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Textos para uso geral de domínio público.

Mano

A INSPIRAÇÃO DO LIVRO
Tendo perdido os primeiros filhos, que foram tantos quantos os que sobreviveram, “como se a Vida apostasse com a Morte em lhe não ceder uma só vitória, tirando de cada túmulo uma ressurreição”, Coelho Netto desistiu do aperreado sistema, tão mal sucedido, de encerrar e atabafar em lãs os pequeninos, decidindo-se pelo da liberdade e dos exercícios físicos. E os outros sete medraram. Emmanuel, o Mano, era o mais velho. Robusto, culto, modesto e bom, ele simbolizava o tipo de atleta perfeito que Coelho Netto, sempre eqüidistante das competições partidárias, idealizou na sua campanha pelo aprimoramento da juventude brasileira.
No Fluminense Football Club, Mano integrou o mais famoso conjunto de amadores da história do football carioca, conquistando o tri-campeonato da cidade em 1917-1918-1919. Sua morte, em conseqüência de séria contusão que sofreu num jogo do Fluminense, ocorreu a 30 de Setembro de 1922, quando contava 24 anos de idade.
Depois da maior desgraça da sua vida, Coelho Netto, como forçado das letras, tendo de escrever sem cessar para manter a subsistência da família, quando tomava lugar à mesa, para começar o trabalho diário, só trazia um pensamento:
“Falando ou escrevendo esquecem-me as expressões, faltam-me os termos. Só tu ficaste, tu só, tudo mais se esvaiu”.
E, procurando derivativo sua imensa desventura, fez da pena um rosário e desfiou em lágrimas, dia a dia, o Livro da Saudade – “Mano”.
Paulo Coelho Netto Setembro de 1956 CAPELAS
Ele era bom. Tinha a serenidade dos fortes. A juventude do seu corpo de atleta guardava uma alma antiga, de orgulhosa origem, mas sempre alegre por perdoar e esquecer. Nunca lhe saiu da boca uma queixa. Acostumara os lábios ao ritmo do louvor.
Sabia admirar. Sabia amar.
Mano!
Quem o apelidou assim, de pequenino, adivinhou que, depois de grande, quando olhasse, de olhos abertos, a vida, havia de ser o que foi: o irmão... o Mano, mais moço ou mais velho, dos outros homens que o conheceram, os amigos da sua intimidade e aqueles que, junto de Coelho Netto e da companheira admirável desse nobre artista, aprenderam o culto da beleza e da bondade.
Álvaro Moreyra.
ÚLTIMA VITÓRIA
A Coelho Netto.
Era uma forte e meiga criatura, Alma infantil em corpo de gigante;
E n'arena o julgáreis sempre ovante, Da Grécia antiga olímpica figura.
Mas como cá na terra a desventura Apunhala o valor a cada instante, Chega-se a Morte ao moço triunfante P'ra tocá-lo co'a ponta d'asa escura.
Preces da aflita mãe, que a dor crucia, Prantos do pobre pai, que era um poeta, Tudo o supremo transe lhe angustia.
Mas tinha o lutador crenças de asceta, Rompe-se em luz o nimbo da agonia...
Sorri... Mais uma vez vencera o atleta.
Carlos de Laet A MORTE DO SOL
A Coelho Netto Rubro clarão no poente...
Desce abrasado o Sol... Por um momento, Dir-se-ia Que em sua marcha lenta se detém...
Contempla, a última vez, no firmamento A estrada percorrida, desde o Oriente, Numa larga passagem triunfal.
Vai mergulhar no Além, Penetrar na Agonia, Perder-se no seu próprio sangue - a Luz...
Sabe que vai morrer... Olha o declive Que ao túmulo conduz;
Lança depois o último olhar De saudade final Sobre a terra distante, sobre o mar, E rola no horizonte... - É a noite que se eleva...
É a Treva.
Parece que na terra nada vive, Nada existe Tudo se esvaiu: a forma, a cor, Que são a alma das coisas no Universo...
Tudo agora é diverso No cenário do mundo Que vai viver sem luz e sem calor.
O sol partiu e o céu, pálido e triste, Tornou-se mais profundo.
Para que serve a treva? Que razão A faz surgir assim, tão bruscamente, Após a fulgurante luz do dia?
Por que a noite, senão para melhor Destacar o fulgor Longínquo das estrelas?
Por que a noite, senão Para aos homens dizer que todas elas São outros tantos sóis, iguais ao Sol Que vemos apagar-se no ocidente Para se erguer de novo no arrebol?
Sóis que não morrem, que desaparecem Somente ao nosso olhar e, quando descem No horizonte, à mesma hora da descida, Que é apenas ilusória, Estão surgindo em plena glória E em plena vida Para outras regiões do espaço infindo...
Porque tudo que é lindo, Perfeito e forte Não pode aniquilar-se pela morte.
A existência nos mostra cada dia Que o fluido da Beleza ou da Energia Jamais se exala Para perder-se; apenas se transforma, Se aperfeiçoa e sobe numa escala Em que se purifica a essência ou a forma Das coisas... Vida é apenas harmonia.
Só na aparência alguma coisa ofusca Esta ascensão contínua. Nada existe Que, em verdade, a perturbe e a morte não seria A única exceção Para a parada brusca Na evolução fatal da Natureza.
O espírito da Força e da Beleza Não se dilui: persiste, Segue em demanda de outra perfeição, E, se escapa a visão dos nossos olhos, Deixa d'alma nos íntimos refolhos Tênues fios de viva claridade Que, pelo pensamento, e elas nos unem Por todo o sempre e que, talvez, um dia Nos servirão de guia No mistério que envolve a Eternidade, E onde, vestindo novas existências As parcelas das coisas, nas essências De um mesmo todo extinto, se reúnem...
- Por isto quando o Sol desaparece E o clarão do seu rastro empalidece E se extingue na sombra, esse repouso De morte transitória É o início apenas de uma nova glória!
Octávio Ribeiro da Cunha AGONIA
A GABY
Se o amor nos aproximou mais fez ele unindo-nos inseparavelmente. Vendo-o, era como se nos víssemos, aos dois, em um só reflexo - tu e eu, e, com tal visão, vivíamos felizes contemplandoa debruçados sobre a correnteza da vida.
Hoje!...
Em vez do espelho límpido, no qual nos mirávamos sorrindo, vejo apenas a água triste das lágrimas que transbordam dos teus e dos meus olhos, água fúnera, turvada pela saudade, limo que assenta no fundo do coração.
Pior que o Letes do esquecimento é, sem dúvida, a memória, fonte onde nasce o rio da saudade, corrente lúrida, toldada de lembranças. E é nesse rio que nos debatemos, tu e eu, descendo juntos para o oceano ilimitado, com esperança de ainda o encontrarmos, como se fosse possível achar no fundo da água morta a sombra que flutuou na sua superfície.
DOR
A alegria dispersa; a dor concentra.
É na dor que, em verdade, sentimos que um filho é carne da nossa carne.
Ao vê-lo sofrer vibramos doloridamente e, se ele geme, o seu gemido ressoa-nos no coração.
Os ais que lhe escapam do martírio são frechas que nos lancinam e, se baixam do clamor à queixa humilde, doem-nos ainda mais, como a punção de uma lanceta aguda que se nos crava paulatinamente.
Se o enfermo sara esquecem-se tais vozes, se elas, porém, se calam suspensas pela morte, então represam-se-nos no íntimo, e nunca mais o coração as esquece e os gemidos nele perduram como fica eterno nas conchas o marulho soturno do mar.
INSONE
A casa não dormia. Era a única na rua sossegada que se mantinha aberta e acesa durante a noite toda e, ainda que silencioso, ensurdecido pelos cuidados, o movimento nela era contínuo.
Falava-se aos cochichos, e, volta e meia, no quarto em que ele sofria, vígilo, soava a exclamação angustiosa:
“Se eu dormisse uma hora!”
O sono, que enchia a casa, acabrunhando aos que o desvelavam - tantas noites despertos! - só não lhe chegava, a ele.
Os enfermeiros revezavam-se-lhe à cabeceira e, por toda a parte, em desordem, eram pacotes de algodão, ampolas, rolos de gaze, frascos.
De quando em quando alguém chegava-se à luz com o termômetro.
Em todo o caso havia esperança e, quando os pássaros começavam a cantar nas árvores e o céu desensombrava-se em rosicler e ouro, mais se animavam os corações.
“Se eu dormisse uma hora...!” arquejava, cansado, o pobrezinho.
O sol entrava a jorros. Era o dia e começava na rua o movimento.
Todos contavam vê-lo, de repente, sorrir, anunciando o alivio desejado e ele, rolando aflitamente os olhos, agitando-se no leito, ansioso, insistia nas palavras tristes:
“Se eu dormisse uma hora...!”
E, assim, passaram-se nove dias e nove noites, dias de tortura, noites em claro, longas, exaustivas, sem sono, gemidas, até que, ao fim da tarde décima, ao lento soar das sete horas, abriram-se-lhe muito os olhos, encheram-se-lhe de lágrimas e, entre nós dois, ela e eu, ele começou a aquietar-se, deixou de gemer para dormir, e adormeceu, enfim, não por uma hora, mas para não acordar mais, nunca mais!
SEDE
Na escala dos ásperos tormentos, entre tantos que sofreu Jesus, foi o da sede o mais acerbo e o único de que ele deu queixa.
Não se lhe ouviu palavra quando dos tratos e afrontas com que o aviltaram no Pretório. Nas três vezes que caiu no caminho do Calvário não soltou um gemido: calado suportou a cravação na cruz e calado nela esteve até a hora terça da tarde.
Secaram-se-lhe, porém, os lábios e ele entreabriu-os arquejantemente bradando aos seus algozes:
- Tenho sede!
De tais palavras à rendição do espírito divino mediou apenas o instante breve em que soou o “Consummatum est!”
Mais longa que a de Jesus foi a agonia de meu filho.
Durante dias, a todo o instante, queixava-se ele de sede e eram todos a atendê-lo, cada qual mais solícito, Que intenso ardor o abrasaria para que se não saciasse, já reclamando água mal lhe retiravam o copo dos lábios ávidos?
Febre? nem tanto acusava o termômetro. Que incêndio lhe arderia nas entranhas para que, apenas sorvia, sôfrego, a água que lhe davam, no mesmo instante fosse ela absorvida, como se caísse em forno caldo?
Não, não era febre, se não a própria vida em luta, que reclamava o que se lhe esvaía a golfos.
Quando o retiramos do leito foi que se nos patenteou a causa da insaciável sede: o colchão, o estrado, ainda o soalho, sob o leito, tudo era púrpura.
E, pois, como havia ele de acalmar-se se a água, assim como lhe descia a goles árdegos, saíalhe tinta de sangue, dessorando as artérias exauridas?
E, como um vaso partido, de que se extravasa a água que alimenta flor querida, assim pela artéria aberta escoou-se todo o sangue daquele corpo, e a vida, flor que era o nosso encanto, murchando pouco a pouco, feneceu à míngua do que a mantinha.
VOLTA AO NINHO
Pediu-me que o mudasse de leito, e quis o nosso.
Podia alguém imaginar que era o Destino que o fazia retroceder ao ponto onde principiara a sua genitura para encerrar o círculo fatal?
Quem o diria presa da morte vendo-o tio robusto, em pleno viço de saúde, mascarando com o sorriso o ricto do sofrimento?
Alarmando-me o grande aparato de socorros de que se cercava o médico e a solicitude ativa do enfermeiro, interroguei-os aflito.
Sorriram-me tranqüilizando-me. Ele próprio estranhou os meus cuidados impertinentes.
“Era lá possível, diziam, que tão exuberante mocidade perecesse, frágil como uma ruína? Só um desastre.”
Todavia eu procurava ler nos olhos de quantos o visitavam e, desconfiado, tornei-me espião dentro da minha casa, vigilo, atento a tudo e a todos, escutando às portas, caminhando mansinho no silêncio das noites desveladas para surgir, a súbitas, entre os que se lhe revezavam à cabeceira, surpreender cochichos, gestos, ver o que faziam, ouvi-lo, a ele, inquieto, de olhos despertos e ansiosos, gemendo, a pedir alívio ainda que à custa de martírios.
Mísero corpo! Quanto sofreste pungido, de instante a instante, para inoculações de vida efêmera.
Por que não haviam de dizer-me a verdade? Por que não ma disseram, se a sabiam? Ao menos eu não o teria deixado um só instante e, aproveitando-me, sem desperdício de um segundo, do tempo que lhe restava, tanto o havia de prender a mim que... sabe-se lá o que é a vida e como são as raízes que a sustentam e nutrem! - talvez não fosse tão fácil à Morte arrancar-mo do amor.
Mas confiava em todos, nele principalmente e, quando saí da ilusão em que me mantinha a esperança, onde o vira nascer, no leito que ele pedira, o nosso, vi-o, pouco a pouco, aquietar-se, cerrar os olhos, dormir nos braços daquela mesma que, em pequeno, o acalentava e que, então, o abraçava imóvel, sem lágrimas, como se a dor a houvesse petrificado, como faz o inverno intenso com as águas múrmuras e correntias.
Leito de nascimento, ninho; leito de morte, esquife: princípio e fim da mesma felicidade, tu no-lo deste, tu no-lo levaste.
Agora, quando me deito, antes do sono vir, sinto-o comigo, a meu lado, vivo na minha lembrança, em saudade, sombra que me ficou no coração, rastro de uma ventura que passou, sonho com que me consolo dentro da noite triste e eterna, no qual o vejo desde pequenino, quando ali nasceu para tão curta vida, até o doloroso instante em que se foi para o sempre.
O VIÁTICO
Ao Rev. Sr. Padre Henrique de Magalhães, que o confessou e ungiu Quando, dissimulando a agonia, entrei no quarto para abençoá-lo e o vi arfando, imóvel, alagaram-se-me os olhos. Quis falar: as palavras desfizeram-se-me em balbucios, como se dissolvem em espuma as vagas de encontro às penhas.
Estatelei-me, de mãos enclavinhadas, trêmulo. Acendeu-se-me, então, na Fé o último clarão de esperança e minh'alma elevou-se, em surto, a Deus.
Fugindo daquele transe, procurei a que não chorava: fria, apática diante da catástrofe, imagem da geleira eterna que não deflui, petrificada em friul.
Expus-lhe o que me inspirava a Crença: a conveniência de o prepararmos para a partida e ela, encarada em mim, hirta, impassível, abriu desmesuradamente os olhos espavoridos, parecendo medir a imensidão da nossa desventura.
Insisti. Tremeram-lhe, de leve, os lábios como vibra a haste do arbusto ante o adejo de um beijaflor.
Pedi a alguém que fosse à igreja próxima buscar um sacerdote.
O tempo que mediou entre a partida do emissário e a chegada do religioso foi tão breve ou tanto eu nele me perdi que, ao avisarem-me da chegada do padre fiquei surpreso como de milagre.
Sim, era ele com a maleta em que vinham os sacramentos.
Olhamo-nos sem palavras. Silêncio como jamais abafara a minha casa encheu-a toda. As próprias janelas, largamente abertas, não pareciam respirar.
Pé ante pé tornei ao quarto, certo de encontrar o enfermo na inércia em que o deixara. E que vi eu, arrepiado de horror e no auge da mais feliz surpresa? Meu filho a olhar pela janela aberta o céu azul, almofadado em nuvens, os ramos da árvore da rua, que devassam o mais íntimo do nosso lar (ramos onde, de madrugada, quase conosco, doméstico, saltita certo passarinho, e canta), tão calmo, tão sereno, que dir-se-ia haver acordado de noite bem dormida e estar ali gozando a preguiça da manhã.
Fora uma crise apenas e eu, por ela, imprudentemente, me precipitara.
Que fazer? Despedir o sacerdote? Anunciá-lo ao enfermo? Tal anúncio valeria por sentença e ainda havia esperança em nossos corações. E ele nem sequer pensava na gravidade do seu estado, tanto que, momentos antes, ao raiar da alva, quando a passarada começava com os gorjeios, dissera, lembrando-se de passados tempos e pensando em futuros dias:
“Esta é a hora melhor no mar. Os rapazes devem estar treinando. E eu, aqui! Enfim... ainda pode ser...”
O coração cresceu-me, harto; as veias túrgidas puseram-se a latejar, a ímpetos; lágrimas ardiam-me nos olhos.
Que fazer? Que dizer?!
Foi ele que me tirou da hesitação angustiosa, perguntando-me, a sorrir, surpreendido com a minha atitude:
- Que tens? Porque me olhas assim?
Que teria ele visto nos meus olhos, percebido no meu olhar que ia tão longe. tão longe que chegava à morte?
Animei-me a falar. Não sei que disse, não sei!
De repente vi-o cerrar a fronte, soerguer-se a custo, fitar-me a vista terebrante, pálido, de lábios trêmulos e exclamar, com espanto doloroso, como se eu o houvesse amaldiçoado: “Papai!”
É que eu rasgara violentamente o véu misterioso mostrando, no fundo da esperança, Deus é que eu lhe anunciara a hora suprema da Religião, hora última da terra, hora que não soa nem declina hora incomensurável, parada, fora do dia e da noite, rosto da Eternidade.
Houve, então, entre nós, um olhar, e, nesse olhar, como se cruzam no beijo os amores, cruzaram-se desesperos.
Tentei justificar o meu procedimento:
“Que a religião e a medicina que não falha, porque os seus remédios são aviados por Deus, e salvam”.
As lágrimas intrometeram-se-me pelas palavras e ele, comovido, tomou-me a mão, atraiu-me a si e, meigo, interrogou-me.
- Você quer?
Solucei, acenando afirmativamente.
- E mamãe?
Respondi com o olhar.
- Pois sim, concordou, suave: então também eu quero.
Todo o meu fôlego afluiu-me à garganta, sufocando-me.
Ele, sentindo a minha angústia, sorriu-me confirmando o que dissera com um gesto de brandura.
Caminhei para a porta. Antes, porém, de sair voltei-me. ele inclinara a cabeça e então vi as lágrimas da sua juventude, os seus sonhos desfolhando-se às gotas, todos os seus amores despedindo-se. Saí. O sacerdote entrou.
Quanto tempo durou a confissão daquela alma em flor? Foi para o meu coração tão longo que ainda nele persiste e durará enquanto eu viver, durará como um remorso dentro da minha saudade; durará como espinho na flor da minha ternura.
Quando o padre saiu, fui-me direito a ele. Chorava e sorria.
Chorava como homem, com pena daquela vida talada em pleno viço. Sorria como sacerdote, por haver achado em anos tão tenros coração tão virtuoso.
Então atrevi-me a tornar ao quarto e, ainda hoje, pensando nesse momento grandioso e horrível, hesito em decidir se fiz mal, se fiz bem: mal, levando àquela consciência, ainda clara, a certeza da morte; bem, preparando para Deus quem, já de partida, ainda nos iludia com a coragem e a robustez, ainda nos acariciava com a meiguice e, já desprendido da terra, de asas abertas para o vôo, ainda nos abraçava, animando aos que ficavam na vida, ele, que começava a morrer.
