, pai!
Às vezes, depois da pesagem, o moço olhava, sobressaltado para o bandeirante. E dizia a medo:
- Zé Cotia não lavou uma libra...
- Não lavou uma libra?
- Não, pai!
Sebastião Raposo virava-se instantaneamente para o Tonho. E lá tombava, sem vacilar, a sentença irrecorrivel:
- Tonho, cinqüenta lambadas no Zé Cotia! Esse peste de negro não me lavou uma libra de ouro...
A lei da bandeira era aquela. Cada braço tinha de batear, pelo menos, uma libra de grãos.
Isto é: quase meio quilo de ouro! Se o mina ou o bugre, ao findar do dia, não tivesse apurado aquele meio quilo de ouro, ia para o tronco. Era raro, muito raro, um escravo não tirar o enormíssimo jornal. Mas quando acontecia - tronco! E a chibata do Tonho lanhava sem dó a pele do miserável.
Assim, dentro daquele sertão, à beira de pequenino ribeirão ignorado, Sebastião Raposo, aquele tirano sertanejo, senhor sombrio e sem entranhas, ia enchendo de granetes dourados os seus largos surrões de couro. Ia empaiolando as suas arrobinhas. Tornou-se rico. E, com a riqueza, muito cioso daquele mar de grãos que manava da paragem prodigiosa. Não queria que sertanejo algum viesse a partilhar com ele o tesouro que colhia. Por isso, a fim de evitar intrusos, mandou botar guardas pelas cercanias; e dia e noite, esculcas no alto de todos os morros. "... assentando o seu arraial na dita paragem, entrou a mineirar; poz vigias nas partes mais altas, e sentinellas no caminho, para que não deixassem lá chegar alguém."
- Toca a batear, gente! Toca a batear antes que apareça sertanista novo por aí.
E a peonada a batear! E a riqueza a brotar inexaurível! Tamanha, tão deslumbrante, que Sebastião Raposo, segundo a palavra austera da crônica: "já não se importava mais com o ouro meudo, por lhe gastar tempo nas lavagens; e assim, mandou despejar as bateias, só buscava pedaços, folhetas, e grãos maiores; e castigava fortemente aqueles que lhe davam de jornal só uma libra de ouro..."
Com tão desmesurada abundância de ouro, afrouxou-se-lhe um tanto o rigor das mãos sovinas. E nesse cascalho desperdiçado, onde havia grãos miúdos, nesse cascalho que os escravos despejavam das bateias sem catar, foi que o matador de mulatas, por singular generosidade, permitiu que Antônio de Almeida Lara faiscasse. E o filho de D.
Maria de Lara, que vinha ali, atrás da bandeira, entre os peões da carga, atirou-se com ânimo, decidido à áspera lavagem daqueles detritos. E dia e noite, com o pensamento na mãe, o filho da nobre matrona, o carumbé à cabeça, carreava duramente o cascalho que sobejava. E, dentro da água, como um escravo, apurava acirradamente ouro na sua gamela de pau. E com aqueles restos, aqueles monturos que o sátrapa desprezava, principiou Antônio de Lara a encher alguns alforjes de metal dourado. "... a Antonio de Almeida, e aos poucos da sua comitiva, Raposo não admitia a mineirarem junto com a sua fabrica; mas, separados, vinham mais atraz, revolvendo terra e cascalho já movido; e nos fragmentos desse cascalho tirou Antonio de Almeida Lara quantidade de ouro".
O COMPANHEIRO DO MATA-BUGRE
Certo dia, inopinadamente, um dos vigias do morro surge esbaforido no arraial.
- Gente à vista!
- O quê?
- Dois homens de a cavalo, sô Sebastião! Vêm aí, pela picada, em direitura do riacho.
- Pois que venham!
O sertanista fez um muxôxo de desdém. Chamou Tonho. Reuniu ao pé de si meia dúzia de mamelucos sacudidos. E esperou. Não tardou a se ouvir o pateado dos animais. E eis que saem dois cavaleiros do capão de mato. Enveredam-se, tranqüilos, até o córrego onde a peonada bateava.
- Quem é o cabo da tropa, siô?
O negro interrogado aponta o bandeirante à porta do rancho:
- É aquele um, de bota...
Os dois cavaleiros varam por entre a chusma de índios e minas. E chegam-se a presença do bandeirante.
- Vosmecê é o cabo da tropa?
- Sou. E vosmecê?
- Eu sou Manuel de Almeida.
Sebastião Raposo encara com espanto no chegadiço:
- Vosmecê é o Mata-Bugre?
Manuel de Almeida, o Mata-Bugre, é um facínora célebre. Toda gente o conhece pelo sertão. Ao sentir o pasmo do bandeirante, o caboclo sorri levemente. Sorri lisonjeado.
- Sô eu mesmo, siô. Eu ia varando pelo espigão daquela morraria quando avistei a tropa de vosmecê dentro da água. E disse logo aqui prá companhera...
Dizendo, mostra com um gesto o cavaleiro ao lado. Os do arraial reparam melhor no companheiro do caboclo. Reparam e, com muito espanto, verificam que aquele personagem de botas, chapelão de couro, trabuco enfiado no cintão de onça, não é homem: é mulher. Mulher vestida de homem! Mata-Bugre, porém, sem dar tento à surpresa dos lavageiros de ouro, continua sossegado:
- ... e disse logo aqui prá companheira: aquilo é ouro! E não me enganei. Que mundão de escravatura vosmecê tem aí de bateia na mão! O riacho, pelo que eu vejo, tá pintando bem. Não tá?
