O Romance do Prata
Página gigantesca, e básica para o estudo da História do Brasil, foi a penetração do sertão virgem. Ela significa (será preciso ainda repeti-lo?) a conquista e a posse do território nacional. E essa página, que é assim a grande página inicial do livro da Pátria, como a realizaram os nossos maiores? E por que a realizaram.
Imaginai os mareantes desembarcando das suas bojudas naus na terra nova. O mar, a praia, aquela praia praiana, mui chan e mui fermosa, de que fala Pero Vaz Caminha - e lá, ao longe tapando o horizonte, uma serrania corcovada, negrejante, entrançada de matarias lôbregas. Que coisas haveria dentro daqueles silvedos? Que gentes? Que bichos? Ninguém sabia... Eram tudo falas apavorantes, tudo mistérios que arrepiavam.
Os primitivos povoadores, no entanto, desafiando essas falas e afrontando esses mistérios, arremessaram-se desabusados, peito a peito, contra aquelas brenhas aterradoras. E qual teria sido, nesses escuros tempos, o móvel que os compeliu a levar a cabo obra tão corajenta? Teria sido, por acaso, a simples curiosidade humana? Não.
Busca de terras férteis? Não. Busca de paus preciosos? De pássaros? De animais raros?
Não.
O que, nesse remoto alvorejar do Brasil, arrastou os povoadores a se engolfarem por esses mataréus adentro - curiosíssimo o constatá-lo - foram tâo-somente duas miragens, duas ridentes miragens enganosas, que lá, do fundo dos matos, lhes acenavam tentadoramente com o fascínio de riquezas fúlgidas. Sim, duas miragens. Duas quimeras encantadas que os mareantes ouviram, ao desembarcar, da boca ingênua dos selvagens.
E foram elas: a Serra Branca e a Serra Verde. Isto é: a "Serra da Prata" e a "Serra das Esmeraldas".
A Serra da Prata, que os bugres chamavam de Sabarabuçu, montanha-grande-queresplende, era uma serra alterosa, toda branca, que resplendia ao sol como grande torre de neve. E a Serra das Esmeraldas, fuzilante de pedraria verde, era também (contavamno saborosamente os sertanistas) uma serra estranha, muito esplendorosa, onde tudo tinha a cor verde - as pedras verdes, as árvores verdes, as águas verdes, até os peixes dessas águas eram verdes. Tais engodos, assim graciosos e líricos, encheram com o seu encantamento o ar crédulo do tempo. Tornaram-se as duas maiores e as mais fascinadoras lendas que já teve o Brasil. E lendas de conseqüência absolutamente capitais. Pois foram a busca da Serra da Prata e a busca da Serra das Esmeraldas os dois primeiros fatores, primeiros e decisivos, para a conquista e a posse da terra bárbara.
A esses dois fatores, completando-os, veio mais tarde ajuntar-se um outro: a busca do ouro.
Contar a história de cada um desses fatores, tal como os encontrei nos velhos alfarrábios - eis o plano da obra a que, dentro das minhas pobríssimas forças, eu me propus a realizar. Desse plano resultaram três volumes: "O Romance da Prata", "O Sonho das Esmeraldas", "El-Dorado". O "El-Dorado", apesar de ser o fecho do tríptico, surgiu á luz em primeiro lugar. Hoje aparecem "O Romance da Prata" e o "Sonho das Esmeraldas".
Que os últimos, no julgar da critica, sejam os primeiros (como lá diz o evangelho) é bem o voto com que lanço á publicidade estes dois despretensiosos livros...
Este volume, em vez de "O Romance da Prata", talvez se chamasse com mais acerto -
"Os Romances da Prata". Pois são dois, com efeito, os romances que a prata urdiu no Brasil: um, ao norte, sob o nome de - "As minas de Prata"; outro, ao sul, sob o sonoro nome selvagem de - "Sabarabuçu". E é ainda de notar-se que nesta obra, onde há dois romances, não entrou um só grânulo de fantasia. Nem uma só página inventada. Tudo o que ai está foi rigorosamente buscado (e com quanto enfado e canseira!) na poída e embolorada papelama do tempo. Mas a verdade histórica, nua e crua, tece ás vezes enredos singulares. Diante dos enredos que teceu a prata do Brasil, este livro, feito de verdade histórica, verdade nua e crua, foi batizado com o título paradoxal de romance. O
leitor, ao findar a leitura, bem pesados os fatos, irá dizer se o titulo está desarrazoado.
S. Paulo -1934.
PAULO SETÚBAL.
Fontes:
Gandavo: "História da Província de Sancta Cruz", "Tratado da Terra do Brasil"; Gabriel Soares: "Tratado Descriptivo do Brasil"; Frei Vicente do Salvador: "História do Brasil";
Barbosa Leal: "Carta ao Conde de Sabugosa, vice-Rei do Estado do Brasil"; "Cartas de Melchior Dias Moreira"; Taques: "Informações sobre as minas de S. Paulo"; "História da Capitania de S. Vicente"; Accioli de Cerqueira: "Memórias Históricas"; F. Vicente Viana:
"Memórias sobre o Estado da Bahia"; Felisberto Freire: "História de Sergipe"; Capistrano:
"Robério Dias e as minas de prata, segundo novos documentos"; F. Borges de Barros:
"Bandeiras e Sertanistas Baianos"; Rocha Pita: "Historia da America Portugueza";
Jaboatam: "Novo Orbe Serafico Brasilico"; Walter Raleigh: "The discoverie of the large, rich, and beautifull empire of Guyana"; Teodoro Sampaio: "O sertão antes da conquista";
Orville Derby: "Roteiro de uma das primeiras bandeiras paulistas"; "Os primeiros descobrimentos de ouro em Minas Geraes", "Os primeiros descobrimentos de ouro nos districtos de Sabará e de Caheté"; Meio Morais: "Chorographia Historica"; Afonso Taunay:
"Historia Geral das Bandeiras"; Basilio de Magalhães: "Expansão Geographica do Brasil até fins do seculo XVII"; EIlis Júnior: "O bandeirismo paulista e o Recuo do Meridiano";
Calógeras: "As minas do Brasil e sua Legislação"; Afonso Furtado de Mendonça:
"Correspondencia"; vol. IX e X, Docs. Hist.; Moisés Marcondes: "Documentos para a Historia do Paraná"; Vieira dos Santos: "Historia da Fundação de Paranaguá"; Negrão:
"As minas de ouro da Capitania de Paranaguá"; Diogo de Vasconcelos: "Historia Antiga de Minas Geraes"; Documentos do Conselho Ultramarino (An. Bibl. Nac., vol. 39)
Histórias Gerais, Documentos Interessantes; Atas da Cámara de S. Paulo, Inventários, etc.
PRIMEIRA PARTE
AS MINAS DA PRATA
A SERRA BRANCA
Antônio Dias Adorno está no engenho do Jequiriçá. O sertanista, quebrantado e maleitoso, viera pedir hospitalidade a João Coelho de Sousa. João Coelho de Sousa, figura rústica de barão feudal, é um povoador de largas posses, senhor de imensas terrarias e aguadas, que vive ali, abruptadamente, à beira do Rio Real, no seu poderoso e solarengo engenho do Jequiriçá. O asselvajado rico-homem acolhera o chegadiço com grandeza. Adorno, sertanejo de fama, andara por longínquas e confusas terras em busca de ouro, e de esmeraldas, e de prata. E agora, no solitário casarão entaipado, enquanto trata da terçã, o viajante relata ao hospedeiro aquelas fúlgidas coisas, tão maravilhadoras, que vira e ouvira por essas terrificantes selvas onde se entranhara. O senhor do Jequiriçá, cerdoso e selvático, ali, ao lado do catre, queda-se a escutar o mateiro com esparvoado deslumbramento.
Adorno vai-lhe então contando de -"hum rio muyto largo, onde dizem que está uma serra que resprandece muyto e que he muyto amarella; nesse rio vão ter pedaços de ouro que dessa serra cae..." Vai-lhe contando ainda, com a febre a alumiar-lhe fogaréus nos olhos, de - "huma serra que havia muytas leguas pela serra a dentro; a qual serra era muy fermosa e resprandecente. Os indios traziam dessa serra humas pedras verdes, as quaes eram esmeraldas..."
Ouro! Esmeraldas!
Quanta riqueza por esses negros bosques adentro!... Para o senhor do Jequiriçá, contudo, mais do que o ouro, bem mais do que as esmeraldas, esbraseava-lhe rudemente a ambição aquela acutilante notícia de que lá, ao longe, muito longe, encravada na escureza daqueles matos, havia uma serra branca, muito resplandecente, que parecia à distância uma torre de prata a fuzilar ao sol. Ah, era a Serra da Prata... Era de certo aquela mesma serra, tão provocadora, de que falara com ardência Walter Raleigh na sua célebre viagem ao El-Dorado: "nós nos contentamos de vê-la á distância; e nos pareceu uma torre branca, muito alterosa. Não creio que haja no mundo coisa semelhante. Barrêo contou-me maravilhas dessa montanha, onde há muita prata que resplende de longe ao sol". E essa ofuscadora serra branca, que se tornou durante duzentos anos o sonho obsidente de todos os violadores do sertão - "se compõe (diziam os sertanistas brasileiros), se compõe de huma terra tão branca e tão fina como a cal; e, segundo os signaes da terra onde se acha a prata, por este signal mostra que esta Serra o tem".
O senhor do Jequiriçá acompanha de ouvido atentíssimo os contos do viageiro. Aquelas maravilhas fascinavam-no. E corusca no hóspede dois grandes olhos acesos:
- A serra branca? Pois vosmecê, Antônio Adorno, escutou aí, nas suas Jornadas, alguma fala de peso sobre a serra branca?
- Mas o sertão inteiro está cheio dessas falas, senhor João Coelho! Não há nação de bugre, por essa gentilidade afora, que não fale da serra branca. E a serra branca, vosmecê bem o sabe, é a serra da prata...
A PRATA
Prata! Eis a palavra encantada do século XVI. O cálido sonho tentador que, na ingênua terra do pau-de-tinta, tresvairou a imaginativa cúpida de todos os sertanejos da época. Foi ela o acicate de fogo que esporeou os colonizadores a atacar de frente, peito a peito, aquelas soturnas e misteriosas brenhas do Brasil selvagem que acordava. E com razão! A
prata, nesses primitivos tempos, era mais buscada do que o próprio ouro. "... havia (diz Calógeras), havia uma sorte de coefficiente psychologico geral - a existencia de prata e de ouro. Mas a prata sobrepujando o ouro. Era a prata que se queria encontrar nas possessões portuguezas". Ao que acrescenta o sr. Teodoro Sampaio: "... de ouro quasi que se não falava; era a prata nesses tempos o metal de estimação mais commum. As chronicas e escriptos da epoca, assim como os contos imaginosos do povo, davam á prata maior valia".
Foi dentro dessa curiosa concepção, e em meio àquela desenfreada ânsia, então em voga, de se buscar pelo mundo inteiro a riqueza branca, que os mineradores do século, tanto os penetradores de betas como os temperadores de metal, proclamavam a um só tom, com obstinada firmeza, existir no Brasil portentosos e ricos veeiros de prata. E
proclamavam-no com raciocínios de peso.
O Peru, sabia-o toda gente, era a terra da prata. Das minas do Potosi, tão largamente faladas, partiam para Castela, a cada nau, carregamentos opulentíssimos do tesouro branco. Pode-se afirmar, sem exagero, ter a Espanha colhido no Peru a riqueza mais espantosa que um país, até então, já tivera a boa dita de colher em minas. Ora, a terra do Brasil era a continuação da terra do Peru. Formavam ambas um bloco só. "... esta terra e o Perum, Senhor, he toda huma" - mandava dizer ao Rei, numa frase famosa, o velho Tomé de Sousa. Pois sendo esta terra e o Perum toda huma, na expressão viva, e tão chistosa, do governador, como se admitir haver imensidão de prata no Peru e, ao mesmo tempo, não haver prata alguma no Brasil? Seria isso o absurdo dos absurdos! Mas tal não acontecia. Pois, consoante as interessantíssimas idéias do tempo, o oriente era tido como mais rico do que o ocidente. Ora, ficando o Brasil no oriente da América e o Peru no ocidente - "não podia, evidentemente, faltar aqui o que abundava por lá". Assim sendo, e com saborosa lógica, concluía um velho documento, citado por Capistrano: "esta região, por boa rezão de philosophia, deve ter mais e melhores minas de prata do que o Perú, por ficar mais oriental que elle e mais disposta á criação dos metaes". Não havia, pois, dúvida: o Brasil não era apenas a terra selvosa do pau-de-tinta; o Brasil, acima de tudo, por boa rezão de philosofhia, era a terra bem-fadada da prata!
Tanta verdade havia nisso que, na própria viagem de descoberta, os primeiros bugres que Cabral mandara buscar à praia, ao entrarem na nau, botaram logo reparo no castiçal de prata que havia sobre um bofete. Botam reparo, e, o que é o mais, puseram-se a acenar para o sertão, com grandes gestos, como a significar que havia prata no país. "... um delles poz olho em hum castiçal de prata, e assy acenava para a terra, e despois para o castiçal, como a dizer que avia na terra tambem prata".
E quantas outras notícias sobre essa apetecida prata, quantas, corriam então a cândida terra dos papagaios! E que fabulosas! Os companheiros de Gonçalo Coelho, por entre narrativas embasbacantes, contavam, ao voltar, que - "na embocadura dum rio que fica a duzentas leguas aquem do Cabo, tiveram informes de que pelo sertão havia muyta prata.
Diziam que um Capitam de outro navio trouxera ao Rei de Portugal um machado de prata".
1 E que rio era esse que ficava a duzentas léguas aquém do Cabo? Era o Rio da Prata. Rio imenso, de águas claras, assim chamado exatamente porque os indígenas, que lhe povoavam as margens, traziam enfeites de prata e usavam objetos de prata. Oh, as minas desse confuso Rio da Prata, tão longínquo e extraordinário! "Pela terra a dentro, não muyto longe do Rio da Prata, narra-o Gandavo - descobriram os Castelhanos huma mina de metal; e de cada quintal delle dizem que se tirou quinhentos e setenta cruzados de prata..." Contava-se até que um mareante, depois de abicar ai por muita, praia -
"levara comsigo hum morador deste paiz, o qual quiz com muyto empenho ver o Rei de Portugal e dizer-lhe que se lhe offerecia a trazer tanta prata que mal a poderão carregar".
2 Tanta prata que mal a poderão carregar... Tais eram as falas que corriam o país ainda impenetrado e misterioso. Tais as falas que, boiando no ar dessas nevoentas eras, abrasavam o ânimo cândido daqueles homens rudes, vestidos de couro, que se arremetiam desabusados a desvirginar os mataréus da terra nova.
O SENHOR DO JEQUIRIÇÁ Antônio Dias Adorno, no seu catre de maleitoso, vai desenrolando ao senhor do Jequiriçá maravilhas e grandezas. João Coelho de Sousa, com a ambição acendida, ouve-o durante dias e dias. E cada dia mais deslumbrado...
A terçã, contudo, aquela ruim terçã que o aventureiro trouxera da sua jornada, continua a raivar-lhe sem tréguas no corpo gasto. Assedia-o, agora, com assanhada virulência. Certa noite, batendo furiosamente o queixo, o mateiro clama aos gritos por João Coelho. E
quando o hospedeiro, acudindo precipite, corre ao quarto de Adorno, eis que dá com o doente já cadáver no catre.
3 Mas que importava aquela morte para o fragueiro senhor do Jequiriçá? Que importavam as febres? E os bichos do mato? E os bugres? Nada! João Coelho de Sousa tem agora no peito, bem assente, esta ousada idéia: atufar-se por esses silvedos adentro em busca da serra da prata.
- Cuidado, senhor João Coelho de Sousa, cuidado! O sertão do Brasil é traiçoeiro. Todos os que, até hoje, tentaram desvendar as riquezas que o mato esconde, morreram... Não escapou um só!
Foram baldadas as palavras. A serra da prata, aquela aguilhoadora serra, alva e resplandecente, com os seus cimos de prata, com as suas entranhas de prata, com as suas areias de prata, bailava fuzilando diante dos sonhos gananciosos do senhord'engenho. Nada o demoveu. E João Coelho de Sousa aprestou-se para a visionária jornada.
Aprestou-se e partiu.
Principia ali, com a arrancada de João Coelho de Sousa, a página inicial do romance da prata. Daquele romance grosseiro, é verdade, mas como o das esmeraldas, pedra fundamental, fator básico, para essa obra gigantesca, verdadeiramente ciclópica, que foi o desbravamento inicial da terra bruta. Avulta nessa obra, como pioneiro, a nebulosa figura, tão distante e esfumada, do hirsuto senhor do Jequiriçá. Sim, aquele asselvajado ricohomem, ao arrojar-se com a sua hoste por aqueles bravios matagais impenetrados, vai abrir, arrastado pela miragem da serra branca, um dos primeiros rasgões que o machado do homem já golpeara na selvatiqueza amedrontadora do sertão. Logo a seguir, arrastados pela mesma miragem, olhos cravados na mesma prata, outros homens, mais outros, durante duzentos anos, enredar-se-ão na mesma aventura em que se enredou o senhor do Jequiriçá. Precipitar-se-ão por essas mesmas picadas que, uns após outros, os rompedores-de-mato irão lanhando, como grandes cicatrizes vermelhas, no corpo arisco e púbere daquela jovem terra que despontava. E aquela jovem terra, aquela desmarcada, misteriosa, rudíssima terra, quase um continente inteiro, onde cresciam árvores estranhas que produziam vidro, onde se entocavam horríficos bichos desconformes, onde havia serpentes que engoliam veados, onde viviam grandes índios roxos de pés para trás, aquela terra, assim aterradora e sombria, será dentro em pouco - milagre de uma pobre lenda! - rompida de lado a lado, desvirginada, dilacerada, rasgada em todos os seus meandros, atrevidissimamente, por esses bandos de homens selvagens. E esses homens selvagens, vestidos de couro, de arcabuz ao ombro e faca à cinta, ao arrancarem a terra virginal da sua edênica bruteza, é que vão ser - mal o sabiam eles! - os verdadeiros descobridores do país novo, os grandes e autênticos fundadores do Brasil de hoje.
* * *
Três anos a fio, três anos duramente vividos, o senhor do Jequiriçá mergulhou fundo naquele trevoso pego entrançado de matarias. Três anos, com a serra branca acenandolhe diante dos olhos, a correr altos, a transpor barrocais, a furar cerradões, a vadear rios encachoeirados... Após tão comprido jornadeio, João Coelho de Sousa tornou de novo ao seu engenho. Mas não tornou desiludido. Ah, não! João Coelho tornou radiosamente esperançado. Dizem todos que trazia ele muitas amostras de prata. Mas, ao tornar...
- Cuidado, senhor João Coelho de Sousa, cuidado! Todos os que, até hoje, tentaram desvendar as riquezas que o mato esconde, morreram. Não escapou um só...
... ao tornar, antes mesmo de alcançar as terras do Jequiriçá, João Coelho, num dos pousos do caminho, adoeceu subitamente de doença grave. Adoeceu no pouso e morreu no pouso - eis tudo o que diz a crônica.
Com tal desfecho, assim inesperado, a conquista da prata teve ali o seu primeiro fracasso.
Antes de morrer, porém, do seu mísero rancho improvisado no mato, mandou João Coelho às pressas um mensageiro de confiança ao irmão, Gabriel Soares. O mensageiro levava certamente as amostras da prata. Levava certamente o roteiro da jornada. E, com as amostras e com o roteiro, um pedido instante ao irmão para que não deixasse perecer os seus trabalhos: que se fosse imediatamente à Europa, e, na Europa, suplicasse ao Rei auxílios necessários para ultimar o descobrimento da prata. "... as riquezas que viu -
mandava dizer com firmeza - as riquezas que viu eram por si só capazes de restaurar os thesouros da coroa e fazel-a a mais rica do mundo".
4 TRATADO DESCRITIVO DO BRASIL
"... Gabriel Soares, hum homem nobre dos que ficaram casados nesta Bahia. Teve hum irmão que andou pelo sertão tres annos, donde trouxe amostras de prata...".
5 Era Gabriel Soares um dos mais ferventes enamorados do país novo. Ele sabia bem, depois de dezessete anos de moradia na terra, o que ia de grandezas por essas impenetradas selvas adentro! Ah, se sabia... "Dos metaes que o mundo faz mais conta (escrevia a ele) que é a prata e ouro, esta terra tem delles tanta parte quanto se pode imaginar. De prata e ouro podem vir á Hespanha, cada anno, maiores carregamentos que nunca viram as Indias occidentaes". Por isso mesmo Gabriel Soares não hesitou: mal recebe o recado do irmão, decide-se logo a continuar a empresa utópica das minas.
- Cuidado, Gabriel Soares! Cuidado! Todos os que, até hoje, tentaram desvendar a prata que o mato esconde, morreram... Não escapou um só!
Sorriu Gabriel Soares desdenhosamente dos agouros. O povo que falasse! Ele haveria de descobrir a prata do Brasil. A prata da serra branca... Daquela serra que... "... consoante affirmaram alguns Portuguezes, que a viram, parece de longe as serras de Hespanha quando estão cobertas de neve..."