E, ainda hoje, nos silêncios em que me encerro com minha alma, murmuro, em dúvida que me excrucia:
“Quem sabe se o não entreguei cedo demais a Deus! É possível que se eu lhe não houvesse quebrado as forças da alma, se não houvesse, imprudentemente, substituído a Esperança pela Fé, deslocando-o da terra para o céu, ele resistisse e ainda vivesse conosco, amado e amandonos”.
Mas... E se, por descuido nosso, ele partisse sem a unção que salva?!
Precipitei-me, talvez, mas foi ainda por amor, para que tua alma, meu filho, fosse, como foi, na tristeza daquela tarde lúgubre, direita e triunfante para o esplendor eterno, que é o próprio olhar de Deus.
A MORTE
Todos se acercaram do leito e ele, estranhando, talvez, o rosário de corações que assim o cingia, relanceava em volta lento, interrogativo olhar de espanto.
Por vezes crispava-se-lhe, de leve, o rosto como se frisa com a aragem a superfície da água; as mãos moviam-se-lhe inquietas, contraindo, distendendo os dedos; o peito arfava-lhe opresso como se sustentasse um peso esmagador.
Silêncio trágico continha a todos, suspensos.
Que haveria? Por que tão atento o fitava o médico tomando-lhe obstinadamente o pulso?
Eu sentia um perigo. Parecia-me vê-lo à beira de um abismo que ele tivesse de atravessar sobre estreita ponte frágil.
De repente, agitando-se, abrindo um olhar imenso, perguntou em voz surda:
- Que horas são?
Alguém respondeu baixinho, entanto a resposta soou forte no silêncio, como pancada em lâmina metálica: “Sete!”
Ia-se a tarde em desmaio melancólico, já agasalhada em sombras.
Por que teria ele feito tal pergunta? Que teria visto? Os prenúncios, talvez, da noite primitiva, a noite que se fecha para o sempre, noite vazia, silente, sem astros, sepultura da luz.
O coração retransiu-se-me apertando, o fôlego sustou-se-me na garganta e meus olhos, como atraídos, voltaram-se para o oratório buscando a cruz de bronze, relíquia de Jerusalém, sacrossanto sinete que tem selado para a Eternidade todos os mortos da minha família.
E as lágrimas borbulharam-me no coração, senti-as subirem-me aos olhos, a jorros violentos, e tive forças para contê-las.
Súbito o silêncio estalou em pranto como um vaso hermeticamente fechado que se fizesse pedaços derramando todo o líquido contido.
Tombei de joelhos junto do leito agarrando-me desesperadamente ao corpo que se imobilizava.
Tudo cessara e o olhar, que ele ainda mantinha fito em nós, extático, não tinha luz: era como o morrão que fica ardendo nos círios e que, pouco a pouco, envolto em fumo, vai-se extinguindo, até de todo se apagar.
Alguém chamou por ele, em pranto.
Ai! de nós...
Às pedras deu-lhes Deus o eco para responderem a quem lhes brada e ao que morre tudo se vai, não fica, sequer, um pouco de som para a suprema palavra de um adeus.
É um caixão que se fecha. Nada mais.
CONSUMMATUM...
Onde estaria eu quando o desceram para a minha sala de trabalho?
Onde estaria eu que não dei pelo trânsito cruciante?
Quando entrei no quarto e vi a cama deserta foi tal o alvoroço no meu coração que estaquei suspenso, entendo um grito. Seria possível!? Olhei em volta... Mas toda aquela desordem -
velas ainda acesas, o silêncio, o lúgubre vazio...
Se o corpo sai com vida deixa um misterioso sinal de si: o ausente afigura-se-nos presente; o morto, não!
A morte arrasta tudo consigo e ali nada mais havia, mais nada senão um sulco revolto como o que fica nas águas à passagem de um barco - fundo, mas de breve duração; agitado, mas só em efêmeras espumas.
Onde estaria eu quando o desceram?
E foi diante daquele vazio que senti toda a grandeza do meu amor. É pelo diâmetro e profundidade da cova que se pode avaliar a extensão das raízes da árvore derrubada.
Onde estaria eu quando o desceram? Afastaram-me, decerto, para transportá-lo. Foi melhor assim.
Não há hora mais triste que a do ocaso, hora do descer da luz. A noite é o irremediável, com a consolação das estrelas, que são lágrimas.
Fizeram bem em poupar-me à cena triste do descimento do corpo frio. Foi como se me adormecessem para uma operação dolorosa.
Quando dei acordo de mim tudo estava consumado.
A CHAVE
Fechado um cofre e atirada a chave em pleno oceano, nem por isso deverá o dono perder a esperança de poder, um dia, reavê-lo, abri-lo e rever o seu tesouro intacto.
Não tornou do pélago o anel lançado pelo tirano às vagas, em hóstia à Fortuna, que o recusou, devolvendo-o nas entranhas de um peixe?
Mergulhadores, assim como pescam pérolas, podem rebuscar, nas areias e covas submarinas, a jóia imersa trazendo-a à tona e restituindo-a ao que a perdeu ou, em instantes de desvario, atirou ao mar.
Todos os abismos têm limite - de um só, o túmulo, ninguém mediu ainda a profundidade.
Quantos lá têm amores, desfeitos em saudades, tentam, em vão, alcançá-los e valem-se dos meios, todos frustrâneos, ilusões que, em vez de consolarem, mais aumentam o desespero.
O que se acredita ver na placidez da Morte e a imagem do que existe no coração.
Quantos infelizes, deixando a realidade triste pela miragem falaz, ficam na vida sem o que tinham para guiá-los, que era a Luz da razão, apagada no mergulho em que se precipitaram!
A pequenina chave que fechou o teu caixão, meu filho, nunca mais terá serventia. Fez o que lhe cumpria, nada mais tem a fazer. E eu, entretanto, guardo-a como a mais preciosa das minhas relíquias. Para que? De que me serve se, com ela, não abro mais do que as fontes do coração dando livre curso às lágrimas saudosas?
Vê-la, tocá-la, tê-la perto de mim é lembrar-me de ti, fechado, como estás, para o sempre, com o selo inviolável da Eternidade.
Em minhas mãos essa pequenina chave, que deu a grande volta no círculo da tua Vida, encerrando-a, pode ser comparada a um facho nas mãos de um cego - porque ainda que ele o possua e sinta em nada lhe aproveita.
Que mergulhador terá fôlego tão longo que lhe permita descer aos penetrais do túmulo e de lá trazer o meu tesouro?
De que me serve a chave, que conservo, se o cofre, que ela fechou, aprofunda-se tanto que o próprio Pensamento não lhe chega à jazida?
Admitindo, porém, que me fosse dado abrir o que, entre flores, fechei com mão tremente e lágrimas a jorros, no instante em que, perdida toda a esperança, entreguei-te à cova e a Deus, teria eu ânimo bastante para contemplar o que me devolvia o Nada, restos de ti deixados pelo Céu e pela terra?
Para que profanar despojos? Que restará do que foi corpo airoso, coração meigo e alma inteligente - força, movimento e afeto: lume no olhar, idéia nas palavras, amor no gesto, heroísmo, dedicação e fé? um arcabouço como tronco e ramos nus de árvores no inverno.
Árvore!...
A árvore reenfolha-se, reflore, renova-se com mais viço ao calor do sol da primavera, prolonga a vida em ressurreições continuas. O corpo, uma vez tombado, resolve-se em pó que se não levanta.
De que me serve possuir a chave!... Antes eu a tivesse lançado ao mar, assim não teria ante os olhos essa promessa que se não cumpre, esperança sempre desvanecida, chave de um segredo que se não revelará jamais.
A alma, entretanto, apega-se a tudo, tudo lhe serve de consolação e martírio.
E a chave aí jaz, entre as minhas relíquias; lembrando-me o que fechei para o sempre: o teu corpo e, com ele, entre as flores que o cercaram, toda a minha ventura.
SAUDADE
PRIMAVERA
Alma da Vida, Primavera, tu que sempre ressurges da neve carregada de flores, tantas que as espalhas profusamente pelos campos, enfeitas com elas serras e penhascos, enches os vales, assoalhas lirialmente as águas, alegras as charnecas, animas os areais estéreis e, porque ainda te sobram nas mãos viçosas, lançá-las pelos velhos muros das ruínas, pelas covas humildes dos cemitérios, forrando-os com a tua generosidade, por que havias de vir ao meu canteiro pequenino talar a flor que era o encanto e o conforto de dois corações, que a defendiam, como as folhas defendem o botão que, entre elas, nasce e vai desabrochando?
Rica, procedeste como o avaro que, possuindo tesouros, enverga olhares de inveja para o mealheiro do pobre e, enquanto o não consegue haver a si, não lhe aquieta a ganância.
O que arrebataste pouco vale na abundância da tua riqueza e era tudo no lar, agora mísero.
Era o calor e a luz; era a alegria e a força de duas fragilidades; era a esperança de dois simples;
era a religião de dois crentes; um presente de Deus no altar de dois devotos; a luz de dois felizes que, agora, de olhos sem pupila, caminham às apalpadelas, como cegos a quem houvessem levado o guia, deixando-os ao desamparo, assentados na lápide de um túmulo.
Cruel ambição a tua, Primavera! Nem sabes o que possuis, tão copiosa é a tua florescência, e roubaste o pouco que era a riqueza de um lar.
Tendo um rio, sorveste a gota de orvalho que se achava engastada entre dois corações.
Sendo esplendor, como o sol, roubaste a pequenina chama da nossa lâmpada doméstica Sendo fertilidade para a Natureza toda, passaste por nós como ceifadora.
Dantes, no evento do teu mês, minha alma rejubilava antegozando o espetáculo, sempre novo, do rebentar dos gomos e do chilreio dos ninhos desempolhados e as primícias da tua feracidade, antes que aparecessem na terra verde, anunciava-as eu em louvores jucundos.
Agora, quando as brumas do inverno forem-se, a pouco e pouco, diluindo e os dias clarearem e aquecerem em sol e embalsamarem-se com o teu hálito, os nossos corações, transidos de saudade, ir-se-ão velando e aos novedios da terra responderão neles os espinhos das dores com que, sem pena, os alanceaste.
E quando todos, em júbilo, exaltarem, felizes, a tua vinda, agradecendo as mercês generosas que lhes distribuíres, nós, lembrados do que nos fizestes, fugiremos de ti, das tuas flores, do teu aroma, da tua claridade, surdos aos galreios dos implumes, ao murmúrio sonoro dos córregos vivazes, e o límpido azul do céu parecer-nos-á retinto em roxo, a terra florida se nos afigurará sepulcro imenso e o teu prestígio, renovadora da vida, não terá efeito em nossas almas.
Tu, que, só com a magia dos teus eflúvios, fazes brotar no lesim da pedra a saxífraga; tu, que dás viço à duna árida cobrindo-a de folhagens vindes, como a piedosa mãe enfeitou de acanto o túmulo do filho; tu, que tudo animas, não conseguirás, como todo o teu poder divino, reviçar a alegria nos corações que enlutaste.
Tu, que vences o inverno, não vencerás a nossa tristeza, ó Força eterna, eterna criadora que foste para nós a Morte.
Primavera, que mal te fizemos nós?
Quanto mais bela e vicejante fores mais nos ressentiremos da tua crueldade.
Criadora de lírios e de rosas, que mal te fizemos?
Tudo que produzires e despertares será, para nós, motivo de melancolia, porque nos relembrará a traição do teu sorriso.
Quando, na aragem das noites taciturnas, vier a nós o aroma das campinas, virá também a imagem do que se foi e nós, sentindo-o no perfume, amaldiçoaremos o teu poder maléfico, Primavera.
Antes o inverno com os seus dias lacrimosos e as suas noites regeladas!
Que nos importavam os rigores da ventania gemendo no escampo, a névoa álgida velando o arvoredo, os aguaceiros copiosos formando torrentes pelos caminhos, todo o cortejo lúgubre dessa funerária estação de morte se tínhamos conosco o filho amado, aquecendo-nos a alma, como a chama aquecia o corpo, participando do pão de nossa mesa, ele que era o nosso dia de amanhã, o nosso futuro, que rebentara em nossa velhice?
E vieste, entraste-nos pela casa coberta de flores, como noiva, e levaste-o contigo escondendoo na cova para sempre!
O lavrador, que enterra a semente no alfobre, fá-lo para a Vida. E tu, Primavera, que fizeste do que levaste?
Que dirão de nós os que virem de luto no festival da tua era, cobertos de crepe entre as tuas flores, chorando lamentosamente no coro de risos da Natureza?
Quiseste uma flor nova e viera buscar a que tínhamos tão escondida e não temíamos a morte. E
fomos traídos pela Vida, porque foste tu que no-lo roubaste, Primavera.
Tu, que reenfolhas, troncos que o lenhador despreza na floresta tendo-os por mortos e apodrecidos; tu, que dás vida em flor aos pântanos, estagnados; tu, que realizas milagres de ressurreição em toda a natureza; tu, onipotente, tu, vivificadora; tu, antagonista da Morte; tu, inspiradora do Gênese; tu, que és o verbo de Deus, ó estação da benção! tu, que és o raio do Sol dentro do qual erram em átomos as messes; tu, que és a Juventude, Primavera fecunda, flor da Eternidade, que mal te fizemos nós para que no entrasse pela casa coberta de flores, como em festa, para matar, com o teu veneno, o filho do nosso amor, consolação das nossa horas tristes e arrimo de nossa velhice?
Por que nos traíste, Primavera, Vida da Natureza e Morte da Ventura nossa?
CONTRASTE
Quando o levaram de nós o estádio começava a encher-se para um dos mais renhidos jogos do campeonato sul-americano.
Ao alto da muralha da mole atlética, trapejada a bandeiras e flâmulas, que espadanavam ao vento, borrifadas de chuva, apareciam os primeiros vultos.
O movimento das duas ruas que se cruzam dissemelhava-se em contraste irônico. Em uma, o borborinho alacre da multidão desensofrida, que afluía ao espetáculo da luta: veículos e turba, pregões, estropeada de patrulhas, correrias de retardatários que se apinhavam tumultuosamente junto da bilheteira como se a quisessem tomar de assalto.
Na outra rua, silêncio: gente à espera, em grupos nas calçadas, às portas e às janelas; duas longas filas de automóveis e o coche fúnebre parado diante da nossa casa em pranto.
Na minha sala de trabalho, de janelas abertas, revestida de luto, com um altar armado, jazia sobre a minha mesa, entre círios e flores, o maior desastre da minha vida.
Toda a casa regurgitava de gente: era a solidariedade dos corações amigos na desgraça, a doce esmola de amor trazida à nossa miséria.
Por toda a parte, profusamente, flores: sobre os móveis, pelos cantos, fora, no jardim: em palmas, ramos e grinaldas e ainda esparsas, aqui, ali. Nunca a primavera fora tão pródiga com o meu jardim.
Foi preciso que a Morte nele entrasse para que os meus canteiros se adornassem tanto. Por tal preço não os quisera eu tão vegetos.
Longo, perduradouro vozear no estádio anunciava o início do jogo quando o sacerdote, o mesmo que o ouvira de confissão, aproximou-se para encomendá-lo a Deus.
Era o sinal da partida.
Uma voz sussurrou-me:
“Que iam fechar o caixão”.
Estremeci. Seria possível! Encheu-se-me o peito de tanta agonia que me senti opresso como se o coração se me houvesse petrificado Que fazer?
Último adeus ao filho, último beijo à fronte gélida, bênção derradeira.
Retiraram-lhe o crucifixo do peito.
Como o que embarca entrega no portaló o bilhete de passagem, assim já lhe não era necessário o símbolo da Fé, porque o seu corpo tinha a câmara à espera e o seu espírito suave já devia achar-se na presença de Deus.
Tomei-lhe, a furto, o que dele me podia ficar - algumas flores que lhe haviam murchado sobre o peito, mortas com ele, bem em cima do seu coração.
Um a um alguém foi apagando os círios.
Eram as últimas esperanças que se extinguiam. A sua eterna manhã rompera. Para que luzes noturnas?
Fecharam o caixão florido. Que mais?!
Eu olhava em volta de mim em busca de uma esperança e só via lágrimas em todos os olhos.
Tudo estava acabado. Dali ao túmulo, nada mais.
Levaram-no.
E a casa foi, pouco a pouco, esvaziando-se - vazia da gente, vazia das flores, vazia, principalmente, da felicidade, que ia com ele.
E tive coragem de o acompanhar até à estância derradeira e vi-o baixar ao fundo da sepultura, profundidade só comparável à do azul infinito.
E o abraço brutal da terra sonora. pouco a pouco encerrando em si o corpo amado, fechando-se sobre ele, abafando-o, sumindo-o até possuí-lo todo, só dela.
E ali fiquei a olhar como quem, de cima de uma rocha, vê perder-se no horizonte a vela da última esperança.
E, diante daquele deserto, eu era como um náufrago em ilhéu estéril na vastidão do oceano.
Arrancaram-me do presídio. Era a vida que me reclamava como a morte o levava, a ele.
E vim, sem consciência, até a casa, onde revi os meus, como se uma vaga me houvesse arrojado à praia e eu acordasse atônito.
A tarde estiara. Dir-se-ia que a chuva fora apenas para chorar o morto, como os olhos dos que me haviam acompanhado no doloroso transe.
Águas que não cessam são as que jorram das fontes e dos corações. Águas que se formam nas nuvens passageiras e nos olhos indiferentes depressa o sol e o esquecimento secam; as que brotam das rochas e das profundas do amor, essas não estancam nunca! Se estancassem como se mataria a sede, como se mitigaria a saudade?
No jardim, restos de flores: ainda na minha sala os círios da vigília.
Já haviam despido do luto as paredes, já haviam desarmado a essa e o altar e a minha sala de trabalho voltara ao seu aspecto natural. Pairava apenas no ambiente um cheiro morno de cera e de flores murchas. E na casa era tudo. Os corações, esses...
Onde quer que se passasse ouvia-se convulso tremor de pranto.
Uma figura inerte, de negro, estatelada, estéril, jazia apagada a um canto, como aqueles círios que ainda lá estavam, de morrões negros, também apagados, sem lágrimas.
Não parecia sentir: olhava pasmada, como alguém que se visse em um patíbulo, condenada sem culpa e, em tamanha injustiça, não achasse palavra para bradar a sua inocência.
Pobre mãe!
Aproximei-me dela, unimos os nossos corações feridos do mesmo golpe e as nossas dores comunicaram-se.
Assim um rio cresce assoberbado e na violência em que investe derruba árvores e barrancas e tais destroços represam-no até que outro rio, nele despejando-se, engrossa-o e, os dois, juntos, forçam, levam de vencida o empeço e correm alagadoramente.
Chorávamos humildes quando trovejou no estádio clamor imenso de triunfo e o coliseu longamente atroou o estrondo das aclamações vitoriosas.
Ouvindo aquele tronejo heróico lembramo-nos de tardes, outras, iguais àquela e parecia-nos que o nome proclamado estrepitosamente era o dele, dele que ali se fizera desde pequenino, brincando naquele campo, nele crescendo em força e garbo, nele batendo-se pelas cores, que eram o seu orgulho.