- Tá!
- Pois se tá, e se eu não estrovo a vosmecê, também queria bateá um pouco na sua aguada...
Cai um rápido silêncio. E o chegadiço:
- Pode sê?
- Não pode ser. Eu não quero parceiro na mina. Aqui, nesta paragem, só trabalha negro meu e bugre meu. Vosmecê, com a sua companheira, é demais aqui neste arraial.
E bota no Mata-Bugre dois olhos duros:
- Vosmecê nem carece apear. Trate de virar na rédea e tocar. Não temos mais conversa.
Manuel de Almeida não faz um gesto de amuo. Responde apenas:
- Que fazê? Vosmecê é o dono..
Sebastião Raposo, a carranca fechada, torna com a mesma rispidez:
- Não temos mais conversa. É tocar...
Manuel de Almeida não insiste.
- Vamo s'imbora, dona!
Chega a roseta às virilhas do matungo:
- Pois então té a volta, siô!
E Sebastião:
- Té a volta, siô!
* * *
Nessa noite, à luz do candeeiro de azeite, o paulista, no seu rancho, deitado na rede, faz mentalmente a conta das arrobinhas que já apurara. E escuta, de golpe, um ruído de passos lá fora. Que será? O bandeirante salta da rede com ímpeto. Salta com a garrucha na mão. Abre a porta. E lobriga, na noite de lua, estrelada e claríssima, um vulto de botas que vem enveredando em direitura à palhoça.
- Quem vem lá? vulto responde firme:
- É de paz, siô!
E chega-se até a porta do rancho. Pára em frente ao sertanejo:
- É de paz, sô Sebastião!
O cabo escuta, com espanto, o seu nome pronunciado com tamanha naturalidade pelo chegadiço. Põe no estranho vulto, a quem o clarão da lua baçamente alumia, dois grandes olhos interrogativos:
- Quem é?
- Não me reconhece, sô Sebastião? Bote bem reparo em mim...
E abaixando a voz:
- Eu sô a companhera do Mata-Bugre!
Sebastião Raposo não pôde reprimir o seu pasmo:
- O quê?
- Fugi dele, sô Sebastião. Larguei mão daquele cabrocha aí pelo mato. E vim...
A cabocla deu mais uns passos à frente, abeirou-se do sertanejo, e, com uma voz apagada, muito intencional:
- E vim sê muié de vosmecê...
O DIA AFORTUNADO
No outro dia, madrugada ainda, Sebastião Raposo ouve a voz ansiada do filho:
- Pai! Pai!
O sertanejo corre alvoroçado à porta do rancho.
- O que há?
- Veja, pai, veja esta rocha de ouro.
E o moço apresenta ao pai um bloco amarelo, chispante, que traz carregado nos dois braços.
- Ouro, filho? Mas adonde vocês toparam com pedaço tamanho?
- Rente da cata nova, do lado de cima. A negrada deu ali com uma mancha grande. Que mundão de riqueza garrou a brotar daquele veio, pai! Cada pedaço de ouro como nunca se achou igual! Veja este, pai; tem uma arroba e meia de peso...
Sebastião Raposo, maravilhado, toma das mãos do filho o bloco surpreendente. Apalpa-o, pesa-o. Quase nem quer acreditar no que vê! E tem razão. Aquele pedaço de metal é na verdade estuporante. Um prodígio. O maior bloco de ouro que já se encontrou no Brasil.
Por isso mesmo o cronista, que fixou tais sucessos, conta-nos bem do assombro da bandeira: "... o que mais admiração fez, não tendo nada de paradoxo (sic), é tirar-se daquele riacho um pedaço de ouro, do feitio de uma aza de tacho, que se achou ter UMA
ARROBA E MEIA de peso." Um pedaço de ouro, do feitio de uma asa de tacho, com vinte e dois quilos e meio de peso! O sombrio Sebastião Raposo está entusiasmadíssimo. E no seu entusiasmo, os olhos regorgitando de alegria, carreia ciosamente o portentoso bloco para dentro do rancho.
- Espere aí, filho. Vou botar este ouro com o ouro daquelas arrobinhas que empaiolei na canastra de couro.
Entra no rancho. E volta logo, borbulhante e feliz, com a mulher de Manuel de Almeida ao lado.
- Filho, vamos ver a mancha donde saiu o pedaço!
E partem todos. Rente da cata grande, no lado de cima - que reboliço! Bugres e minas, mamelucos e cafusos, mulheres e crianças, estão todos ali, dentro da água, a lavar com festivo alvoroço o ouro que brota a flux da mancha estupefaciente.
E aquele dia foi o dia supremo da bandeira! Bateou-se com frenesi, sem tréguas, até o morrer do sol. A noite ao tombar, encontrou ainda aqueles dementados com a bateia em punho e os carumbés à cabeça. Mesmo assim, mesmo com o vir da treva, Sebastião Raposo não deixou arrefecer o ardor dos lavageiros.
- Toca a batear mais um pouco, gente! Ninguém largue o trabalho. Quero secar este veio ainda hoje...
E virando-se para o filho...