* * *
Botou-se Gabriel Soares a caminho de Madri a suplicar a proteção do Rei. Levava para Espanha (o Brasil a esse tempo estava sob dominação dos Felipes), a fim de ler a Cristóvão de Moura, estadista com grande Voto no governo, uns cadernos vermelhos, muito toscos, que escrevera de sua mão. "Lembranças, esclarecia modestamente o próprio Soares, lembranças por escripto do que me pareceu digno de notar; as quaes tirei a limpo nesta Corte emquanto a dilação dos meus requerimentos me deu para isso lugar..."
Bem haja o sonho da prata! Aqueles cadernos vermelhos que, durante dezessete anos de morada no Brasil, Gabriel Soares enchera para contar "as grandezas e extranhezas desta Provincia"; aqueles cadernos vermelhos que ele singelamente apelida de lembranças, e que, em Madri, lançou providencialmente em letra de forma a fim de alcançar (como de fato alcançou) os favores de que carecia para a descoberta da prata; aqueles cadernos formam hoje, por consenso unânime, um dos mais vastos, e dos mais ricos, e dos mais pitorescos, e dos mais valiosos mananciais de informes que há no Brasil sobre a gente e a terra do século XVI. Tão agudas são as observações de Gabriel Soares, tão abundantes e variadas, que produziram elas esse livro interessantíssimo, verdadeiramente precioso, o maior que se escreveu na época sobre a colônia: Tratado Descritivo do Brasil. É um monumento. Varnhagen, ao reeditar-se no Brasil o trabalho conspícuo, hoje imprescindível para o estudo da história-pátria, disse, com a sua autoridade, numa nobre página de crítica, os altos e consagrantes louvores que merece a obra ilustre.
6 CUIDADO, GABRIEL SOARES!
Gabriel Soares voltou de Madri com abundantes poderes e dilatadíssimas ajudas. E
aprestou a sua entrada sem tardança. Botou nela, como mineiro, Marcos Ferreira, homem prático de metais. Como guia, um bugre amigo, Guarací, que sabia onde ficava a Serra da Prata. E com o mineiro, e com o guia, e com duzentos índios tapuios, bons flecheiros, o escritor atacou de rijo o sertão.
Largos e penosos dias, sob soalheiras urentíssimas, o sonhador da prata arremeteu-se impávido por aqueles negrejantes matos tragadores de vidas. Atingiu a serra do Quareru.
Aí acampou.
7 Foi então, no Quareru, em pleno ermo, dentro do coração hirsuto do Brasil bárbaro, que, pela primeira vez, a mão do homem alevantou atrevidamente uma casa de taipa.
"Gabriel Soares mandou erguer no Quarerú huma casa-forte..." Não era, portanto, apenas o desbravamento da terra virgem que realizava o intrépido rasgador de selvas: com aquela casa-forte, plantada em tão selvático despovoado, lançava também Gabriel Soares a pedra básica, o alicerce primeiro, do povoamento do hinterland brasílico.
E enquanto os bugres erguiam aquela curiosa mole, fez o escritor sondar com acirramento todos os recantos da serrania. Vai senão quando, em uma daquelas lombas belo augúrio inicial! - Marcos Ferreira dá inopinadamente com os primeiros, alvoroçantíssimos vestígios da tão apetecida prata. Grandes bulhas! Grande e ruidosa festa entre os achadores! "... aqui fizeram os mineiros fundição de pedra de huma betta que se achou na serra; e se tirou prata..."
Mas a beta era de certo minguada e fraca. Não satisfez a cobiça de Gabriel Soares. Pois, segundo o relato da velha crônica - "o general a mandou serrar, e, deixando alli doze soldados, se foi com os mais outros cincoenta leguas, para o lado donde nasce o Rio Paraguassú".
Rude e bravia jornada! Os ares eram por aí pestíferos. As águas ruins. Nuvens de mosquitos azucrinantes ferretoavam sem tréguas os viageiros. Morcegos, às chusmas, chupavam de noite o sangue dos animais. Os animais, ao outro dia, amanheciam mortos no pouso. Não se topava caça por aqueles chãos estonados. Os mantimentos foram escasseando nos cargueiros. Num dado instante, em pleno deserto, faltaram por completo. Os homens, para não morrerem à míngua, tiveram que comer carne de cobra.
Alastrou-se a maleita pela tropa. Maleita e doenças de frialdade. Não houve, daí por diante, como tolher o desencadear das misérias. Eram, todos os dias, desgraças sobre desgraças. O índio Guarací, tão precioso, que conhecia o sítio onde ficava a serra da prata, cai de repente morto à beira de um brejo.
- Cuidado, Gabriel Soares, cuidado! Todos os que, até hoje, tentaram desvendar a prata que o mato esconde, morreram... Não escapou um só!
Mas não havia empeço que quebrantasse o ânimo de Gabriel Soares. E o escritor lá continuou a sua rota, Por outras cinqüenta léguas, bem compridas e bem terríveis, o buscador da prata enfrentou de novo, com desassombro, aquelas tragédias e reveses.
Estacionou afinal. E botou-se, o corajento, naquelas solidões ainda mais lôbregas, a levantar outra casa-forte. A tropa atirou-se duramente à lida. E a paragem selvática, encravada entre morros penhascosos, encheu-se improvisadamente da faina criadora desses homens chucros. Mas o povo tinha bem razão: a prata do Brasil era traiçoeira!
Todos os que tentavam desvendá-la, morriam. Não escapara um só...
Certa noite, no acampamento, rompe tumultuosa pendência entre os bugres. Para cortá-la "Gabriel Soares sahiu da sua barraca com uma catana na mão, e, pelos apartar, maltratou a muytos de húa e de outra banda". Os selvagens, irados contra o capitão que assim os agride tão carniceiramente a golpes de ferro, resolvem abandona-lo no longínquo pouso. Na mesma noite, muito furtivamente, "fugiram todos e o desampararam;
deixando-o só naquele deserto..." Os padecimentos tocaram então ao auge. Doente, quebrantado de forças, desbaratado, sozinho naquele despovoado, Gabriel Soares não logrou vencer tão dilatadas provações. E morreu na jornada. Morreu, o sacrílego, por querer atingir a serra da prata. Aquela enigmática, tão fascinadora serra branca e resplandecente... E quem, já agora, haveria de atingi-la? Quem haveria de descobrir a prata que o mato escondia? Quem?
(Os ossos de Gabriel Soares, mandou-os buscar Bernardo Ribeiro, sobrinho do sertanista. Recolheram-nos a um jazigo de uma das igrejas da Bahia.)
O HERÓI DA PRATA
Parecia, realmente, depois de tanta desgraça, que ninguém mais teria o aloucado arrojo de se afoitar de novo por esses socavões em busca da serra arisca.
O próprio D. Francisco de Sousa, governador-geral, ao saber do fracasso, deixou desencorajado a Bahia e botou-se a caminho de S. Paulo no encalço de minas menos fantasiosas. Principalmente no encalço duma tal serra do Sabarabuçu, muito rica de prata, de que então se principiou a falar com grandes ruídos. Eis porque, no seu desalento, exclamava lastimosamente o velho Frei Vicente do Salvador: "Ficaram assim as minas obscuras athé que Deus, verdadeiro Sol, queira um dia manifestal-as!"
Mas não tinha razão o frade para tamanho desânimo. Pois é neste momento que surge o protagonista o mais rumoroso, o mais estupafaciente que há de entrar nesta enublada história da prata. É um baiano. Sertanejo de vida estranha, muito encoscorado e bravio, vai ele agora aturdir e embasbacar os contemporâneos com o aventuroso do seu estridente romance. Figura curiosíssima de lenda, confusa e novelesca, o novo personagem tornar-se-á daqui por diante, durante um século inteiro, sob o esbugalhado assombro da Bahia, o grande, o autêntico, o enlouquecente herói das minas de prata. E
como se chama tão extraordinário homem? Um que tem, na História do Brasil, o nome apagado: Melchior Dias Moreia. Mas um que tem, na voz do povo, o nome célebre:
Robério Dias. ~ o mameluco que possui a mais lavrada copa de prata que já se vira na Bahia. É quem possui as mais ricas bandejas de prata. Os mais opulentos vasos de prata.
Os mais pesados candelabros de prata. O povo, diante de tamanha riqueza, põe-se a murmurar a uma só voz:
- Melchior Dias descobriu as minas de prata! Melchior Dias descobriu as minas de prata!
O povo murmurava com justificados motivos. Melchior Dias, consoante o que, uníssonas, proclamam todas as crônicas do tempo, Melchior Dias Moreia, o primo de Gabriel Soares, O neto de Caramuru, havia descoberto, e guardado para si, as sonhadas minas de prata do sertão.\
MELCHIOR DIAS CARAMURU
- Melchior Dias descobriu as minas de prata!
Não existia vivente, pelos rincões mais apartados da Bahia, que não o apregoasse com firmeza. E com razão. Tudo bradava, na verdade, que o sertanejo havia realmente descoberto as minas. Mas como as havia descoberto? E onde? E quando? Antes de respondê-lo, vai aqui uma palavra sobre esse singular, ao depois tão ruidosamente famigerado, Melchior Dias Moreia.
"... vivia no certão do ryo Real Melchior Dias Moreia, dos primeyros naturaes da Bahia, primo de Gabriel Soares, homem abastado de terras e de bens". Era este Melchior Dias, filho de Vicente Dias, português e fidalgo, criado do infante D. Luiz, o qual, ao vir tentar fortuna no Brasil, se casara com a mameluca Genebra Álvares, filha do Caramuru. Vinha daí o chamarem-no correntiamente entre o povo: Melchior Dias Caramuru.
Pois foi Melchior Dias Caramuru quem, ao morrer, "deichou por suceçor de sua caza a hum filho natural, havido com huma india, a quem chamaram Rubellio Dias..." Vede o capricho dos fados! Este Rubellio Dias, ou melhor, este Robério Dias, tornou-se, graças a um equívoco do historiador Rocha Pita, o herói consagrado pela posteridade como o façanhoso achador das minas de prata. Tornou-se, durante dois séculos inteiros, aquele sertanista lendário, aventureiro, inspirador de romances tão largamente e tão simpaticamente popular no Brasil. Hoje, restabelecida esta nossa pobre, tão falível, verdade histórica, o famoso Robério Dias passou a ser apenas um mameluco de sangue aguado, desinteressante, que não teve a mínima interferência na descoberta da prata.
Muito ao contrário do pai, o protagonista sedutor da barulhenta façanha - "foi este Rubellio pessôa de poucos brios e de pouca actividade; e, temeroso do mau sucesso do pay, não só não quiz seguir aquela empreza, como tambem deixou perder todas as memorias e roteyros que tinha deixado o dito seu pay".
* * *
Melchior Dias era - quem não o era então? - um fascinado pelas minas de prata do Brasil.
E lá, nas suas terras do Rio Real, ao saber que partira empós à serra branca o seu primo e amigo, Gabriel Soares, homem de claro entendimento e mui sabedor das coisas da terra, Melchior Dias ficou-se a esperar com sofreguidão os resultados da tentadora empresa. Foi quando, com surpresa de toda a gente, estrondou de golpe pelo sertão a noticia do desbarato da jornada. E, com a notícia, eis que aparece Marcos Ferreira nas terras do Rio Real. Marcos Ferreira, já foi dito nestas páginas, é aquele mineiro que acompanhara a Gabriel Soares. Este mineiro teve a boa dita de escapar à tragédia."...
voltou a povoado o mineiro Marcos Ferreira que elle levou, o qual por mais robusto, ou por mais afortunado, poude fazer regresso a Bahia". Trazia Marcos ao Rio Real o relato das desgraças. Mas não apenas o relato das desgraças: trazia também - idéia obcecante!
- uma fé ainda irrestrita, absolutamente inabalável, de que esses matos por aí afora estavam entupidos de prata! E o mineiro açula o Caramuru. Conta-lhe a convicção de Gabriel Soares, convicção entranhadíssima, conservada até a hora da morte, de que existiam pela Bahia minas fulgurantíssimas. Conta-lhe... Não foi preciso muito. O
fazendeiro do Rio Real é um velho seduzido. Contagia-se logo. "... com as noticias que teve do seu primo Gabriel Soares, arresolveu-ce a largar a sua caza e as suas fazendas, e a entrar no certão com o poder que tinha do seu gentio, levando em sua companhia Marcos Ferreyra..."
Arresolveu-se e partiu.
OITO ANOS DE SERTÃO
Durante oito anos pervagou o Caramuru por aquelas terrarias despovoadas. Entranhou-se fundo, sem temor, no âmago mais abruptado da terra devoradora. Duas serras, bem precisas, visou o baiano na sua jornada: a serra de Jacobina e a serra de Itabaiana. Para atingi-las, e pesquisá-las, correu ele de cerro em cerro, e de aguada em aguada, e de barroca em barroca, e de caatinga em caatinga... Bahia e Sergipe, duas glebas então ermas e brutas, hoje dois nobres estados da Federação, talou-as o desbravador com afincado arrojo, porfiosamente, correndo, visionário, atrás da alucinadora quimera da prata.
1 No correr desses oito anos, por toda parte, em todos os acampamentos, botava-se o incluir mapa baiano a rachar morros, e a abrir catas, e a ensaiar cascalhos, e a cozer pedras em tachos. Que é que descobriu? Só Deus o sabe. Constatavam apenas os índios, com grandes embasbacamentos, que Melchior Dias, de quando em quando, após cozer muita pedra, dava de festejar aqueles esquisitos exames com rebolicos alegríssimos. E eram risadas, e alvoroçamentos, e muito e estrondoso tiro de espingardaria. Que significava aquilo? Os selvagens não entendiam. E ele:
- E, bugrada, a coisa vai! Mas não me vão dizer a branco nenhum onde fica esta serra...
E apontava os buracos escancarados nas lombas.
"... achey hum hindio cariry (conta-o Barbosa Leal), hum hindio velho, de cem annos, por nome Taburú; e descobri com muyta endustria haver elle acompanhado a Melchior Dias naquelle seo descobrimento, o que esse hindio tinha muito calado e negado (me dice elle)
por assim lho ordenar Melchior. E disse o hindio velho que cozeo no fogo, em hum testo ou tacho, uns seixos; e depois lavou muyto, e tirou uma pedrinha branca; e Melchior Caramurú fizera muita festa com espingardas; e lhes mandara não mostracem nunca a brancos aquelle logar..."
Oito anos de sertão! Oito anos atrás da serra da prata! Tão longa se tornou a ausência, e tão sem notícias, que, ao cabo desses compridos oito anos, a gente do Caramuru já o supunha morto por esses matos. Foi, portanto, com espanto de toda a terra, por entre a surpresa da mulher e a surpresa dos filhos, que um dia, apeando na mangueira, surgiu na sua fazenda do Rio Real, inesperado, asselvajado, avelhentado, vestido de gibão de anta, a figura peluda do baiano desbravador. Sim, Melchior Dias Caramuru voltara! E aquela sua misteriosa jornada, ao que se propalou de sopetão por todos os povoados, não fora vã. Pois principiou logo a troar pela Bahia inteira, aturdindo as gentes, aquela unânime voz deslumbrada:
- Melchior Dias Caramuru descobriu as minas de prata! Melchior Dias Caramuru descobriu as minas de prata!
Havia bem razão para o bulhento pregão. Melchior Dias pegou de atulhar a sua casa de grandezas. E que grandezas! Tudo de prata... "... Foi fama muy recebida que Melchior Dias, um dos moradores principaes e mais poderosos da Bahia, tinha a sua baixella inteira de prata; e todo o serviço de sua capella de finissima prata. E tudo tirado das minas de prata que achara...
9 O povo, diante daquilo, abria a boca. E era só:
- Melchior Dias Caramuru descobriu as minas de prata! Melchior Dias Caramuru descobriu as minas de prata!
O MARQUÊS DAS MINAS
Aquela voz correu mundo com grandes estampidos. E correu com visos da verdade a mais verdadeira. O próprio Melchior Dias, através da correspondência que deixou, confirmava, alto e bom som, o deslumbrante acontecimento: tinha descoberto as minas de prata! Num copiador de cartas encontrado nos seus baús, valiosíssimo copiador que foi achado, diz Barbosa Leal - "tam mal tratado e comido de copim que só em poucas folhas se deixa ler algumas partes", noticiava categoricamente o Caramuru que, com aquele seu imenso achado - "... o certão do Brasil havia de dar tanta prata como ferro Bilbau!" E
numa das suas cartas, a que dirigiu ao governador da Bahia referindo-se às minas com que iria em breve enriquecer a Metrópole, assevera firmemente que el-Rei, com tais riquezas poderia sem medo "pôr freyo ao turco e fazer outras emprezas grandes". Ao próprio Rei escrevia ele, de sua mão, estas palavras peremptórias: "... a devina Providencia foi servida que, por meu trabalho e emdustria, tenha eu descuberto as minas de prata deste Estado..." Senhor de achado assim tão grave, e tão opulento, Melchior Dias não se deixou ficar estagnado aqui pela colônia. Certo dia, enfiando o roteiro das minas na sacola de couro, meteu-se o descobridor num galeão e lá partiu em direitura a Madri. Ia disposto a revelar ao soberano o segredo da prata. Mas o baiano, de si para consigo, levava bem assentada esta determinação: não revelaria o seu segredo de mãobeijada. Não o revelaria sem compensação, assim à-toa, só pela galantaria de o revelar.
Não! Melchior queria recompensas. Queria mercês. "... embarcousse Melchior Dias para Portugal, passou a Corte de Espanha, declarou que tinha achado um haver e pertendeu mercêz".
10 O baiano (é o que conta o velho Rocha Pita) em troco da revelação das minas de prata - revelação tão formidanda! - pleiteou para si, muito empavonadamente, a alta nobreza de marquês. Sim, o neto de Caramuru pretendeu, nada mais nada menos, do que ser afidalgado com este fulgentíssimo título: Marquês das Minas.
Quatro anos estanciou o brasileiro na corte dos Felipes. E estanciou - eis um detalhe importantíssimo! - ao mesmo tempo em que D. Francisco de Sousa, o governador--geral enamorado da prata da Sabarabuçu, por lá estanciara a tratar das minas de S. Paulo.
O soberano, ao que se murmurava, chegou realmente a prometer ao Caramuru aquela grandiosa honraria. "As mercês que S. Magestade havia de fazer-me, conforme contratou, como todo o mundo sabe..." diz claro Melchior Dias numa das suas cartas. Mas a corte de Madri fora sempre uma das cortes européias da mais descomedida etiqueta e dos mais rígidos preconceitos de linhagem. Eis porque, ao vozear-se o rumor de que o brasileiro, aquele mameluco encoscorado, filho de índia e branco, cerdoso, mãos encodeadas, ia ser galardoado com a magnificência de Marquês das Minas, irrompeu entre os grandes de Espanha uma indignação só. Como? Um mestiço, um cabouclo, um natural do Brasil, a pretender a fidalguia de Marquês? Que atrevimento! E o soberano, ao que consta, diante da desabrida fúria, não ousou enobrecê-lo.
E não ousou enobrecê-lo, acentuemo-lo aqui, nem só pela grita alevantada pela nobreza, como também, e principalmente, por causa de D. Francisco de Sousa. Não há dúvida: por causa de D. Francisco de Sousa! É que o velho estadista não acreditava nas minas da Bahia. E, muito menos, na prata do Caramuru. Prata, se havia no Brasil, era no sul. Era na serra do Sabarabuçu. Ah, a Sabarabuçu! E de olhos voltados para essa Sabarabuçu mirífica, e, ao mesmo tempo, seduzido pelas minas que vira de fato em S. Paulo, D.
Francisco de Sousa, com a sua autoridade de governador, foi certamente quem empeceu a corte de prestar ouvidos às falas do baiano. Aquilo de prata, aquela história de grandiosas jazidas - tudo fábula do Caramuru! No sul é que estavam as riquezas do Brasil. E para auxiliar o sul, isto é, para conseguir, como conseguiu, dividir administrativamente o Brasil em dois governos, e, com isso, as abundantissimas e decisivas ajudas com que veio para S. Paulo incrementar a pesquisa da prata e do ouro, teve D. Francisco certamente que empatar (a expressão é do herói das minas de prata)
as descobertas tão ardorosamente apregoadas pelo mesmo Caramuru. Eis um trecho de carta do baiano "... de nenhuma maneyra V. S., nem El-Rey, dê credito as cartas que tratarem de descobrimentos; porque tudo nasce só por empatarem os que eu tenho descoberto com tantos trabalhos e risco da vida".
Foi por isso que Melchior Dias teve de voltar da Espanha como fora: sem brasão. Mas também voltou sem revelar o seu segredo. "... e porquê julgacem que, por ser um cabouclo, um natural do Brasil, não merecia nenhuma attenção, o trousseram quatro annos em requerimento, athé que, dezenganado, voltou para o Brasil sem ser deferido..."
Voltou para o Brasil sem ser deferido, é verdade. Mas não voltou vencido. Vai ele começar agora o seu estupefaciente romance.
D. LUIZ DE SOUSA
Sim, Meichior Dias não esmoreceu. Ele, o descobridor da prata, haveria de obter do Rei -
custasse o que custasse! favores, ajudas, mercês, e, com isso, o sonhado título de Marquês. Por isso, sem mais descanso, acirradamente, botou-se Melchior a escrever carta sobre carta aos poderosos de Madri. Quanto rogo! Ao Duque de Lerma, que era o grande influente da hora, relembrava: "... achando-me nessa corte, ha seis annos, em que nella gastey quatro, foi V. Exa. servido dizer pontualmente estas palavras: "Tristan de Siniza, hires con este caballeyro a caza de Fernão de Matos e manhana vendrá aqui con el a dar-me relacion de todo; assy se lo encomiendo". Lá fui ao secretario de V. Exa.;
andey dezanove dias sem o secretario querer favorecer-me. Pesso agora se sirva V. Exa.
ter memoria com S. Magestade, e mandar-me deferir..."