E seria dele o nome que ouvíamos nas aclamações ovantes da multidão em delírio?
Sim, era o seu nome, não saía do estádio, mas do fundo dos nossos corações porque, embora estrondosas, todas aquelas vozes de milhares de bocas não estrugiam tão alto como nos soavam intimamente os apelos doloridos da nossa imensa saudade.
E, no final do jogo, com o escoar da turbamulta, a nossa rua encheu-se e os que passavam, comentando os lances mais brilhantes da partida, não se lembravam do enterro que dali saíra.
E, para o seu espírito, foi melhor assim.
Era em tal alvoroço que ele gostava de ver o seu clube, cheio, empavesado, ressoando músicas e clamores. Quanta vez...
A casa, fechada, em silêncio, tremia com o rumor da rua. Pobres corações!
E a tarde daquele dia, que fora de tristeza lúgubre, desanuviara-se a pouco e pouco, galeandose do sol. Dir-se-ia que o céu despia o luto por aquele que chorava ou, quem sabe! talvez assim se transfigurava para recebê-lo festivamente.
Nós é que em nada mudamos: tal como ele nos deixou jazemos: na mesma desolação, na mesma saudade.
E como não há de ser assim se a nossa alegria era ele e ele foi-se, não torna, não tornará nunca! nunca mais!
FLORES
Não há ainda um mês que adormeceu em Deus o ser do meu ser, a minha criatura de amor e o leito em que ficou, no dormitório silencioso, já se recama de flores.
As que o acompanharam, em ramos e em capelas, fanaram-se depressa; outras substituíramnas e também feneceram; em compensação as sementes esparzidas pelo jardineiro funeral, que cuida dos pequeninos canteiros mortuários, mal lhe caíram das mãos na terra fria logo rebentaram em vida, formando uma colcha de verdura que veste e enfeita a melancolia do jazigo.
E tal colcha matizou-se de violetas e margaridas, dálias, cravinas e miosótis.
Quem terá realizado esse milagre de florescência tão rápida? as nossas lágrimas? não! Tu, só tu, Primavera.
Será o remorso de no-lo haveres arrebatado que assim te faz solicita ou pensas, por acaso, que, escondendo em teu manto o túmulo querido farás com que o esqueçamos com a indiferença da terra que sorri em flores sobre a mocidade morta?
Como te enganas, traidora!
Mais prestígio tem a saudade em nossos corações do que tu na terra, cuja vida revigoras, porque, se fazes nascer flores, ela ressuscita o que mataste, evoca-o a todo o instante, trá-lo da sombra eterna e integração na vida e só não o refaz, tal como o tínhamos, porque o corpo lá está no abismo ao qual se desce por uma escada, cujos degraus aluem sobre o incluso como as águas se fecham sobre o náufrago.
A casa está cheia dele: sentimo-lo em toda ela, presente, e, fora, em toda a parte.
Ouvimo-lo. São os seus passos, é a sua voz que impregna o ambiente e sentimo-lo quando o relógio bate, devagar, as horas: as horas em que ele acordava e vinha dar-nos os bons dias; as horas em que ele saía; as horas, lentas e longas, da sua ausência; as horas alegres que o traziam do trabalho e as em que, à noite, ele regressava à casa, cauteloso, indo sempre até o nosso leito dar-nos, na vigília preocupada em que o esperávamos, a felicidade tranqüilizadora da sua presença. Todas essas horas continuam e ele continua a viver em todas elas.
O que nos aflige é a angústia de o não podermos sentir como o sentíamos outrora.
Vemo-lo como imagem refletida em espelho, vemo-lo, mas se tentamos tocá-lo, ai! de nos.
Suplício igual ao de Tântalo é o que nos inflige a saudade.
Vê-lo, ouvi-lo no coração, senti-lo em toda a parte, tê-lo sempre presente em nós e tão distante como a mais remota das estrelas e todas as esperanças...
Temo-lo conosco, na família, que o não esquece.
O seu lugar vazio espera-o sempre.
Quando nos aparece, projetado pelo coração, fala, mas mussitantemente apenas, sem palavras sonoras: batem-lhe os lábios como asas de pássaro cativo. Caminha, e os passos não lhe soam. Estende-nos os braços e nunca o alcançamos, porque, entre nós, interpõe-se uma lâmina, como a de cristal de espelho, que se chama: infinito.
Temo-lo tão perto e tão longe, conosco e para sempre apartado, vivo na imagem, só na imagem que é o reflexo da saudade.
Seria, talvez, melhor que os mortos partissem de vez, sem deixar rastro, levando consigo para o túmulo todo o ser. Mas não! partem como o sol tramonta: deixando a terra em escuridão, mas cheia de calor. E esse calor na terra é vida; no coração é saudade.
Assim é na saudade dos vivos que os mortos se eternizam, nela é que eles continuam a viver: é o paraíso de tristeza, como o esquecimento é o inferno dos que não souberam fazer-se amar.
E em quantos paraísos de amor vive o espírito querido! Em quantos corações soa o seu nome em apelo lamentoso!
As próprias coisas parecem sentir-lhe a ausência.
Que vazio à mesa e que silêncio! É que ele já se não assenta entre os irmãos, ainda que o seu lugar seja mantido como se ele apenas se haja demorado e possa aparecer de um momento para outro.
Mas ninguém lhe serve o prato, o seu talher não se descruza, não se lhe desdobra o guardanapo, o copo mantem-se-lhe vazio, o seu nome é pronunciado a medo, para não despertar nos corações a dor; e a luz, que incide sobre a cadeira que ele ocupava, já não tira a sombra que lhe traçava o perfil na parede.
Essa sombra ficou e, para sempre, em nossos corações.
E tudo que resta daquele corpo airoso, que era a coluna robusta do meu lar, lá está no cemitério em flores.
Flores, eis o que de meu filho fez a Primavera.
Todo o riso, todo o viçor de uma sadia e honesta juventude, toda a bondade de um coração magnânimo, toda a energia de um caráter espartano, toda a nossa esperança, todo ele enfim, reduziu-se ao que exorna a terra estreita de um túmulo: flores.
Os que passarem por elas, vendo-as lindas, como se ostentam e ignorando-lhes a origem dolorosa, louvarão, decerto, a Primavera que as tirou da morte, mas os que sabem o que elas representam e o que encobrem na terra em que nasceram, esses...
A CASA
Mudar-nos... Por que? se a casa toda está impregnada da sua presença, do seu ser, como o vaso que conteve essência longamente lhe conserva o aroma?
Por que mudar-nos deixando o lar onde, por vezes em eco, os seus passos ressoam, a sua voz timbra serena, e até a sua sombra desliza pelas paredes, como inveterado hábito que se repete inconscientemente?
Quantas vezes, do meu leito, ouço ranger a escada e sinto-o que sobe vagarosamente, ensurdecendo os passos para não despertar os que dormem!
Dar-se-á que os degraus conservem a impressão do seu andar e trepidem, como os móveis estalam, à noite, retraindo ou dilatando as fibras ao contato do ar?
As tábuas não soam por si e, se estalidam, é que algum piso as recalca.
Paredes de pedra e cal, assoalhos de madeira morta, é possível que dele vos lembreis às horas justas em que ele entrava, pé ante pé, subtil, sem que o sono, que dominava a casa, fosse perturbado?
Se o lar assim se recorda como havemos nós de abandonar esse cantinho cheio de reminiscências, (memória inerte em que ele persiste), porque nele viveu toda a sua alegre infância, nele passou toda a sua adolescência e nele começava a gozar a mocidade?
Se o túmulo, que lhe contém o corpo, não o relega, a casa, que lhe guardou o espírito, não o havia de repudiar, decerto.
Em todos os cantos brincou, saltou, espalhou risos. O raio de sol que, todas as manhãs, entra pela janela junto à qual ficava a sua cama, mal o dia aponta, lá vem insinuando-se no mesmo filão de ouro com que, desde pequenino, lhe enfeitava o sono.
A lâmpada, que o alumiava, acende-se todas as noites; e tudo continua como dantes.
Ao passar junto do meu quarto sinto-o, lá dentro, andar, mover-se. Faro, à escuta. Tudo cessa.
Para que insistir? Para que hei de, com a curiosidade ansiosa do meu desespero, violar o segredo que já não é da vida?
Se ele ali está e não me aparece, ele! Tão meu amigo, é porque não deseja ser visto.
Deixemo-lo com o seu misterioso pudor. É o filho em visita ao lar paterno.
Bem-vindo seja e que Deus o abençoe.
E se, ouvindo aos que nos aconselhavam, nos houvéssemos mudado...?! Pobre espírito!
Quem sabe o que sofreria recorrendo a casa e achando-a habitada por outros, transformada em tudo - na disposição dos móveis, no arranjo dos aposentos, com outros hábitos, outras vozes.
E a própria casa não sentiria com ele? Talvez!
Se vamos piedosamente visitar-lhe o túmulo no cemitério, porque havíamos de fugir ao ambiente onde o seu espírito demora? Lá, debaixo da terra, é a morte; aqui, em todos os ângulos, é a vida: o que ficou, o que existe, o que não parece: ele.
Mudar-nos... Isso seria abandoná-lo, desertar o ninho da saudade, o canto em que ele viveu. O
mesmo seria arrancarmo-lo do coração desprezando-o no esquecimento. Se a casa o retém, nós é que o havíamos de repelir? Não!
Onde uma vida se exala fica sempre vestígio. Os tímidos receiam-no; os fortes, os que verdadeiramente amam, com as veras da alma, instam por encontrá-lo, como quem rastreia, em caminho, pegadas de alguém que procura.
Mudar-nos... Não! Fiquemos onde ele perdura.
Longe, entre outras paredes, que nunca lhe copiaram o corpo em sombra; com outras portas, que nunca se lhe abriram; com outros aposentos nunca, em vida, visitados por ele, como o poderíamos sentir?
Aqui, não. Aqui ele está conosco: é a sua casa. Que nela viva.
A LUZ
Acordo. Ainda é noite. O céu esfuma-se na sombra e o perfil umbroso da montanha, fronteira à minha janela, destaca-se no dilúculo. Respira de leve a aragem.
Aclara aos poucos. Sente-se a luz em marcha. Já as árvores aparecem e as casas realçam, brancas, na massa da verdura.
Chia uma cigarra; outras respondem vividas e um coro de chilreios enche o silêncio pálido. É o despertar nos ramos.
Debruço-me à janela e, em êxtase, contemplo o maravilhoso espetáculo do amanhecer.
O céu recama-se de cores: e uma palheta o oriente e as tintas, que dele escorrem, broslam a paisagem, colorindo-a.
Chove polilha de ouro. Abre-se de todo o azul; responde a terra com o seu verde.
O primeiro raio de sol recena um outeiro e logo as ervas rebrilham. A claridade alastra.
Enche-se o ar de vôos ágeis. Estrídulo recresce o canto matinal dos pássaros.
Um sino soa, límpido.
Passam trabalhadores ainda estremunhados; rodam veículos.
Ressoa soturnamente, longínqua, uma sereia de fábrica.
São os rumores da vida que recomeça.
A vida... Tudo ressurge! Entre as folhas rasteiras andam insetos minúsculos, formigas desfilam em fieiras.
Tudo acorda e entra em atividade: os elementos da natureza, o homem, os animais, os mínimos seres, as coisas, porque as folhas vibram, as flores exalam, o mesmo pó levanta-se. É a vida!...
O relógio bate sonoramente: são os passos do tempo, as horas.
O próprio invisível agita-se, porque é ele, o vento, que meneia, brando e brando, as folhas.
Entretanto, em todo esse deslumbramento ativo, há escuridão e silêncio, falta alguma coisa que minha alma procura em vão.
Já o sol rebrilha, fúlguro. Abrem-se todas as janelas: são as casas que acordam. Foi-se o sono dentro da noite.
E ele? Por que não acorda? Por que não vem do sono? Por que não o despertará a luz; ela, que fez o milagre de vencer a noite no céu, na terra e nos mares; ela, que desencantou a natureza toda; ela, que fez desabrochar a manhã brilhante; ela, onipotente; ela, eterna; ela divina, por que não despertará o que adormeceu?
E o sol ressurge; o sol, que é tudo. E um pouco de terra humana resiste na morte ao reclamo miraculoso da madrugada.
De que me serve, a mim, todo o esplendor da tua claridade, ó Luz, se, em vez de trazer-me alegria, mais me entristece o coração?
Fazes o dia, tiras o sol do oriente, és a Vida e não tens força para arrancar de um túmulo um pouco de terra.
De que te serve o Poder? E, se o tens, porque só o manifestas no céu, ressuscitando o dia, e deixas a terra cheia de saudades?
És como os pródigos que se dissipam em festins e negam um mendrugo ao pobre que lhes estende a mão.
SEMPRE
No Dia de Finados Dia dos mortos, teu dia... Não! O teu dia chama-se “Sempre”, não é um só, de horas contadas, limitando estreitamente o círculo das lembranças, que são os minutos da Saudade.
O dia de hoje é como os demais no tempo; o teu é infindo.
Dentro em pouco o crepúsculo baixará escuro e tudo desaparecerá na sombra solitária e, mais do que sobre os túmulos, a treva se adensará na memória efêmera dos que aguardam um dia para recordar.
Dos círios que alumiaram mausoléus e carneiros nada, em breve, restará senão lágrimas de cera e as flores murcharão na terra como as lembranças nos corações volúveis.
Os círios que te alumiam são os nossos olho cujas lágrimas não se condensam gélidas e são cada vez mais fluentes. As flores que alfombram o teu túmulo são sempre frescas, porque, além das que nascem de ti, das raízes do teu coração de bondade, o nosso amor vela solícito para que te não falte, todas as manhãs, a oferenda da nossa devoção.
Continuas a viver conosco, ainda que separado: nós, no sofrimento; tu, no alívio; nós, onde o sol aclara; tu, onde a noite governa. Há entre nós apenas uma lápide e é tanto, todavia, como o espaço que separa o céu da terra.
Foi-se o teu vulto, mas a tua essência ficou; sentimo-la conosco, como tornada a nós, de regresso ao amor de que saiu.
Teu nome é o estribilho da nossa melancolia: cai-nos, de vez em quando, dos lábios como caem das árvores no outono as folhas mortas.
A Vida é a respiração da Natureza; um ir e vir continuo. O bafejo que exalamos reentra-nos em fôlego purificado. Assim tu: foste e tornaste ao nosso coração e nele assistes.
Vivo, saías, passavas horas longe de nós, mas estavas preso à vida e vinhas por ela à casa com o teu passo senhoril e espalhavas por ela o som da tua voz, a alegria do teu sorriso.
Dividias-te com os amigos que te disputavam.
Agora és todo nosso, não sais de nós, és nós mesmos, como é mar a água que regressa ao oceano lançada pela nuvem que a sorveu.
Teu dia! Como se pudéssemos destacar um dia entre tantos, só respirar, só ver luz, ouvir vozes, viver, enfim, um só dia!
Sendo, como sempre foste, e és, o nosso amor, estás constantemente conosco e continuamos a chamar-te filho, como se andasses entre os teus irmãos.
Se eu não te houvesse assistido na agonia, recolhendo, num beijo, a lágrima derradeira que choraste, não acreditaria na tua morte, tão rápida foi ela...
Onde se viu o céu anoitecer antes da tarde?
Se a natureza regula o tempo, não extinguindo a Luz senão quando lhe chega o instante de apagar-se, por que havia a Morte de abater um jovem no verdor da esperança, quando nele mais ardia a mocidade?
Custaste tanto a crescer! Primeiro entre nós, aninhado entre dois corações, vigiado por olhos vígilos, aquecido a beijos; depois no berço ajoujado ao nosso leito e quando menino, tiveste a tua cama em quarto próprio. Quanta vez, alta noite, fomos, medrosamente, pé ante pé, escutar o teu coração, sentir teu hálito como se adivinhássemos a traição que havia de arrebatar-te!
Na cama de menino sonhaste os teus primeiros sonhos, meditaste os teus primeiros pensamentos e, começavas, talvez, a sentir a solidão do Paraíso quando a Morte entrou em ti alanceando-te o corpo esbelto.
Pobre filho! O que a tortura fez de ti! Como tu te refugiaste na infância imaginando, assim, com tal meiguice, esconder-te da pérfida!
Ressuscitaram na tua boca ressequida os diminutivos carinhosos com que nos chamavas, à noite, quando temias a escuridão.
Ouvindo-te parecia-me que eras o pequenino que acalentávamos nos braços. Saudoso tempo!
Vinte e quatro anos viveste dentro da nossa vida. Eras como uma torre que construíramos pouco a pouco, dando-lhe eu, de mim, energia e coragem; e ela brandura e fé, e, justamente quando contávamos contigo para nosso amparo, quando nos fiávamos em ti para nossa defesa e sorríamos, um ao outro, contentes em nossa velhice, por possuirmos a tua mocidade, veio a Morte... e deixou-nos sós. Por que?
Se a alma é eterna como se explica que nos morresses, tu que eras a nossa alma?
Como nos iludíamos com a Vida acreditando que a tivesses em nós quando toda ela estava contigo!
Que é da nossa alegria? Não era nossa? Não a tínhamos em sorrisos? Onde estão eles, tais sorrisos?
Ai! de nós! eram reflexos de ti e tanto é isto verdade que, desde o teu desaparecimento, nunca mais se nos descolaram os lábios nem em nossos olhos brilhou mais o lume da felicidade.
A nossa ventura eras tu e jazes num sepulcro.
Vinte e quatro anos de amor esvaídos num suspiro!
E vale a pena construir com tão carinhoso desvelo um ser, depositando nele toda a nossa riqueza para que, a súbitas, a uma rajada do Destino, tudo alua deixando-nos à mercê do tempo e míseros?
Como nos guiaremos doravante na escuridão silente?
Vives, mas vives como um sonho que se desvanece com a manhã. Sentimos-te, mas se te procuramos não estás; és apenas lembrança, rastro na alma, dor na saudade, espinho no coração.
A rosa de Jericó reabre-se se a mergulham na água. Se acontecesse o mesmo com os mortos (tantas têm sido as nossas lágrimas!) já terias ressurgido do túmulo como se emergisses à tona de um oceano. Mas de que servem lágrimas?! Paraste na mocidade. Os teus irmãos menores prosseguirão na vida e tu, que os precedias, quedarás na hora em que caíste, vendo-os passar, transpor a idade em que foste ferido, entrar pelos anos além, envelhecendo, e eles falarão de ti, o irmão mais velho, morto com pouco mais de vinte e quatro anos.
E assim ficarás sempre jovem na saudade dos teus, que te perderam.
Os que buscam consolar-nos tentam convencer-nos de que Deus te chamou tão cedo porque eras bom. E nós!? Por que nos havia Ele de ferir arrancando-te dos nossos corações?
O teu dia, meu filho, há de durar, sem noite, enquanto vivermos para a tua saudade.