- Tá escuro, Antônio. Mande a negrada acender as tochas.
Os escravos acendem as tochas. Então, ali, no ermo selvagem, pelo sertão do rio das Contas, aquele roto bando de sertanejos, à luz fumacenta de archotes, bota-se macabramente, pela noite adentro, a lavar ouro nas águas vermelhas do córrego.
Naquele dia, que foi o grande dia afortunado da leva, Sebastião Raposo colheu, naquela escassa aguada, a imensidão de nove arrobas de ouro. "... certo dia, dando na maior mancha, a bandeira trabalhou desde a madrugada até as dez horas da noite, valendo-se para isso de fachos; e apourou nella nove arrobas..."
A SERRA DAS ESMERALDAS
Ainda, por semanas, na paragem feérica, quedou-se o sertanejo a explorar a mancha opulenta. Lavou todo o minério que topou ali, à flor da terra, aglutinado no veio. E quanto de ouro ajuntou? Uns papéis antigos falam em quarenta arrobas. Outros em oitenta.
Ninguém, contudo, poderá fixar a quantia exata. Pois (como lá conta a crônica) "... o dito Raposo nunca confessara a quantia certa e só dizia por diminutivo: "Eu tenho aqui uma arrobinhas".
Aquele minério, porém, que era de aluvião, isto é, areias e cascalho que as enxurradas haviam arrastado das redondezas para o córrego, esse minério subitamente escasseou.
Escasseou e secou.
Então "... farto já o dito Raposo, ou tendo ouro que bastava já a sua ambição, ou porque já as grandezas não continuavam com igual rendimento, se receoso de que, com a fama da mina, se ajuntasse alli algum poder maior que o destruisse..." resolveu o paulista largar a paragem venturosa e de novo arremeter-se pelo mato. Sim, arremeteu-se outra vez, por essa mataria afora, atrás da pedreira verde. Curiosa obsessão a daquele caboclo chucro!
É que a extraordinária e famosíssima serra, de que falavam os antigos, serra encravada dentro das selvas, fermosa e resprandescente, aquela extraordinária e famosíssima serra continuava, rudemente afincada na cabeça turrona do bandeirante sombrio.
- Hei de dar com a pedreira verde! Hei de dar com ela por aí! Custe o que custar...
E levantou de novo arraial. Antes de partir, contudo, chamou a Antônio de Almeida Lara.
- Vosmecê apurou ouro bastante?
- Apurei, tio.
- Em quanto regula o cabedal que vosmecê apurou?
- Aí uma dez arrobas...
- Dez arrobas?
Os olhos do lavageiro alargam-se de espanto. Mas o nababo felizardo, que levava as suas cargas entupidas de grãos, não se amofina desta feita com a incrível boa-fortuna do sobrinho. E diz apenas:
- Pois trate de voltar com o ouro prá São Paulo. Mas olhe: dez arrobas é peso grande demais prá vosmecê carrear sozinho. Bote duas arrôbas na garupa dum cavalo. E vá com elas, o quanto antes, acudir o apuro de sua mãe que está carecendo de ajuda. As oito restantes eu guardo aí nas bruacas.
O rapaz pôs no cabo dois olhos desconfiados:
- Vosmecê vai guardar as oito restantes?
- Não se arreceie, moço; eu não vou guardar elas prá mim, não. Vou guardar prá vosmecê. Levá elas comigo por esse sertão bruto até encontrar o mar. Quando encontrar o mar, meto o ouro de vosmecê num galeão e mando tudo a São Paulo por um portador de confiança. Vá sem susto..
Não havia o que discutir. Antônio de Almeida Lara encheu dois grossos alforjes de couro com duas arrobas de grãos. Meteu-os na garupa dum cavalo. E abalou, através da lôbrega mataria dos Cataguazes, a caminho de São Paulo.
No outro dia, madrugada ainda, a bandeira de Sebastião Raposo deixava o sertão do rio das Contas. E aquelas cento e trinta bateias, e os peões da carga, e a mulher de Manuel de Almeida, e o filho, e o Tonho, tudo aquilo, escudeirando as oitenta arrobas de grãos que iam na tropa, tudo aquilo foi, cortando lombas e socavas, sob as ordens do cruento sátrapa rústico, a ver se tinham ainda a boa-fortuna de topar, por esse mundo de Deus afora, com a famosa Serra das Esmeraldas...
EM SÃO PAULO
É noite. Chove. Dentro, no seu casarão, à luz fumarenta do candeeiro, D. Maria de Lara afunda-se magoadamente em cismas e saudades. Qual teria sido a sorte da bandeira? E
as esmeraldas? E o seu Antônio? Onde estaria ele, àquelas horas, em noite assim de temporal desatado?
Súbito, lá fora, brusco pateado de cavalo. O coração da matrona salta descompassado.
Quem será? O cavalo estaca à porta. Passos rápidos ecoam no corredor. D. Maria erguese, assustada. E eis que diante dela, à luz do candeeiro, surge desembaraçadamente um vulto. Está vestido de couro. É barbaçudo. Carrega nos ombros dois sacos de pano breado. A velha, mais com o coração do que com os olhos, reconhece logo o hirsuto personagem. E rompe num brado:
- Meu filho!
É, de fato, Antônio de Lara. O moço depõe os alforjes no chão. E, com largo júbilo, abrindo os braços, abraça freneticamente a velha ao peito.