Em vão! Não vinha da corte deferimento algum. Não importava! Os fracassos, ao invés de amolentarem, antes esporeavam o baiano com mais viveza. E esporeavam-no tanto que, transpondo o Atlântico, lá foi o Caramuru pela segunda vez a Madri. Em Madri, novas peregrinações pelas secretarias d'Estado! Novas cartas ao Duque de Lerma! Novos rogos aos poderosos! Tudo baldado. Voltou Melchior Dias da Espanha sem o título cobiçado.
Ainda assim - infraquejável tenacidade! - não se desencorajou. Daqui mandou um sobrinho seu, Domingos de Araújo, pleitear mais uma vez com cerradas súplicas, junto ao Conde de Vidigueira, então presidente do Conselho, o marquesado e os favores que tão empenhadamente ambicionava. "... pesso a V. S. que oussa o meu sobrinho e dê inteyro credito ao que em meu nome disser. E pesso que me faça o favor e as mercês que espero..."
Tudo inútil. Perdidos, ainda desta vez, todos os esforços. Mesmo assim, mesmo com esses ininterruptos e acabrunhadores insucessos, Melchior Dias não baqueou. De novo, com aquela sua afincada persistência toca a mandar cartas aos governadores! E rogos! E
relatos! E grandes palavras categóricas!
D. Luiz de Sousa, governador de Pernambuco, chocado por tão singular obstinação, assim incansável e inabalável, resolveu um dia acolhê-lo. Começou por patrocinar, com seu alto prestígio, os requerimentos do sertanista na corte. Encaminhou-os diretamente ao Rei. Obteve as boas graças do monarca. E, com as boas graças, obteve também - até que enfim! - aquelas custosas mercês que Melchior Dias tão calorosamente solicitava. "...
de Pernambuco escreveu D. Luiz de Sousa a Melchior que S. Magestade lhe tinha deferido as mercês". E acrescentava: "o escripto ficava em suas mãos para lhe mostrar quando se ajuntassem..."
Estavam, pois, vencidos os tropeços. Só restava agora que o Caramuru revelasse as minas. D. Luiz de Sousa, por se tratar de negócio assim tão relevante, deliberou ir em pessoa pelo sertão adentro: o governador queria ver, com os seus próprios olhos, as famigeradas minas de prata de Melchior Dias. Mandou, pois, recado ao baiano para que "... em tal tempo o foce esperar no ryo S. Francisco para ahi se encorporarem e darem principio ao descobrimento". E D. Luiz partiu, tal como avisara, a juntar-se ao Caramuru no tempo aprazado.
Depois de tantas lutas, de tantas súplicas, de tanto correr secretarias d'Estado, de tanto estagiar por antecâmaras dos poderosos, ia finalmente Melchior Dias Moreia revelar ao mundo aquelas misteriosas e riquíssimas minas que, na sua famosa frase - dariam mais prata ao Rei do que davam ferro as minas de Bilbau! Radiantíssimo, o futuro Marquês das minas esperou às margens do S. Francisco o governador e o seu séquito.
D. Luiz de Sousa veio com muita grandeza de arcos. E com muita grandeza de negros. E
com muita grandeza de soldadesca. Com isso tudo, oficialmente, não veio só: trouxe na comitiva, para realçar ainda mais a grandiosa jornada, um representante graduado da Repartição do Sul. E botaram-se todos, com aqueles espaventos e bulhas, a caminho das minas de prata.
11 COM OS PÉS SÓBRE AS MINAS
"... partirão da Bahia os dous governadores com Melchior Dias, que os levou direito á serra de Itabayana". Itabaiana! Era pois aí a serra encantada? Sim, era, aí, em Itabaiana, a famosa serra da prata! "... chegando a Itabayana disse Melchior Dias aos governadores que Suas Senhorias estavam com os pés sobre as minas". Estavam com os pés sobre as minas! Faltava agora, e tão-somente, que o Caramuru indicasse a lombada onde deveriam roncar os alviões. Um gesto do sertanista, um simples gesto - e eis afinal desvendadas as jazidas de prata!
Mas o baiano não fez de pronto o gesto mirífico. "... parece que Melchior Dias, com o uzo das vezes que foi á Corte, se fez pulitico e soube seguir algumas maximas que nella se praticam". Pulítico - como tão chistosamente lá diz o cronista - o Caramuru, seguindo as tais máximas que se praticavam na corte, não se apressou realmente em revelar o seu segredo. Quis ver, antes de mostrar as minas, ver com os seus olhos, bem cautelosamente, o papel em que se declaravam as mercês que o soberano lhe destinara.
Onde estava O papel? D. Luiz que lhe botasse na mão o escrito real. Não fosse agora o governador, depois de apossar-se do segredo das minas, empavonar-se com a descoberta e surripiar-lhe as mercês! O baiano, bem se vê, desconfiava... E essa agressiva desconfiança, assim subitãnea, brotara nele justificadamente. É que o Caramuru ouvira pelo caminho coisas desconcertantes. Essas coisas desconcertantes, registrou-as a crônica da prata.
Ei-las:
"Tendo Melchior Dias peitado a hum page particular de hum dos governadores, este, sendo inconfidente a seu amo, revellara ao dito Melchior que, conversando ambos os governadores sobre as mercês que el Rey ia fazer, dissera hum para o outro:
- Elle que mostre primeiro as minas. O cabouclo para que quer mercês?"
"O cabouclo para que quer mercês..." Quê? Pois D. Luiz de Sousa dissera isso? Melchior não queria acreditar no que ouvia. No entanto, apesar de imenso, o espanto do sertanista não parou aí. Cresceu despropositado, tornou-se brutal estupefação, quando o baiano soube ali que D. Luiz de Sousa, ao tratar das mercês na corte - "foi logo, e em primeiro lugar, alcansando para si o titulo de Marquez das Minas". Sim, fora D. Luiz de Sousa, e não Melchior Dias o agraciado com a fidalguia de Marquês das Minas! Era estuporante, não havia dúvida. Mas era a verdade. Diante disso, e com justiça, "Melchior disse aos Governadores que Suas Senhorias estavam com os pés sobre as minas; mas que lhas não mostrava sem que lhe entregacem primeyro a carta das mercês que S. Magestade lhe fazia". D. Luiz de Sousa ouviu aquilo como uma afronta. A atrevida desconfiança do mameluco feriu-o agudamente no pundonor. E ao invés de exibir a carta das mercês, como aliás lhe competia, retornou secamente: "que Melchior mostrace antes as minas;
que as mercês estavam certas e se lhe entregaria o alvará de S. Magestade depois que as mostrace".
Vai daí, em pleno sertão, frente a frente à Itabaiana, frente a frente a tão sonhada serra da prata, explode entre aqueles homens o grande, o rumoroso, o malsinado incidente da jornada! Como, exclamava Melchior Dias, como? Mostrar eu as minas a essa gente falsa antes de ter em mãos o alvará das mercês? Jamais! E D. Luiz de Sousa por seu turno:
Como? Entregar eu o alvará àquele cabouclo antes de ver as minas? Jamais! E não houve razões, a partir de então, que vingassem botar de acordo os dois turrões. Entre o governador e o cabouclo avultaram desconfianças terríveis. Subiram a tal ponto, tornaram-se tão intransponíveis, que Melchior Dias, emperrando-se em azedado capricho - "se resolveu a não mais patentear os seus descobrimentos!" Não mais patentear os descobrimentos? Ah, a fúria do governador! Enraivou-se D. Luiz com desbragada violência. Enraivou-se com tão insano descomedimento que, sem mais exame, determinou ali fosse Melchior Dias imediatamente preso.
Preso, e, à força, obrigado a mostrar o sítio onde se escondiam as minas. Inútil! A prisão, ao contrário de amainar, antes acirrou com mais virulência o capricho do baiano. "...
vendo-se prezo, Melchior levou os Governadores a um serrote, que chamam das Minas, em meyo dos campos de Itabayana; nesse serrote, fazendo ce exame, se achou somente umas pedras cravadas de marquezita branca que não deram de si prata alguma".
E não foi possível, daí por diante, arrancar-se ao sertanista uma palavra a mais. Um gesto a mais. Todos os esforços resultaram baldados. Com tal atitude, diante de silêncio assim tão emperrado, a jornada da prata, aquela pomposa e fulgurante jornada, conduzida com espaventoso rebrilho pelo próprio governador, fracassava ali, desastradamente e irremediavelmente, no momento exato em que os enviados régios estavam com os pés sobre as minas! O sonho da serra branca, mais uma vez, desmanchava-se em fumo.
Havia, não há dúvida, um deus oculto que velava com ciúmes a prata do sertão. Ninguém conseguia tocá-la...
O DESFECHO
Tornaram todos à Bahia, D. Luiz de Sousa, despeitadíssimo e iradíssimo. Melchior Dias, trancado no seu mutismo, marchando entre soldados como um galé. Na Bahia, sem mais processo, foi o baiano afrontosamente aferrolhado num cárcere. E não houve mais força humana, diante de tal vexame, que o demovesse a revelar o segredo das minas. Nem rogos, nem gritos, nem promessas, nem maus tratos, nem ameaças de morte, nada! Um ano inteiro, um comprido ano de padecimentos e de misérias, viveu o opiniático sertanejo no seu calabouço. Ao fim dele, estabeleceu-se-lhe que, para livrar-se da prisão, teria de pagar, em ouro de contado, nada menos do que nove mil cruzados. Nove mil cruzados!
Melchior Dias não os tinha: "... avendo eu deichado de acudir ás minhas couzas e negocios, me acho só, sem premio, tendo gasto a mayor parte da minha fazenda", escrevia ao Duque de Lerma. Como, pois, só e sem prêmio, ao fim de tanta viagem à Europa, de tanto requerimento, de tanto dispêndio para obter as boas graças dos poderosos, onde achar ali na prisão nove mil cruzados, em ouro sonante, para dar a elRei? Fizeram-lhe então saber que, mesmo sem pagar esses nove mil cruzados, havia um remédio fácil para recuperar a liberdade: revelar o segredo das minas. Revelar o segredo? Jamais! E o Caramuru, na sua teima, preferiu ficar de novo no cárcere. Mais outro ano, outro duro ano de provações e desgraças, viveu o herói da prata entre as grades da masmorra. Ao cabo, não pôde mais. Estava alquebrado, sem forças, doente, com o pé no túmulo. Assentou de comprar aquele mísero resto de vida a troco do seu segredo. Ao que, mal souberam acudiram indignados os parentes. E os parentes, com Pedro Garcia à frente, a uma só voz - "que não descobrisse nada e que não mostrace nada". D. Luiz de Souza, que o engodara, que o encarcerara, que lhe arrebatara o título de Marquês das Minas, esse não lhe extorquiria jamais o segredo da prata! Eles, os parentes, entrariam com os nove mil cruzados. E foi o que se fez. Libertado, o baiano correu sem perda de tempo às suas terras do Rio Real. Aí, catando uns poucos de índios fiéis e ajuntando uns poucos de escravos que lhe restavam, Melchior Dias pegou de preparar-se às pressas para ir buscar novo carregamento de prata às suas minas. Mas...
- Cuidado, Melchior Dias, cuidado! Todos os que, até hoje, tentaram desvendar a prata que o mato esconde, morreram... Não escapou um só!
... mas Melchior Dias, tal como Adorno, tal como João Coelho, tal como Gabriel Soares, teve que pagar o tributo inexorável àquele destino fatídico: certo dia, sem que ninguém o esperasse, o descobridor das minas de prata amanheceu morto no seu engenho.
"... faleceu, e deixou todas as noticias dos seus descobrimentos sepultadas com a sua morte, que succedeu em o anno de 1619..."
ONDE AS MINAS? ONDE?
Onde as minas? Onde a prata de Melchior Dias? Onde? Eis o grito ansiado, ardentíssimo, que parte agora de todos os peitos. Aquela morte brusca, levando para o fundo do túmulo o espicaçante segredo do baiano, veio criar em torno das minas de prata a lenda mais alucinadora que já se criou no Brasil. Mais do que nunca, seduzidos pelo mistério, os olhos fincados naquela imensa prata perdida no mato, os caboclos têm os ânimos assanhados por fantasias desvairantes. Onde as minas? Onde a prata de Melchior Dias?
E rumo à Itabaiana, assim como rumo à Jacobina (que também se dizia ser a serra da prata) na esperança de desvendar o famoso segredo que a tumba engolira, botara-se a partir de novo, esbraseados e ávidos, bandos de sertanistas entontecidos.
Francisco Dias d'Ávila foi um dos primeiros. Saiu o potentado baiano em direitura à Itabaiana. Levava na entrada - curioso detalhe! - um mestiço astuto, preciosíssimo conhecedor da terra, que, mais tarde, haveria de deixar memória tristemente célebre:
Domingos Fernandes Calabar. É aqui, nesta jornada às minas de Melchior Dias que, pela primeira vez na História do Brasil, aparece o nome do mulato traidor. 12 Mas aquelas enigmáticas minas eram verdadeiramente enlouquecedoras. A expedição de Francisco Dias, com Calabar à frente, fracassou como todas as demais. Pouco importa! Não estavam na serra de Itabaiana, as minas de prata? Nesse caso, e certamente, estariam na serra da Jacobina. "Melchior Dias disséra a seo sobrinho Francisco Dias que em Jacobina havia um haver..." Toca para Jacobina! Lá se botou Francisco Dias, com os irmãos Calhelha, a sondar a serra com furor. A sondá-la tal qual o próprio Melchior Dias deixara escrito de sua mão: "... na serra, na ponta mais alta della, pondo-se um homem virado para o Sul, está o haver; e a ponta vay inclinada ao Leste; e debaicho desta ponta, bem abaicho, ha uma betta; se he de prata ou ouro, Deus o sabe. Tomem o ribeyro onde nascem o Tapeya e o Ubatuba, corrão por elles abaicho; não lhe fique grota que não vejão".
Francisco Dias bateu o morro inteiro, dia e noite, com suadíssimos labôres. Onde estava a prata? Onde? Ninguém tinha a dita de pôr os olhos na enlurada riqueza. Mesmo assim (que sedução terrível foi a sedução da prata!) Dias d'Ávila, para ter quem melhormente o guiasse nas pesquisas, correu à Bahia buscar o padre Antônio Pereira. O padre Pereira era homem de claras luzes e estudara com afinco o roteiro de Melchior Dias. E Francisco Dias d'Ávila, e o padre, e os três Calhelhas, coligados todos pelo mesmo sonho febrento, lançaram-se de novo a rasgar a serra, a devassá-la, a dilacerá-la, a romper-lhe as entranhas com irrefreada sofreguidão. "Não lhe fique grota que não vejão", dizia o roteiro.
E não ficou grota que aqueles dementados não vissem. Mas tudo inútil! Só restou de tanto trabalho, boiando no ar, teimosa, aquela mesma obsidente pergunta - onde as minas?
Onde a prata de Melchior Dias? Onde?
FADO MALÉFICO
Neste comenos os holandeses apossam-se do Brasil. Os novos donos da terra são logo -
quem não o seria? - violentamente contagiados pelo abrasante rumor das minas do Caramuru. "As minas do Caramuru... tão ricas em prata que, segundo o que refere Domingos Fernandes Calabar, egua1am às do Perú e às de Nueva Hispania" - dizia um precioso relato holandês da época.
13 E aqueles nórdicos de sangre frio, gente sossegada, arremetem-se com ímpeto por esses escuros silvedos atrás da espicaçadora quimera. Onde as minas de Melchior Dias? Onde? Niemeyer, entre muitos, Niemeyer, louro mateiro de olhos azuis, ruma direito para a Itabaiana. E toca a esgaravatar a serra.
E toca a pesquisar os matos com a sua clara soldadesca flamenga! Tudo em puro fracasso. Mas que montava isso? A fascinação da prata continuou tenaz e irresistível.
Continuou com outros e vários holandeses. Continuou com o Moribeca. Continuou com João Leite de Barros, capitão-mor de Sergipe. Continuou com Lopo de Albuquerque.
Continuou...
Não vale prosseguir. Digamos somente aqui, como detalhe curioso, que houve, entre os sertanistas do tempo, muito embusteiro a apregoar-se ardilosamente descobridor da prata. Gente que engendrava para tal patranhas despejadas. Foi o caso do Moribeca, neto famoso de Robério Dias, bisneto do próprio Melchior. Este, ao ir procurar, por ordem do governador, as minas de prata do bisavô, trouxe, ao voltar, grande cópia de pedras brancas. A essas pedras ajuntou ele às ocultas, muito astutamente, umas pedras que realmente continham prata. "... em sua caza ainda se conservavam algumas pedras de legitima prata do tempo do seu bisavô; e elle entroduziu estas pedras com as que tirou da serra". E levou tudo ao governador. Fizeram-se exames.... e o ensaiador tirou de algumas pedras a prata que tinham..." Pela Bahia inteira, com grandes barulhos, falou-se desse achado do Moribeca. Mandaram-se buscar outras amostras. Fizeram-se novos exames.
E, com os novos exames, constatou-se logo que aquela primeira prata não tinha passado de burla inventada pelo Moribeca.
Mas não faltou, apesar do insucesso, quem o imitasse na impostura. Mais de um aventureiro surgiu, com pedras de prata, apregoando-se achador das minas de Melchior Dias. E nem só aventureiros. Gente de prol enveredou-se nessa marosca. O próprio Capitão-mor de Sergipe, Jorge Leite de Barros, afoitou-se a uma dessas façanhas risíveis. Pois (segundo o narra Barbosa Leal) mandou ele a Portugal umas pedras brancas que dizia colhidas nas minas de Itabaiana. E a essas pedras (tal como fizera o Moribeca) "introduziu o Capitãm algüa prata, muyto endustriosamente; do que resultou tirarce na Caza da Moeda algüa porção de prata de cinco pedras que foram com as mais".
Mas tudo não passava de velhacaria. A verdade, nua e crua, é que ninguém achava a prata. E quem se arrojava por esses matos atrás dela, morria. Pairava, não há dúvida, um fado maléfico a desgraçar os que tentavam desvendar a prata que o mato escondia.
Pairava, sim. Basta ver o que aconteceu, nas cabeceiras do rio S. Francisco, a Lopo de Albuquerque.
Lopo de Albuquerque, estando a varar as cabeceiras do S. Francisco, mandou erguer uma cruz de madeira no alto de certa lomba. Aconteceu que, ao galgarem a serra, os escravos deram inopinadamente - "com hum grande e alevantado padrão de pedra;
derrubaram este padrão e se vio que debaicho delle havia huma lage de pedra com esta inscripçáo: Minas de prata que se descobrio neste Logar no anno de 1614, que a seo tempo saberá S. Magestade dellas".
Minas de prata! As encantadas minas de Melchior Dias! Lopo de Albuquerque, mais os negros, botou-se a romper alvoroçadamente aqueles chãos. E eis que topa, aos primeiros golpes, com uma caixa de tijolos chapeada de ferro. Arromba a tampa da caixa. Dentro, com o maior espanto, depara o sertanista um velho papel embolorado. Nesse papel se declarava que, não longe dali, ficava uma grande serra alterosa, coberta de matos copadissimos, onde estavam as minas. A serra onde estavam as minas! Até que enfim, por obra daquele estonteante acaso, iam surgir à luz do sol as escondidas riquezas do Caramuru. Lopo de Albuquerque parte com ânsia em busca à serra alterosa. Alcança-a.
Descobre o sítio indicado no papel. Escava-o. E - deslumbrante realidade! - acha na entranha do morro os primeiros veios da tão sonhada prata...
"Lopo de Albuquerque tirou então as amostras da prata; deu conta dellas a S. Magestade;
e S. Magestade lhe respondeo, pello seo secretário, Mendo de Forjaz, que rompesse as minas". E acrescenta o cronista, textualmente, esta afirmativa categórica: "D. João de Alencastro vyu essa prata; e eu a vy tambem..."
Lopo de Albuquerque, com alguns escravos de confiança, saiu a romper as minas como determinara o Rei. Mas...
- Cuidado, Lopo Albuquerque, cuidado! Todos os que, até hoje, tentaram desvendar a prata que o mato esconde, morreram. Não escapou um só!
... mas o feliz achador das minas, ao atravessar um cerradão de aroeiras, é subitamente picado por estranho bicho. Picada funesta! De nada valeram sangrias, nem mezinhas, nem ervas de bugre. "... dous dias antes de chegar, Lopo de Albuquerque falleceu da mordedura daquelle bicho pessonhento".
Outra morte! Outra desgraça! Outra vítima da malfadada prata! E quem poderia, já agora, topar de novo, na serra alterosa, com os escondidos veios?
Um filho de Lopo, Francisco de Albuquerque, rapazola verdolengo, ainda nas primícias da adolescência, tomou corajosamente a peito o levar avante o desvendamento das minas.
Decisão inútil! O destino, aquele destino implacável que perseguia com tamanha fereza os profanadores da prata, cortou-lhe cerce o ímpeto animoso: Francisco, num assomo de cólera, assassinou desastradamente o escravo que lhe servia de guia. Era este escravo, por fatalidade, o único vivente que sabia do sitio onde ficavam as minas. "... tinha Francisco um crioulo seo escravo, que havia acompanhado o Pay e sabia a Serra e o buraco da prata. Pretendeo Francisco que o crioulo lhe foce mostrar; mas duvidou o negro fazello sem que o senhor primeiro lhe desse a promessa de libertar. Apaixonou-se tanto Francisco Albuquerque que, inconsideradamente, lhe atirou a espingarda e o mattou;
ficou assim sem aquelle escravo, e, o que é o mais, sem guia para aquella empreza..."