O teu dia não terá horas, será toda a nossa existência.
O RETRATO
Como a lâmpada perene das capelas, símbolo da Fé pervígila, o teu retrato, ante meus olhos, alumia-me a memória e, como fica o sacrário entre luz e penumbra, assim jaz o meu coração na saudade.
A imagem do teu corpo airoso, que se desfaz na terra podia desvanecer-se-me na lembrança, posto que eu nela o sinta vivo como outrora. Todavia, como tudo que é efêmero perece, para que o teu semblante e o teu todo me não fujam, como foge a sombra com o corpo que a reflete, tenho a lâmpada que nos aclara e, assim, com a alma que ficou comigo, por ser minha, e o retrato que me acompanha, conservo-te tal qual foste.
Teu túmulo floresce, as flores, porém, ainda que delas cuide, com esmero, o jardineiro, murcham em breve. O teu retrato, esse perdura; é a flor imarcessível que ficou da tua mocidade.
Pena é que lhe falte o que na flor é perfume e em nós é alma.
Olhamo-nos a fito. Eu vejo-te; e tu? A sombra não vê, não ouve, não sente, é um enigma que nos segue porque, sendo filha da luz, e escura; sendo a projeção de um corpo, é nada.
Vivo em contemplação diante do teu retrato e, de tanto fitá-lo, já se me gravou nos olhos e, quer eu os tenha abertos, quer fechados, vejo-te sempre.
Cego que ficasse ver-te-ia do mesmo modo, como vejo a luz. És como um sentido novo em mim.
E como não há de ser assim, meu filho, se continuas a viver comigo e, agora, mais do que nunca, és a razão de ser da minha vida!
Pobre de mim! Como me iludo! Retratos. Que valem rastros de caminhantes numa estrada sem fim!
Retratos... Miragens... Quando de vivos chamam-se lembranças, sendo como o teu não passam de saudades.
LAMENTO
Antes chorasses tu! Águas primaveris seca-as depressa o sol.
A tua mocidade radiosa reagiria contra a tristeza e, ainda que, por vezes, turvasse o teu coração a nuvem de saudade a sombra seria de eclipse, e não de noite eterna.
A alegria, própria da juventude, é lume que se não apaga.
Abafem-no, embora! quanto maior for o acúmulo de folhagem e troncos mais viva irromperá a chama vitoriosa.
Nos carvões que vasquejam uma gota de orvalho é quanto basta para matar na cinza a brasa trêmula.
O sol na primavera é vida; no inverno é morte.
O que, em ti, faria nascer o esquecimento, em mim mais aviva a lembrança.
O sol, em campo verde, fá-lo rebentar em flores; nos píncaros alpestres, fundindo a neve em torrentes, põe a descoberto abismos, desnuda alcantis, escorcha escarpas, todas as agruras e arestas da montanha merencória.
Quando se é moço o tempo é medicina para as chagas do coração; na velhice...
Que valem ruínas! Só resistem se as sustêm enliços de verdura, presilhas de hera que se emaranhe pelas frinchas; soltas, logo se esboroam.
Antes chorasses tu!
Um coração de moço, ainda na maior tristeza, se a alegria o ronda, ilumina-se e aquece-se.
Em meu coração, se a alegria passa-lhe por perto, a saudade, que está sempre alerta, levantase como cão de guarda quando pressente alguém se aproximar.
O que seriam risos em teus lábios correm-me em lágrimas dos olhos.
Antes chorasses tu!
Mal conhecias a vida e, com ânsia de novidades, depressa esquecerias o túmulo do morto.
Eu...
Que posso ver mais na vida se as lágrimas me empanam os olhos e o mundo me aparece, através do pranto, como a paisagem, em dia de chuva, nimbada pelas cordas de água.
Antes chorasses tu!
ESPERANÇA
Será crível que ainda resistas ou dar-se-á que haja fantasmas de ilusões?
Serás tu mesmo que ficaste à flor do túmulo, flutuando na morte, e que assim me apareces como sombra do que já não existe?
Serás tu mesma, Esperança, que vens a mim do fundo da noite perpétua?
Contam-se estrelas no céu, mortas há milênios, cuja luz, entretanto, ainda nos deslumbra e guia.
Serás tu como tais astros?
Se és, em verdade, a Esperança, por que me martirizas, tu, que sempre nos socorres como incentivo; tu, que nos manténs as forças para que prossigamos e, na tarde da desdita, prometenos a manhã da felicidade?
Se és tu, benéfica, porque te fazes cruel acordando-me a alma no coração com o timbre da sua voz, com o rumor dos seus passos como se o trouxesses do além em visita à minha saudade?
A tais ruídos ilusórios, que se levantam no silêncio, encolho-me em mim mesmo, atento, e ouçote que me dizes em segredo: “Ei-lo aí”.
Volto-me comovido, certo de que o vou encontrar, e só, então, me convenço de que fui vítima do teu sortilégio, quem quer que sejas, tu, que me trazes em tormentos de enganos.
Porque zombas de mim?
Não! Não podes ser tu, Esperança. Tu morreste com ele, foste com ele enterrada, desapareceste para todo o sempre com a sua mocidade.
E como me rondas anunciando-me a sua presença, como se fosse possível realizar o milagre dos milagres de arrancar do poder da morte a presa que ela arrebatou?
Não! Não podes ser tu, deve ser o teu espectro que me obsidia, porque tu, Esperança, ainda que sejas mentirosa, as tuas mentiras têm sempre um fundo de verdade - são como as teias de aranha que, parecendo soltas no ar, prendem-se por fios tênues a ramos ou folhas de árvores, ou como as miragens que espelham visualidades no horizonte, mentiras que, entretanto, são projeções do real.
Mas como podes tu reproduzir a morte, tirar vida da sepultura, ressuscitar o que jaz na terra?
Não! Não és a Esperança, deves ser alguma advérsia.
Vou caminhando descuidado. De repente ouço-te a voz tão perto como se saísse de mim próprio. Escuto e dizes-me que ele ainda vive, que o vou encontrar adiante, em ponto que costumava freqüentar.
Aguardo-o, busco-o na multidão, procuro-o em certos grupos e avisto-o. É ele! É o seu corpo senhoril, é o seu andar garboso. Reconheço-lhe o trajo.
Adianto-me com o coração contente e os olhos rasos de água e a ilusão, de súbito, desfaz-se.
Só, então percebo o logro, lembrando-me da impossibilidade do seu retorno, porque ao destino para onde ele partiu vai-se por uma ponte estreita, que só dá passagem a um por um, e a fila não se interrompe como o curso dos rios.
E como poderá ele regressar se, até hoje, desde que começou na vida a marcha para o abismo, nenhum outro conseguiu ainda remontar a correnteza perene?
Se sei que mentes por que hei de dar ouvidos ao que me dizes? Se estou certo de que é falso tudo quanto me segredas, como me deixo enganar, ainda contando com o que me prometes?
Por que hás de insistir na tortura? Por que assopras o cineral se não há nele centelha que reanime o lume?
Que nos enganes com a vida, compreende-se a vida existe; mas que nos tentes iludir com a morte, é crueldade.
Que posso eu esperar de onde tudo é nada?
E, todavia, espero. Não me conformo com a idéia de que ele não tornará mais, nunca mais! ao meu afeto.
Espero em vão, bem sei! mas bendigo-te, Esperança, bendigo-te porque manténs a ilusão em minha alma.
Se a Saudade não tivesse, para nutrir-se, o alimento que lhe atiras, devorava-nos o coração.
Bendita sejas, pois, Esperança, doce e triste alívio de desventurados.
ROSÁRIO
Como tal ou qual a quem se houvesse rebentado um colar de preço e se pusesse a procurar as pérolas uma a uma por frinchas e taliscas, assim vivemos nos reunindo recordações a ver se recompomos no fio da memória, todos os episódios da sua existência efêmera, desde a hora feliz do seu nascimento, a pérola menor, até a cruz do doloroso instante.
Cada vez que, a um de nós, ocorre um fato ajuntamo-lo às lembranças.
Uma pérola, porém a maior, rolou no abismo e não há como reavê-la. As outras mesmas, que recolhemos, quando as tentamos engranzar logo se dissolvem em lágrimas.
Toda a riqueza que se perdeu, por mais que a busquemos ajuntar, foge-nos em bagas de pranto, pérolas que nos caíram no coração, com as quais, se não refazemos o colar de outrora, formamos o rosário em que rezamos por ele a oração da saudade.
VIVER
Viver! Eu sei que a alma chora E a vida é só dor ingrata.
Pranto, que a não alivia, Olhos, que o estão a verter...
Sofra o coração, em hora!
Sofra! Mas viva! Mas bata Cheio, ao menos, da alegria De viver, de viver!
Raimundo Correia Rugem os ventos, estalam raios, o navio, desarvorado, guina, embica, empina-se, trambolha;
entra-lhe o mar a golfos pelas bordas, afreima-se a maruja e, na profundeza, a máquina trabalha.
Não cessa e, quanto mais se enfuria a tormenta, mais se esforçam, os que asseguram o movimento, em manter a fornalha acesa, a caldeira em força, as juntas bem lubrificadas para que nada impeça a propulsão.
Em cima, é a grita espavorida; são preces, ordens, correrias; um que acode ao leme; outro que marinha lesto enxárcia acima. Este, calafeta abertas; aquele, entaipa escotilhas.
E já se desligam os cabos que suspendem aos turcos os barcos de salvamento, cuida-se a palamenta, trazem-se salva-vidas e tudo e apresta para a possibilidade iminente do naufrágio.
E a máquina retroa no bojo do navio.
Aos embates da madria toda a construção abala-se. A hélice, umas vezes aprofunda-se, outras vezes, no levantar da popa, gira rápida no vácuo e toda a nave estremece, range convulsamente sacudida.
Remergulha. Faz-se tão rasa com o oceano crespo que parece ir em soçobro. Surge a ímpeto, arfando; eleva-se mostrando a quilha, torna de chapa ao abismo, bate estrondosamente e, com o choque, demora um instante a pique no côncavo das vagas. Um vagalhão sustem-na, põe-na a flux.
Ei-la a escorrer dos flancos cachoeira mar espumarento, ginga às tontas, cambaleia ringindo e o terror cresce entre os homens e os escarcéus cada vez mais se enfurecem, tudo é desespero.
E a máquina trabalha.
Assim também procede o coração na angústia.
Sofra o coração, embora!
Sofra! Mas viva ! Mas bata Cheio, ao menos, da alegria De viver, de viver!
A alegria de viver! Isso não torna ao coração. As máquinas de aço e bronze, se conseguem vencer os temporais, quando os navios chegam ao porto são examinadas peça por peça e, nem por serem de metais fortíssimos, deixam de trazer mossa.
Entram, porém, os artífices com o trabalho e, onde encontram falhas, reparam; onde descobrem eiva, corrigem; se um êmbolo ou mancal sofreu dano, logo o substituem e a máquina, refeita, torna ao seu oficio, íntegra como dantes e nela nem sal das ondas se conserva porque tudo é limpado, lixado e ajustado.
O coração, esse... quando chega ao porto de bonança, serenando, é que mais sofre.
Amaina-se o temporal, limpam-se os ares, abre-se o céu em luz, abranda-se em brisa o vendaval, tudo torna à calma do bom tempo, o coração quebrado, esse... quem o conserta?
Que artífice é capaz de substituir nele as peças que a tormenta inutilizou?
Move-se, vive e bate... mas como vive. Ai! dele... Bate. De que lhe serve bater?
Ao sair do estaleiro o navio corre ao mar e a hélice contra as águas e revolve-as e, cada volta em que gira, leva-a para diante.
O coração, inclinado sobre o abismo, bate em vão, porque toda a sua força perde-se no vácuo, como a da hélice, quando o navio mergulha no côncavo das vagas.
O navio prossegue, singra mar em fora, vai a novos rumos, a novas praias. O coração, de que lhe serve bater se não sai do vazio da saudade?
Mas é preciso viver... Pois seja! Que o coração faça o seu ofício:
Sofra! Mas viva! Mas bata Cheio, ao menos, da alegria De viver, de viver!
O QUE RESTA
Leva a tempestade o ninho e a ave, órfã e desabrigada, esvoaça tonta e aflita. Vai de árvore a árvore, salta de ramo em ramo ansiosa; eleva-se no ar, libra-se em pairo, torna ao chão, olha, pesquisa e, do que foi, nem a mais tênue achega encontra.
Dolorida, ainda que tudo se lhe balde, revoa em volta da árvore em que teve o pouso e a prole, até que, de todo desanimada, abala, fugindo ao sítio da desventura.
Longe, porém, em verdes silvas, cantando aqui, ali palhiço e folhas, tece outro ninho, reinstalase em tépido aconchego e dorme até que rompe a madrugada, e ei-la desperta, pronta para voar de novo, cantar ao sol, feliz.
Teu nome!
Anda de boca em boca como, de ramo em ramo, voa e revoa a ave desditosa. Ouço, a todo o instante, o doce nome ao qual dantes respondias. Mas o ninho em que ele vivia foi-se levado pela tempestade, caiu da árvore do amor, desfez-se em pó no chão.
Debalde soas, pobre nome! Não és mais que som. Andas nas falas, voas nos suspiros, sinto-te nas lágrimas.
Isso, porém, que monta se não assentas, porque o corpo, que era o teu pousadouro, desapareceu para sempre.
O desespero da ave cessa desde que ela refaz o ninho em outro sítio. Teu nome, esse... ai! de nós! nunca mais se firmará na vida, andará de boca em boca, de lembrança em lembrança em nossa saudade, como a ave, de ramo em ramo, nas árvores da floresta, mas sem poder fazer de novo o ninho, reinstalar-se e adormecer, para sair com a luz da manhã, reentrar na vida alegremente, ao sol.
Pobre nome! E é tudo que resta do que se foi na tormenta.
CONSOLAÇÃO
Já entrando no gabinete, detive-me, porém, à porta, comovido com aquele culto suave vendo-a escolher no ramo que, todas as manhã, lhe é levado pelo florista, as mais belas rosas, de preferência os botões com que ornamenta o retrato do filho amado, posto entre o grande tinteiro de bronze e a caixa dos cigarros.
Deixei-me estar quieto como se assistisse a uma cerimônia religiosa. E outra coisa não era aquele ofício de saudade, diante da mesa que fora o altar em que ele estivera exposto toda uma noite, entre as colunas flamejantes dos ciriais, com um crucifixo sobre o peito, e cercado de flores.
Com que enlevo ela colocava uma a uma no vaso, as rosas escolhidas!
Inclinava a cabeça para contemplá-las, a ver se estavam bem. Endireitava uma, chegava outra mais ao centro, punha os botões às bordas para que desabrochassem livremente, sem empeço.
Por fim, tomou o retrato delicadamente, a mãos ambas, chegou-o aos lábios e reteve-o, muito tempo num beijo. Depô-lo no lugar próprio e pôs-se a falar baixinho.
De repente, em ímpeto de desespero, ajoelhando-se, com os braços estendidos sobre a mesa, de mãos postas, suplicava... O que? E, por entre lágrimas, agitada por soluços, a voz saía-lhe humilde, entrecortada e aflita.
Que diria a pobre mãe naquela ascese dolorosa?
Adiantei-me pé ante pé. O alto tapete abafava-me o rumor dos passos e assim, sem ser sentido, pude chegar até junto dela, e ouvi-la.
Rezava. A Deus? Não, ao espírito do filho. Rezava diante da imagem da sua grande, infinita saudade, pedindo-lhe o milagre da sua presença, um aceno, que fosse, do Além, para consolo da sua alma vazia.
Senti com ela, e, docemente, para não assustá-la, chamei-a.
Apesar da meiguice com que a tirei do arroubo, sobressaltou-se, estremecendo assustada.
Ajudei-a a levantar-se, passei-lhe um braço pela cinta e, beijando-a na fronte, disse-lhe compadecido:
- Falavas-lhe? - Ela fitou-me com os olhos rasos de água. - Também eu converso com ele, disse-lhe - não como tu, dirigindo-me ao seu retrato - converso com ele dentro de mim: são as nossas almas que se falam. Tu queres o absurdo.
- Como absurdo?
- Sim. Queres que uma sombra te ouça; que o nada te responda. É absurdo. O retrato é um simples cartão de visita, lembra-nos a sua passagem, só isto; ele, ele mesmo, paira em volta de nós como a luz, envolve-nos como o ambiente, penetra-nos como o ar que respiramos.
Eu sinto-o. Juro-te que o sinto e o que talvez te pareça indiferença, é tranqüilidade que tenho pela certeza em que estou firmado de que o não perdi de mim.
- Também eu o sinto - suspirou ela; - mas quisera vê-lo, ainda que fosse por um segundo. Que ele me aparecesse em um relâmpago e eu não sofreria mais. Por que não havemos nós de ver os nossos mortos? Quando conseguiremos passar da sombra para a claridade do Além! Deus devia ser bom para as mães...
- Deus é bom.
- Bom...! - disse meneando tristemente com a cabeça. - Bom... Bom e nega-nos o pequenino consolo que lhe pedimos com tantas lágrimas. Não mo quer mostrar durante a vigília, mostre-mo durante o sono, num sonho.
Quando dormimos desprendemo-nos do corpo, a alma faz como um pássaro que se ala do ramo onde tem o ninho. Pois bem, no sono, por que não mo deixa ver enquanto durmo? Seria um sonho, um sonho feliz. Nem isso. Por que?
- Por que? Ai! de nós, aí! da vida se conseguíssemos desvendar o segredo da Morte. O azul é o azul da alma. Quando viajamos que fazemos nós no largo oceano - atravessamos a cortina diáfana, vencendo-a, deixando-a atrás? Não, porque ela sempre se nos opõe, ao longe. E por que a temos diante dos olhos sustamos a marcha? Não: prosseguimos com a certeza de topar em porto onde tomemos pé.
Ninguém se deixa ficar no oceano, à matroca - procura um rumo, norteia-se, toma um destino, rompe o azul. É preciso ter coragem e bússola para andar nos mares; é preciso ter crença e fé para levar a alma além da dúvida. Desesperos são temporais e é justamente nos temporais que se conhecem os mareantes.
Se, no furor da tormenta, com os ventos desencadeados e o mar grosso, a tripulação descorçoa e abandona o governo do navio, não serão, decerto, as vagas que o hão de salvar do soçobro. É preciso ter fé, e tu duvidas.
- Eu quisera ver, ter uma prova, por menor que fosse.
- Não as tens porque as buscas materialmente. No escuro não poderás achar o perdido; procura com luz e a Luz, para pesquisas tais, e a fé. Espera, continua a esperar, espera sempre e um dia, talvez, quem sabe...!
Como pensas? Concentrando-te, isto é: encerrando-te em ti mesma. É em nos mesmos que encontramos os nossos mortos. Eles vêm a nos, como a luz; nós não podemos ir a eles.