- Mãe!
E o moço vai logo apontando os preciosos alforjes que trouxera.
- Ouro, mãe, ouro!
A velha crava olhos ávidos no filho.
- Ouro?
- Sim, mãe, ouro!
O rapaz escancara os sacos de couro. E então, ali, na noite de chuva, sob o clarão mortiço do candeeiro, faiscam, ante o olhar pasmado da matrona, as folhetas amarelas que os entupiam.
- Esse ouro é seu, mãe! Eu catei dez arrobas no rio das Contas. Não pude carregar tudo comigo. Mas trouxe para a mãe, que carecia dele com pressa, duas arrobas na garupa do meu cavalo. As outras que faltam, Sebastião Raposo há de me mandar num galeão, por portador de confiança, quando chegar na beirada do mar...
E o moço bandeirante, todo festa, abraçando de novo a velha:
- Ouro, mãe! Ouro!
* * *
D. Maria de Lara, nessa mesma noite, desenrola ao filho os grandes acontecimentos que andavam na vila de boca em boca. São tudo notícias de ouro. Reboa por toda a parte a fama enlouquecedora das minas dos Cataguazes. Que mundão de barras rendera para o Rei, só nesse ano, o quinto de Ouro Preto! E o quinto do Ribeirão do Carmo! E o quinto de Sabará!
- E não é só, filho! Ainda há mais. Saiba que Pascoal Moreira, ao que contam, deu também com uma grossa mancha de ouro...
- Pascoal Moreira? Mas adonde mãe? Nas Gerais?
- Não foi nas Gerais, não. Foi por esse sertão afora, longe daqui, na beira de um rio.
Dizem que o rio se chama Cuiabá. Ah, filho, o ouro que Pascoal Moreira já tem mandado!
O padre Queirós já trouxe por aqui arrobas dele. É um mundaréu de riqueza!
Durante a vasta noite, ardentes, com a fantasia esporeada, a velha e o moço esbraseiamse em sonhos de grandeza. Oh, as novas minas de Pascoal Moreira.
O NEGRO FUGIDO
As semanas vão passando... E Antônio de Lara, inquieto, está a esperar o seu ouro.
Quando chegará a nau portadora das oito arrobas? Nisto, com pasmo do rapaz, aparece na vila um negro. O negro vem em trapos. Todo ossos. E, mal chega, procura ansiadamente a Antônio de Lara.
- Mecê se alembra de mim, sinhô?
Antônio de Lara fita-o. E o escravo, sem esperar resposta:
- Sô escravo de Sebastião Raposo. E tive na entrada com mece. Agora vim fugido pelo mato...
- Fugido?
- Fugido, siô moço; acuado que nem bicho. Ah, mecê não sabe a desgraça que aconteceu prá bandeira! Que matança! Mecê escuite..
E o escravo reconstrói, ainda com pavor, os sucessos tremendíssimos da jornada.
Tremendíssimos, sim. Pois Sebastião Raposo, com as suas arrobas, engolfara-se por aquelas imensas selvas amedrontadoras. Acampava aqui. Acampava acolá. Lá ia, teimoso, à cata da tentadora pedreira verde que lhe afogueava o ânimo. Onde as esmeraldas? Onde? E Sebastião Pinheiro Raposo varou, de ponta a ponta, o sertão inteiro da Bahia. Varou, de ponta a ponta, o sertão inteiro de Pernambuco. E principia a atacar o sertão remoto do Piauí. Mas principia apenas. Um dia de jornadeio. Um só. E o cabo manda assentar o seu acampamento em certo valo, rente a um córrego, de permeio a umas serras que se alteavam no horizonte.
- Toca a sondar esta paragem, gente! Esta serraria tá com geito de ter pedra verde...
Assentaram o acampamento na remota paragem. E nessa mesma noite, horas mortas, os sertanejos acordam aterrorizados: bruta saraivada de tiros zarguncha estrepitosa pelo acampamento. De todo lado, como bandos de onças, surgem homens vestidos de couro, a faca em punho. Que é aquilo? Um assalto. E que assalto pavoroso! Dentro daqueles matos, na noite sertaneja, rompe feroz e medonhíssima carnagem. Debalde Sebastião Raposo pula de garrucha em punho. Debalde o filho salta com a catana na mão. Debalde ambos gritam, dão ordens, vociferam. Negros e minas, tomados de súbito pavor, não ouvem o comando dos amos. E quando, no aceso do ataque, em meio a imprecações e estampidos, Sebastião Raposo tenta ainda, aos berros, arregimentar os seus homens, eis que Manuel de Almeida, com uma faca de ponta na mão, cai de golpe sobre o paulista.
Cai como um jaguar assanhado: e Sebastião Raposo, na confusão da chacina, tomba varado por uma facada no vazio.
Antônio de Lara corta, sôfrego, a narrativa do negro:
- E o ouro? E o meu ouro?
- Roubaram tudo, sinhô! Roubaram o ouro de sô Sebastião. Roubaram o ouro de mecê.
Não ficou uma bruaca..
O moço sente a enormidade do desastre. A riqueza que ele tivera entre as mãos, aquela riqueza que êle catara suadamente nos restos do cascalho, escoara-se tragicamente no desastre. Que fazer agora? Antônio de Lara exclama, ali mesmo, sem vacilar:
- Vou-me embora prá Cuiabá! Vou catar ouro, de novo, nas minas de Pascoal Moreira...