Sinistra prata! Sinistras minas! No entanto - é pasmoso o constatá-lo - os sertanistas não sopeavam as suas arremetidas diante de tantíssimas mortes! A miragem da riqueza branca, aquela cegante e esplendorosa miragem, continuou ininterrupta a ser o fascínio mais dementador da época. Os desbravadores, desatentos a ruínas e maus fados, lá iam invadindo, sem cessar, aqueles negros matagais onde se acoitava a prata devoradora de Melchior Dias. E foi graças a essa prata, graças a essa frágil lenda, que o Brasil principiou a desbravar-se e desbarbarizar-se. Principiou a ser picado por aquelas mil trilhas, grandes varadouros audazes, por onde, mais tarde, no seu carro dourado, a civilização haveria de penetrar dentro do coração brasileiro.
Mas eis que um dia, neste intrincado enredo, após a investida de Barbosa Leal, última investida empôs à prata, é verdade, mas investida verdadeiramente desesperada -
surgem duas grandes e estrondosas surpresas: a surpresa de Itabaiana e a surpresa de Jacobina.
A SURPRÉSA DE ITABAIANA
"... por todas estas rezões se prova que Melchior Dias descobrio ricas minas; e em sua caza ainda ha prata que tassitamente tirou dellas". Mal a gente acredita no que lê! Depois daqueles incontáveis fracassos, volvidos tantos anos após a morte do baiano, ainda havia um sertanista, grande como Barbosa Leal, que falava com essa entranhada convicção da prata de Melchior Dias! Pois falava. E nem só falava, como também, para mostrar com fatos a sua convicção, decidiu-se a repetir pelo mato adentro, passo a passo, o roteiro exato do Caramuru. "... party da Bahia levando a Amaro Gomes, parente de Melchior Dias; fui buscar a huma aldeia hum principal de nome Birá, que tambem tinha acompanhado Melchior; levey ainda..."
Quimera desvairante! Para atingi-la, para agarrar nas mãos a miragem esquiva, o bravíssimo cabo atufou-se, mais uma vez ainda, com todos os sobreviventes de velha jornada, por aqueles infindáveis desertos matadores de gente. "... andey legoas de matto, e de caatinga, sem agua nem caraguatá; e só com raizes de humbú e de mandacarú se remediava a gente".
E ei-lo em Itabaiana.
Ei-lo, sem descanso, por três compridos meses, a sondar freneticamente o país. E a abrir catas, e a rachar morros, e a examinar pedras... Nada! Nem traços sequer dos veeiros brancos! Aquilo era de enlouquecer um homem. E Barbosa Leal, sob pleno fracasso, mãos vazias, tornou sucumbido à cidade do Salvador.
Em Itabaiana, contudo, não esmorecem os ânimos com a partida do cabo. Na serra tentadora, naquela mesma serra onde o Caramuru exclamara para os governadores -
Vossas Excelências estão aqui com os pés sobre as minas! - formara-se já, com aventureiros de toda a laia, um arremedo de arraial. Para aqueles homens maltrapidos, sem rei nem roque, que importava lá a debandada de Barbosa Leal? E a gananciosa ralé, sonhando entre os seus molambos com a prata de Melchior Dias, continua a golpear com febre os chãos avaros da serra misteriosa.
E vai um dia...
Ah, o capricho do destino! Ah, os gracejos do acaso! Gracejos desse deus zombador que urde aos mortais, sarcasticamente, as pilhérias mais absurdas! Um dia, por entre a azáfama daqueles miseráveis, em meio àquela fervente lida de fender rochas e de cavar cascalhos, eis que certo padre, cujo obscuro nome as crônicas nem sequer guardaram, mete-se a provar, com a sua gamela de pau, a aguada dum ribeirão que corria ao pé do morro. O padre caça ali uns grãozinhos amarelos, muito fuzilantes, que chispavam na areia fina. E chocado:
- Isto é ouro...
Põe-se, desconfiado, a batear melhormente a aguada. Caça outros e muitos grãos.
Fá-los examinar por um prático. E com o exame, o bom do padre foi uma festa só:
- Ouro!
Sim, não havia dúvida: aqueles grãozinhos amarelos, caçados na gamela de pau, eram ouro, ouro puro e legítimo, ouro que chispava na areia fina do ribeiro!
O sacerdote juntou com avidez as oitavas que pôde. E, sem mais demora, "remetteo as amostras daquelle ouro ao Snr. Luiz Cezar de Menezes, que governava este Estado, pedindo-lhe licença para romper a mina". Em vez da prata, da enlouquecedora prata de Melchior Dias, rebenta inesperadamente, incrivelmente, absurdamente, ouro na serra de Itabaiana! E estrondou então, pela Bahia inteira, uma voz só:
- Ouro! Ouro!
O OURO DA BAHIA
Havia bem razão para o estrondo. Pois, enquanto Itabaiana se alvoroça daquele jeito com o ouro do padre, Barbosa Leal, soerguendo o ânimo quebrantado, bota de novo uma leva de homens a caminho da Jacobina. "A primeyra deligencia foi hir ao rio Pindobussú, por lhes ficar perto de suas moradas..." Mais uma vez, naqueles ermos, referveu a lida obcecante das buscas. Mas de prata, por mais que sondassem, não encontram os desbravadores vestígio. E ouro? As areias do Pindobuçu eram finas e brilhantes. Quem sabe? Os sertanejos atiram-se a lavar as areias e os cascalhos do rio solitário. E o trabalho não foi comprido: logo às primeiras bateadas, por entre a fragorosa alegria dos caboclos, eis que pinta ouro em granetes no bojo tosco das bateias. Ouro, de novo! Ouro a brotar na Jacobina tal como brotara em Itabaiana!
Barbosa Leal, no seu entusiasmo, traz em pessoa para a Bahia, açodadamente, as primeiras amostras do metal dourado. "Fui fazer a deligencia de que me incumbio D.
Francisco da Costa e de volta passey por Pindobussú onde estavam aquelles meus exploradores rompendo a mina; eu truce então a primeira amostra do ouro que se ensaiou na Caza da Moeda..."
O eco do ditoso achado derrama-se então, largo e estridente, por todas aquelas lombas e socavas. Acorrem aventureiros de todos os lados. Tantos, que o governador da Bahia receoso de que essa gente se apoderasse de toda a riqueza sem pagar ao Rei os quintos devidos, despachou enérgicas ordens à Jacobina para que se tapassem imediatamente as minas e se atulhassem os buracos abertos. Ordens inúteis! "... não se sipultou as minas para os particullares que já tinham visto o ouro de Pindobussú, porquê escondidamente foram tirando ouro de lavage. E aqui teve principio o ouro de Jacobina..."
Nem só teve ali o princípio o ouro famoso da Jacobina. Surgiram nesse momento outros.
E quantos! Aturdindo a Bahia, cruzavam-se no ar, agora, ecos febrentos, não mais sobre a prata, mas sobre o ouro que se topava a cada passo nos rios do sertão. "... no ryo das Contas se está actualmente tirando ouro, no que não ha mais duvida e não póde haver controversia". Ou então: "... o mesmo ryo do Lionardo, que sae da pedra furada, tem muyto ouro". E mais: "O ryo da agua fria, que nasce no mesmo parallello, tambem tem ouro". E ainda: "... o ryo de Jabuticabas, que sae da mesma serra, onde se está lavando ouro, o tem tambem". E como aquilo não eram falas confusas, mas fatos concretos, Barbosa Leal, com a sua garranchada letra, acentuava incisivamente ao governador: "De todos esses ryos e ouros já mandey amostras a V. Excia. Foram com a carta de 23 de Dezembro".
Estava descoberto o ouro baiano.
14 Desses ouros, de que o sertão da Bahia assim se entremostrava tão cheio, alguns fizeram falar de si com o mais bulhento estridor. Do ouro da Jacobina, notadamente, o historiador Rocha Pita deixou noticias refulgentíssimas. Nesse tempo, diz ele, "as Minas de Jacobina brotaram os mais portengrãos que até o presente se tem visto no Brasil. Quatro se trouxeram á Caza da Moeda de notaveis formas, e de tanto peso que um só importou em mais de 700$000 (!); dois outros, um pouco menos; e depois um ultimo do valor de 3.000 cruzados (!)"
Mais do que ouro da Jacobina, no entanto, muitíssimo mais bulhento e mais deslumbrante, foi o ouro do Rio das Contas. Esse deixou, na história das pesquisas metálicas do Brasil, lembrança inapagável. Quantas arrobas de metal finíssimo não manaram, como por milagre, do rio selvagem! Diga-o Sebastião Raposo Pinheiro, aquele sátrapa carniceiro, sombrio matador de mulatas, que foi o aventurado achador de tal riqueza. Mas a história do ouro do Rio das Contas, tão pitoresca, não cabe aqui neste relato. Ela faz parte do livro: "O sonho das Esmeraldas". Aqui nestas páginas, não se cuida de outra coisa senão da prata. Por isso, finda a agitada novela que a riqueza branca desencadeou lá pelo norte, acompanhemos outra, tão desabrida como a das minas de Melchior Dias, que, sob o nome rústico de Sabarabuçu, esta incrível prata, com a sua enganosa miragem, também engendrou aqui pelo sul.
SEGUNDA PARTE
SABARABUÇU
"MONTANHA-GRANDE-QUE-RESPLENDE"
1591... D. Francisco de Sousa, Senhor de Beringel, é o governador-geral do Brasil. A
essa época, pela Bahia, anda muito aceso aquele teimoso sonho escaldante das minas de prata. Está Melchior Dias no mais agudo do seu romance. Vai senão quando, pela terra do pau-de-tinta, principia a esvoaçar esta palavra selvagem: Sabarabuçu. Sim, dum momento para outro, como soprada por invisível bruxo, ecoa no Brasil, pela primeira vez, a estranha palavra mágica. Sabarabuçu! Aquilo, na língua do bugre, queria pitorescamente dizer: montanha-grande-que-resplende.
15 E a palavra cabalística tomba, radiosa e tentadora, na crendice ingênua do país infante. Tomba. Avulta. E, avultada, incendeia logo todos os ânimos. Invade todos os povoados. Estronda por todos os ares.
- Sabarabuçu! Sabarabuçu!
Tão singular palavra, não há dúvida, essa tão saborosa montanha-grande-que-resplende, é o que vai criar, naquele cândido Brasil que alvoreja, umas das suas lendas mais ruidosas e mais fascinadoras. Palavra que em breve se tornará miragem lampejante, atrás da qual, irrefreáveis e sôfregos, se atufarão pelos matagais bandos de sertanejos visionários. Palavra que vai inspirar, nessa áspera arremetida cabocla, que foi o desbravamento inicial do Brasil, bela e aventureira página de feitos selvagens. Página rústica, sim, mas página que irá ajuntar-se com lustre, e grandiloquamente, a essa nossa bravia e fúlgida epopéia sertaneja: a conquista do território.
Como apareceu a curiosa quimera? Assim:
D. Francisco de Sousa não acreditava muito nas minas de prata de Melchior Dias. Para D.
Francisco (é o que se depreende nítido dos seus atos) as riquezas metálicas do Brasil não estavam na Bahia. Estavam em S. Paulo. Ao sul e não ao norte. E tinha bem razão o governador para pensar assim. Na Bahia, desde tempos, andavam os desbravadores com suadas canseiras a encravar-se pelos matos em busca de metais. Mas andavam baldadamente. Nada de ouro, nada de esmeraldas, nada de prata...
É verdade que, já por esse tempo, trazidos pela boca de uns aventureiros chegados do sertão, soaram aos ouvidos de D. Francisco de Sousa (e este por sua vez os enviara ao Marquês de Alenquer) certos boatos de uma serra que havia ao sul, bem ao sul, muitíssimo prenhe de riquezas. Era uma serra confusa, de nome estranho, onde diziam existir prata. "... noticias de uma serra chamada Sabarabussú, donde os moradores que a ella foram (entre elles um ourives da prata) trouxeram uma tomboladeira, dizendo que era da prata que daquella serra tiraram".
16 Tudo, porém, boatos. Só boatos. De S. Paulo, no entanto, contrapondo-se a essas vagas murmurações, vinham informes positivos de descobrimento de minas. Os paulistas, apregoavam-no mil bocas, começavam a achar ouro de lavagem por toda a parte. Esse ouro chegava às mãos do governador em amostras que fuzilavam. Já os dois Sardinhas, pai e filho, haviam topado com as férteis minas do Jaraguá. Só o velho Afonso Sardinha, ao morrer, confessara ter deixado nas suas terras, enterrado em botelhas de barro, a enormidade de oitenta mil cruzados de ouro. "Os paulistas, por esse tempo (conta-o Taques) estimulados de amor próprio, e em zelo do seu Rei, entraram na deligencia de descobrir minas de ouro, e de prata, e de ferro, e de outros metaes. Deo-se conta de seus descobrimentos a D. Francisco de Souza..."
D. Francisco, ao receber tão ridentes notícias, fez partir pressurosamente para o sul a Diogo de Laço, com mineiros de capacidade, a fim de ajudar os paulistas na pesquisa dos veeiros.
Foi quando, vindo dos recuados sertões de S. Paulo, surge na Bahia certo mateiro de que a história não guardou o nome. Era, certamente, um cabo de bandeira. Esse cabo, assim obscuro, procurou a D. Francisco de Sousa. E meteu-se a narrar-lhe umas longas histórias que ouvira na sua jornada, histórias de índios, muito encantadas, muito deslumbradoras, sobre uma serrania branca, resplandecente, que dizia existir lá pelo sul, bem ao sul, nos emaranhados sertões por onde andara...
- Serrania branca? Resplandecente?
- Sim, senhor governador! Uma serrania branca e resplandecente. Corre voz que há muita prata nas socavas. Os índios chamam essa serrania de Sabarabuçu...
Sabarabuçu? Mas Sabarabuçu era a serra confusa de nome estranho, donde aqueles antigos aventureiros apregoavam haver tirado a tomboladeira de prata. E D. Francisco de Sousa, tornado subitamente sério, pôs-se a escutar, de ouvido atento, as extraordinárias falas do mateiro sobre a extraordinária serrania da prata. Escutando-as acudiam-lhe de certo à memória as célebres narrativas atiçadoras de Walter Raleigh, o viageiro estrepitoso do EL-DORADO. Nessas narrativas, que corriam barulhentas o mundo inteiro, relatava o capitão inglês que, certa feita, dera de chofre com grande e esplendorosa montanha, curvejando no céu, toda alva e de prata. "... nós nos contentamos de vêl-a a distancia; e nos pareceu uma torre branca, muyto alterosa. Não creio que haja no mundo outra semelhante. Barrêo contou-me coisas maravilhosas dessa montanha, onde há muyta prata que resplende de longe ao sol". Levados pela bizarra lenda, que se transplantou para os sertões brasileiros, os sertanistas baianos, muito pasmados, também contavam: "toda a Serra se compõe de huma terra tam branca, e tam fina como a cal; e, segundo os signaes da terra onde se acha a prata por este signal mostra que a terra o tem..." Eis porque, dentro do seu paço, enquanto ouve o mateiro narrar-lhe as encantadas histórias da Sabarabuçu, D. Francisco de Sousa, chocado vai dizendo de si para consigo:
- Esta Sabarabuçu é a serra branca! Esta Sabarabuçu é a serra da prata!
17 A CAMINHO DE SÃO PAULO
E dizia com razão. Pois, com o prodigioso relato daquela serrania branca, que os índios chamavam de Sabarabuçu, apresentou o mateiro ao governador uns pedaços de pedra, bastante curiosos, que trazia escondido com exageradas cautelas nos seus alforges de couro. "... D. Francisco (conta o holandês Glimmer no seu preciosíssimo depoimento)
recebeu daquelle sertanejo um certo metal, extrahido, segundo dizia, dos montes Sabaraoson". Mas Sabaraoson, bem se vê, é simplesmente corrutela, em lábios flamengos, da palavra Sabarabuçu. Aquele metal, pois, extraído da Sabarabuçu, D.
Francisco ordenou que os práticos imediatamente o examinassem. Vai então - que radiosa surpresa - os práticos encontraram prata (prata pura!) naquelas amostras rústicas.
"Tendo sido examinado pellos entendidos em mineração (lá continua Glimmer)
reconheceu-se que esse mettal continha, em um quintal, trinta marcos de prata pura".
Trinta marcos de prata pura! D. Francisco, diante da golpeante evidência, não quis mais ouvir falar de Melchior Dias, nem de Itabaiana, nem de Jacobina, nem daquelas nevoentas, problemáticas minas da Bahia. Sabarabuçu, sim! Sabarabuçu é que era a montanha da prata! E o Governador não se contenta em ter enviado para S. Paulo, como enviara, a Diogo de Laço com dois práticos de metais. O governador, com os pedaços de pedra diante dos olhos, e, sobretudo, como resultado dos exames - trinta marcos de prata pura! - resolve passar o governo sem mais delongas, e, com o primeiro galeão que abicasse, partir em pessoa a caminho do sul.
Foi assim que o Senhor de Beringel, dum dia para outro, com espanto da colônia inteira, embarcou alvoroçadíssimo rumo de S. Paulo. Ia fortemente apetrechado para o serviço dos metais. Levava consigo, além de muita gente para minerar, dois alemães que eram dois práticos de fama: Jacques Oalte e Geraldo Betink. 18 Com a comitiva, que era larga e pomposa, aportou D. Francisco em Santos. De Santos, galgando a serra pela estrada do padre José, o senhor governador-geral entrou, circundado por vistosa cavalgada, triunfalmente, no burgo rústico de João Ramalho.
Trazia às gentes do Tietê, por entre as galas de sua entrada, como em triunfo, esta notícia coruscante: havia, luzindo naqueles sertões, longe, muito longe, uma serra branca, muito esplendorosa, que se chamava Sabarabuçu. E essa serra era uma serra de prata...
"A lenda da Sabarabussú (diz com razão o eminente Teodoro Sampaio) vae ter agora larga repercussão entre os mamellucos de S. Paulo. Vae ser, por todo o secullo seguinte, o alvo das mais arrojadas expedições sertanejas, conduzidas pelos paullistas, em direcção ao valle de S. Francisco". Grande verdade! Aquela tentadora Sabarabuçu ateou labaredas na alma aventureira do povo bandeirante. E os paulistas, a partir de então, principiaram a arremeter-se ávidos empós à prata.
ANDRÉ DE LEÃO
Em S. Paulo, mal chegado, D. Francisco de Sousa arma sem tardança duas bandeiras de vulto: a de Nicolau Barreto e a de André de Leão. A bandeira de Nicolau Barreto, uma das mais singulares da época, escapa ao fio desta crônica: e bandeira buscadora de ouro.
Mas a de André de Leão, essa, pelo saboroso sonho romântico que a guiou, tem um lugar marcado nestas páginas: André de Leão partiu à procura daquela misteriosa Sabarabuçu, a encantada montanha da prata...... e não perdendo tempo, D. Francisco fez entrar no certão a tropa de André de Leão a sollicitar as minas de prata".
Assim, com a serra branca a bailar-lhe diante dos olhos, o desbravador botou a sua tropa de arcos pelo vale do Paraíba afora. Atravessou-o. Alcançou as gargantas do Embaú.
19 Transpô-las. E, do outro lado, aventuroso e destemeroso, atufa-se o cabo pela escureza daqueles bosques chucros de além-Mantiqueira.
Dessarte, dentro da imensidão brutíssima do Brasil primevo, a miragem da prata continuava a realizar o seu destino fulgurante. Sim! Fora a prata, no norte, o sonho que tangera os sertanistas a romper as caatingas queimantes da Bahia. Fora o sonho que tangera os sertanistas a talar os chãos duríssimos de Sergipe. E é ainda agora, no sul, a prata, essa Sabarabuçu enfeitiçada, que, com o seu risonho bruxedo, tange André de Leão a atacar, como rústico visionário, as rechãs braviamente selvosas dos Cataguazes, isto é, o atual Estado de Minas Gerais.
André de Leão lá foi. Sabarabuçu! Sabarabuçu! Onde estava a serra branca? Onde? O
mateiro correu, compridos meses, pelos dédalos emaranhados daqueles socavões bárbaros. Mas correu em vão. O caçador da prata voltou de mãos vazias. Não topou ele com traço sequer daquela arisca Sabarabuçu, tão apetecida, que lá de dentro dos matos, acenava perfidamente aos sertanistas com o escondido tesouro das suas brancas entranhas...
Pouco importa o fracasso! A bandeira de André de Leão teve conseqüências imensas nesse episódio, fundamental da nossa história, que é o desbravamento do território. Pois foi o buscador da Sabarabuçu - notai-o bem! - quem rasgou a primeira trilha entre o atual Estado de S. Paulo e o atual Estado de Minas Gerais. Penetradas aquelas brenhas até ali não penetradas, irá, tal como André de Leão, trafegar em breve por elas, varando-as, ao encalço não só da prata, mas também de esmeraldas, a entrada gigantesca de Fernão Dias Paes Leme. André de Leão não encontrou a prata. Fernão Dias não encontrará a prata, nem as esmeraldas. Mas o sertão dos Cataguazes, isto é, o Estado de Minas Gerais de hoje, assim desbravado, abrirá dentro em pouco o seio opulento: e é desse seio opulento que há de jorrar, com desmarcada abundância de caudais, ouro pelo Brasil afora.