Achas que Deus não é bom porque cerra, em impenetrável sigilo, o segredo da Morte. Engano teu. Que seria a vida, senão horrenda tortura, se tal mistério não existisse? Fosse o Além o Nada, o inferno ou o Paraíso... Se fosse o Nada, todos viveriam a lamentar o perecimento, a destruição definitiva; se fosse o inferno, que dor saberem todos que os aguardava o tormento;
se fosse o Paraíso, não haveria felicidade na terra porque, comparando a via contingente e sofredora com a delicia da existência paradisíaca, tudo fariam para desertar este mundo precário, com ânsia do outro, de eternidade feliz. E os berços, que se aureolam de sorrisos, cercar-se-iam de lamentações, porque viver seria tanto como penar.
Achas que Deus não é bom, porque não consente que o vejas. O nosso egoísmo é que nos agrava o sofrimento. Tu, em verdade, não choras o filho que deixou de viver, que está livre de todos os males que nos torturam: choras o filho que perdeste, o bem que te foi levado, o amor que te falta. Choras sobre ti mesma e julgas chorar sobre o seu túmulo.
- E isto basta-te? consola-te?
- Sim, basta-me, consola-me como me basta, para consolação de tudo quanto tenho sofrido, a certeza, em que estou, de que Deus existe. E se tu invocas o espírito do morto é porque estás certas de que ele não desapareceu com a morte, não se desfez como o corpo e agora, mais do que quando convivia conosco, triunfal, puro e eterno, tão puro como o teu amor, em que ele se encarnou, e eterno, tão puro como a Essência a que regressou.
- E achas que faço mal em trazê-lo assim enfeitado de flores?
- Mal? Por que mal? É um culto e todos os cultos, quando neles há sentimento, como nesse em que pões toda a alma, são belos e dignos de respeito.
Falo-te assim para que não chores tanto. Flores são carinhos; lágrimas são tormentos e, se ainda o chamas de filho e o queres venturoso, porque o hás de perturbar, entristece.
MANO
A INSPIRAÇÃO DO LIVRO
Tendo perdido os primeiros filhos, que foram tantos quantos os que sobreviveram, “como se a Vida apostasse com a Morte em lhe não ceder uma só vitória, tirando de cada túmulo uma ressurreição”, Coelho Netto desistiu do aperreado sistema, tão mal sucedido, de encerrar e atabafar em lãs os pequeninos, decidindo-se pelo da liberdade e dos exercícios físicos. E os outros sete medraram. Emmanuel, o Mano, era o mais velho. Robusto, culto, modesto e bom, ele simbolizava o tipo de atleta perfeito que Coelho Netto, sempre eqüidistante das competições partidárias, idealizou na sua campanha pelo aprimoramento da juventude brasileira.
No Fluminense Football Club, Mano integrou o mais famoso conjunto de amadores da história do football carioca, conquistando o tri-campeonato da cidade em 1917-1918-1919. Sua morte, em conseqüência de séria contusão que sofreu num jogo do Fluminense, ocorreu a 30 de Setembro de 1922, quando contava 24 anos de idade.
Depois da maior desgraça da sua vida, Coelho Netto, como forçado das letras, tendo de escrever sem cessar para manter a subsistência da família, quando tomava lugar à mesa, para começar o trabalho diário, só trazia um pensamento:
“Falando ou escrevendo esquecem-me as expressões, faltam-me os termos. Só tu ficaste, tu só, tudo mais se esvaiu”.
E, procurando derivativo sua imensa desventura, fez da pena um rosário e desfiou em lágrimas, dia a dia, o Livro da Saudade – “Mano”.
Paulo Coelho Netto Setembro de 1956 CAPELAS
Ele era bom. Tinha a serenidade dos fortes. A juventude do seu corpo de atleta guardava uma alma antiga, de orgulhosa origem, mas sempre alegre por perdoar e esquecer. Nunca lhe saiu da boca uma queixa. Acostumara os lábios ao ritmo do louvor.
Sabia admirar. Sabia amar.
Mano!
Quem o apelidou assim, de pequenino, adivinhou que, depois de grande, quando olhasse, de olhos abertos, a vida, havia de ser o que foi: o irmão... o Mano, mais moço ou mais velho, dos outros homens que o conheceram, os amigos da sua intimidade e aqueles que, junto de Coelho Netto e da companheira admirável desse nobre artista, aprenderam o culto da beleza e da bondade.
Álvaro Moreyra.
ÚLTIMA VITÓRIA
A Coelho Netto.
Era uma forte e meiga criatura, Alma infantil em corpo de gigante;
E n'arena o julgáreis sempre ovante, Da Grécia antiga olímpica figura.
Mas como cá na terra a desventura Apunhala o valor a cada instante, Chega-se a Morte ao moço triunfante P'ra tocá-lo co'a ponta d'asa escura.
Preces da aflita mãe, que a dor crucia, Prantos do pobre pai, que era um poeta, Tudo o supremo transe lhe angustia.
Mas tinha o lutador crenças de asceta, Rompe-se em luz o nimbo da agonia...
Sorri... Mais uma vez vencera o atleta.
Carlos de Laet A MORTE DO SOL
A Coelho Netto Rubro clarão no poente...
Desce abrasado o Sol... Por um momento, Dir-se-ia Que em sua marcha lenta se detém...
Contempla, a última vez, no firmamento A estrada percorrida, desde o Oriente, Numa larga passagem triunfal.
Vai mergulhar no Além, Penetrar na Agonia, Perder-se no seu próprio sangue - a Luz...
Sabe que vai morrer... Olha o declive Que ao túmulo conduz;
Lança depois o último olhar De saudade final Sobre a terra distante, sobre o mar, E rola no horizonte... - É a noite que se eleva...
É a Treva.
Parece que na terra nada vive, Nada existe Tudo se esvaiu: a forma, a cor, Que são a alma das coisas no Universo...
Tudo agora é diverso No cenário do mundo Que vai viver sem luz e sem calor.
O sol partiu e o céu, pálido e triste, Tornou-se mais profundo.
Para que serve a treva? Que razão A faz surgir assim, tão bruscamente, Após a fulgurante luz do dia?
Por que a noite, senão para melhor Destacar o fulgor Longínquo das estrelas?
Por que a noite, senão Para aos homens dizer que todas elas São outros tantos sóis, iguais ao Sol Que vemos apagar-se no ocidente Para se erguer de novo no arrebol?
Sóis que não morrem, que desaparecem Somente ao nosso olhar e, quando descem No horizonte, à mesma hora da descida, Que é apenas ilusória, Estão surgindo em plena glória E em plena vida Para outras regiões do espaço infindo...
Porque tudo que é lindo, Perfeito e forte Não pode aniquilar-se pela morte.
A existência nos mostra cada dia Que o fluido da Beleza ou da Energia Jamais se exala Para perder-se; apenas se transforma, Se aperfeiçoa e sobe numa escala Em que se purifica a essência ou a forma Das coisas... Vida é apenas harmonia.
Só na aparência alguma coisa ofusca Esta ascensão contínua. Nada existe Que, em verdade, a perturbe e a morte não seria A única exceção Para a parada brusca Na evolução fatal da Natureza.
O espírito da Força e da Beleza Não se dilui: persiste, Segue em demanda de outra perfeição, E, se escapa a visão dos nossos olhos, Deixa d'alma nos íntimos refolhos Tênues fios de viva claridade Que, pelo pensamento, e elas nos unem Por todo o sempre e que, talvez, um dia Nos servirão de guia No mistério que envolve a Eternidade, E onde, vestindo novas existências As parcelas das coisas, nas essências De um mesmo todo extinto, se reúnem...
- Por isto quando o Sol desaparece E o clarão do seu rastro empalidece E se extingue na sombra, esse repouso De morte transitória É o início apenas de uma nova glória!
Octávio Ribeiro da Cunha AGONIA
A GABY
Se o amor nos aproximou mais fez ele unindo-nos inseparavelmente. Vendo-o, era como se nos víssemos, aos dois, em um só reflexo - tu e eu, e, com tal visão, vivíamos felizes contemplandoa debruçados sobre a correnteza da vida.
Hoje!...
Em vez do espelho límpido, no qual nos mirávamos sorrindo, vejo apenas a água triste das lágrimas que transbordam dos teus e dos meus olhos, água fúnera, turvada pela saudade, limo que assenta no fundo do coração.
Pior que o Letes do esquecimento é, sem dúvida, a memória, fonte onde nasce o rio da saudade, corrente lúrida, toldada de lembranças. E é nesse rio que nos debatemos, tu e eu, descendo juntos para o oceano ilimitado, com esperança de ainda o encontrarmos, como se fosse possível achar no fundo da água morta a sombra que flutuou na sua superfície.
DOR
A alegria dispersa; a dor concentra.
É na dor que, em verdade, sentimos que um filho é carne da nossa carne.
Ao vê-lo sofrer vibramos doloridamente e, se ele geme, o seu gemido ressoa-nos no coração.
Os ais que lhe escapam do martírio são frechas que nos lancinam e, se baixam do clamor à queixa humilde, doem-nos ainda mais, como a punção de uma lanceta aguda que se nos crava paulatinamente.
Se o enfermo sara esquecem-se tais vozes, se elas, porém, se calam suspensas pela morte, então represam-se-nos no íntimo, e nunca mais o coração as esquece e os gemidos nele perduram como fica eterno nas conchas o marulho soturno do mar.
INSONE
A casa não dormia. Era a única na rua sossegada que se mantinha aberta e acesa durante a noite toda e, ainda que silencioso, ensurdecido pelos cuidados, o movimento nela era contínuo.
Falava-se aos cochichos, e, volta e meia, no quarto em que ele sofria, vígilo, soava a exclamação angustiosa:
“Se eu dormisse uma hora!”
O sono, que enchia a casa, acabrunhando aos que o desvelavam - tantas noites despertos! - só não lhe chegava, a ele.
Os enfermeiros revezavam-se-lhe à cabeceira e, por toda a parte, em desordem, eram pacotes de algodão, ampolas, rolos de gaze, frascos.
De quando em quando alguém chegava-se à luz com o termômetro.
Em todo o caso havia esperança e, quando os pássaros começavam a cantar nas árvores e o céu desensombrava-se em rosicler e ouro, mais se animavam os corações.
“Se eu dormisse uma hora...!” arquejava, cansado, o pobrezinho.
O sol entrava a jorros. Era o dia e começava na rua o movimento.
Todos contavam vê-lo, de repente, sorrir, anunciando o alivio desejado e ele, rolando aflitamente os olhos, agitando-se no leito, ansioso, insistia nas palavras tristes:
“Se eu dormisse uma hora...!”
E, assim, passaram-se nove dias e nove noites, dias de tortura, noites em claro, longas, exaustivas, sem sono, gemidas, até que, ao fim da tarde décima, ao lento soar das sete horas, abriram-se-lhe muito os olhos, encheram-se-lhe de lágrimas e, entre nós dois, ela e eu, ele começou a aquietar-se, deixou de gemer para dormir, e adormeceu, enfim, não por uma hora, mas para não acordar mais, nunca mais!
SEDE
Na escala dos ásperos tormentos, entre tantos que sofreu Jesus, foi o da sede o mais acerbo e o único de que ele deu queixa.
Não se lhe ouviu palavra quando dos tratos e afrontas com que o aviltaram no Pretório. Nas três vezes que caiu no caminho do Calvário não soltou um gemido: calado suportou a cravação na cruz e calado nela esteve até a hora terça da tarde.
Secaram-se-lhe, porém, os lábios e ele entreabriu-os arquejantemente bradando aos seus algozes:
- Tenho sede!
De tais palavras à rendição do espírito divino mediou apenas o instante breve em que soou o “Consummatum est!”
Mais longa que a de Jesus foi a agonia de meu filho.
Durante dias, a todo o instante, queixava-se ele de sede e eram todos a atendê-lo, cada qual mais solícito, Que intenso ardor o abrasaria para que se não saciasse, já reclamando água mal lhe retiravam o copo dos lábios ávidos?
Febre? nem tanto acusava o termômetro. Que incêndio lhe arderia nas entranhas para que, apenas sorvia, sôfrego, a água que lhe davam, no mesmo instante fosse ela absorvida, como se caísse em forno caldo?
Não, não era febre, se não a própria vida em luta, que reclamava o que se lhe esvaía a golfos.
Quando o retiramos do leito foi que se nos patenteou a causa da insaciável sede: o colchão, o estrado, ainda o soalho, sob o leito, tudo era púrpura.
E, pois, como havia ele de acalmar-se se a água, assim como lhe descia a goles árdegos, saíalhe tinta de sangue, dessorando as artérias exauridas?
E, como um vaso partido, de que se extravasa a água que alimenta flor querida, assim pela artéria aberta escoou-se todo o sangue daquele corpo, e a vida, flor que era o nosso encanto, murchando pouco a pouco, feneceu à míngua do que a mantinha.
VOLTA AO NINHO
Pediu-me que o mudasse de leito, e quis o nosso.
Podia alguém imaginar que era o Destino que o fazia retroceder ao ponto onde principiara a sua genitura para encerrar o círculo fatal?
Quem o diria presa da morte vendo-o tio robusto, em pleno viço de saúde, mascarando com o sorriso o ricto do sofrimento?
Alarmando-me o grande aparato de socorros de que se cercava o médico e a solicitude ativa do enfermeiro, interroguei-os aflito.
Sorriram-me tranqüilizando-me. Ele próprio estranhou os meus cuidados impertinentes.
“Era lá possível, diziam, que tão exuberante mocidade perecesse, frágil como uma ruína? Só um desastre.”
Todavia eu procurava ler nos olhos de quantos o visitavam e, desconfiado, tornei-me espião dentro da minha casa, vigilo, atento a tudo e a todos, escutando às portas, caminhando mansinho no silêncio das noites desveladas para surgir, a súbitas, entre os que se lhe revezavam à cabeceira, surpreender cochichos, gestos, ver o que faziam, ouvi-lo, a ele, inquieto, de olhos despertos e ansiosos, gemendo, a pedir alívio ainda que à custa de martírios.
Mísero corpo! Quanto sofreste pungido, de instante a instante, para inoculações de vida efêmera.
Por que não haviam de dizer-me a verdade? Por que não ma disseram, se a sabiam? Ao menos eu não o teria deixado um só instante e, aproveitando-me, sem desperdício de um segundo, do tempo que lhe restava, tanto o havia de prender a mim que... sabe-se lá o que é a vida e como são as raízes que a sustentam e nutrem! - talvez não fosse tão fácil à Morte arrancar-mo do amor.
Mas confiava em todos, nele principalmente e, quando saí da ilusão em que me mantinha a esperança, onde o vira nascer, no leito que ele pedira, o nosso, vi-o, pouco a pouco, aquietar-se, cerrar os olhos, dormir nos braços daquela mesma que, em pequeno, o acalentava e que, então, o abraçava imóvel, sem lágrimas, como se a dor a houvesse petrificado, como faz o inverno intenso com as águas múrmuras e correntias.
Leito de nascimento, ninho; leito de morte, esquife: princípio e fim da mesma felicidade, tu no-lo deste, tu no-lo levaste.
Agora, quando me deito, antes do sono vir, sinto-o comigo, a meu lado, vivo na minha lembrança, em saudade, sombra que me ficou no coração, rastro de uma ventura que passou, sonho com que me consolo dentro da noite triste e eterna, no qual o vejo desde pequenino, quando ali nasceu para tão curta vida, até o doloroso instante em que se foi para o sempre.
O VIÁTICO
Ao Rev. Sr. Padre Henrique de Magalhães, que o confessou e ungiu Quando, dissimulando a agonia, entrei no quarto para abençoá-lo e o vi arfando, imóvel, alagaram-se-me os olhos. Quis falar: as palavras desfizeram-se-me em balbucios, como se dissolvem em espuma as vagas de encontro às penhas.
Estatelei-me, de mãos enclavinhadas, trêmulo. Acendeu-se-me, então, na Fé o último clarão de esperança e minh'alma elevou-se, em surto, a Deus.
Fugindo daquele transe, procurei a que não chorava: fria, apática diante da catástrofe, imagem da geleira eterna que não deflui, petrificada em friul.
Expus-lhe o que me inspirava a Crença: a conveniência de o prepararmos para a partida e ela, encarada em mim, hirta, impassível, abriu desmesuradamente os olhos espavoridos, parecendo medir a imensidão da nossa desventura.
Insisti. Tremeram-lhe, de leve, os lábios como vibra a haste do arbusto ante o adejo de um beijaflor.
Pedi a alguém que fosse à igreja próxima buscar um sacerdote.
O tempo que mediou entre a partida do emissário e a chegada do religioso foi tão breve ou tanto eu nele me perdi que, ao avisarem-me da chegada do padre fiquei surpreso como de milagre.
Sim, era ele com a maleta em que vinham os sacramentos.
Olhamo-nos sem palavras. Silêncio como jamais abafara a minha casa encheu-a toda. As próprias janelas, largamente abertas, não pareciam respirar.
Pé ante pé tornei ao quarto, certo de encontrar o enfermo na inércia em que o deixara. E que vi eu, arrepiado de horror e no auge da mais feliz surpresa? Meu filho a olhar pela janela aberta o céu azul, almofadado em nuvens, os ramos da árvore da rua, que devassam o mais íntimo do nosso lar (ramos onde, de madrugada, quase conosco, doméstico, saltita certo passarinho, e canta), tão calmo, tão sereno, que dir-se-ia haver acordado de noite bem dormida e estar ali gozando a preguiça da manhã.
Fora uma crise apenas e eu, por ela, imprudentemente, me precipitara.
Que fazer? Despedir o sacerdote? Anunciá-lo ao enfermo? Tal anúncio valeria por sentença e ainda havia esperança em nossos corações. E ele nem sequer pensava na gravidade do seu estado, tanto que, momentos antes, ao raiar da alva, quando a passarada começava com os gorjeios, dissera, lembrando-se de passados tempos e pensando em futuros dias:
“Esta é a hora melhor no mar. Os rapazes devem estar treinando. E eu, aqui! Enfim... ainda pode ser...”
O coração cresceu-me, harto; as veias túrgidas puseram-se a latejar, a ímpetos; lágrimas ardiam-me nos olhos.
Que fazer? Que dizer?!
Foi ele que me tirou da hesitação angustiosa, perguntando-me, a sorrir, surpreendido com a minha atitude:
- Que tens? Porque me olhas assim?
Que teria ele visto nos meus olhos, percebido no meu olhar que ia tão longe. tão longe que chegava à morte?
Animei-me a falar. Não sei que disse, não sei!
De repente vi-o cerrar a fronte, soerguer-se a custo, fitar-me a vista terebrante, pálido, de lábios trêmulos e exclamar, com espanto doloroso, como se eu o houvesse amaldiçoado: “Papai!”
É que eu rasgara violentamente o véu misterioso mostrando, no fundo da esperança, Deus é que eu lhe anunciara a hora suprema da Religião, hora última da terra, hora que não soa nem declina hora incomensurável, parada, fora do dia e da noite, rosto da Eternidade.
Houve, então, entre nós, um olhar, e, nesse olhar, como se cruzam no beijo os amores, cruzaram-se desesperos.
Tentei justificar o meu procedimento:
“Que a religião e a medicina que não falha, porque os seus remédios são aviados por Deus, e salvam”.