"... soube (conta-o Taques) soube da infausta noticia da mortandade que fizeram os aggressores, levando todo o grosso cabedal. Mas como estavam descobertas as minas de Cuyabá, não desanimou: lá se foi para ellas Antonio de Almeida Lara". E do que, em Cuiabá, correndo atrás de ouro, aconteceu a este aventuroso Antônio de Almeida Lara, não cabe neste relato de esmeraldas. É uma novela saborosa, verdadeiramente pitoresca, que, bem ou mal, já foi evocada em outro livro: "O ouro de Cuiabá".
O FIM
A matança de Sebastião Raposo levantou estrondoso eco por esses sertões afora. E a justiça colonial teve que agir. Sebastião Raposo, naquela sua arremetida empós as esmeraldas, ia como encarregado oficial do governo. Ia com um alvará assinado pelo próprio punho do Capitão-General. Não era possível, pois, que se atacasse e assassinasse impunemente a pessoa privilegiada do encarregado governamental. E a justiça baiana, desemperrando-se, movimentou a sua pesada máquina em perseguição aos criminosos. Prendeu-os. E abriu-se a competente devassa. Dessa devassa dá-nos conta um papel velho:
"Porquanto, retirando-se o Capitám Sebastião Pinheyro Rapozo e seo filho o Capitám Antonio Rapozo, do districto do Ryo das Contas para o Piaguhy, com oitenta arrobas de ouro que haviam tirado, se introduziu na sua comitiva Manoel de Almeyda; o qual matou a hum e a outro aleivosamente, apossandosse de dito ouro e dos Escravos e mais trastes que levava e se passou para o districto da Torre de Garcia de Avila; e trouce Manoel de Almeyda comsigo a sua mulher, que andava em companhia de dito morto, com a qual o dito Manoel se diz cazara. E porque o dito Manoel de Almeyda se acha prezo na Cadea desta cidade por ordem minha e o referido cabo he insolente e tyrano, e pella sua atrocidade merece hum exemplar castigo, ordeno ao Dezembargador Ouvidor Geral do Crime entre a fazer perguntas ao dito Manoel de Almeyda e aos escravos e a sua chamada mulher, e possa tirar devassa de todo o relato e achando culpados proceda contra elles na forma do Regimento e Leys do Reyno.
B.a de Jan. 7-1721.
RUBRICA 15 .
Que é que resultou dessa devassa? Não sei de documento que o elucide. Só há, em meio a esse emaranhado de coisas velhas, um fato certo: não se apanharam jamais as oitenta arrobas de ouro do Rio das Contas. E é tudo.
Assim, Sebastião Raposo Pinheiro, que saíra à procura das tão apetecidas pedras verdes, não as encontrou. Em vez de pedras verdes, achou ouro. E, com o ouro, achou a morte. Terminou dessarte em hecatombe, com aquele brutíssimo e sangrento desenlace, a jornada de Sebastião Raposo. E essa jornada foi o último arranco após a serra verde. O
último sonho das esmeraldas.
NOTAS
ALGUMAS DATAS
(A fim de não atravancarmos o texto, deixamos para esta pagina o elucidarmos o leitor a respeito das datas em que se realizaram as principais entradas buscadoras de esmeraldas):
1554 Bruzo Spinosa e Aspilcueta Navarro 1567 Martim Carvalho 1572 (1578?) Sebastião Fernandes Tourinho 1574 Antônio Dias Adorno 1596 Martins Cão, o matante negro 1612 (1611?) Marcos de Azeredo 1634 Padre Inácio de Siqueira 1646 (1647?) Antônio e Domingos, filhos de Marcos Azeredo 1659-1662 Salvador Correia de Sá e Benevides 1660 (1661?) João Correia de Sá 1664 1667 Agostinho Barbalho de Bezerra 1674 Fernão Dias Paes Leme 1681 D. Rodrigo de Castel Blanco 1711 Sebastião Raposo Tavares A
Qual teria sido o itinerário de Spinosa? O prof. Derby que tentou, aliás muito eruditamente, reconstituí-lo, diz "ser mais provável que o caminho seguido por esta expedição fosse pelo rio Caravellas, não somente por ser o ponto mais próximo da partida, Porto-Seguro, como o mais seguro". A expedição teria, segundo o mesmo Derby, seguido o vale do Itacambira, alcançando a serra do Espinhaço e descido afinal para o São Francisco. Para Capistrano de Abreu, a expedição teria seguido, não pelo Caravelas, mas pelas margens do Jequetinhonha. Eis abaixo os trechos da carta do jesuíta Aspilcueta Navarro enviada aos irmãos da Bahia, em que vem pitorescamente narrada essa longínqua e nebulosa viagem:
"Carissimos irmãos: Passa de um anno e meio que por mandado do nosso P. Manoel da Nobrega ando em companhia de doze homens christãos, que por mandado do capitão entrarão pela terra dentro a descobrir se havia alguma nação de mais qualidade, ou se havia na terra cousa porque viessem mais christãos a povoal-a, o que summamente importa para a conversão destes gentios. Esta não é sinão para lhes dar conta como depois do tempo que disse voltei com os doze companheiros, pela graça do Senhor, salvos e em paz que era o para que o padre me enviara com elles.