Não será a prata, portanto, não serão as esmeraldas, bem se vê, mas há de ser o ouro -
minas e minas de ouro! - a vitória final daquelas duras arremetidas. E, com o ouro, a conquista e o povoamento do sertão brasileiro.
CUIDADO, D. FRANCISCO DE SOUSA!
Não trouxe André de Leão a prata da Sabarabuçu. Mas que significava lá isso? Um pequeno fracasso apenas. Outro, mais aventurado, haveria de traze-la! Era questão apenas de se receber da corte ajuda e custeio para tão onerosas jornadas. E D. Francisco de Sousa, que andava entusiasmadíssimo com as riquezas que os paulistas estavam a descobrir, embarcou-se de S. Paulo para Madri (vivíamos sob o domínio da Espanha) e lá se foi rogar a Felipe II os recursos preciosos para se incrementar, em S. Vicente, novas descobertas de ouro e prata. Que grandes coisas, em Madri, não teria D. Francisco apregoado do ouro que iria jorrar das lavras de S. Paulo! E que ferventes coisas não teria apregoado da prata que iria jorrar da Sabarabuçu! Pois Felipe, ouvindo-o, nem só indeferiu todas as pretensões do famoso Melchior Dias Caramuru que por lá andava a alardear a descoberta das suas barulhentas minas de prata, como também (medida de máxima importância!) dividiu o Brasil em dois pedaços; um, o do norte, que continuava submetido ao governador geral; outro, o do sul, que, para melhor acoroçoar a pesquisa dos metais, conglomerava num só bloco as capitanias de Rio de Janeiro, de S. Paulo, de S. Vicente, sob a eloqüente denominação de - "Administração geral das Minas descobertas e por se descobrirem". D. Francisco de Sousa foi o primeiro administrador nomeado para essa Repartição do Sul. E foi, certamente, com muita flama, com vivíssimos sonhos, que D. Francisco de Sousa veio a Piratininga, pela segunda vez, incentivar os paulistas a sair no encalço da Sabarabuçu! No entanto...
- Cuidado, D. Francisco de Sousa, cuidado! Todos os que, até hoje, tentaram desvendar a prata que o mato esconde, morreram... Não escapou um só!
... não pôde o Administrador do Sul realizar aquelas acicalantes miras que o empolgavam:
D. Francisco de Souza, ao chegar, é subitamente atacado de doença grave. E morre.
Assim, com tão inesperado desfecho, desapareceu do cenário das minas o cálido perseguidor da esquiva serra misteriosa. E tão desvalido desapareceu o homem que mais cuidara no Brasil da serra branca, dessa Sabarabuçu mal agourada, que - sarcástico pormenor - "segundo me affirmou hum padre da Companhia, que se achava com elle á sua morte (conta-o frei Vicente), morreo Dom Francisco de Souza tam pobre, tam pobre, que nem sequer huma vela tinha para lhe metterem na mão".
ÁLVARO RODRIGUES
A quimera da Sabarabuçu, que o Senhor de Beringel arremessara aos chãos do Tietê, fora semente fecunda que tombara em terra propícia. Germinou. Deitou raízes. E a lenda da serra branca, tão tentadora, frondejou no ar crédulo do povoado aventureiro. Os homens-bons da Câmara botaram-se logo, e com grande afinco, a colher todas as falas que corriam sobre a estranha serra selvagem. Manuel de Brito era (diziam) um dos que mais coisas sabiam sobre a Sabarabuçu. Pois que viesse Manuel de Brito contar à Câmara o que sabia! E o mameluco a declarar - "... que ouviu de algumas pessoas, que ouviram de homens antigos, averem minas de prata em Saborabussú...
Diante de tais informes, as bandeiras piratininganas, a ambição acesa, com a miragem da serra encantada flamejando-lhe diante dos olhos, principiaram a partir acirradas atrás da riqueza alva.""... algo antes de 1653, parte de S. Paulo uma leva anonyma que após tres mezes de viagem aspera, chegou a Sabarabussú ".
20 Foi quando surgiu em São Paulo o procurador da fazenda real, Pedro de Sousa Pereira. E o procurador dá com a vilota a esfervilhar de quentíssimos rumores.
"... vim eu a estas capitanias do sul tratar do beneficio e entabolamento das minas; e, achando-me nesta de S. Paulo, tive muytas informações e grandes noticias de que algumas pessoas antigas haviam ido á serra de Saborabossú..."
Quê? Tinham ido à serra do Sabarabuçu? Tinham ido à serra da prata? Pois então não havia mais o que vacilar: era lançar de novo gente em demanda da serra cobiçada. "...
Alvaro Rodrigues, natural e morador arraigado nesta de S. Paulo, se me offereceu para fazer a dita jornada á dita serra do Saborabossú". O procurador da Fazenda aceitou o oferecimento do caboclo. E Álvaro Rodrigues partiu.
- Cuidado, Álvaro Rodrigues, cuidado! Todos os que, até hoje, quiseram desvendar a prata que o mato esconde, morreram... Não escapou um só!
E Álvaro Rodrigues, o morador arraigado de S. Paulo, também não escapou: sucumbiu na jornada devorado pelas selvas. Assim, mais uma vez, a enigmática montanha da prata continuava, dentro dos matagais, abroquelada no seu acirrante mistério. E quem já agora, irá arrancá-la da sua treva fatídica?
Nisto, em meio a esta enredada novela, salta do seu galeão, vindo do Reino, um personagem destacadíssimo. Personagem que carreia no ânimo, com desmesurada ardência, a ambição mais aguilhoante que até hoje inflamou coração de homem por descobrir as minas do Brasil. Quem é o novo personagem? É Afonso de Castro e Rio Comprido Furtado de Mendonça. O 26 o Governador do Brasil.
AFONSO FURTADO
Afonso Furtado, visconde de Barbacena, "ilustre pelo esplendor do sangue e gloria do seu valor" na frase cortesã de Rocha Pita, assumiu em 1671 o governo da colônia. Não é aqui a ocasião adequada para se estudar o governo de Afonso Furtado. Nem a debosquejar a curiosa figura desse administrador honrado, tenaz, laborioso, enérgico, letrado, mas - por que não o dizer? - fantasioso, bastantemente precipitado, e, com isso, crédulo mais do que convinha a um governador-geral. Repitamos apenas que viera com ele, decididamente arraigada, esta deliberação verdadeiramente obsidente: descobrir -
custasse o que custasse! - aquelas duas serras, tão faladas, que foram as duas ambições supremas do século: a serra da Sabarabuçu e a serra das Esmeraldas. Prata e pedras!
Essa idéia fixa de Afonso Furtado de Mendonça idéia enrodilhante, que o perseguia dia e noite com ardor, ressalta impressionante das dezenas de cartas que escreveu. Porque Afonso Furtado, na sua desatada sofreguidão por enriquecer o Reino com as cobiçadas minas, escrevia abundantemente ao Príncipe, e abundantemente aos governadores, e abundantemente aos capitães-generais, e abundantemente aos práticos de metais. Que correspondência desenfreada! Dois grossos volumes contêm essas letras frenéticas.
Começou ele por mandar a Fernão Dias Paes Leme carta sobre carta. Eram tudo incitamentos, promessas atiçadoras, grandes e fogosas palavras para que o potentado paulista se botasse pelos matos em busca de esmeraldas e prata. Sabarabuçu! Serra das Esmeraldas! "... por diferentes correios tenho dado conta a Sua Alteza do grande serviço que Vossa Mercê lhe vae fazer no descobrimento da prata da Sabarabussú e da serra das Esmeraldas!" Ou então: "... possa eu dar conta dessa prata a Sua Alteza; e emfim se dezenganem os ministros q. as minas da Sabarabussú não são como as de Itabaiana". E
mais: "... espero dar a Vossa Mercê o parabem das mercês que lhe ha de este serviço adquirir e que lhe hei de solicitar com todo o empenho..."
Não vale continuar. Seria demasiado enfadonho transladar para aqui tudo quanto o governador assoprou à vaidade do paulista. O certo é que, ao receber tais e tantos rogos, o velho sertanista deliberou partir. "... que partisse (clamava Afonso Furtado) que partisse com todo o calor e brevidade possível, a antecipar a felicidade que parece guardada ao Príncipe, senhor de nós ambos".
A jornada de Fernão Dias Paes Leme, tão aventurosa e tão trágica, é a jornada mais fascinante da história do bandeirismo. Mas não cabe aqui neste relato. Ela pertence mais às esmeraldas do que à prata. Será por isso, contada com minudências em outro livro: o Sonho das Esmeraldas. No entanto, para o fio desta crônica, é necessário dizer-se que Fernão Dias Paes Leme, compelido pelas ferventes letras de Afonso Furtado, partiu. "...
partiu Fernão Dias, diz Taques, para conquista e descobrimento das minas de prata da Sabarabussú e da serra das Esmeraldas do sertão..." Lá foi o gigante, visionàriamente, atrás dos dois sonhos máximos do seu tempo: pedras e prata. Lá foi, sertão afora, atrás daquelas duas ofuscantes miragens que escaldavam o ânimo aventureiro de todos os violadores-de-sertão...
- Sabarabuçu! Serra das Esmeraldas!
PRATA
Deixemos Fernão Dias Paes Leme partir. Que o desempenado cabo se vá a pervagar errabundo por aqueles ermos medonhos dos Cataguazes! Sete anos, com a flâmula atrevida desfraldada à frente da tropa, o sacudido rompedor-de-mato há de correr aquelas horríficas brenhas de além-Mantiqueira. Sete anos de sertão! E enquanto, no correr desses sete anos, o inquebrantável sertanejo lá está perdido no âmago mais abruptado das selvas, cá fora, no litoral, eis que, entre os episódios singulares deste romance da prata, intercala-se agora, com surpresa de toda a colônia, novo e enlouquecente episódio.
Um dia, na cidade do Salvador, surgiu inesperadamente um sertanejo curioso. Trazia larga bruaca cheia de pedras brancas. E, com as pedras, esta notícia fulgidíssima: havia descoberto minas de prata! Mas não eram, desta vez, as minas de prata da Sabarabuçu.
Nem as minas de prata de Melchior Dias. "... veiu á cidade da Bahia um morador do sertão, cujas experiencias e procedimentos poderam abonar as suas attestações.
Informou ao governador Affonso Furtado ter descoberto grandiosas minas de prata em parte muyto deversa de em que se presumira achara Roberio Dias, e com a mesma abundancia que este promettera a Castella".
21 Quem era esse morador do sertão que assim carreava notícia tão ridente? Um mensageiro de certo Antônio Lemos Conde. E quem era Antônio Lemos Conde? Era, lá pelo sul, provedor-mor dos Reais Quintos de ouro. Mensageiro, bem se vê, de pessoa qualificada e de alta responsabilidade. E a notícia, por isso mesmo, merecedora do mais alto crédito. Mas onde - perquiriu logo Afonso Furtado - onde ficavam as tais minas?
Numa região inteiramente inesperada: em Paranaguá. Sim, em Paranaguá, no atual Estado do Paraná!
Não era aquilo coisa de se estranhar, não! E isso porque, na voz do povo, por esse tempo, corria como certo que "S. Paulo do Pirateninga, 250 legoas da Bahia para o sul, achou-se humas grandes Minas de prata das quaes se fez este anno experiencia e mostra render a prata dobrada mais que as do Potosí". Levado por tais rumores, o então governador, Salvador Correia de Sá, já se havia aventurado atrás daquela prata. Pois, entre os serviços que enumera ter realizado no seu governo, diz Salvador Correia que um foi - "o hir a Pernagoá, com cinco mineiros, e muytos petrexos, e azougues, e ferramentas, e mais ingredientes". Não encontrou as minas, é certo. Mas os boatos daquela prata de Paranaguá cresceram de tal jeito que Agostinho de Figueiredo, capitãomor de S. Paulo, por determinação dos homens-bons da Câmara, partiu "com poderes para fazer a examinação das minas de Pernagoá, assim de prata como de ouro". ~
verdade que Salvador Correia, mais tarde, fora do governo, ao tempo em que Afonso Furtado andava por aqui naquela azáfama de descobrir minas, disse em Portugal:
"entendo que não ha em Pernagoá minas de prata, pois em tres mezes que alli assisti, nem dez Affonsos Furtado haviam de trabalhar tanto, nem gastar mais da propria fazenda, nem soffrer mais incommodidades do que soffri". Pouco importa! Afonso Furtado já havia recebido de Fernão Dias Paes Leme uma carta de peso, muito circunstanciada, em que o grande sertanista mandava dizer categoricamente: "la e cá ha prata".
Diante disso, e, além do mais, dada a qualidade grave da pessoa que enviara a mensagem - um provedor-mor! - recebeu Afonso Furtado com vivo alvoroço a bruaca das pedras. Mandou-as ao prático. O prático ensaiou as pedras com cuidado. Foi então, terminados os ensaios, que se exibiu ao governador o resultado estupefaciente:
- Prata!
Não era muito o metal que escorrera das pedras. Uns filetes apenas. Mas em todo o caso - prata! O governador, em pessoa, muito interessado no caso, constatou, de olhos esbugalhados, que havia realmente prata naqueles seixos.
E não pôde represar o seu entusiasmo:
- Prata! Prata!
Afonso Furtado tem ali esta convicção plena: raiara para Portugal a idade da prata. As minas de Sabarabuçu, não havia mais dúvida, Fernão Dias Paes Leme as faria romper brevissimamente. E eis que agora, de Paranaguá, antes mesmo das de Sabarabuçu, manavam já as primeiras e positivas amostras do metal branco!
Afonso Furtado, no seu júbilo, manda ao Príncipe, sem mais delongas, longa carta alviçareira. Lemos Conde, (dizia) Lemos Conde, o senhor provedor-mor dos Quintos Reais, descobrira prata em Paranaguá! Era um homem preciosíssimo o senhor provedormor dos Quintos Reais! Que se enviassem, pois, a Lemos Conde, com real grandeza, sem tardança, honras grandes e mercês largas...
- Prata! Prata!
LEMOS CONDE
Era este Lemos Conde um reinol astuto. Senhor, na vila de Paranaguá, de muita escravatura e de muitos teres. Homem de poderosa sagacidade (no dizer do velho Vieira dos Santos) que se botou, com suas raposias, a abocanhar quanta terra de rocio pode abocanhar nas cercanias da sua vilota. Como era ambicioso, muito ladino, e sentia bem aquele visíssimo desejo do Reino em topar no Brasil com as minas brancas, não poupou ele forças, nem fazenda, nem escravos, para descobri-las. Tanto que, ao vir Agostinho de Figueiredo, o capitão-mor de S. Paulo, até os muito falados sertões de Paranaguá, na fiúza de achar por ali os desejados veeiros. Lemos Conde (pessoa inteligente que sabia onde fazer experiências para o efeito de se descobrirem minas de prata) correu, liberal e solícito, a ajudá-lo com quentura na sonhada empresa. "... quando vim a esta Capitania de Paranaguá lá diz o capitão-mor a tratar o descobrimento da prata, dito Lemos Conde, com muyta vontade e muytos zellos, me acompanhou aos serros e minas desta villa, com sua pessoa, seus filhos, seus negros..."
Por tais serviços, recomendou-o Agostinho de Figueiredo ao governador-geral. E o governador-geral nomeou a Lemos Conde para o posto alto de provedor-mor dos Quintos Reais de Paranaguá. Era cargo da mais destacada confiança. Cargo em que se cuidava na intimidade de negócio melindroso: a fazenda de el-Rei. Correu o tempo. Nesse entretanto, estando Lemos Conde nas honrarias e proventos do posto, o Príncipe (não se explica bem porque) atira-lhe durante à face a farpadíssima pecha de provedor desidioso.
"... por haver muyto tempo que se não tem noticia do rendimento das minas, e haver nisso muito descuido vosso, me pareceu ordenar-vos me aviseis o que se tem obrado em ditas minas". As palavras, bem se vê, eram secas. A acusação áspera. Que fazer? Lemos Conde, como resposta e como escusa - que bela resposta e que bela escusa! - envia precipitadamente à corte, ao mesmo tempo em que a enviava a Afonso Furtado, aquela ruidosa notícia festiva: havia descoberto, em Paranaguá, minas de prata! Não havia prata só na serra de Sabarabuçu, apregoava: havia também, e muita, nas serras de Paranaguá!
Quando as letras de Lemos Conde chegaram a Portugal, já lá estava, com afirmações categóricas, a carta ridentíssima com que o próprio governador-geral dera conta ao Príncipe do afortunado descobrimento. Por ambas as duas missivas, tanto na do provedor como na do governador, ia, com derramada festa, aquele mesmo grito:
- Prata! Prata!
O Reino, contudo, recebeu as novas com fechadas reservas. Portugal andava (nem era para menos!) suficientemente escarmentado com tanta notícia venturosa sobre minas.
Minas de Itabaiana, minas de Jacobina, minas de Melchior Dias, minas de Sabarabuçu...
E agora, como remate, ainda aquelas novas minas de Paranaguá! D. Pedro leu as letras dos seus vassalos e não se emocionou grandemente com a fortuna anunciada. Apenas, na sua política de galantear sempre os que se diziam descobridores, mandou a Lemos Conde uma carta assinada do próprio punho. Era carta cautelosíssima. Quase fria. Dizia assim:
"Eu, o Principe, vos envio muyto saudar. Pelas vossas cartas, e pelas do Governador do Estado, Affonso Furtado, se me fez presente o zelo que tendes do meu serviço no descobrimento das minas de prata de Paranaguá. E fico como lembrança para vos fazer as mercês que houver por bem, caso tenha effeito o seu entabolamento..."
22 Caso tenha efeito o seu entabolamento! Aquela desconfiança do soberano, no momento exato em que Afonso Furtado andava tão calorosamente entusiasmado com a descoberta, veio ferir o sensível melindre do governador E Afonso Furtado, para fazer bem soada a sua afirmativa, na tranqüila convicção de que Lemos Conde não falseara, absolutamente seguro (pois se ele vira!) de que aquelas amostras continham prata, não vacilou em mandar o seu próprio filho levar pessoalmente ao príncipe a bruaca de couro com as pedras brancas. Não podia o governador dizer mais eloqüentemente da sua certeza no descobrimento das minas brancas, nem emprestar maior valia àqueles pobres seixos, do que os enviando ao Reino, como enviou, por mensageiro tão principal e tão do peito.
E João Furtado partiu.
PARANAGUÁ Enquanto o filho, com a bruaca de pedras, lá vai singrando as águas atlânticas, o pai trata logo, e com acendrado empenho, de mandar mineiros de confiança aprofundar os veeiros de Paranaguá. Aprofundar apenas. Pois os veeiros, aqueles tão buscados veeiros brancos, estavam afinal descobertos: Lemos Conde, Deus louvado, já lhes havia arrancado da superfície as primeiras e evidentíssimas amostras. "... depois de enviar a S.
Alteza, por meu filho, as amostras da prata das betas que se acharam agora em Paranaguá, mandei logo profundar as minas até os sete estados e se me fossem remettendo as amostras e exame que se fossem fazendo em cada estado".
Ah, ficasse o reino bem sossegado: se não havia prata em Sabarabuçu, havia, pelo menos, prata em Paranaguá! Essa a nua verdade. E Paranaguá, como por encanto, tornou-se de súbito o grande sonho embalador de Afonso Furtado. Dentro em breve, dentro de instantes, dizia ele com róseo otimismo, estrondaria por todo o mundo o eco daquela prata. Estrondaria, e, o que mais, acrescentava, vaidoso - "ha de ocasionar na Europa não pouco abalo o rumor daquelas minas!"
Daí por diante, verdadeiramente obcecado, o governador não descansa mais. Envia, a cada nau, cartas sobre cartas. Que frenesi! ~ carta ao engenheiro Correia Pinto. Carta a D. Rodrigo de Castel Blanco. Carta a Lemos Conde. Carta a Roque Pereira. Carta a Sebastião Velho de Lima. Quanta providência, quanta insuflação, quanta ordem! Ao engenheiro Correia Pinto, homem douto, que viera do Reino levantar mapas em Pernambuco, determina pressuroso que deixe os seus serviços e, com a primeira nau, se bote a caminho de Paranaguá. "... de sua delligencia e zello espero toda a brevidade e acerto no serviço de Sua Alteza e particullarmente neste de tanta importancia". E mais: "...
ordeno que Vossa Mercê assista em tudo, assim nos exames das betas, como no ensaio das pedras, até se tirar a prata". Correia Pinto parte imediatamente em direitura às minas.
Mal partido, já Afonso Furtado, na sua inquietude, manda buscar a Frei Granica, experimentado ensaiador de prata que então havia na colônia. É verdade que Frei Granica era castelhano. E, portanto, pessoa bastante suspeita a Portugal. Mas, para o amável Afonso Furtado, que importava lá isso? "Será justo que assim como muytos Portuguezes deram milhões e milhões nas minas do Potussy aos Principes de Castella, também dê um castelhano outros milhões nas de Pernaguá ao de Portugal". Nada de vacilações portanto: que Sua Paternidade, sem perda de mais tempo, já e já, embarcasse direto para o sul "por ser este negocio de grande importancia. E esteja Vossa Paternidade certo que lhe hei de solicitar todos os augmentos, e despachos, para os parentes que Vossa Paternidade me avisar..." Lá partiu Frei Granica a caminho das betas. Mas não bastou o engenheiro Correia Pinto! Não bastou Frei Granica! Foi preciso ainda D. Rodrigo de Castel Blanco. D. Rodrigo, toda a gente o sabia, viera examinar as minas de Itabaiana.