As lágrimas intrometeram-se-me pelas palavras e ele, comovido, tomou-me a mão, atraiu-me a si e, meigo, interrogou-me.
- Você quer?
Solucei, acenando afirmativamente.
- E mamãe?
Respondi com o olhar.
- Pois sim, concordou, suave: então também eu quero.
Todo o meu fôlego afluiu-me à garganta, sufocando-me.
Ele, sentindo a minha angústia, sorriu-me confirmando o que dissera com um gesto de brandura.
Caminhei para a porta. Antes, porém, de sair voltei-me. ele inclinara a cabeça e então vi as lágrimas da sua juventude, os seus sonhos desfolhando-se às gotas, todos os seus amores despedindo-se. Saí. O sacerdote entrou.
Quanto tempo durou a confissão daquela alma em flor? Foi para o meu coração tão longo que ainda nele persiste e durará enquanto eu viver, durará como um remorso dentro da minha saudade; durará como espinho na flor da minha ternura.
Quando o padre saiu, fui-me direito a ele. Chorava e sorria.
Chorava como homem, com pena daquela vida talada em pleno viço. Sorria como sacerdote, por haver achado em anos tão tenros coração tão virtuoso.
Então atrevi-me a tornar ao quarto e, ainda hoje, pensando nesse momento grandioso e horrível, hesito em decidir se fiz mal, se fiz bem: mal, levando àquela consciência, ainda clara, a certeza da morte; bem, preparando para Deus quem, já de partida, ainda nos iludia com a coragem e a robustez, ainda nos acariciava com a meiguice e, já desprendido da terra, de asas abertas para o vôo, ainda nos abraçava, animando aos que ficavam na vida, ele, que começava a morrer.
E, ainda hoje, nos silêncios em que me encerro com minha alma, murmuro, em dúvida que me excrucia:
“Quem sabe se o não entreguei cedo demais a Deus! É possível que se eu lhe não houvesse quebrado as forças da alma, se não houvesse, imprudentemente, substituído a Esperança pela Fé, deslocando-o da terra para o céu, ele resistisse e ainda vivesse conosco, amado e amandonos”.
Mas... E se, por descuido nosso, ele partisse sem a unção que salva?!
Precipitei-me, talvez, mas foi ainda por amor, para que tua alma, meu filho, fosse, como foi, na tristeza daquela tarde lúgubre, direita e triunfante para o esplendor eterno, que é o próprio olhar de Deus.
A MORTE
Todos se acercaram do leito e ele, estranhando, talvez, o rosário de corações que assim o cingia, relanceava em volta lento, interrogativo olhar de espanto.
Por vezes crispava-se-lhe, de leve, o rosto como se frisa com a aragem a superfície da água; as mãos moviam-se-lhe inquietas, contraindo, distendendo os dedos; o peito arfava-lhe opresso como se sustentasse um peso esmagador.
Silêncio trágico continha a todos, suspensos.
Que haveria? Por que tão atento o fitava o médico tomando-lhe obstinadamente o pulso?
Eu sentia um perigo. Parecia-me vê-lo à beira de um abismo que ele tivesse de atravessar sobre estreita ponte frágil.
De repente, agitando-se, abrindo um olhar imenso, perguntou em voz surda:
- Que horas são?
Alguém respondeu baixinho, entanto a resposta soou forte no silêncio, como pancada em lâmina metálica: “Sete!”
Ia-se a tarde em desmaio melancólico, já agasalhada em sombras.
Por que teria ele feito tal pergunta? Que teria visto? Os prenúncios, talvez, da noite primitiva, a noite que se fecha para o sempre, noite vazia, silente, sem astros, sepultura da luz.
O coração retransiu-se-me apertando, o fôlego sustou-se-me na garganta e meus olhos, como atraídos, voltaram-se para o oratório buscando a cruz de bronze, relíquia de Jerusalém, sacrossanto sinete que tem selado para a Eternidade todos os mortos da minha família.
E as lágrimas borbulharam-me no coração, senti-as subirem-me aos olhos, a jorros violentos, e tive forças para contê-las.
Súbito o silêncio estalou em pranto como um vaso hermeticamente fechado que se fizesse pedaços derramando todo o líquido contido.
Tombei de joelhos junto do leito agarrando-me desesperadamente ao corpo que se imobilizava.
Tudo cessara e o olhar, que ele ainda mantinha fito em nós, extático, não tinha luz: era como o morrão que fica ardendo nos círios e que, pouco a pouco, envolto em fumo, vai-se extinguindo, até de todo se apagar.
Alguém chamou por ele, em pranto.
Ai! de nós...
Às pedras deu-lhes Deus o eco para responderem a quem lhes brada e ao que morre tudo se vai, não fica, sequer, um pouco de som para a suprema palavra de um adeus.
É um caixão que se fecha. Nada mais.
CONSUMMATUM...
Onde estaria eu quando o desceram para a minha sala de trabalho?
Onde estaria eu que não dei pelo trânsito cruciante?
Quando entrei no quarto e vi a cama deserta foi tal o alvoroço no meu coração que estaquei suspenso, entendo um grito. Seria possível!? Olhei em volta... Mas toda aquela desordem -
velas ainda acesas, o silêncio, o lúgubre vazio...
Se o corpo sai com vida deixa um misterioso sinal de si: o ausente afigura-se-nos presente; o morto, não!
A morte arrasta tudo consigo e ali nada mais havia, mais nada senão um sulco revolto como o que fica nas águas à passagem de um barco - fundo, mas de breve duração; agitado, mas só em efêmeras espumas.
Onde estaria eu quando o desceram?
E foi diante daquele vazio que senti toda a grandeza do meu amor. É pelo diâmetro e profundidade da cova que se pode avaliar a extensão das raízes da árvore derrubada.
Onde estaria eu quando o desceram? Afastaram-me, decerto, para transportá-lo. Foi melhor assim.
Não há hora mais triste que a do ocaso, hora do descer da luz. A noite é o irremediável, com a consolação das estrelas, que são lágrimas.
Fizeram bem em poupar-me à cena triste do descimento do corpo frio. Foi como se me adormecessem para uma operação dolorosa.
Quando dei acordo de mim tudo estava consumado.
A CHAVE
Fechado um cofre e atirada a chave em pleno oceano, nem por isso deverá o dono perder a esperança de poder, um dia, reavê-lo, abri-lo e rever o seu tesouro intacto.
Não tornou do pélago o anel lançado pelo tirano às vagas, em hóstia à Fortuna, que o recusou, devolvendo-o nas entranhas de um peixe?
Mergulhadores, assim como pescam pérolas, podem rebuscar, nas areias e covas submarinas, a jóia imersa trazendo-a à tona e restituindo-a ao que a perdeu ou, em instantes de desvario, atirou ao mar.
Todos os abismos têm limite - de um só, o túmulo, ninguém mediu ainda a profundidade.
Quantos lá têm amores, desfeitos em saudades, tentam, em vão, alcançá-los e valem-se dos meios, todos frustrâneos, ilusões que, em vez de consolarem, mais aumentam o desespero.
O que se acredita ver na placidez da Morte e a imagem do que existe no coração.
Quantos infelizes, deixando a realidade triste pela miragem falaz, ficam na vida sem o que tinham para guiá-los, que era a Luz da razão, apagada no mergulho em que se precipitaram!
A pequenina chave que fechou o teu caixão, meu filho, nunca mais terá serventia. Fez o que lhe cumpria, nada mais tem a fazer. E eu, entretanto, guardo-a como a mais preciosa das minhas relíquias. Para que? De que me serve se, com ela, não abro mais do que as fontes do coração dando livre curso às lágrimas saudosas?
Vê-la, tocá-la, tê-la perto de mim é lembrar-me de ti, fechado, como estás, para o sempre, com o selo inviolável da Eternidade.
Em minhas mãos essa pequenina chave, que deu a grande volta no círculo da tua Vida, encerrando-a, pode ser comparada a um facho nas mãos de um cego - porque ainda que ele o possua e sinta em nada lhe aproveita.
Que mergulhador terá fôlego tão longo que lhe permita descer aos penetrais do túmulo e de lá trazer o meu tesouro?
De que me serve a chave, que conservo, se o cofre, que ela fechou, aprofunda-se tanto que o próprio Pensamento não lhe chega à jazida?
Admitindo, porém, que me fosse dado abrir o que, entre flores, fechei com mão tremente e lágrimas a jorros, no instante em que, perdida toda a esperança, entreguei-te à cova e a Deus, teria eu ânimo bastante para contemplar o que me devolvia o Nada, restos de ti deixados pelo Céu e pela terra?
Para que profanar despojos? Que restará do que foi corpo airoso, coração meigo e alma inteligente - força, movimento e afeto: lume no olhar, idéia nas palavras, amor no gesto, heroísmo, dedicação e fé? um arcabouço como tronco e ramos nus de árvores no inverno.
Árvore!...
A árvore reenfolha-se, reflore, renova-se com mais viço ao calor do sol da primavera, prolonga a vida em ressurreições continuas. O corpo, uma vez tombado, resolve-se em pó que se não levanta.
De que me serve possuir a chave!... Antes eu a tivesse lançado ao mar, assim não teria ante os olhos essa promessa que se não cumpre, esperança sempre desvanecida, chave de um segredo que se não revelará jamais.
A alma, entretanto, apega-se a tudo, tudo lhe serve de consolação e martírio.
E a chave aí jaz, entre as minhas relíquias; lembrando-me o que fechei para o sempre: o teu corpo e, com ele, entre as flores que o cercaram, toda a minha ventura.
SAUDADE
PRIMAVERA
Alma da Vida, Primavera, tu que sempre ressurges da neve carregada de flores, tantas que as espalhas profusamente pelos campos, enfeitas com elas serras e penhascos, enches os vales, assoalhas lirialmente as águas, alegras as charnecas, animas os areais estéreis e, porque ainda te sobram nas mãos viçosas, lançá-las pelos velhos muros das ruínas, pelas covas humildes dos cemitérios, forrando-os com a tua generosidade, por que havias de vir ao meu canteiro pequenino talar a flor que era o encanto e o conforto de dois corações, que a defendiam, como as folhas defendem o botão que, entre elas, nasce e vai desabrochando?
Rica, procedeste como o avaro que, possuindo tesouros, enverga olhares de inveja para o mealheiro do pobre e, enquanto o não consegue haver a si, não lhe aquieta a ganância.
O que arrebataste pouco vale na abundância da tua riqueza e era tudo no lar, agora mísero.
Era o calor e a luz; era a alegria e a força de duas fragilidades; era a esperança de dois simples;
era a religião de dois crentes; um presente de Deus no altar de dois devotos; a luz de dois felizes que, agora, de olhos sem pupila, caminham às apalpadelas, como cegos a quem houvessem levado o guia, deixando-os ao desamparo, assentados na lápide de um túmulo.
Cruel ambição a tua, Primavera! Nem sabes o que possuis, tão copiosa é a tua florescência, e roubaste o pouco que era a riqueza de um lar.
Tendo um rio, sorveste a gota de orvalho que se achava engastada entre dois corações.
Sendo esplendor, como o sol, roubaste a pequenina chama da nossa lâmpada doméstica Sendo fertilidade para a Natureza toda, passaste por nós como ceifadora.
Dantes, no evento do teu mês, minha alma rejubilava antegozando o espetáculo, sempre novo, do rebentar dos gomos e do chilreio dos ninhos desempolhados e as primícias da tua feracidade, antes que aparecessem na terra verde, anunciava-as eu em louvores jucundos.
Agora, quando as brumas do inverno forem-se, a pouco e pouco, diluindo e os dias clarearem e aquecerem em sol e embalsamarem-se com o teu hálito, os nossos corações, transidos de saudade, ir-se-ão velando e aos novedios da terra responderão neles os espinhos das dores com que, sem pena, os alanceaste.
E quando todos, em júbilo, exaltarem, felizes, a tua vinda, agradecendo as mercês generosas que lhes distribuíres, nós, lembrados do que nos fizestes, fugiremos de ti, das tuas flores, do teu aroma, da tua claridade, surdos aos galreios dos implumes, ao murmúrio sonoro dos córregos vivazes, e o límpido azul do céu parecer-nos-á retinto em roxo, a terra florida se nos afigurará sepulcro imenso e o teu prestígio, renovadora da vida, não terá efeito em nossas almas.
Tu, que, só com a magia dos teus eflúvios, fazes brotar no lesim da pedra a saxífraga; tu, que dás viço à duna árida cobrindo-a de folhagens vindes, como a piedosa mãe enfeitou de acanto o túmulo do filho; tu, que tudo animas, não conseguirás, como todo o teu poder divino, reviçar a alegria nos corações que enlutaste.
Tu, que vences o inverno, não vencerás a nossa tristeza, ó Força eterna, eterna criadora que foste para nós a Morte.
Primavera, que mal te fizemos nós?
Quanto mais bela e vicejante fores mais nos ressentiremos da tua crueldade.
Criadora de lírios e de rosas, que mal te fizemos?
Tudo que produzires e despertares será, para nós, motivo de melancolia, porque nos relembrará a traição do teu sorriso.
Quando, na aragem das noites taciturnas, vier a nós o aroma das campinas, virá também a imagem do que se foi e nós, sentindo-o no perfume, amaldiçoaremos o teu poder maléfico, Primavera.
Antes o inverno com os seus dias lacrimosos e as suas noites regeladas!
Que nos importavam os rigores da ventania gemendo no escampo, a névoa álgida velando o arvoredo, os aguaceiros copiosos formando torrentes pelos caminhos, todo o cortejo lúgubre dessa funerária estação de morte se tínhamos conosco o filho amado, aquecendo-nos a alma, como a chama aquecia o corpo, participando do pão de nossa mesa, ele que era o nosso dia de amanhã, o nosso futuro, que rebentara em nossa velhice?
E vieste, entraste-nos pela casa coberta de flores, como noiva, e levaste-o contigo escondendoo na cova para sempre!
O lavrador, que enterra a semente no alfobre, fá-lo para a Vida. E tu, Primavera, que fizeste do que levaste?
Que dirão de nós os que virem de luto no festival da tua era, cobertos de crepe entre as tuas flores, chorando lamentosamente no coro de risos da Natureza?
Quiseste uma flor nova e viera buscar a que tínhamos tão escondida e não temíamos a morte. E
fomos traídos pela Vida, porque foste tu que no-lo roubaste, Primavera.
Tu, que reenfolhas, troncos que o lenhador despreza na floresta tendo-os por mortos e apodrecidos; tu, que dás vida em flor aos pântanos, estagnados; tu, que realizas milagres de ressurreição em toda a natureza; tu, onipotente, tu, vivificadora; tu, antagonista da Morte; tu, inspiradora do Gênese; tu, que és o verbo de Deus, ó estação da benção! tu, que és o raio do Sol dentro do qual erram em átomos as messes; tu, que és a Juventude, Primavera fecunda, flor da Eternidade, que mal te fizemos nós para que no entrasse pela casa coberta de flores, como em festa, para matar, com o teu veneno, o filho do nosso amor, consolação das nossa horas tristes e arrimo de nossa velhice?
Por que nos traíste, Primavera, Vida da Natureza e Morte da Ventura nossa?
CONTRASTE
Quando o levaram de nós o estádio começava a encher-se para um dos mais renhidos jogos do campeonato sul-americano.
Ao alto da muralha da mole atlética, trapejada a bandeiras e flâmulas, que espadanavam ao vento, borrifadas de chuva, apareciam os primeiros vultos.
O movimento das duas ruas que se cruzam dissemelhava-se em contraste irônico. Em uma, o borborinho alacre da multidão desensofrida, que afluía ao espetáculo da luta: veículos e turba, pregões, estropeada de patrulhas, correrias de retardatários que se apinhavam tumultuosamente junto da bilheteira como se a quisessem tomar de assalto.
Na outra rua, silêncio: gente à espera, em grupos nas calçadas, às portas e às janelas; duas longas filas de automóveis e o coche fúnebre parado diante da nossa casa em pranto.
Na minha sala de trabalho, de janelas abertas, revestida de luto, com um altar armado, jazia sobre a minha mesa, entre círios e flores, o maior desastre da minha vida.
Toda a casa regurgitava de gente: era a solidariedade dos corações amigos na desgraça, a doce esmola de amor trazida à nossa miséria.
Por toda a parte, profusamente, flores: sobre os móveis, pelos cantos, fora, no jardim: em palmas, ramos e grinaldas e ainda esparsas, aqui, ali. Nunca a primavera fora tão pródiga com o meu jardim.
Foi preciso que a Morte nele entrasse para que os meus canteiros se adornassem tanto. Por tal preço não os quisera eu tão vegetos.
Longo, perduradouro vozear no estádio anunciava o início do jogo quando o sacerdote, o mesmo que o ouvira de confissão, aproximou-se para encomendá-lo a Deus.
Era o sinal da partida.
Uma voz sussurrou-me:
“Que iam fechar o caixão”.
Estremeci. Seria possível! Encheu-se-me o peito de tanta agonia que me senti opresso como se o coração se me houvesse petrificado Que fazer?
Último adeus ao filho, último beijo à fronte gélida, bênção derradeira.
Retiraram-lhe o crucifixo do peito.
Como o que embarca entrega no portaló o bilhete de passagem, assim já lhe não era necessário o símbolo da Fé, porque o seu corpo tinha a câmara à espera e o seu espírito suave já devia achar-se na presença de Deus.
Tomei-lhe, a furto, o que dele me podia ficar - algumas flores que lhe haviam murchado sobre o peito, mortas com ele, bem em cima do seu coração.
Um a um alguém foi apagando os círios.
Eram as últimas esperanças que se extinguiam. A sua eterna manhã rompera. Para que luzes noturnas?
Fecharam o caixão florido. Que mais?!
Eu olhava em volta de mim em busca de uma esperança e só via lágrimas em todos os olhos.
Tudo estava acabado. Dali ao túmulo, nada mais.
Levaram-no.
E a casa foi, pouco a pouco, esvaziando-se - vazia da gente, vazia das flores, vazia, principalmente, da felicidade, que ia com ele.
E tive coragem de o acompanhar até à estância derradeira e vi-o baixar ao fundo da sepultura, profundidade só comparável à do azul infinito.
E o abraço brutal da terra sonora. pouco a pouco encerrando em si o corpo amado, fechando-se sobre ele, abafando-o, sumindo-o até possuí-lo todo, só dela.
E ali fiquei a olhar como quem, de cima de uma rocha, vê perder-se no horizonte a vela da última esperança.
E, diante daquele deserto, eu era como um náufrago em ilhéu estéril na vastidão do oceano.
Arrancaram-me do presídio. Era a vida que me reclamava como a morte o levava, a ele.
E vim, sem consciência, até a casa, onde revi os meus, como se uma vaga me houvesse arrojado à praia e eu acordasse atônito.
A tarde estiara. Dir-se-ia que a chuva fora apenas para chorar o morto, como os olhos dos que me haviam acompanhado no doloroso transe.