Dar-lhes conta do caminho em particular, seria nunca acabar; mas como sei que com isso lhes vou dar consolação, direi em geral alguma cousa do que passamos e vimos.
Saberão, irmãos carissimos, que entramos pela terra dentro 850 leguas, sempre por caminhos pouco descubertos, por serras muy fragosas que não tem conta, e tantos rios que em parte no espaço de quatro ou cinco leguas passamos cincoenta vezes contadas por agua, e muytas vezes se me não socorreram me houvera afogado. Mais de tres mezes fomos por terras muy humidas e frias por causa das muytas arvores muy grossas e altas, de folha que sempre está verde. Chovia muytas vezes; e muytas noites dormiamos molhados, especialmente em logares despovoados; assim todos em cuja companhia eu ia, estiveram quasi a morte de enfermidades, uns nas aldeias, outros em despovoados, e sem ter outra medicina que sangrar-se de pé, forçando a necessidade a caminhar; e sem ter outro mantimento as mais das vezes que farinha e agua, não perigou nenhum; porque nos socorreu N. S. com a sua misericordia, livrando-nos tambem de muytos perigos de indios cuntrarios que muytas vezes determinavam matar-nos;
principalmente em uma aldeia grande onde estavam seus feiticeiros fazendo feitiçarias, aos quaes, porque andam de uma parte para outra fazem os indios grandes recebimentos, concertando os caminhos por onde hão de vir e fazendo grandes festas de comer e beber. No outro dia nós fomos e passamos muytos despovoados especialmente um de vinte e tres jornadas por entre uns indios que chamam Tapuyas, que é uma geração de indios bestial e feroz; porque andam pelos bosques, como manadas de veados, nós, com os cabellos compridos como mulheres; a sua fala é muy barbara e elles muy carniceiros; trazem frecha ervadas e dão cabo de um homem num momento. Para passar entre elles juntamos muytos dos que estio em paz comnosco, e passamos com espias adiante com grande perigo.
Os dias aqui eram calorosos e as noites frias, as quaes passavamos sem mais cobertura que a do céo. Neste ermo passamos uma serra muy grande, que corre do norte para o meio-dia e nella achamos rochas muy altas de pedra marmore. Desta serra nascem muytos rios caudaes; dois delles passamos que viu sahir ao mar entre Porto Seguro e os Ilhéos; chama-se um Rio Grande e o outro Rio das Orinas. Daqui fomos dar com uma nação de gentios que se chama "Cáthiguçá". Dahy partimos e fomos até um rio muy caudal por nome "Pará", que segundo os indios nos informaram é o rio de S. Francisco, e é muy largo. Da parte donde estavamos são os indios que deixei; da outra se cbamam Tamoyos, inimigos delles; e por todas as outras partes Tapuyas.
Vendo-nos pois neste aperto, pareceu a todos que ordenassemos barcos em que fossemos pelo rio; e assim começou cada um fazer o que entendia porque não tinhamos carpinteiro; e assim nos assentamos em uma aldeia junto da qual passa um rio por nome "Monayl", que vae dar no outro, e isto para sermos sentidos dos contrarios que estariam dahy tres leguas. Corremos muy gaio perigo, porque os indios que estio da outra banda do rio souberam de nós, e passaram de nos impedir a viagem; e foi o perigo tão grande que me metti na hermida, e me puz diante de um Crucifixo, que levava commigo. Foi N.
Mr. servido que ainda que alguns foram mal tratados, nenhum perigou, e eu os curava com mel silvestre e os indios foram mal tratados; pelo que nos embarcamos com muyto cuidado, e fomos pelo rio abaixo; mas não podemos continuar a navegação e assim foi necessario tomar conselho de novo acerca do nosso caminho por toda a terra povoada em derredor de diversíssimas gerações de Indios muy barbaros e crueis. As terras que cercam este rio em trinta leguas ou mais são muy planas e formosas. Sabidos do Rio fizemos nosso caminho por terra volvendo-nos".
B
Para Derby o itinerário de Martim Carvalho foi o mesmo de Spinosa. Diz aquele professor:
"parece que a expedição de Martim Carvalho seguiu até um certo ponto o mesmo caminho da de Spinosa, mas que para chegar á desejada serra das esmeraldas, que não conseguiu alcançar, penetrou no territorio de uma tribu de indios hostis na região do alto rio Cricaré pelo qual voltou para o litoral.
A distancia de 220 leguas e a referencia a serras de "muy-fino christal" fazem suppor que a expedição pudesse ter penetrado até a serra do Espinhaço, na região de alto Jequitinhonha, na secção que depois ficou conhecida pelo nome de Serra do Frio".
C
A jornada de Sebastião Fernandes Tourinho, o feliz achador das esmeraldas, foi feita na região do rio Doce, do Jequetinhonha, e dos seus afluentes. O roteiro dessa jornada foi estudado minuciosamente por Derby em "Os primeiros descobrimentos de ouro, em Minas Geraes" e por Calógeras, que discorda em vários pontos de Derby, em "As Minas do Brasil e a sua Legislação". Eis, na sua fonte, isto é, no "Tratado Descriptivo de Gabriel Soares", a rota de Tourinho.