E viera de Portugal com a fama de prático sem rival - prático castelhano, fidalgo da casa do Rei, e homem que trabalhara nas minas do Potosi. Pois que D. Rodrigo mandasse, com a sua sabença, instruções a Paranaguá para que se apurassem acertadamente as pratas. Lá foi um próprio a Itabaiana. Lá vieram de Itabaiana as instruções do mineiro. E
as instruções, no mesmo dia em que chegaram, lá partiram rumo a Paranaguá. "....
também vae carta para o frade e instrucções de D. Rodrigo del Castel Blanco sobre os exames e forma de se tirar a prata. Uma em castelhano pelos termos de que usa a sua sciencia; e outra em portuguez pelo estylo mais claro..."
* * *
Em meio a essa azáfama, quando vão mais férvidos os preparativos para se aprofundarem os veios e se colher a prata, eis que o ouvidor Castelo Unhães - surpresa e pasmo! - depõe Lemos Conde do cargo de provedor-mor. Que foi? Que não foi? Soubese logo que os quintos reais estavam em atraso, e, além de atraso, havia em Paranaguá graves descaminhos de ouro. Lemos Conde, com razão ou sem razão, tinha o nome envolvido nesse atraso dos quintos e nesse descaminho do ouro.
O ouvidor Castelo Unhães, muito naturalmente, fulminou a Lemos Conde com à medida terrível: deposição imediata do cargo de provedor-mor. Afonso Furtado botou a mão na cabeça. Quê? Lemos Conde deposto? Pois acaso não sabia o doutor ouvidor que Lemos Conde fora o revelador das minas? O homem mais precioso da hora? Que era lá o atraso duns pobres quintos, que era lá o descaminho dum escasso ouro, diante da prata que iria jorrar de Paranaguá? Voaram ordens formais para que o ouvidor passasse um véu sobre o "atrasado". E passar um véu sobre o atrasado, em se tratando de lesão à real fazenda, era fato virgem, absolutamente espantoso, naqueles duros tempos coloniais. Pois, ainda assim, não se contentou Afonso Furtado: expediu ordens enérgicas para que o ouvidor, em pessoa e à sua custa (isto como reparação pública), reconduzisse ao posto de provedor-mor o ilustre Lemos Conde que ele havia desacatado.
Cumpriu-se tudo à risca. E Afonso Furtado, com o seu Lemos Conde assim amansado e amimado, pode afinal respirar com alívio: estava suficientemente desagravado o precioso revelador da prata de Paranaguá.
Agora, senhores, toca a aprofundar as betas!
EM LISBOA
O filho de Afonso Furtado, a esse tempo, lá ia na sua nau a caminho de Lisboa com a bruaca de amostras. Foi quando, na altura de Peniche (cuidado, João Furtado, cuidado! A
prata do Brasil tem um fado maléfico...) se desencadeou enraivado pegão de vento por aquelas águas. A nau de João Furtado não resistiu à sanha marítima. Sossobrou. Quase todos os tripulantes pereceram afogados. E a bruaca de couro, com as pedras brancas, lá foi tragada pela onda colérica. Mas o filho do governador chegou a Lisboa. "... entre os poucos que escaparam, se salvou João Furtado. E, passando a Lisboa, perdidas no naufrágio as amostras e cartas que enviava seu pae, as soube reproduzir com as expressões do que continham e com a certeza da nova".
23 Sim, em Lisboa, diante da corte, João Furtado disse das pratas de Paranaguá as coisas deslumbradas que ouvira do pai. Mas a corte ouviu com frieza o relato do moço. Andavam os homens do governo fundamente desapontados com os insucessos das minas. Esses veeiros do Brasil não rompiam nunca! Nem prata, nem esmeraldas, nem ouro, nem nada... Por isso mesmo, a um só tom, príncipe e ministros não se dignaram dar crédito à festeira mensagem que vinha da colônia. Aquelas falas não passavam de fantasia, fumos, quimeras do governador! E o mensageiro, com a alegria apagada, voltou sucumbido do Reino. Que decepção! Trazia ele, como resposta, apenas umas cartas sisudas e cautelosas. Por elas, agastadíssimo, viu Afonso Furtado, o senhor Visconde de Barbacena, que a sua palavra de fidalgo não fora crida pelo Príncipe. "... perderam-se as cartas, amostras de prata e todos os papeis que levava o meu filho, mandava elle dizer com acrimonia a Fernão Dias Paes Leme; ... e foram varias as duvidas que houve na corte".
Ah, aquela incredulidade lanhou fundo o pundonor de Afonso Furtado! E principiou então o desespero do governador...
O DESESPERO DO GOVERNADOR
Que angústia a de Afonso Furtado! As suas cartas, que já eram tão insistentes, tornaramse agora realmente desesperadas, verdadeiros látegos, atiçando sem tréguas, de mil modos, todos os que podiam contribuir para o cabal aprofundamento e desvendamento das betas. A frei Granica, que já lá estava nas minas, partiu imediatamente uma carta açodada. "... recommendo-lhe, muy apertadamente, o desempenho deste negocio em que vae tão interessada a sua reputação". E nem só a reputação do frade: ia interessada nele a reputação de todos! Por isso - "já agora o que importa é que Vossa Paternidade desminta, com as infalibilidades dessa prata, os escrupulos de todos os que duvidam havel-a..." "... e que mande eu taes evidencias à Sua Alteza que se desenganem os ministros e se confundam os emulos de Vossa paternidade". Com o mesmo afã, pela mesma nau, outra e longa carta a Correia Pinto para que deslindasse a todo o custo "este tão notavel, como mal crido negocio". Que Correia Pinto "assistisse aos exames que mandei fazer das betas que se haviam de penetrar até os sete estados, pois as desconfianças que a grandeza desta felicidade tem occasionado, ou nos animos, ou nos conceitos da corte, são de qualidade que me fazem o maior cuidado". Nem sequer, na sua descompassada excitação, esperava que aportasse nova nau para mandar novas ordens ao engenheiro. "... me pareceu despachar logo este correio por terra, e encarregar de novo a Vossa Mercê, assim como a Agostinho Figueiredo, que, sem se perder um ponto, se me enviem as amostras, e informações e tudo..." E como se não bastasse isso tudo, lá ia ainda, despachado às pressas, outro e ansiadissimo correio a Agostinho de Figueiredo: "... encarrego a Vossa Mercê, e isso com todo o aperto que posso, huma e muytas vezes, que logo e logo me remetta, como acima digo, as amostras das pedras e da prata que tiver resultado do beneficio..." Para tal, se fosse preciso fretar um navio -
fretasse! Fretasse, mas mandasse logo, logo! "Vossa Mercê, sem dilatar um ponto, embarque as amostras na embarcação que tiver prompta; e em falta della, a frete"; "...
pois, sendo tão consideravel a importancia de se mandar a Sua Alteza o ultimo engano da infallibilidade da prata, e da conta que nella pode ter a Fazenda Real, que se não deve reparar na despeza de fretamento, quando seja necessario fazer-se". Despesa? Mas que se não olhasse para despesa! "... porque (dizia, justificando-se) sê as minas de Paranaguá e as da serra de Sabarabussú, de que por instantes estou esperando os avisos, tem o rendimento que se entende, todo o cabedal que Sua Alteza tem posto no Brasil, hão de achar os Ministros por utilissimamente dispendido em conseguir o mais consideravel serviço que se possa fazer á sua corôa".
Cartas e correios partiam assim todos os dias. Partiam sem cessar. E toda gente, açulada por tão frenéticas missivas, se aprestou para atacar com ânimo aquela empreitada. Mas à obra!
* * *
Neste em meio chegou de Portugal, inesperadamente, ainda nova ordem. Os ministros, ao que parece, não se fiavam muito em Lemos Conde, nem em Frei Granica, nem em Correia Pinto, nem em Agostinho Figueiredo. E pensaram, para deslindar aquela meada, em D. Rodrigo de Castel Blanco. D. Rodrigo, mal examinara os cerros de Itabaiana, foi logo dizendo que por ali não havia mina - "apenas uns criadeiros que indicavam prata, mas de pouca consideração e sem nenhuma esperança de romper mina". E assim dizia, clamavam acrimoniosamente os fanáticos de Melchior Dias, porque o castelhano andava "ambissiozo das noticias que antão corriam da prata da Sabarabussú". Mas se havia prata em Sabarabuçu, como pensava D. Rodrigo, e, ao mesmo tempo, se a havia em Paranaguá, como afirmava o governador, el-Rei, por carta, mandou "... ordens ao administrador D. Rodrigo de Castel Blanco para passar á Repartição do Sul e fazer as deligencias das minas de Parnaguá, e, depois dellas, as da serra do Sabarabussú".
Lá veio D. Rodrigo.
Mas Paranaguá, apesar de tão risonhos boatos, estava para o espanhol em segundo plano. A idéia que o aguilhoava, que o tentava, como ainda aguilhoava e tentava a toda gente, era a Sabarabuçu. Aquela Sabarabuçu tão sonhada, tão sedutora, empós à qual lá estava, há anos, dentro dos Cataguazes desérticos, miserável e quebrantado, o velho Fernão Dias Paes Leme. Eis porque, ao passar por S. Paulo, rumo a Paranaguá, mas tendo o pensamento pôsto na montanha-grande-que-resplende, D. Rodrigo ordenou que os sertanistas piratininganos lhe fossem, de antemão, plantando roças ao longo do caminho que conduzia ao sertão da serra mirífica: ele trazia bem assente a deliberação de ir em breve, por esse caminho, no rastro de Fernão Dias Paes Leme, em busca da misteriosa Sabarabuçu! ".... mandou fazer plantas de milho e feijão no certam da Sabarabussú para passar a elle no tempo da colheita".
Feito isso abalou. E lá está ele agora em Paranaguá.
EM BUSCA DAS BETAS
Aquele pomposo e luzido bando de desbravadores, com o castelhano, com o frade, com o engenheiro, com o provedor-mor, atacou de rijo os matos do Paraná. Ia desvendar as minas albentes. Ia desvendar as minas onde se criava a prata que Lemos Conde descobrira.
A prata! A miragem branca, sonho dementador que ninguém tocava, continuava ali, com o seu aceno ilusório, a arrastar para dentro do coração do Brasil bandos de homens cúpidos. Continuava ali, com o seu fascínio mendaz, a escrever mais uma página na epopéia sertaneja do desbravamento. Sim, fora a prata, já o dissemos aqui, fora a prata, com o seu facho enganador, que, com Gabriel Soares, atraíra os homens para dentro do sertão da Bahia. Com Melchior Dias, para dentro do sertão da Bahia e de Sergipe. Com Álvaro Rodrigues, para dentro do sertão de S. Paulo. Com André de Leão, para dentro do sertão de Minas Gerais. E agora, oh, o milagre de uma lenda! era ainda a prata que arrastava, para dentro do sertão do Paraná, aquele largo e espaventoso séquito de rompedores-de-mato. Assim - curioso destino! - graças ao feitiço da mentirosa quimera, o Brasil selvagem, aquele imenso e bruto Brasil primevo, ia desbravando-se, povoando-se, desobscurecendo-se...
E o bando lá foi...
* * *
Onde ficava o cerro em que Lemos Conde arrancara as amostras de prata? Em que sitio, em que rumo, dentro daqueles mataréus, ficavam as betas que se deviam aprofundar?
Afonso Furtado, no seu paço com a mais acutilante e justificada impaciência, esperava a prata que devia brotar das betas aprofundadas. E eis que começam a chegar as primeiras notícias. Que notícias... "Bem cuidei, senhor Agostinho Figueiredo, quando abri a sua carta, que Vossa Mercê me certificasse, não só com informações, mas com toda a certeza, a infallibilidade das minas; mas nem das de prata, já descobertas (sic!), nem das de ouro, vejo mais do que esperanças e umas noticias muy duvidosas..." E não pararam aí as más notícias. Veio logo a carta do engenheiro Correia Pinto. "... quando cuidei receber, ao menos, a clareza do que se tinha obrado nas minas de prata, Vossa Mercê não me dá mais do que uma esperança confusa de minas de ouro.
O governador não queria acreditar no que liam os seus olhos. E quedava-se sucumbidíssimo dentro do seu paço...
Lá pelo sul, no entanto, afrontando a selvatiqueza daquelas selvas agressivas, debalde os peões cavam as lombas. Debalde os práticos buscam as apregoadas betas. Debalde Frei Granica, com os seus caldeirões, ensaia todas as pedras brancas que topa na jornada.
Debalde D. Rodrigo de Castel Blanco corre de cerro em cerro, com cento e oito negros a soldo, a moer quanto seixo suspeito cata por aquela morraria selvagem. Tudo vão! Tudo desoladoramente vão! O fracasso (sem que documento algum clareie o singularíssimo caso) foi absoluto, integral. Nem só não se encontrou a buscada montanha alva, como nem sequer vestígio, traço, simples, da prata que Lemos Conde apregoara com tanto alvoroço. "Ao fim de um anno, conta-o Moisés Marcondes, depois de muytos esforços e largas despezas, estavam todos de volta a Paranaguá, sem terem visto um só grão de prata".
* * *
Um só grão de prata... Remate de endoidecer um homem! E como explicá-lo? Como, ao depois das amostras que o governador recebeu e examinou, como explicar o total insucesso das diligências? Difícil respondê-lo. É de supor (assim o esclarece o grave Taques) que houvesse por essa morraria afora uns certos minérios, meio esbranquiçados, que continham bastante traços de prata. Pesquisados, produziam esses minérios alguns filetes do buscado metal. Esses filetes, contudo, não davam sequer para custear os gastos da exploração. Eram coisica de somenos. "Nós entendemos que estas Minas de prata não são mais do que huas pedras, das quaes algüa prata se extrahe, não correspondendo o valor do metal às despezas da manobra..." No entanto, aos olhos fantasiosos dos poucos entendidos, aquela algüa prata avultava como achado imenso.
Pensavam logo, com a cobiça exaltada, serem aquelas pobres migalhas indício certo de grossos veeiros, minas do Potosi, prata jorrando em caudais do Brasil! Foi certamente o que se deu com as pedras brancas que o flamejante Afonso Furtado fez examinar. Com o pouco que viu, deslumbrou-se. E a imaginação fez o resto. Daí toda essa grossa bufoneria da prata de Paranaguá...
AFONSO FURTADO E LEMOS CONDE
Nem um só grão de prata... Ó, digno de piedade, ó mal-afortunado Afonso Furtado de Mendonça, governador-geral do Brasil! Nem um só grão de prata... Desfecho assim desastrado, remate assim cruelmente risível para tanta canseira, tanto gasto, tanta carta, tanto recado, não o pôde sofrer indene o brio alevantado do governador probo. Que dirá agora el-Rei? Que dirão os ministros? A que ficavam reduzidas as suas mensagens?
Lastimável Afonso Furtado! Flagelava-o acima de tudo, acerbissimamente, a idéia de que havia pecado por ligeiro. Pois logo principiou a ser murmurado que - "neste negocio, se o anunciante da prata dellinquiu de ousado, não deixou o governador de peccar por ligeiro".
1 E aquela pecha alanceava-o. Prostrava-o. Dentro do Seu Paço, com tão agoniante dor aferroada no coração, o miserando governador deu de definhar. Não falava. Não comia.
Não dormia. Não queria receber a ninguém. Era pungentíssimo o seu abatimento.
Tamanho, tão lancinante, que caiu de cama gravemente enfermo.
- Cuidado, senhor Afonso Furtado, cuidado! Todos os que, até hoje, tentaram desvendar a prata que o mato esconde, morreram. Não escapou um só!
E Afonso Furtado, como todos os demais, foi ferido por aquele deus sem entranhas que vigiava com ciúmes os tesouros da mata brasileira. O sonhador das minas mal agouradas, o buscador da prata de Paranaguá e da prata da Sabarabuçu, não resistiu às melancolias que o consumiam: amanheceu um dia morto no seu palácio. Sucumbira de vexame. Sucumbira, ralado de mágoa, por não haver enviado a Portugal a prata que a sua palavra de fidalgo afirmara existir no Brasil. Eis o relato do historiador:
"O pouco effeito das delligencias que para o descobrimento das minas de prata fez Affonso Furtado, lhe imprimiu na imaginação o erro de não haver pesado aquella materia na balmança da prudencia, e o receio do desaire que lhe grangeava a sua demasiada credulidade em negocio de que fizera tanto apreço e segurara com tanta certeza. A esta nociva apprehensáo sobreveiu uma profunda melancolia, que, passando a perigosa e dilatada enfermidade, lhe acabou a vida". E tal como Rocha Pita, um documento do Conselho Ultramarino diz, oficialmente, que Afonso Furtado morreu pelo desgosto que teve em não achar as fatídicas minas que apregoava... "o governador se levara da voz comum; e fizera grandes deligencias por descobrir as minas de prata, até que o ultimo desengano lhe tirara a vida". Desfecho acabrunhador tiveram, na verdade, as rumorosas pedras brancas de Lemos Conde! Eis porque, com justíssima razão, exclamava um contemporâneo de tais sucessos: "Lastimosa cousa foi que, com estes penedos, se occasionasse um tão grande estrondo em Portugal, e, ao senhor Affonso Furtado, a morte..."
* * *
Ao mesmo tempo em que o insucesso de Paranaguá botava no ânimo de Afonso Furtado aquela venenosa tristeza que o arrastava ao túmulo, D. Rodrigo de Castel Blanco espumejava cóleras bravias. Que? Pois aquele embusteiro de Lemos Conde - um provedor-mor! - tivera a deslavada coragem de iludir ao Rei? Ao governador? A eles todos? E iludir com tão impudente e cínico descaro? Ah, destituam esse tratante, já e ]á, da provedoria dos quintos! Prendam o perro! Metam o falsário a ferros! É necessário que o impostor, à vista de toda gente, como escárnio e como exemplo, purgue duramente no cárcere a sua falsidade! Eram terríveis as ordens. Mas não houve que vacilar: Lemos Conde foi imediatamente destituído do seu cargo. E imediatamente preso. E
imediatamente metido a ferros. Assim, ostentosamente desonrado, transportaram para Santos o singular provedor. Aí o trancaram num calabouço da fortaleza.
Mas D. Rodrigo, aceso em iras fulminadoras, não saciou com aquelas ferezas a sua desatada sanha. E sentenciou que as despesas da jornada fossem todas pagas com os bens do provedor. Por que havia el-Rei de arcar com os gastos daquela jornada?
Pagasse-os que a engendrou! E determinou, despoticamente, além da prisão e além da perda do cargo, o confisco geral de todos os teres do povoador de Paranaguá.
Executaram-se rigorosamente as ordens do castelhano. E Lemos Conde, tal como Afonso Furtado, ao se ver assim tombado, desbaratado, confiscado, encarcerado, não resistiu.
Um dia...
- Cuidado, Lemos Conde, cuidado! Todos os que, até hoje, tentaram desvendar a prata que o mato esconde, morreram... Não escapou um só!
... um dia, ao passar diante da porta gradeada do calabouço, o carcereiro depara, caído por terra. sobre vermelha poça de sangue, o corpo já enregelado do senhor provedor.
Que foi? Apenas isto: Lemos Conde, com uma faca de ponta, degolara-se na prisão. Nos seus assentamentos, o velho Taques lá anotou:
- "Manuel de Lemos Conde, natural da villa de Borba, que foi provedor dos reaes quintos da fazenda de Parnaguá, em 1691, se degollou por suas proprias mãos, estando preso e sequestrado".
Findou assim, com esse epílogo sinistro, a história da prata de Paranaguá. Vai agora reencetar-se, com mais ardência, o interrompido romance da Sabarabuçu.
D. RODRIGO DE CASTEL BLANCO
D. Rodrigo de Castel Blanco está em São Paulo. E em S. Paulo tem agora o castelhano um fito só: Sabarabuçu! Para tal, fazendo vir das vilas convizinhas os homens de melhor conselho e de maior experiência, homens anciões e de respeito, bota-se D. Rodrigo com eles a "discernir e rumiar as condições, e tempo mais conveniente, para se pôr em execução a jornada ao cerro da Sabarabussú, no descobrimento da prata". E isso, lá dizem pitorescamente as atas da Câmara para que de nenhuma maneira haja de aver falta nem estrovo em se conseguir a jornada de Sabarabussú". E a fim de não aver falta nem estrovo, a Câmara de Taubaté, muito generosamente, apressa-se em oferecer índios seus, a fim de irem plantando roças pelo caminho - "para com fasseledade se conseguir o descubrimento da prata". Mas há em S. Paulo surda animosidade contra o prático de Itabaiana. D. Rodrigo era atrevidamente fanfarrão. Alardeava aos quatro ventos, com muito e jactancioso palavriado, os seus merecimentos e as suas sabenças. Os de S.
Paulo, gente rústica, de pouca fala, enlurados naquele burgo de além-serra, ouviam desconfiados as gabolices do espanhol - do patarata, como o apoda o sisudo Taques.
Detestavam-no. Demais (e aqui, doía-lhes aos paulistas este ponto) eles, os de S. Paulo, ao se barafustarem por essas serranias afora, à frente de suas bandeiras, lá iam à custa do seu bolso, arruinando as próprias fazendas, sem pesarem de uma só placa ao tesouro de el-Rei. D. Rodrigo, no entanto, ali estava à tripa forra, vivendo como um senhor dom fidalgo, com os custos da jornada largamente pagos, e, por cima, a abocanhar do erário reinol a enormidade de seiscentos mil réis. Além de tais larguezas, agora, para se ir à Sabarabuçu, manda-lhe ainda o Príncipe abonar, como ajuda, mais a gorda tença de quarenta mil réis! Aquilo assombrava e irava os de S. Paulo.