Águas que não cessam são as que jorram das fontes e dos corações. Águas que se formam nas nuvens passageiras e nos olhos indiferentes depressa o sol e o esquecimento secam; as que brotam das rochas e das profundas do amor, essas não estancam nunca! Se estancassem como se mataria a sede, como se mitigaria a saudade?
No jardim, restos de flores: ainda na minha sala os círios da vigília.
Já haviam despido do luto as paredes, já haviam desarmado a essa e o altar e a minha sala de trabalho voltara ao seu aspecto natural. Pairava apenas no ambiente um cheiro morno de cera e de flores murchas. E na casa era tudo. Os corações, esses...
Onde quer que se passasse ouvia-se convulso tremor de pranto.
Uma figura inerte, de negro, estatelada, estéril, jazia apagada a um canto, como aqueles círios que ainda lá estavam, de morrões negros, também apagados, sem lágrimas.
Não parecia sentir: olhava pasmada, como alguém que se visse em um patíbulo, condenada sem culpa e, em tamanha injustiça, não achasse palavra para bradar a sua inocência.
Pobre mãe!
Aproximei-me dela, unimos os nossos corações feridos do mesmo golpe e as nossas dores comunicaram-se.
Assim um rio cresce assoberbado e na violência em que investe derruba árvores e barrancas e tais destroços represam-no até que outro rio, nele despejando-se, engrossa-o e, os dois, juntos, forçam, levam de vencida o empeço e correm alagadoramente.
Chorávamos humildes quando trovejou no estádio clamor imenso de triunfo e o coliseu longamente atroou o estrondo das aclamações vitoriosas.
Ouvindo aquele tronejo heróico lembramo-nos de tardes, outras, iguais àquela e parecia-nos que o nome proclamado estrepitosamente era o dele, dele que ali se fizera desde pequenino, brincando naquele campo, nele crescendo em força e garbo, nele batendo-se pelas cores, que eram o seu orgulho.
E seria dele o nome que ouvíamos nas aclamações ovantes da multidão em delírio?
Sim, era o seu nome, não saía do estádio, mas do fundo dos nossos corações porque, embora estrondosas, todas aquelas vozes de milhares de bocas não estrugiam tão alto como nos soavam intimamente os apelos doloridos da nossa imensa saudade.
E, no final do jogo, com o escoar da turbamulta, a nossa rua encheu-se e os que passavam, comentando os lances mais brilhantes da partida, não se lembravam do enterro que dali saíra.
E, para o seu espírito, foi melhor assim.
Era em tal alvoroço que ele gostava de ver o seu clube, cheio, empavesado, ressoando músicas e clamores. Quanta vez...
A casa, fechada, em silêncio, tremia com o rumor da rua. Pobres corações!
E a tarde daquele dia, que fora de tristeza lúgubre, desanuviara-se a pouco e pouco, galeandose do sol. Dir-se-ia que o céu despia o luto por aquele que chorava ou, quem sabe! talvez assim se transfigurava para recebê-lo festivamente.
Nós é que em nada mudamos: tal como ele nos deixou jazemos: na mesma desolação, na mesma saudade.
E como não há de ser assim se a nossa alegria era ele e ele foi-se, não torna, não tornará nunca! nunca mais!
FLORES
Não há ainda um mês que adormeceu em Deus o ser do meu ser, a minha criatura de amor e o leito em que ficou, no dormitório silencioso, já se recama de flores.
As que o acompanharam, em ramos e em capelas, fanaram-se depressa; outras substituíramnas e também feneceram; em compensação as sementes esparzidas pelo jardineiro funeral, que cuida dos pequeninos canteiros mortuários, mal lhe caíram das mãos na terra fria logo rebentaram em vida, formando uma colcha de verdura que veste e enfeita a melancolia do jazigo.
E tal colcha matizou-se de violetas e margaridas, dálias, cravinas e miosótis.
Quem terá realizado esse milagre de florescência tão rápida? as nossas lágrimas? não! Tu, só tu, Primavera.
Será o remorso de no-lo haveres arrebatado que assim te faz solicita ou pensas, por acaso, que, escondendo em teu manto o túmulo querido farás com que o esqueçamos com a indiferença da terra que sorri em flores sobre a mocidade morta?
Como te enganas, traidora!
Mais prestígio tem a saudade em nossos corações do que tu na terra, cuja vida revigoras, porque, se fazes nascer flores, ela ressuscita o que mataste, evoca-o a todo o instante, trá-lo da sombra eterna e integração na vida e só não o refaz, tal como o tínhamos, porque o corpo lá está no abismo ao qual se desce por uma escada, cujos degraus aluem sobre o incluso como as águas se fecham sobre o náufrago.
A casa está cheia dele: sentimo-lo em toda ela, presente, e, fora, em toda a parte.
Ouvimo-lo. São os seus passos, é a sua voz que impregna o ambiente e sentimo-lo quando o relógio bate, devagar, as horas: as horas em que ele acordava e vinha dar-nos os bons dias; as horas em que ele saía; as horas, lentas e longas, da sua ausência; as horas alegres que o traziam do trabalho e as em que, à noite, ele regressava à casa, cauteloso, indo sempre até o nosso leito dar-nos, na vigília preocupada em que o esperávamos, a felicidade tranqüilizadora da sua presença. Todas essas horas continuam e ele continua a viver em todas elas.
O que nos aflige é a angústia de o não podermos sentir como o sentíamos outrora.
Vemo-lo como imagem refletida em espelho, vemo-lo, mas se tentamos tocá-lo, ai! de nos.
Suplício igual ao de Tântalo é o que nos inflige a saudade.
Vê-lo, ouvi-lo no coração, senti-lo em toda a parte, tê-lo sempre presente em nós e tão distante como a mais remota das estrelas e todas as esperanças...
Temo-lo conosco, na família, que o não esquece.
O seu lugar vazio espera-o sempre.
Quando nos aparece, projetado pelo coração, fala, mas mussitantemente apenas, sem palavras sonoras: batem-lhe os lábios como asas de pássaro cativo. Caminha, e os passos não lhe soam. Estende-nos os braços e nunca o alcançamos, porque, entre nós, interpõe-se uma lâmina, como a de cristal de espelho, que se chama: infinito.
Temo-lo tão perto e tão longe, conosco e para sempre apartado, vivo na imagem, só na imagem que é o reflexo da saudade.
Seria, talvez, melhor que os mortos partissem de vez, sem deixar rastro, levando consigo para o túmulo todo o ser. Mas não! partem como o sol tramonta: deixando a terra em escuridão, mas cheia de calor. E esse calor na terra é vida; no coração é saudade.
Assim é na saudade dos vivos que os mortos se eternizam, nela é que eles continuam a viver: é o paraíso de tristeza, como o esquecimento é o inferno dos que não souberam fazer-se amar.
E em quantos paraísos de amor vive o espírito querido! Em quantos corações soa o seu nome em apelo lamentoso!
As próprias coisas parecem sentir-lhe a ausência.
Que vazio à mesa e que silêncio! É que ele já se não assenta entre os irmãos, ainda que o seu lugar seja mantido como se ele apenas se haja demorado e possa aparecer de um momento para outro.
Mas ninguém lhe serve o prato, o seu talher não se descruza, não se lhe desdobra o guardanapo, o copo mantem-se-lhe vazio, o seu nome é pronunciado a medo, para não despertar nos corações a dor; e a luz, que incide sobre a cadeira que ele ocupava, já não tira a sombra que lhe traçava o perfil na parede.
Essa sombra ficou e, para sempre, em nossos corações.
E tudo que resta daquele corpo airoso, que era a coluna robusta do meu lar, lá está no cemitério em flores.
Flores, eis o que de meu filho fez a Primavera.
Todo o riso, todo o viçor de uma sadia e honesta juventude, toda a bondade de um coração magnânimo, toda a energia de um caráter espartano, toda a nossa esperança, todo ele enfim, reduziu-se ao que exorna a terra estreita de um túmulo: flores.
Os que passarem por elas, vendo-as lindas, como se ostentam e ignorando-lhes a origem dolorosa, louvarão, decerto, a Primavera que as tirou da morte, mas os que sabem o que elas representam e o que encobrem na terra em que nasceram, esses...
A CASA
Mudar-nos... Por que? se a casa toda está impregnada da sua presença, do seu ser, como o vaso que conteve essência longamente lhe conserva o aroma?
Por que mudar-nos deixando o lar onde, por vezes em eco, os seus passos ressoam, a sua voz timbra serena, e até a sua sombra desliza pelas paredes, como inveterado hábito que se repete inconscientemente?
Quantas vezes, do meu leito, ouço ranger a escada e sinto-o que sobe vagarosamente, ensurdecendo os passos para não despertar os que dormem!
Dar-se-á que os degraus conservem a impressão do seu andar e trepidem, como os móveis estalam, à noite, retraindo ou dilatando as fibras ao contato do ar?
As tábuas não soam por si e, se estalidam, é que algum piso as recalca.
Paredes de pedra e cal, assoalhos de madeira morta, é possível que dele vos lembreis às horas justas em que ele entrava, pé ante pé, subtil, sem que o sono, que dominava a casa, fosse perturbado?
Se o lar assim se recorda como havemos nós de abandonar esse cantinho cheio de reminiscências, (memória inerte em que ele persiste), porque nele viveu toda a sua alegre infância, nele passou toda a sua adolescência e nele começava a gozar a mocidade?
Se o túmulo, que lhe contém o corpo, não o relega, a casa, que lhe guardou o espírito, não o havia de repudiar, decerto.
Em todos os cantos brincou, saltou, espalhou risos. O raio de sol que, todas as manhãs, entra pela janela junto à qual ficava a sua cama, mal o dia aponta, lá vem insinuando-se no mesmo filão de ouro com que, desde pequenino, lhe enfeitava o sono.
A lâmpada, que o alumiava, acende-se todas as noites; e tudo continua como dantes.
Ao passar junto do meu quarto sinto-o, lá dentro, andar, mover-se. Faro, à escuta. Tudo cessa.
Para que insistir? Para que hei de, com a curiosidade ansiosa do meu desespero, violar o segredo que já não é da vida?
Se ele ali está e não me aparece, ele! Tão meu amigo, é porque não deseja ser visto.
Deixemo-lo com o seu misterioso pudor. É o filho em visita ao lar paterno.
Bem-vindo seja e que Deus o abençoe.
E se, ouvindo aos que nos aconselhavam, nos houvéssemos mudado...?! Pobre espírito!
Quem sabe o que sofreria recorrendo a casa e achando-a habitada por outros, transformada em tudo - na disposição dos móveis, no arranjo dos aposentos, com outros hábitos, outras vozes.
E a própria casa não sentiria com ele? Talvez!
Se vamos piedosamente visitar-lhe o túmulo no cemitério, porque havíamos de fugir ao ambiente onde o seu espírito demora? Lá, debaixo da terra, é a morte; aqui, em todos os ângulos, é a vida: o que ficou, o que existe, o que não parece: ele.
Mudar-nos... Isso seria abandoná-lo, desertar o ninho da saudade, o canto em que ele viveu. O
mesmo seria arrancarmo-lo do coração desprezando-o no esquecimento. Se a casa o retém, nós é que o havíamos de repelir? Não!
Onde uma vida se exala fica sempre vestígio. Os tímidos receiam-no; os fortes, os que verdadeiramente amam, com as veras da alma, instam por encontrá-lo, como quem rastreia, em caminho, pegadas de alguém que procura.
Mudar-nos... Não! Fiquemos onde ele perdura.
Longe, entre outras paredes, que nunca lhe copiaram o corpo em sombra; com outras portas, que nunca se lhe abriram; com outros aposentos nunca, em vida, visitados por ele, como o poderíamos sentir?
Aqui, não. Aqui ele está conosco: é a sua casa. Que nela viva.
A LUZ
Acordo. Ainda é noite. O céu esfuma-se na sombra e o perfil umbroso da montanha, fronteira à minha janela, destaca-se no dilúculo. Respira de leve a aragem.
Aclara aos poucos. Sente-se a luz em marcha. Já as árvores aparecem e as casas realçam, brancas, na massa da verdura.
Chia uma cigarra; outras respondem vividas e um coro de chilreios enche o silêncio pálido. É o despertar nos ramos.
Debruço-me à janela e, em êxtase, contemplo o maravilhoso espetáculo do amanhecer.
O céu recama-se de cores: e uma palheta o oriente e as tintas, que dele escorrem, broslam a paisagem, colorindo-a.
Chove polilha de ouro. Abre-se de todo o azul; responde a terra com o seu verde.
O primeiro raio de sol recena um outeiro e logo as ervas rebrilham. A claridade alastra.
Enche-se o ar de vôos ágeis. Estrídulo recresce o canto matinal dos pássaros.
Um sino soa, límpido.
Passam trabalhadores ainda estremunhados; rodam veículos.
Ressoa soturnamente, longínqua, uma sereia de fábrica.
São os rumores da vida que recomeça.
A vida... Tudo ressurge! Entre as folhas rasteiras andam insetos minúsculos, formigas desfilam em fieiras.
Tudo acorda e entra em atividade: os elementos da natureza, o homem, os animais, os mínimos seres, as coisas, porque as folhas vibram, as flores exalam, o mesmo pó levanta-se. É a vida!...
O relógio bate sonoramente: são os passos do tempo, as horas.
O próprio invisível agita-se, porque é ele, o vento, que meneia, brando e brando, as folhas.
Entretanto, em todo esse deslumbramento ativo, há escuridão e silêncio, falta alguma coisa que minha alma procura em vão.
Já o sol rebrilha, fúlguro. Abrem-se todas as janelas: são as casas que acordam. Foi-se o sono dentro da noite.
E ele? Por que não acorda? Por que não vem do sono? Por que não o despertará a luz; ela, que fez o milagre de vencer a noite no céu, na terra e nos mares; ela, que desencantou a natureza toda; ela, que fez desabrochar a manhã brilhante; ela, onipotente; ela, eterna; ela divina, por que não despertará o que adormeceu?
E o sol ressurge; o sol, que é tudo. E um pouco de terra humana resiste na morte ao reclamo miraculoso da madrugada.
De que me serve, a mim, todo o esplendor da tua claridade, ó Luz, se, em vez de trazer-me alegria, mais me entristece o coração?
Fazes o dia, tiras o sol do oriente, és a Vida e não tens força para arrancar de um túmulo um pouco de terra.
De que te serve o Poder? E, se o tens, porque só o manifestas no céu, ressuscitando o dia, e deixas a terra cheia de saudades?
És como os pródigos que se dissipam em festins e negam um mendrugo ao pobre que lhes estende a mão.
SEMPRE
No Dia de Finados Dia dos mortos, teu dia... Não! O teu dia chama-se “Sempre”, não é um só, de horas contadas, limitando estreitamente o círculo das lembranças, que são os minutos da Saudade.
O dia de hoje é como os demais no tempo; o teu é infindo.
Dentro em pouco o crepúsculo baixará escuro e tudo desaparecerá na sombra solitária e, mais do que sobre os túmulos, a treva se adensará na memória efêmera dos que aguardam um dia para recordar.
Dos círios que alumiaram mausoléus e carneiros nada, em breve, restará senão lágrimas de cera e as flores murcharão na terra como as lembranças nos corações volúveis.
Os círios que te alumiam são os nossos olho cujas lágrimas não se condensam gélidas e são cada vez mais fluentes. As flores que alfombram o teu túmulo são sempre frescas, porque, além das que nascem de ti, das raízes do teu coração de bondade, o nosso amor vela solícito para que te não falte, todas as manhãs, a oferenda da nossa devoção.
Continuas a viver conosco, ainda que separado: nós, no sofrimento; tu, no alívio; nós, onde o sol aclara; tu, onde a noite governa. Há entre nós apenas uma lápide e é tanto, todavia, como o espaço que separa o céu da terra.
Foi-se o teu vulto, mas a tua essência ficou; sentimo-la conosco, como tornada a nós, de regresso ao amor de que saiu.
Teu nome é o estribilho da nossa melancolia: cai-nos, de vez em quando, dos lábios como caem das árvores no outono as folhas mortas.
A Vida é a respiração da Natureza; um ir e vir continuo. O bafejo que exalamos reentra-nos em fôlego purificado. Assim tu: foste e tornaste ao nosso coração e nele assistes.
Vivo, saías, passavas horas longe de nós, mas estavas preso à vida e vinhas por ela à casa com o teu passo senhoril e espalhavas por ela o som da tua voz, a alegria do teu sorriso.
Dividias-te com os amigos que te disputavam.
Agora és todo nosso, não sais de nós, és nós mesmos, como é mar a água que regressa ao oceano lançada pela nuvem que a sorveu.
Teu dia! Como se pudéssemos destacar um dia entre tantos, só respirar, só ver luz, ouvir vozes, viver, enfim, um só dia!
Sendo, como sempre foste, e és, o nosso amor, estás constantemente conosco e continuamos a chamar-te filho, como se andasses entre os teus irmãos.
Se eu não te houvesse assistido na agonia, recolhendo, num beijo, a lágrima derradeira que choraste, não acreditaria na tua morte, tão rápida foi ela...
Onde se viu o céu anoitecer antes da tarde?
Se a natureza regula o tempo, não extinguindo a Luz senão quando lhe chega o instante de apagar-se, por que havia a Morte de abater um jovem no verdor da esperança, quando nele mais ardia a mocidade?
Custaste tanto a crescer! Primeiro entre nós, aninhado entre dois corações, vigiado por olhos vígilos, aquecido a beijos; depois no berço ajoujado ao nosso leito e quando menino, tiveste a tua cama em quarto próprio. Quanta vez, alta noite, fomos, medrosamente, pé ante pé, escutar o teu coração, sentir teu hálito como se adivinhássemos a traição que havia de arrebatar-te!
Na cama de menino sonhaste os teus primeiros sonhos, meditaste os teus primeiros pensamentos e, começavas, talvez, a sentir a solidão do Paraíso quando a Morte entrou em ti alanceando-te o corpo esbelto.
Pobre filho! O que a tortura fez de ti! Como tu te refugiaste na infância imaginando, assim, com tal meiguice, esconder-te da pérfida!
Ressuscitaram na tua boca ressequida os diminutivos carinhosos com que nos chamavas, à noite, quando temias a escuridão.
Ouvindo-te parecia-me que eras o pequenino que acalentávamos nos braços. Saudoso tempo!
Vinte e quatro anos viveste dentro da nossa vida. Eras como uma torre que construíramos pouco a pouco, dando-lhe eu, de mim, energia e coragem; e ela brandura e fé, e, justamente quando contávamos contigo para nosso amparo, quando nos fiávamos em ti para nossa defesa e sorríamos, um ao outro, contentes em nossa velhice, por possuirmos a tua mocidade, veio a Morte... e deixou-nos sós. Por que?
Se a alma é eterna como se explica que nos morresses, tu que eras a nossa alma?
Como nos iludíamos com a Vida acreditando que a tivesses em nós quando toda ela estava contigo!
Que é da nossa alegria? Não era nossa? Não a tínhamos em sorrisos? Onde estão eles, tais sorrisos?