"Sebastião Fernandes Tourinho, morador em Porto Seguro, com certos companheiros entrou pelo sertão, onde andou alguns mezes á ventura, sem saber por onde caminhava, e metteu-se tanto pela terra dentro, que se achou em direito do Rio de Janeiro, o que souberam pela altura do sol, que este Sebastião Fernandes sabia muyto bem tomar, e por conhecerem a serra dos Orgãos, que cae sobre o Rio de Janeiro; e chegando ao campo grande acharam alagoas, e riachos que se mettiam neste Rio Grande, e indo com rosto ao noroeste, deram em algumas serras de pedra, por onde caminharam obra de trinta leguas, e tornando a leste alguns dias deram em uma aldea de "Tupinaquins" junto a um rio, que se chama Razo Aguipe; e foram por elle abaixo com o rosto a norte vinte e oito dias em canoas; em as quaes andaram oitenta leguas rio. Este rio tem grande correnteza, e entram nelle dois rios, um da banda de leste, e outro do loeste, com os quaes se vem metter este rio Razo Aguipe no Rio Grande".
"Este rio (Rio das Caravellas) vem de muyto longe, e pelo sertão é povoado de gentio bem acondicionado, que não faz mal aos homens brancos, que vão por elle acima para o sertão. Aqui neste rio foi desembarcar Antonio Dias Adorno com a gente que trouxe da Bahia, quando por mandado do governador Luiz Brito de Almeida foi ao sertão no descobrimento das esmeraldas, e foi por este rio acima com cento e cincoenta homens, e quatrocentos Indios de paz e escravos e todos foram bem tratados e recebidos dos gentios (que) acharam pelo sertão deste rio das Caravellas".
"Este Rio Doce vem de muyto longe corre até o mar quasi leste oeste, pelo qual Sebastião Fernandes Tourinho, de quem fallamos, fez uma entrada navegando por elle acima, até onde o ajudou a maré com certos companheiros e entrando por um braço acima, que se chama Mandi, onde desembarcou, caminhou por terra obra de vinte leguas com o rosto a loeste sudoeste, dar com uma lagoa, a que o gentio chama boca de mar, por ser muyto grande enchente neste Rio Doce. D'esta lagoa corre este rio ao leste, e d'ella a quarenta leguas tem uma cachoeis, e andando esta gente ao longo d'este rio, que sahe da lagoa de trinta leguas, se detiveram alli alguns dias; tornando a caminhar andaram quarenta dias com o rosto a loeste; e no cabo delles chegaram, aonde se mette este rio no Doce, e andaram nestes quarenta dias setenta leguas pouco mais ou menos.
E como esta gente chegou a este rio Doce, e o acharam tão possante, fiz n'elle canoas de casca, em que embarcaram, e foram por elle acima, até onde se mette n'este rio outro a que chamam Aceci, pelo qual entraram e foram quatro leguas, e no cabo dellas desembarcaram e foram por terra com o rosto a noroeste onze dias, e atravessaram o Aceci, e andaram cincoenta leguas, ao longo delle da banda sul trinta leguas. Aqui achou esta gente umas pedreiras, umas pedras verdoengas, e tomam de azul, que tem que parece turquescoas, e affirmou o gentio aqui visinho, que no cimo deste monte se tiravam pedras muyto azues, e que havia outras que segundo sua informação tem ouro muito descoberto. E quando esta gente passou o Aceci a derradeira vez, d'alli cinco ou seis leguas da banda do norte achou Sebastião Fernandes uma pedreira de esmeraldas e outras de safiras, as quaes estão ao pé de uma serra cheia de arvoredo do tamanho de uma legua e quando esta gente ia do mar por este Rio Doce acima sessenta ou setenta leguas de barra acharam umas serras ao longo do Rio de Arvoredo, e quasi todos de pedra, em que tambem acharam pedras verdes: e indo mais acima quatro ou cinco leguas da banda do sul estão outras serras, em que affirma o gentio haver pedras verdes e vermelhas tão compridas como dedos, e outras azues todas muy resplandescentes".
"Desta serra para a banda do leste pouco mais de uma legua está uma serra, que quasi toda de chrystal muyto fino, a qual cria em si muytas esmeraldas, e outras pedras azues.
Com estas informações que Sebastião Fernandes deu a Luiz de Brito, sendo governador, mandou Antonio Dias Adorno, como já fica dito atraz, o qual achou ao pé desta serra da banda do norte as esmeraldas, e da leste as safiras. Umas outras nascem no chrystal, d'onde trouxeram muytas e algumas muyto grandes mas todas baixas; mas presume-se, que debaixo da terra as deve haver finas, porque estas estavam á flor da terra. Em muytas partes achou esta gente pedras desacostumadas de grande pezo, que affirmam terem ouro e prata, do que não trouxeram amostras, por não poderem trazer mais que as primeiras e com trabalho; a qual gente se tornou o mar pelo Rio Grande abaixo como já fica dito. E Antonio Dias Adorno, quando foi a estas pedras, Se recolheu por terra atravessando pelos "Tupinaes" e por entre os "Tupinambás" e com uns e outros teve grandes encontros, e com muyto trabalho e risco de sua pessoa chegou a Bahia e fazenda de Gabriel de Souza".
D
Quanto ao itinerário de Adorno, eis o que diz Calógeras:
"Possuimos informações bastante exactas sobre a viagem de Adorno, começada em Fevereiro de 1574, porque, ao voltar, elle foi descansar na propria fazenda de Gabriel Soares de Souza, no rio Jequiriçá.