Ao mesmo tempo, num contraste gritante, lá, pelas tredas matarias dos Cataguazes, há sete anos já, padecendo misérias sobre misérias, suportando desgraças e ruínas inenarráveis, dizimado, abandonado, estropeado, desbaratado, mandando vender, para se sustentar, as últimas jóias das filhas, Fernão Dias Paes Leme andava a romper com heroísmos trágicos, desesperadamente, aquelas serranias bárbaras onde se acoutavam as esmeraldas e a prata.
D. Rodrigo, porém, indiferente às mal-querenças que o farpoam, vai com os seus seiscentos e quarenta mil réis, aprestando sossegadamente a sua bandeira. Apresta-a. E
ei-lo afinal pronto.
Um dia, com muito negro e muito bugre, cargueiros e cargueiros atopetados de mantimentos, o velho mineiro Álvares Coutinho numa rede, carregado a ombro, D.
Rodrigo de Castel Blanco lança grandiosamente os seus homens na trilha do caçador de esmeraldas. Vai, tal como o potentado paulista, por aquelas negrejantes rechás de alémMantiqueira buscar a nebulosa, a terrível mas sempre fascinante serra branca da prata.
Sabarabuçu! Sabarabuçu!
E a bandeira abalou.
- Cuidado, D. Rodrigo, cuidado! Todos os que, até hoje, tentaram desvendar a prata que o mato esconde, morreram... Não escapou um só!
ESMERALDAS
Súbito, na vilota de S. Paulo, estrondeja esta ridente notícia fragorosa: Fernão Dias Paes Leme topara com as esmeraldas! Não topara o destemeroso cabo com a tão buscada Sabarabuçu, e nem com a tão buscada prata, é bem verdade. Mas topara com as esmeraldas. Sim, lá por aqueles cerradões ermos dos Cataguazes, o velho rompedor-demato descobrira enfim as pedras verdes! Descobrira-as à beira da lagoa Vapabuçu.
Descobrira-as, apanhara a terçã, e, por fatalidade, morrera subitamente da febre ruim.
O filho do bandeirante, Garcia Paes, ao receber do pai moribundo as esmeraldas, botaraas num saquinho de chamalote, cosera-o, mandara-o com sofreguidão a D. Rodrigo de Castel Blanco. Quê? A D. Rodrigo de Castel Blanco? Os de S. Paulo ouviram, de punhos cerrados, indignadamente, a notícia destemperada. Como teve Garcia Paes coragem de entregar ao patarata a descoberta de Fernão Dias? Pois não via Garcia Paes que D.
Rodrigo iria agora, com as esmeraldas nas garras, apregoar perante a corte que fora ele, D. Rodrigo, e não Fernão Dias, o achador das pedras? Aquilo atiçou na vilota iras assanhadas. O padre João Leite, irmão de Fernão Dias, correu à Câmara com o seu protesto:
"Eu, o Padre João Leite da Silva, por mim e como irmão do defuncto, o Capitãm Fernão Dias Paes, descobridor das esmeraldas, e em nome da viuva, sua mulher, Maria Garcia, requeiro a suas mercês, huma e muytas vezes, da parte de S. Alteza, q. Deus guarde, que atalhem pelos meios convenientes, a D. Rodrigo Castell Branquo os intentos que tem de apoderar-se das minas de esmeraldas q. o dito meu irmão descobrio..."
A terreola piratiningana alvoroçou-se toda. Andavam pelo ar boatos azedados. Propalavase até que... Súbito, no esfervilhar daquelas zangas, rompe por S. Paulo adentro, estupidificando-o, esta mensagem aterradora:
- Borba Gato, o genro de Fernão Dias, assassinara nos Cataguazes a D. Rodrigo de Castel Blanco!
Borba Gato? Ninguém queria acreditar! Apesar de sua cólera, as gentes de S. Paulo não haviam chegado a ponto de cogitar em tão sanhuda ousadia. Sofrear, com protestos e com embargos, diante das justiças, as possíveis raposias de D. Rodrigo, vá! Mas assassiná-lo? Assassinar o enviado do Príncipe? Era demasia a que vassalos, por mais alevantados, não se atreviam com ligeireza. No entanto, por desgraça, aquela sacolejante notícia era a verdade nua: Borba Gato, genro de Fernão Dias, assassinara a D. Rodrigo de Castel Blanco! Como?
Os dois homens, depois da morte do bandeirante paulista, tiveram, no sertão do Paraopeba, um encontro desafortunado. Borba Gato fora sempre de ânimo perigosamente assomado. D. Rodrigo de ânimo perigosa mente desabrido. Um estava, como todos os paulistas, assanhado contra o espanhol fanfarrão que recebera as esmeraldas. O outro, como todos os renóis, prevenidíssimo contra os paulistas altaneiros que os tratavam de igual para igual. O encontro deles, por isso mesmo, foi áspero. Áspero e breve. Apenas duas ou três frases cortantes: e Borba Gato, num arranco, ali, em pleno sertão, assassina tresloucadamente, diante dos dois séquitos pasmados, o enviado de confiança do Príncipe!
Não podia suceder, como remate à jornada das pedras verdes, acontecimento mais arrepiador. Tinha ali um epílogo de sangue, e, mais do que epílogo de sangue, finalizavase em crime de lesa-majestade, a retumbante entrada do caçador de esmeraldas.
Bem sabia Borba Gato, diante daquela fatalidade, do destino cru que o aguardava. Bem sabia das vinganças que iriam desabar sobre a sua cabeça! Por isso não esperou que estalasse contra ele a sanha régia: naquele mesmo dia, fugindo às justiças, o paulista embrenhou-se às correrias por aqueles bosques asselvajados de além-Mantiqueira. Foi viver, segregado dos homens, como hirsuto bicho de mato, dentro do sertão terrificante daquelas paragens brutas.
BORBA GATO
Rodou o tempo. O sonho da prata esfriara. Portugal, contudo, tentou ainda mais um esforço no sentido da descoberta das serras tão desejadas.
É que o soberano recebera longo relatório do governador Paes de Sande em que este assegurava não se ter ainda descoberto a prata de Paranaguá e de Sabarabuçu por dois motivos:
1 o ) porque não se haviam prometido aos paulistas todas aquelas grandes honras e todas aquelas grandes mercês, assim como aqueles postos de mando no governo da sua república, de que os mesmos paulistas eram mui gulosos. E isso ainda com a promessa, importantíssima para os paulistas, de que "continuaria a sua Republica florente nas qualidades e na riquezas, capaz de vir a ser a Villa de S. Paulo a cabeça do Brasil".
2 o ) porque não pode descobrir nem entabolar minas que não sabe o que el-las sãm. Ora, continuava o governador, muito azedo, "esse D. Rodrigo de Castelbranco nunca foi escrutador ou bruxulla; nunca foi mineiro, nunca seguio betas nem proffundou estados;
nunca foi senhor de minas, nem teve officio de temperar a pedra moida; e se fallava em alguns termos, era pellos ouvir e não pellos praticar".
Ouvindo o Conselho Ultramarino, um dos conselheiros foi logo dizendo que, quanto a D.
Rodrigo, talvez "este não ouvesse tido aquela experiencia e sciencia que no papel se supõe necessaria, mas que tinha bastante deligencia da materia. Pois, estando eu na Bahia lhe vy fazer diferentes os ensaios em pedras da serra de Tabaiana, e tambem vy que dos ensaios tirou prata". "E quanto ás promessas dos paulistas, achava, sem restrição, medida muy adequada, pois a ambição dos homens tudo facilita, e, com isso, não se despresava deligencia tão util como essa". E acrescentava ainda que em Sabarabuçu e em Itabaiana devia realmente haver prata, portanto - "Tabaiana e Sabarabussú concorrem, debaixo da mesma altura e parallello, com o cellebrado cerro do Potosy, que lhe fonte de prata inexausta que tem inundado as quatro partes do mundo. E
como se conjectura que sendo a producção de todos os metaes effeito do callor e actividade do sol, pela egualdade do parallello participarão aquellas serras das mesmas influencias".
O Rei, tendo tudo visto e examinado, mandou ao seu governador uma carta em que dizia:
"Antonio Paes de Sande, Am.0 Eu, el-Rey, vos envio muyto saudar. Mandando ver o que me reprezentaste em hum papel sobre as minas de ouro, e de pratta de Pernagoá, Tabahana, e Serra do Sabarabussú, me pareçeo recommendar-vos a execução do arbitrio........ dando-vos a faculdade para que, em meu nome, possaes propor, e dar todas as honras e mercês que deveis prometter aos paullistas; e, feita a delligencia, me dareis conta do que tiverdes disposto, e obrado, para que com a verdadeira noticia, ou se alcance o dezengano ou se confirmem as mercês..."
25 Mas é exatamente por esse tempo - 1695 a 1700 - que o Brasil inteiro se enche da fama súbita das minas de ouro. Naquelas estrondosas minas de ouro, tão abundantes, que os paulistas haviam afortunadamente descoberto nos Cataguazes. Quanta mina, Senhor! É a do Ribeirão do Carmo, é a de Ouro Preto, é a da Pitangui, é a do Ribeirão do Garcia...
Ecos de descobrimentos novos, de catas inesperadas, de veeiros que rompiam improvisamente, estrugiam agora de todos os quadrantes do sertão. Tantos, tão rumorosos, que o governador Artur de Sá e Menezes decidiu-se a ir, em pessoa, ver de perto aquelas riquezas que brotavam a flux no rústico El-Dorado. Urgia, porém, antes de qualquer outra medida, tratar da abertura dum caminho, expedito e fácil, que ligasse com rapidez a região das lavras à cidade do Rio de Janeiro. Quem, com prática de sertão, poderia faze-lo? Os paulistas. Eis porque Artur de Sá foi entender-se com os sertanistas de Piratininga. E entender-se particularmente com aquele sertanista de prol, amigo do Rei, filho de Fernão Dias Paes Leme: Garcia Paes.
Em S. Paulo, certo dia, Garcia Paes procurou o governador. Procurou-o em sigilo. E, a sós os dois, disse o filho do caçador-de-esmeraldas ao procônsul reinol:
- Vosmecê conhece bem aquela desgraça que arruinou a vida do meu cunhado...
- Borba Gato?
- Borba Gato!
- Conheço bem o caso, Garcia Paes. E então?
- Então, senhor governador, depois do desastre, e como Vosmecê de certo já ouviu dizer, Borba Gato sumiu. Por muitos anos não deu ele notícia do seu paradeiro. Vosmecê não pode avaliar o desespero que é para a minha gente a perda de Borba Gato! Nenhum parente se conforma em saber que o meu cunhado, homem reto, companheiro firme de meu pai, vive fugido da justiça como criminoso. A mulher dele, que é a mana Maria Leite, saiu de S. Paulo e foi morar em Taubaté. Instalou-se no lugar chamado Paraitinga, que é boca de sertão, fica rente da estrada que vai para as lavras. A mana pousou nuns campos daquela paragem, ergueu casa, e ficou-se ali, que é perto dos Cataguazes, na fiúza de ver o marido um dia aparecer. Mas tudo baldado! Passaram-se anos e anos sem que Borba Gato desse notícia de si...
Artur de Sá ouvia em silêncio. Garcia Paes, com a sua singeleza cabocla, continuou a desenrolar pinturescamente a rústica história do cunhado:
- Vinte anos andou Borba Gato por aquela mataria como um bicho. No fio desses vinte anos, corre pra cá, corre pra lá, encontrou ele uns bugres de boa avença, da nação chamada piracicava, que o receberam como amigo. Borba Gato arranchou-se entre eles.
E viveu como bugre no meio desses bugres. Tornou-se até o maioral desse gentio. Ora, faz pouco tempo, numa tarde de vento grosso e chuva braba, surge em casa da mana um homem barbudo, cabeça branca, que entra pela casa de sopetão. Uma rapariguinha de pouca idade, que já é filha duma filha da mana, estando por acaso na sala-de-janta, ao reparar no estranho que vem varando, sai a gritar pela casa:
- Um homem barbudo tá aí, mãe! Um homem barbudo tá aí, mãe!
Acode a mãe da menina a ver o que é. E ao dar com o velho, ali, naquele lusco-fusco de chuvarada, vestido de couro, botas, um arco de bugre na mão, a moça também se amedronta. E corre, com os olhos saltados, pelo quarto da mana Maria adentro:
- Tá aí um homem barbudo, mãe!
- Um homem barbudo?
- Barbudo, vestido de couro, com um arco de bugre...
A mana estremeceu. Sentiu uma voz lá dentro que dizia: é ele! E veio às pressas ao encontro do homem que a moça e a menina não sabiam quem era. Não se enganara o coração da velha! Na sala, mal vê o chegadiço, a mana solta um grito de festa:
- Borba Gato!
Era, de fato, Borba Gato. A filha, que ele deixara criança, não o pudera reconhecer. A
netinha, essa nascera e crescera enquanto o avô andava pelo mato. Mas a mana Maria reconheceu logo o marido. E os dois velhos abraçaram-se ali, chorando, depois de vinte anos de separação.
Artur de Sá escuta de muito boa sombra o filho de Fernão Dias. E torna-lhe:
- Eu soube dessa volta de Borba Gato ao povoado, Garcia Paes. Não soube assim com essas miudezas. Mas soube. E como tenho em grande conta a Borba Gato, nem o quero mal pelo crime que praticou, mandei ordens a ele para que voltasse ao sertão e se esforçasse por descobrir a serra do Sabarabuçu. Descobrir a Sabarabuçu. Vosmecê bem o sabe, é o maior serviço que Borba Gato pode prestar ao Rei. E, com tal serviço, o caminho mais certo para que Borba Gato obtenha o perdão do crime.
- Mana Maria botou-me a par dessa sua bondade, senhor Artur de Sá. E até me mandou estas letras em que vêm as ordens de Vosmecê...
Garcia Paes desdobra ante o governador um velho papel. Nele, entre outras coisas, dizia Artur de Sá: "pelas noticias que tenho, na paragem a que chamam Sabarabussú haverá mina de prata; a cujo serviço mando Borba Gato para que explore os morros e serras que houver naquelas partes.
- Perfeitamente, Garcia Paes; foram essas as minhas ordens.
- Pois Borba Gato, com essas ordens, tornou ao sertão. E por lá andou uma fiada de tempo. Na semana passada, porém, aparece no Taubaté um bastardo de Borba Gato. E o bastardo me trouxe a mim uma notícia de peso. Por causa dessa notícia é que eu vim aqui falar com Vosmecê...
- Pois é dizer o que há, Garcia Paes!
Cai um relâmpago de silêncio. E Garcia Paes, pausado, olhando fito o governador:
- Senhor! Borba Gato é homem que não mente. É, como sempre foi, homem inteiro e verdadeiro. Pois Borba Gato mandou dizer que agora, guiado pelos índios, acaba de descobrir no sertão...
Garcia Paes abaixa a voz:
- A serra do Sabarabuçu!
Artur de Sá franze o sobrolho:
- Descobriu a serra do Sabarabuçu? Borba Gato mandou dizer isso, Garcia Paes?
- Sim, senhor: mandou dizer que descobriu a Sabarabuçu!
* * *
Sabarabuçu! Parecia, com o volver de tantos anos, definitivamente esvaida a fama da serra mirífica. A fama da montanha-grande-que-resplende, toda de prata, que lucilava encravada dentro dos matos! E eis que agora, lá do fundo do sertão, Borba Gato despacha aquela mensagem radiosa: descobrira a Sabarabuçu! Não podia haver, como remate àqueles achados que enchiam o sertão dos Cataguazes, coroa mais preciosa nem mais fúlgida.
O governador ouve a nova auspiciosa. E com alvoroço:
- Garcia Paes, mande avisar a Borba Gato que eu estou de vereda para Rio; mas que, do Rio, irei sem tardança ao sertão das minas. Que Borba Gato, quando tiver conhecimento da minha partida, não se afaste de onde está: eu irei vê-lo à serra do Sabarabuçu. Por enquanto, e para mostrar o goto que tive em receber a notícia que recebi, vou dar a Borba Gato uma carta-de-seguro, com franquia, para que ele possa andar livre, sem medo às justiças, por toda a comarca dos Cataguazes.
E assinou a carta-de-seguro. Com aquela carta, já conseguia o foragido quase completa liberdade: a comarca dos Cataguazes, naqueles tempos, ia dos sertões da Mantiqueira aos sertões do Peru!
No mesmo dia, partindo a toda pressa para a banda das minas, um próprio levava a Borba Gato a palavra e o papel do governador.
SABARÁ Artur de Sá partiu, com largo séquito, a caminho dos Cataguazes. Alcançou as minas de ouro. Aí legislou. Aí deu instruções. Ai assentou os lineamentos da vida administrativa daqueles povoados nascentes. Feito o que, meteu o governador a comitiva de novo pela terra adentro. Lá seguiu em busca de Borba Gato.
Foi em pleno sertão, ao pé de ásperos morros abaulados, que um dia, com grande e bulhenta alacridade, encontraram-se afinal os dois homens. Artur de Sá, mal apeado do seu macho, avança de braços abertos para o assassino de D. Rodrigo de Castel Blanco:
- Deus vos salve e guarde, Borba Gato!
- Deus vos salve e guarde, senhor Artur de Sá e Menezes, governador de todos nós!
Artur de Sá, efusivo, num gesto cavalheiroso, aperta na sua mão, com força, a mão cerdosa do criminoso.
- Aqui estou, Borba Gato! Vim ver a serra do Sabarabuçu de Vosmecê descobriu...
- A serra do Sabarabuçu senhor governador, é aquela que ali esta curvejando no céu... -
diz o sertanejo apontando com simpleza uns morros que se alteavam à distância.
Nada de extraordinário na serrania ao longe! Não era branca, nem resplandecente, nem de prata. Uma serrania como todas as serranias...
- Aquela? Pois é aquela, Borba Gato, a Sabarabuçu?
- Venha, senhor governador, venha daí comigo...
Artur de Sá, guiado pelo paulista, envereda-se por estreita picada aberta no mato. Ao fim do jornadeio, mal saído do arvoredo, o governador estaca: nas barrancas dum ribeiro que serpenteia perto, magotes de índios mansos, a bateia na mão, estão a lavar areias e cascalhos.
- Ouro, Borba Gato?
- Ouro, senhor governador; ouro!
E diante da surpresa de Artur de Sá:
- Os índios destas paragens, a uma boca só, chamam àquela serra, que está ali tapando o horizonte, de Serra do Sabarabuçu. E Sabarabuçu, como Vosmecê vê, não é nenhuma serra branca e resplandecente. A Sabarabuçu é uma serra de ouro! Veja, senhor, veja o ouro sem conta que brota dessas areias...
Artur de Sá e Menezes, pasmado, bota olhos coruscantes no bojo daquelas gamelas de pau. Em todas elas, com esbanjada fartura, ia largo faiscar de granetes dourados. Quanto ouro!
E o paulista:
- Quis Deus, senhor governador, que eu descobrisse estas minas. Veja V. Excelência os grãos que vêm a cada bateada! É um nunca acabar...
Artur de Sá contempla aquilo. Examina os granetes. Vai de bateia em bateia. Não há dúvida: a Sabarabuçu não era serra e prata; era serra de ouro! E o governador, diante de todos, pausado e solene:
- Borba Gato! El-Rei, nosso senhor, certamente saberá galardoar, com larga grandeza, o serviço que Vosmecê acaba de prestar à sua real fazenda. Mas eu, desde já, em nome de Sua Majestade, proclamo aqui, alto bom som, para que todos saibam: Vosmecê Borba Gato, está perdoado! E ordeno que faça, de hoje em diante, sobre o assassínio e D.
Rodrigo de Castel Blanco, perpétuo silêncio.
Naquele momento, diante de Artur de e Menezes, Borba Gato, o criminoso foragido, aquela bela, fascinadora e romântica figura de sertanejo, tem a alta missão histórica de revelar a serra encantada do Sabarabuçu. Sim, revelar a Sabarabuçu e desfazer a quimera da prata. Mas nem só desfazer quimera risonha: Borba Gato, com o achado da mirífica serra lendária, ajunta às riquezas do Brasil, que nos Cataguazes de súbito se desvendaram, aquelas ricas e abundantíssimas lavras de ouro, tão barulhentas como as do Carmo e de Ouro Preto, que são hoje conhecidas, não pelo seu velho e selvagem nome de Sabarabuçu, mas apenas por este apelido simplificado:
- Sabará!
* * *
Morreu ali, com o ouro de Sabará, a ambição escandente da prata. Mas que importa a prata? Bem mais do que as minas albentes, bem mais do que a riqueza perecível dos tão buscados veeiros, valeu, para a penetração do nosso escuro Brasil adolescente, a lenda, tão linda e tão terrível, daquela imaginária montanha branca. Valeu, bem mais do que a prata, para a posse do Brasil, a lenda, ofuscante e alucinadora, que teve o condão mágico de atrair, com o seu facho pérfido, homens sem conta para os arcanos mais abruptados da terra selvagem. Graças ao frágil engodo, graças à quimera gentilíssima, os fundadores da nossa Pátria, aqueles duros sertanejos primitivos, tostados e brutais, ciclopes vestidos de couro, entranharam-se adoidados por essas hirsutas brenhas afora, galgaram serranias aspérrimas, vadearam rios encachoeirados, padeceram fome e sede, arrostaram feras e paludes - suaram, empobreceram, desgraçaram-se, morreram, mas tracejaram na carne virgem da terra do pau-de-tinta, com sulcos de sangue, essa grandiosa e rústica ilíada nacional: a conquista do território.