Nenhum obstaculo lhes foi posto pelo gentio da região, e, galgados os contrafortes da serra dos Aymorés onde nascem o Peruipe e outros ribeirões, ganharam o valle do Mucury, directriz natural em uma zona densamente sombreada de mattas como esta;
assim encontraram as chapadas desnudadas das serras da Penha e da Noruega nas vertentes para o Arassuahy; pelo espigão continuaram até encontrar os signaes deixados por Fernandes Tourinho, reconhecendo talvez a presença dos mineraes manifestados por este era todo o trecho comprehendido entre o Mucury e a Tromba d'Anta. As amostras trazidas eram imperfeitas, mas consola Gabriel Soares "que debaixo da terra as deve haver finas, porque estas estavam á flor da terra".
Nas cabeceiras do Arassuahy separou-se a bandeira; alguns de seus membros desceram o rio em canoas e vieram sahir na barra do Jequitinhonha no Atlantico; outros, com Dias Adorno á frente, preferiram transformar a expedição de exploradora que era, em bandeira de resgate, e caminharam para Norte, a descer Indios".
E
O roteiro de Marcos de Azeredo vem exposto em "As Minas do Brasil e a sua Legislação".
Ei-lo:
"O roteiro desta viagem resalta do titulo de um dos mappas que acompanham a Razão do Estado do Brasil no Governo do Norte... Até o anno de 1612.
Por este itinerario se vê que o caminho seguido pouco se afastou do de Sebastião Fernandes Tourinho desde o rio Doce até o Sassuhy. Ahi fala-se em um Guasisi-mirim que deve ser, nao o Sassuhy Pequeno dos modernos geographos, mas um afluente de outro, provavelmente o Urupuca, do qual passou a bandeira para o rio Una, de cujo nome o actual Araunan conserva a lembrança. D'ahi com poucos kilometros de percurso por terra atinge-se pelo lado oriental a lagôa citada no roteiro e nas mesmas condições nelle indicadas; subindo a mesma para o Norte, em seguida, o pequeno ribeirão que nella desagua, chega-se á serra das Esmeraldas, o "divortium aquarium" do Mucury e do Doce, mais ou menos no meridiano da actual cidade de Theophilo Ottoni: - soldava-se aqui o novo caminho ao da leva de Antonio Dias Adorno. A lagôa mencionada neste trajecto é actualmente conhecida pelo nome de Agua-Preta; a denominação de Una dada por Azeredo deixa perceber que se trata de um phenomeno generalisado na zona, devido talvez á influencia dos ulmatos alcalinos em dissolução nas aguas de uma região coberta de mattas. Seu apeludo antigo, porém, era Vapubussú (Upaua-bussú, lagôa grande, adverte o Dr. Orville Derby).
F
O roteiro de Fernão Dias Paes Leme foi fixado em uma memória deixada por um neto do mesmo, Pedro Dias Paes Leme, da qual Southey teve cópia e extraiu o nome dos principais pousos em que estacionou o famoso bandeirante. E foram esses pousos:
Vituruna, Paraopeba, Sumidouro do Rio das Velhas, Roça Grande, Tucambira, Itamerendiba, Esmeraldas, Mato das Pedrarias, Serra Fria.
Além de tais paragens, assim mencionadas na memória de Pedro Dias, paragens que ficam em Minas Gerais, há ainda a se acrescentar algumas paragens, sem especificação de nomes, dos sertões da Bahia, onde, segundo documentos ultimamente achados por Borges de Barros, pervagou o buscador das esmeraldas.
É de se notar, também, como muito judiciosamente pondera Afonso Taunay, que a bandeira de Fernão Dias certamente não se internou em Minas Gerais pela garganta do Embaú, via Taubaté, consoante a rota costumeira das bandeiras que demandavam o sertão dos Cataguazes. Pois, um documento da Câmara de Taubaté, documento coevo (menos de seis meses depois da morte de Fernão Dias), demonstra que os camaristas sabiam das particularidades, da viagem e dos feitos de Fernão Dias "por pessoas fidedignas que daquellas partes (sertão dos Cataguazes) teem vindo para esta villa e passado para outras por ser este o caminho geral e a villa em que portam todos os que veem das minas".
"Este depoimento (escreve Taunay) parece-nos positivo a indicar que Fernão Dias não tomou o rumo do territorio mineiro pelo valle do Parahyba. Se tivesse seguido o "Caminho geral" e tivesse portado em Taubaté certamente a isto teria alludido a Camara em sua attestaçâo, aliás elogiosissima para o sertanista".
É de crer-se, pois, que o potentado paulista tivesse (como sempre o conjeturou Capistrano e os documentos de hoje estão a mostrar) entrado em terras de Minas Gerais por Atibaia, tal como fizera D. Rodrigo de Castel Blanco, que lhe seguiu as pegadas.
Neste ponto, portanto (o rumo inicial da jornada) a rota de Fernão Dias diferiu da de André de Leão. Quanto à reconstituição do caminho, segundo os velhos nomes que vêm na memória de Pedro Dias, é obra que realizou Orville Derby em "Os primeiros descobridores de ouro em Minas Gerais", aceita, com variantes mínimas, por Calógeras em "As Minas dó Brasil". Envio o leitor a essas fontes.