NOTAS
ALGUMAS DATAS
A fim de não atravancarmos o texto, deixamos para esta página o elucidarmos o leitor sobre as principais datas dos acontecimentos relatados neste livro.
1580-1583 - Entrada de João Coelho de Sousa;
1952 - Entrada de Gabriel Soares;
1618 - Entrada de Melchior Dias Moreia;
1620 - Prisão de Melchior Dias Moreia;
1622 - Morte de Melchior Dias Moreia;
1628 (1629?) - Entrada de Francisco Dias d'Avila;
1671 - Afonso Furtado de Mendonça (início do governo);
1677 - vinda de D. Rodrigo de Castel Blanco para o sul;
1678 - Entrada de Lemos Conde;
1695 - Entrada de Barbosa Leal;
1700 - Borba Gato (o ouro de Sabará).
A
Antônio Dias Adorno era filho daquele Paulo Dias Adorno, italiano, que se casara na Bahia com uma filha do célebre Caramuru. Eis, a propósito, o que diz a "Chorographia Historica" de Melo Morais: "O que referem os assentos e notas que temos é que as duas filhas naturaes de Diogo Alvares Caramuru, chamadas Magdalena Alvares e Felippa Alvares, se casaram no mesmo dia na capella da Graça, edificada por sua madrasta Catharina Alvares; mas no entanto a inscripção lapidaria diz que se casaram na igreja da Victoria. A primeira com Paulo Dias Adorno. Foi ministro deste Sacramento o padre Fr.
Diogo de Borba, franciscano, que com outros companheiros ião para a Índia em companhia de Martim Affonso de Souza, donatario de S. Vicente, no anno de 1534, por ordem de el-Rei D. João III, a fundar lá um convento de sua religião: indo arribados por tempestade á Bahia de Todos os Santos, forão os primeiros religiosos que a ella vierão, e administrarão o Sacramento do baptismo a estas, e a outros filhos de Caramurú, tanto naturaes, como legitimos de sua mulher Catharina Alvares, com quem se havia casado em França".
E a respeito desses Adornos, que foram troncos de famílias baianas e paulistas, dá Basílio de Magalhães a seguinte nota:
"O italiano Paulo Adorno casou na Bahia, em 1534, com a filha de Diogo Alvares, e da india Paraguassú, Philippa Dias (ou Alvares); e seu irmão Giuseppe Adorno, vindo de além-mar pela mesma epoca, estabeleceu-se em S. Vicente com engenho de assucar.
Sabe-se que esses Adornos, de origem fidalga, pois eram aparentados com a casa do duque de Genova, apeiados do poder por André Doria, em 1528, não tardaram a emigrar de sua Patria para o Brasil, em cujos dois centros principaes, Bahia, e S. Vicente, figuram como dignos povoadores, não sendo extranhos aos fundadores iniciaes do Rio de Janeiro de 1565. Vieram quatro irmãos, segundo Simão de Vasconcellos".
B
Varnhagen nem só reputava o "Tratado Descriptivo" de Gabriel Soares - "talvez a obra mais admiravel de quantas em portuguez produziu o seculo quinhentista", como também -
"a mais encyclopedica da litteratura portugueza nesse periodo". É do conspícuo historiador esta página sobre o Tratado Descritivo:
"Seja rude embora, primitivo e pouco castigado o estylo, confessamos que ainda hoje nos encanta o seu modo de dizer. E ao compararmos descripções com a realidade, quasi nos abysmamos ante a profunda observação que não cansava, nem se distrahia variando de assumpto. Como chorrographo, o mesmo é seguir o roteiro de Soares que o de Pimentel ou de Roussim; em topographia ninguem melhor do que elIe se occupou da Bahia; como phytologo, faltam-lhe naturalmente os principios da sciencia botanica, mas Discorides ou Plinio não explicam melhor as plantas do velho mundo que Soares as do novo. A obra contemporanea, que o jesuita José de Acosta publicou em Sevilha, em 1590, com o titulo Historia Natural e Moral das Índias, e que tanta celebridade chegou a adquirir, bem que pela forma e assumpto se possa comparar á de Soares, é-lhe muito inferior quanto á originalidade e copia da doutrina. O mesmo dizemos das de Gomara e de Oviedo. O
grande Azara, com o talento natural que todos lhe reconhecem, não tratou indiscutivelmente, no fim do seculo passado, da zoologia austro-americana melhor que o seu predecessor portuguez; e numa ethnographia geral dos povos barbaros, nenhumas páginas poderão ter mais cabida pelo que respeita ao Brasil, do as que nos legou o senhor-d'engenho das vizinhanças do Jequiriçá. Causa pasmo como a attenção dum só homem poude occupar-se em tantas cousas, "que juntas se veem raramente", como as que se contem em sua obra, que trata a um tempo, em relação ao Brasil, de geographia, de historia, de topographia, de hydrographia, de cultura entretropica, de horticultura brasileira, de materia medica indigena, de madeiras de construcção e de zoologia em todos os seus ramos, de economia administrativa e até de mineralogia!"
C
Vem na "Expansão Geographica", assim resumido, o roteiro de Merchior Dias, que Galógeras eruditamente reconstituiu: "sahiu a leva das margens do rio Real e buscou a directris do Itapecurú, desviando-se dahi para pesquisar o sertão do Massacará, passando pela serra do "Bendutayu" (inassimilável a qualquer das de nome moderno) e examinando em seguida a do Piquaraçá ou Monte Santo; dahi rumou para a Itiuba e para a serra de Jacobina; embrenhando-se mais para o oéste, subiu pela margem do rio do Salitre até á serra Branca e á de Açuruá, correndo depois as cabeceiras dos valles dos rios verde-de-baixo e Pará-mirim, galgando este até á aldeia de "Tubajaras", que é talvez a Macaúbas de agora; suppõe-se que percorreu tambem o bordo oriental da ChapadaDiamantina; procurando voltar ao valle do S. Francisco, foi ter ao Curuçá ou Coraçá e á serra do "Oroquery", onde descobrio amethysta e salitre; e, finalmente, continuando para léste a marcha de retorno, chegou a Itabaiana, donde se recolheu ao ponto de partida".
D
Anda muito escrito por ai que foi D. Francisco de Sousa quem acompanhou Melchior Dias às minas. Outros dizem que D. Francisco de Sousa apenas se ajuntou a D. Luiz de Sousa para a famosa entrada. A respeito de tais fatos, eis o que esclarece Basílio Magalhães:
"Ha ahi alguns enganos que teem gerado erronias deploraveis por parte de historiadores modernos. Ao tempo em que esteve D. Luiz de Souza em Pernambuco, isto é, de 1612 a 1616, nem só Melchior Dias estava ainda cuidando directamente de receber da Metropole as desejadas mercês (do que é prova a sua carta de 9 de Julho de 1614 depois da qual, parece, foi que mandou á corte o seu sobrinho Domingos de Araujo) como tambem não era governador da Bahia nenhum D. Francisco de Souza, pois este, nomeado a 15 de Junho de 1608 administrador Geral da Repartição do Sul fallecera em São Paulo a 10 de Junho de 1611. Quem, ao tempo das negociações entre D. Luiz e Melchior podia estar no governo da Bahia era Gaspar de Souza que, segundo a Historia Militar do Brasil, de D.
José de Mirales, exerceu aquellas funcções desde 1614 até 1617. Mas quando se deu a entrada do neto de Caramurú á Itabaiana já era governador da Bahia o proprio D. Luiz de Souza, que succedendo a Gaspar de Souza, tomou posse do cargo em 1617 e nelle permaneceu até 12 de Outubro de 1621. Não foi, pois, nenhum Francisco de Souza, nem mesmo Gaspar de Souza, quem o acompanhou ao sertão sergipense. Foi, de facto, um seu collega de governo, isto é, o representante da Metropole na Repartição do Sul. A
prova disto é fornecida por uma testemunha presencial do acontecimento: Salvador Correia de Sá e Benevides". Segue-se aí a transcrição do depoimento de Salvador Correia.
E
A primeira vez que apareceu, em documento histórico, o nome de Calabar (nota-o Capistrano de Abreu, foi no relatório do holandês João Walbeeck, dirigido aos diretores da Companhia das Indias Ocidentais, em 1633. Esse relatório, traduzido em francês (arquivo do Instituto Histórico Brasileiro, códice n.
0 308) refere-se às famosas minas do Caramuru, que os holandeses, como todos os demais, tanto procuraram. Eis um trecho do precioso documento: - "Vos Honorables Noblesses ont souvent demandé dans leurs lettres d'avoir quelques éclaircissements à l'égard des mines découvertes prés de Rio S. Francisco; en parlant ici de la situacion intérieure du Brésil, je peux en même temps faire mention de ce qui est venu à ma connaissance à sujet. Aprés que les Portugais avaiente reconquis la Bahia, Francisco Dias d'Ávila, aynt appris quelques particularités à l'égard de la richesse des mines du Cormoru, parles information à lui delaissées par son pêre, a entrepris une expédition vers ces lieux, accompagné de trente personnes. Ils sont partis de la demeure du dit Francisco (située 12 lieues au Nord de la Bahia), cheminant pendant six semaines, toujours dans la direction vers le nord, jusqu'à ce qu'ils sont arrivés aux mines susdites;
étant là us ont trouvé d'être sous le même dégré que la ville d'Olinda, et ils apprirent par les Tapuyes que habitent cette montagne qu'en traversant en ligne transde Sir Domingo Fernandes (une persone dont nous ces mines sont si riches en argent, d'aprés le rapport de Sir Domingo Fernandes, une persoune dont nous nous sommes beaucoup servis en Brésil, et d'après le rapport duquel, comme ii a été avec dans cette expédition, je raconte ceci) qu'ils égalent celles comme il y en a découvertes quelques unes au Péron ou à Nueva Hispania".
F
Além do famoso ouro da Jacobina e do abundantíssimo ouro do Rio das Contas, as crônicas antigas vêm cheias de outros e muitos ouros que se descobriram por todo o sertão baiano. Na "Memoria sobre o Estado da Bahia", de F. Vicente Viana, há uma página que condensa todos esses achados de minas de ouro a que se referem as crônicas. Ei-la: "As minas da serra de Assuruá, infere-se de um memorial de Fred. M.
Schubert, foram descobertas ha cerca de meio seculo, 90 leguas a O. da Bahia, no logar chamado Gentio, comarca de Chique-Chique, em cuja ocasião affluiram milhares de pessoas de toda parte, mas principalmente da beira do Rio S. Francisco para trabalhar e extrahir o ouro que ahi e nas vizinhanças se achava em abundancia á flor da terra. De facto, enorme quantidade de ouro sahiu, pedaços de libras não eram raros, e até pesos de arrobas appareceram e muytas fortunas se fizeram, mas falta a este respeito qualquer estatistica, porque o ouro extrahido foi comprado pelos ourives do interior para obras e servio tambem principalmente para pagamento dos generos e mercadorias dos negociantes da Bahia, donde achou finalmente caminho para a Europa. A descoberta, porem, das lavras Diamantinas do Cincorá, em 1842 ou 43, deu causa ao abandono das minas de Assuruá por serem menos vantajosas que aquellas. Alem desta, em outros muitos logares tem sido o ouro descoberto e extrahido. Assim, no rio de Agua Suja, que passa tres leguas ao N. da cidade de Minas do Rio das Contas, nascendo na serra de Itabira, asseveram os entendidos a existencia das mais ricas minas de ouro do Estado, affirmando-se que, com a mudança do leito deste rio para o arraial das Furnas, mediante um canal de meia legua no maximo, manifestar-se-hão verdadeiros thesouros.
Tambem no Andarahy, entre os rios Paraguassú e Cochó, nas vizinhanças do Lençóes e Santa Izabel, ha minas ainda não exgotadas, assim como na serra de Arubá, onde o ouro foi descoberto em 1808 pelo Capitão-Mór José Gonçalves da Costa. De remoto tempo data o conhecimento da existencia do ouro no rio Ascesi no S. do Estado, de que fallam os antigos chronistas quando tractam da expedição feita por Sebastião Fernando Tourinho ás cachoeiras do rio Doce, no governo de Luiz de Britto e Almeida (1573-78).
Grande abundancia de ouro de 23 quilates affirma-se haver no rio Bromadinho, affluente do Rio das Contas e no mencionado Cochó.
O mesmo metal existe nos arredores da cachoeira do inferno, municipio do Tucano, em cujas pedreiras circunjacentes encontraram-se hieroglyphos, indicando que uma geração antiga alli existiu empregada em trabalhos de mineração.
Tambem existe o ouro na comarca de Caetité, como nos assevera Accioli nas suas "Memorias Historicas". A serra das Almas é rica deste metal, como provam as minas que existem na povoação Catolés de sua vizinhança, bem como o districto da Chapada-Velha, tres leguas distante da Villa-Velha e perto do arraial de Matto Grosso de que adeante falaremos.
Nas Figuras, logarejo situado no alto da Serra de Jacobina, ha minas de ouro ainda não exploradas, bem como no Gado Bravo, serra proxima do Sincorá.
No sitio denominado Gloria, perto do rio das Eguas, affluente do Corrente, existem jazidas de ouro exploradas no meiado do seculo passado por alguns aventureiros, encontrandose o ouro, em grande abundancia á flor da terra, nas proximidades do dito rio das Eguas".
A respeito destas minas diz o Dr. Catão Guerreiro de Castro o seguinte:
"Em 1800 pouco mais ou menos, foi descoberta a grande mina de ouro do Rio Rico, chamado depois rio das Eguas em consequencia das muytas excursões que os vaqueiros alli faziam em eguas bravias, que encontraram. No logar do povoado (isto é, na antiga villa hoje mudada para o rio Corrente), tendo os antigos sondado o leito do mesmo rio, delle tiraram arrobas de ouro nos logares conhecidos pelos nomes de Buraco do Gusmão, Riacho do Cotovelo, Tamarana, Riacho Vermelho, etc. A povoação foi elevada á parochia de Nossa Senhora da Gloria do Rio Rico em 1806, e depois a villa, com o nome de Rio das Eguas. Hoje ainda se tira d'alli muyto ouro, mas as grandes despezas que a mineração reclama, o tornam muitissimo caro, sendo além disto penosos os processos".
G
"De prata eram ainda as serras resplandecentes do sertão, que se tornaram lendarias com o nome de Itaberabussú", diz o eminente dr. Teodoro Sampaio. E explica a etimologia e evolução daquele vocábulo indígena:
"Itaberabussú transformou-se, nos labios portuguezes, em Taberabuçú, como o escreve Monsenhor Pizarro, e Taberabuçú, em Sabarabuçú, isto é - montanha-grande-queresplende":
Consultei, a respeito do significado dessa tão famosa Sabarabuçu, o ilustre sr. Plínio Airosa que, como o dr. Teodoro Sampaio, é um dos mais doutos tupígrafos atuais do Brasil. É quem ensina a Língua Geral da Universidade de S. Paulo. E sr. Plínio Airosa, depois de erudito estudo, concorda plenamente com Teodoro Sampaio. Eis a gentilíssima carta que me enviou:
S. Paulo, dez. 1934 Paulo Setúbal:
"Si v. soubesse como é perigosa a tarefa de disseccar termos e phrases tupis; si v.
soubesse como são ferozes os tupimaniacos; si v. soubesse como são escorregadias as bases da etymologia selvagem, positivamente v. não me pediria que arriscasse uma frechada na celebre Sabarabussú... Enfim, vencido por sua dialetica, esqueço-me dos riscos: e ahi vão algumas palavras, sem brilho e sem valôr, a proposito da lendaria expressão.
Sabarábossú, Sabaráboçú, Saberaboçú ou Çaberabossú, para nós, faiscadores de raizes tupis, não se apresenta com aquella limpidez que seria de desejar; ha, envolvendo as suas syllabas, uns véos que, apesar de diaphanos, não permittem visão clara da verdade em sua plena nudez. Veja v. aquella mudançasinha do segundo a em e, dando Saberá em lugar de Sabará. Ter-se-ia dado a permuta por simples capricho phonico de nossa gente? Haverá alli dente de coelho? Não precipitemos os acontecimentos...
Arme-se v. de paciencia. E ouça-me. Iremos naturalmente por partes. Devagar...
A expressão Sabarabuçú, como se escreve e pronuncia hoje, pode, logo á primeira vista, ser dividida em duas partes: Sabarab e ossú.
Quanto a este ossú que ás vezes é açú e assú, oçú, guaçú, guassú e goassú ou mesmo simples çu, sabe v. e tambem todos, significa: grande, volumoso, massudo, pesado, cheio, carnudo, torrencial, e mais, quando funcciona como suffixo, dá sempre ao thema ideia de grandeza material. Isso é facto certo e paciffico. Deixemos, portanto, o ossú em absoluta paz até segunda ordem.
Quanto ao sabaráb ou çaberáb, é de toda conveniencia não perder de vista aquelle modesto b final, e lembrar a occorrencia frequente de Çaberáb por Sabaráb em papeis antigos. O b, é possível que alli figure com funcçôes meramente euphonicas; é possivel, mas não é certo. Ha innumeros exemplos de casos identicos sem b: Paraguassú, Caáguassú, Turiassú, etc. Claro que poderiamos dizer Sabaraguassú, ou Sabaráçú, si o b representasse apenas um som de ligação; isso não se dá, no entanto, porque não ha dificuldade alguma em pronunciar a tal palavra sem b. Esse b, meu querido amigo, é o rabo do gato mal escondido... é a letra indice de verbo adjectivável com tantos outros da lingua geral. Barab não é sinão beráb ou berába que diz: brilhar, fulgir, resplandecer ou brilhante, fulgido, e resplandecente. Ora, ahi esta'! Si heráb, é termo autonomo, saberáb ou çaberáb deve ser subdividido ainda como expressão composta de sá ou çá e beráb.
Barab é beráb ou berába mesmo; vejamos o que é çá ou sá.
Ao primeiro exame parece ser simples contracção de eçá, olhos, aliás muitíssimo usada, mormente em compostos, como nos diz o sabio Baptista Caetano. E parece, realmente, porque se adapta á phrase dando-lhe sentido perfeito e natural: çá-beráb-oçú, ao pé da letra é olhos brilhantes grandes ou olhos grandes refulgentes. É olhar de quem se espanta, o olhar grande, resplandecente e largo de quem, n'um impeto de satisfação ou de terror, vê mais do que devia; é olhar-exclamação.
Mas não comecemos a fazer literatura. Sabarábossú é um toponymo, lembra a celebre montanha que seduziu gente sensata e pratica. Si essa gente abria os olhos, n'um mixto de alegria e de allucinaçáo ao ver as riquezas do sertão, não nos compete indagar; mas em verdade, não seria descabivel que o toponymo tivesse em sua composição um çá que fosse sómente çá olho, olhos... Os diamantes, as pedras brilhantes comparavam-se antigamente, com frequencia, a olhos. Isto é sabido. Em um dos muytos documentos decorrentes da applicação do Bando de 19 de julho de 1734, publicado no Tijuco ao som de caixa, por entre aquellas já muyto exploradas praxes tabelliôas, diz-se que um cidadão, pae de família, com mulher a filhos de tenra idade, pois foi condemnado "por ser achado em seu poder um olho de mosquito". Esse olho de mosquito era um pequeno diamante de tamanho insignificante. Cousas e expressões da época, dirá v., mas o olho lá está! Logo não haveria nada de reprovavel si traduzissemos Sabarabossú por olho brilhante grande ou, melhor: olhão brilhante. Mas..., e nesse mas é que começa uma nova historia, a historia do toponymo. V. conhece a historia do toponymo, porém façamos de conta que não conhece: era uma vez, no "tempo de antigamente" uma serra que se chamava Taberábossú ouça bem, Taberábossú! O nosso beráb ahi está, o nosso ossú tambem, mas o nosso çá ou sá é tá. Ora, esse tá, de antigamente, não pode deixar de ser itá, a pedra, as pedras. Tudo continua a correr, como v. vê, lisamente, ás mil maravilhas.
Si v. duvidar do argumento - tempo antigo - eu garanto, sob palavra, que os papeis velhos, que os documentos insophismaveis dizem Taberabossú. Registrada essa graphia, e garantida por mim, pode v. facilmente dizer: Sabarabossú - Saberábossú - taberábossú - itáberábossú. E mais: itáberábossú itá + beráb + ossú. Itá é pedra, beráb é brilhante e ossú é grande, penedo resplandecente, serra fulgida, montanha-grande-que-resplende v.
diz - exactissimamente!
Si para umas pedras brilhantes corriam como doidos os nossos homens de outr'ora alli está itáberáb; si essas pedras eram grandes ou si na vertigem dos sonhos, delles, se transformavam em montanhas, alli está itáberábssú. Nada mais do que isso, simplesmente isso. Todas aquelas historias complicadas de olhos, de bb e de permutas, de corruptelas e de euphonias, não passam de "chansons du temps jadis". Hoje com os documentos, com os Theodoros Sampaios, com cursos officiaes de tupi, não ha mais casos insoluveis, tudo se põe em ordem de marcha. E por hoje basta! Siga para frente, meu caro romancista, siga para a sua Sabarabussú", que é montanha encantada da gloria. E não se esqueça deste irumoguára que aqui fica na tába antiga, faiscando etymologias sem brilho e sem côr...
Seu, muito seu.
Ayrosa".