Ai! de nós! eram reflexos de ti e tanto é isto verdade que, desde o teu desaparecimento, nunca mais se nos descolaram os lábios nem em nossos olhos brilhou mais o lume da felicidade.
A nossa ventura eras tu e jazes num sepulcro.
Vinte e quatro anos de amor esvaídos num suspiro!
E vale a pena construir com tão carinhoso desvelo um ser, depositando nele toda a nossa riqueza para que, a súbitas, a uma rajada do Destino, tudo alua deixando-nos à mercê do tempo e míseros?
Como nos guiaremos doravante na escuridão silente?
Vives, mas vives como um sonho que se desvanece com a manhã. Sentimos-te, mas se te procuramos não estás; és apenas lembrança, rastro na alma, dor na saudade, espinho no coração.
A rosa de Jericó reabre-se se a mergulham na água. Se acontecesse o mesmo com os mortos (tantas têm sido as nossas lágrimas!) já terias ressurgido do túmulo como se emergisses à tona de um oceano. Mas de que servem lágrimas?! Paraste na mocidade. Os teus irmãos menores prosseguirão na vida e tu, que os precedias, quedarás na hora em que caíste, vendo-os passar, transpor a idade em que foste ferido, entrar pelos anos além, envelhecendo, e eles falarão de ti, o irmão mais velho, morto com pouco mais de vinte e quatro anos.
E assim ficarás sempre jovem na saudade dos teus, que te perderam.
Os que buscam consolar-nos tentam convencer-nos de que Deus te chamou tão cedo porque eras bom. E nós!? Por que nos havia Ele de ferir arrancando-te dos nossos corações?
O teu dia, meu filho, há de durar, sem noite, enquanto vivermos para a tua saudade.
O teu dia não terá horas, será toda a nossa existência.
O RETRATO
Como a lâmpada perene das capelas, símbolo da Fé pervígila, o teu retrato, ante meus olhos, alumia-me a memória e, como fica o sacrário entre luz e penumbra, assim jaz o meu coração na saudade.
A imagem do teu corpo airoso, que se desfaz na terra podia desvanecer-se-me na lembrança, posto que eu nela o sinta vivo como outrora. Todavia, como tudo que é efêmero perece, para que o teu semblante e o teu todo me não fujam, como foge a sombra com o corpo que a reflete, tenho a lâmpada que nos aclara e, assim, com a alma que ficou comigo, por ser minha, e o retrato que me acompanha, conservo-te tal qual foste.
Teu túmulo floresce, as flores, porém, ainda que delas cuide, com esmero, o jardineiro, murcham em breve. O teu retrato, esse perdura; é a flor imarcessível que ficou da tua mocidade.
Pena é que lhe falte o que na flor é perfume e em nós é alma.
Olhamo-nos a fito. Eu vejo-te; e tu? A sombra não vê, não ouve, não sente, é um enigma que nos segue porque, sendo filha da luz, e escura; sendo a projeção de um corpo, é nada.
Vivo em contemplação diante do teu retrato e, de tanto fitá-lo, já se me gravou nos olhos e, quer eu os tenha abertos, quer fechados, vejo-te sempre.
Cego que ficasse ver-te-ia do mesmo modo, como vejo a luz. És como um sentido novo em mim.
E como não há de ser assim, meu filho, se continuas a viver comigo e, agora, mais do que nunca, és a razão de ser da minha vida!
Pobre de mim! Como me iludo! Retratos. Que valem rastros de caminhantes numa estrada sem fim!
Retratos... Miragens... Quando de vivos chamam-se lembranças, sendo como o teu não passam de saudades.
LAMENTO
Antes chorasses tu! Águas primaveris seca-as depressa o sol.
A tua mocidade radiosa reagiria contra a tristeza e, ainda que, por vezes, turvasse o teu coração a nuvem de saudade a sombra seria de eclipse, e não de noite eterna.
A alegria, própria da juventude, é lume que se não apaga.
Abafem-no, embora! quanto maior for o acúmulo de folhagem e troncos mais viva irromperá a chama vitoriosa.
Nos carvões que vasquejam uma gota de orvalho é quanto basta para matar na cinza a brasa trêmula.
O sol na primavera é vida; no inverno é morte.
O que, em ti, faria nascer o esquecimento, em mim mais aviva a lembrança.
O sol, em campo verde, fá-lo rebentar em flores; nos píncaros alpestres, fundindo a neve em torrentes, põe a descoberto abismos, desnuda alcantis, escorcha escarpas, todas as agruras e arestas da montanha merencória.
Quando se é moço o tempo é medicina para as chagas do coração; na velhice...
Que valem ruínas! Só resistem se as sustêm enliços de verdura, presilhas de hera que se emaranhe pelas frinchas; soltas, logo se esboroam.
Antes chorasses tu!
Um coração de moço, ainda na maior tristeza, se a alegria o ronda, ilumina-se e aquece-se.
Em meu coração, se a alegria passa-lhe por perto, a saudade, que está sempre alerta, levantase como cão de guarda quando pressente alguém se aproximar.
O que seriam risos em teus lábios correm-me em lágrimas dos olhos.
Antes chorasses tu!
Mal conhecias a vida e, com ânsia de novidades, depressa esquecerias o túmulo do morto.
Eu...
Que posso ver mais na vida se as lágrimas me empanam os olhos e o mundo me aparece, através do pranto, como a paisagem, em dia de chuva, nimbada pelas cordas de água.
Antes chorasses tu!
ESPERANÇA
Será crível que ainda resistas ou dar-se-á que haja fantasmas de ilusões?
Serás tu mesmo que ficaste à flor do túmulo, flutuando na morte, e que assim me apareces como sombra do que já não existe?
Serás tu mesma, Esperança, que vens a mim do fundo da noite perpétua?
Contam-se estrelas no céu, mortas há milênios, cuja luz, entretanto, ainda nos deslumbra e guia.
Serás tu como tais astros?
Se és, em verdade, a Esperança, por que me martirizas, tu, que sempre nos socorres como incentivo; tu, que nos manténs as forças para que prossigamos e, na tarde da desdita, prometenos a manhã da felicidade?
Se és tu, benéfica, porque te fazes cruel acordando-me a alma no coração com o timbre da sua voz, com o rumor dos seus passos como se o trouxesses do além em visita à minha saudade?
A tais ruídos ilusórios, que se levantam no silêncio, encolho-me em mim mesmo, atento, e ouçote que me dizes em segredo: “Ei-lo aí”.
Volto-me comovido, certo de que o vou encontrar, e só, então, me convenço de que fui vítima do teu sortilégio, quem quer que sejas, tu, que me trazes em tormentos de enganos.
Porque zombas de mim?
Não! Não podes ser tu, Esperança. Tu morreste com ele, foste com ele enterrada, desapareceste para todo o sempre com a sua mocidade.
E como me rondas anunciando-me a sua presença, como se fosse possível realizar o milagre dos milagres de arrancar do poder da morte a presa que ela arrebatou?
Não! Não podes ser tu, deve ser o teu espectro que me obsidia, porque tu, Esperança, ainda que sejas mentirosa, as tuas mentiras têm sempre um fundo de verdade - são como as teias de aranha que, parecendo soltas no ar, prendem-se por fios tênues a ramos ou folhas de árvores, ou como as miragens que espelham visualidades no horizonte, mentiras que, entretanto, são projeções do real.
Mas como podes tu reproduzir a morte, tirar vida da sepultura, ressuscitar o que jaz na terra?
Não! Não és a Esperança, deves ser alguma advérsia.
Vou caminhando descuidado. De repente ouço-te a voz tão perto como se saísse de mim próprio. Escuto e dizes-me que ele ainda vive, que o vou encontrar adiante, em ponto que costumava freqüentar.
Aguardo-o, busco-o na multidão, procuro-o em certos grupos e avisto-o. É ele! É o seu corpo senhoril, é o seu andar garboso. Reconheço-lhe o trajo.
Adianto-me com o coração contente e os olhos rasos de água e a ilusão, de súbito, desfaz-se.
Só, então percebo o logro, lembrando-me da impossibilidade do seu retorno, porque ao destino para onde ele partiu vai-se por uma ponte estreita, que só dá passagem a um por um, e a fila não se interrompe como o curso dos rios.
E como poderá ele regressar se, até hoje, desde que começou na vida a marcha para o abismo, nenhum outro conseguiu ainda remontar a correnteza perene?
Se sei que mentes por que hei de dar ouvidos ao que me dizes? Se estou certo de que é falso tudo quanto me segredas, como me deixo enganar, ainda contando com o que me prometes?
Por que hás de insistir na tortura? Por que assopras o cineral se não há nele centelha que reanime o lume?
Que nos enganes com a vida, compreende-se a vida existe; mas que nos tentes iludir com a morte, é crueldade.
Que posso eu esperar de onde tudo é nada?
E, todavia, espero. Não me conformo com a idéia de que ele não tornará mais, nunca mais! ao meu afeto.
Espero em vão, bem sei! mas bendigo-te, Esperança, bendigo-te porque manténs a ilusão em minha alma.
Se a Saudade não tivesse, para nutrir-se, o alimento que lhe atiras, devorava-nos o coração.
Bendita sejas, pois, Esperança, doce e triste alívio de desventurados.
ROSÁRIO
Como tal ou qual a quem se houvesse rebentado um colar de preço e se pusesse a procurar as pérolas uma a uma por frinchas e taliscas, assim vivemos nos reunindo recordações a ver se recompomos no fio da memória, todos os episódios da sua existência efêmera, desde a hora feliz do seu nascimento, a pérola menor, até a cruz do doloroso instante.
Cada vez que, a um de nós, ocorre um fato ajuntamo-lo às lembranças.
Uma pérola, porém a maior, rolou no abismo e não há como reavê-la. As outras mesmas, que recolhemos, quando as tentamos engranzar logo se dissolvem em lágrimas.
Toda a riqueza que se perdeu, por mais que a busquemos ajuntar, foge-nos em bagas de pranto, pérolas que nos caíram no coração, com as quais, se não refazemos o colar de outrora, formamos o rosário em que rezamos por ele a oração da saudade.
VIVER
Viver! Eu sei que a alma chora E a vida é só dor ingrata.
Pranto, que a não alivia, Olhos, que o estão a verter...
Sofra o coração, em hora!
Sofra! Mas viva! Mas bata Cheio, ao menos, da alegria De viver, de viver!
Raimundo Correia Rugem os ventos, estalam raios, o navio, desarvorado, guina, embica, empina-se, trambolha;
entra-lhe o mar a golfos pelas bordas, afreima-se a maruja e, na profundeza, a máquina trabalha.
Não cessa e, quanto mais se enfuria a tormenta, mais se esforçam, os que asseguram o movimento, em manter a fornalha acesa, a caldeira em força, as juntas bem lubrificadas para que nada impeça a propulsão.
Em cima, é a grita espavorida; são preces, ordens, correrias; um que acode ao leme; outro que marinha lesto enxárcia acima. Este, calafeta abertas; aquele, entaipa escotilhas.
E já se desligam os cabos que suspendem aos turcos os barcos de salvamento, cuida-se a palamenta, trazem-se salva-vidas e tudo e apresta para a possibilidade iminente do naufrágio.
E a máquina retroa no bojo do navio.
Aos embates da madria toda a construção abala-se. A hélice, umas vezes aprofunda-se, outras vezes, no levantar da popa, gira rápida no vácuo e toda a nave estremece, range convulsamente sacudida.
Remergulha. Faz-se tão rasa com o oceano crespo que parece ir em soçobro. Surge a ímpeto, arfando; eleva-se mostrando a quilha, torna de chapa ao abismo, bate estrondosamente e, com o choque, demora um instante a pique no côncavo das vagas. Um vagalhão sustem-na, põe-na a flux.
Ei-la a escorrer dos flancos cachoeira mar espumarento, ginga às tontas, cambaleia ringindo e o terror cresce entre os homens e os escarcéus cada vez mais se enfurecem, tudo é desespero.
E a máquina trabalha.
Assim também procede o coração na angústia.
Sofra o coração, embora!
Sofra! Mas viva ! Mas bata Cheio, ao menos, da alegria De viver, de viver!
A alegria de viver! Isso não torna ao coração. As máquinas de aço e bronze, se conseguem vencer os temporais, quando os navios chegam ao porto são examinadas peça por peça e, nem por serem de metais fortíssimos, deixam de trazer mossa.
Entram, porém, os artífices com o trabalho e, onde encontram falhas, reparam; onde descobrem eiva, corrigem; se um êmbolo ou mancal sofreu dano, logo o substituem e a máquina, refeita, torna ao seu oficio, íntegra como dantes e nela nem sal das ondas se conserva porque tudo é limpado, lixado e ajustado.
O coração, esse... quando chega ao porto de bonança, serenando, é que mais sofre.
Amaina-se o temporal, limpam-se os ares, abre-se o céu em luz, abranda-se em brisa o vendaval, tudo torna à calma do bom tempo, o coração quebrado, esse... quem o conserta?
Que artífice é capaz de substituir nele as peças que a tormenta inutilizou?
Move-se, vive e bate... mas como vive. Ai! dele... Bate. De que lhe serve bater?
Ao sair do estaleiro o navio corre ao mar e a hélice contra as águas e revolve-as e, cada volta em que gira, leva-a para diante.
O coração, inclinado sobre o abismo, bate em vão, porque toda a sua força perde-se no vácuo, como a da hélice, quando o navio mergulha no côncavo das vagas.
O navio prossegue, singra mar em fora, vai a novos rumos, a novas praias. O coração, de que lhe serve bater se não sai do vazio da saudade?
Mas é preciso viver... Pois seja! Que o coração faça o seu ofício:
Sofra! Mas viva! Mas bata Cheio, ao menos, da alegria De viver, de viver!
O QUE RESTA
Leva a tempestade o ninho e a ave, órfã e desabrigada, esvoaça tonta e aflita. Vai de árvore a árvore, salta de ramo em ramo ansiosa; eleva-se no ar, libra-se em pairo, torna ao chão, olha, pesquisa e, do que foi, nem a mais tênue achega encontra.
Dolorida, ainda que tudo se lhe balde, revoa em volta da árvore em que teve o pouso e a prole, até que, de todo desanimada, abala, fugindo ao sítio da desventura.
Longe, porém, em verdes silvas, cantando aqui, ali palhiço e folhas, tece outro ninho, reinstalase em tépido aconchego e dorme até que rompe a madrugada, e ei-la desperta, pronta para voar de novo, cantar ao sol, feliz.
Teu nome!
Anda de boca em boca como, de ramo em ramo, voa e revoa a ave desditosa. Ouço, a todo o instante, o doce nome ao qual dantes respondias. Mas o ninho em que ele vivia foi-se levado pela tempestade, caiu da árvore do amor, desfez-se em pó no chão.
Debalde soas, pobre nome! Não és mais que som. Andas nas falas, voas nos suspiros, sinto-te nas lágrimas.
Isso, porém, que monta se não assentas, porque o corpo, que era o teu pousadouro, desapareceu para sempre.
O desespero da ave cessa desde que ela refaz o ninho em outro sítio. Teu nome, esse... ai! de nós! nunca mais se firmará na vida, andará de boca em boca, de lembrança em lembrança em nossa saudade, como a ave, de ramo em ramo, nas árvores da floresta, mas sem poder fazer de novo o ninho, reinstalar-se e adormecer, para sair com a luz da manhã, reentrar na vida alegremente, ao sol.
Pobre nome! E é tudo que resta do que se foi na tormenta.
CONSOLAÇÃO
Já entrando no gabinete, detive-me, porém, à porta, comovido com aquele culto suave vendo-a escolher no ramo que, todas as manhã, lhe é levado pelo florista, as mais belas rosas, de preferência os botões com que ornamenta o retrato do filho amado, posto entre o grande tinteiro de bronze e a caixa dos cigarros.
Deixei-me estar quieto como se assistisse a uma cerimônia religiosa. E outra coisa não era aquele ofício de saudade, diante da mesa que fora o altar em que ele estivera exposto toda uma noite, entre as colunas flamejantes dos ciriais, com um crucifixo sobre o peito, e cercado de flores.
Com que enlevo ela colocava uma a uma no vaso, as rosas escolhidas!
Inclinava a cabeça para contemplá-las, a ver se estavam bem. Endireitava uma, chegava outra mais ao centro, punha os botões às bordas para que desabrochassem livremente, sem empeço.
Por fim, tomou o retrato delicadamente, a mãos ambas, chegou-o aos lábios e reteve-o, muito tempo num beijo. Depô-lo no lugar próprio e pôs-se a falar baixinho.
De repente, em ímpeto de desespero, ajoelhando-se, com os braços estendidos sobre a mesa, de mãos postas, suplicava... O que? E, por entre lágrimas, agitada por soluços, a voz saía-lhe humilde, entrecortada e aflita.
Que diria a pobre mãe naquela ascese dolorosa?
Adiantei-me pé ante pé. O alto tapete abafava-me o rumor dos passos e assim, sem ser sentido, pude chegar até junto dela, e ouvi-la.
Rezava. A Deus? Não, ao espírito do filho. Rezava diante da imagem da sua grande, infinita saudade, pedindo-lhe o milagre da sua presença, um aceno, que fosse, do Além, para consolo da sua alma vazia.
Senti com ela, e, docemente, para não assustá-la, chamei-a.
Apesar da meiguice com que a tirei do arroubo, sobressaltou-se, estremecendo assustada.
Ajudei-a a levantar-se, passei-lhe um braço pela cinta e, beijando-a na fronte, disse-lhe compadecido:
- Falavas-lhe? - Ela fitou-me com os olhos rasos de água. - Também eu converso com ele, disse-lhe - não como tu, dirigindo-me ao seu retrato - converso com ele dentro de mim: são as nossas almas que se falam. Tu queres o absurdo.
- Como absurdo?
- Sim. Queres que uma sombra te ouça; que o nada te responda. É absurdo. O retrato é um simples cartão de visita, lembra-nos a sua passagem, só isto; ele, ele mesmo, paira em volta de nós como a luz, envolve-nos como o ambiente, penetra-nos como o ar que respiramos.
Eu sinto-o. Juro-te que o sinto e o que talvez te pareça indiferença, é tranqüilidade que tenho pela certeza em que estou firmado de que o não perdi de mim.
- Também eu o sinto - suspirou ela; - mas quisera vê-lo, ainda que fosse por um segundo. Que ele me aparecesse em um relâmpago e eu não sofreria mais. Por que não havemos nós de ver os nossos mortos? Quando conseguiremos passar da sombra para a claridade do Além! Deus devia ser bom para as mães...
- Deus é bom.
- Bom...! - disse meneando tristemente com a cabeça. - Bom... Bom e nega-nos o pequenino consolo que lhe pedimos com tantas lágrimas. Não mo quer mostrar durante a vigília, mostre-mo durante o sono, num sonho.
Quando dormimos desprendemo-nos do corpo, a alma faz como um pássaro que se ala do ramo onde tem o ninho. Pois bem, no sono, por que não mo deixa ver enquanto durmo? Seria um sonho, um sonho feliz. Nem isso. Por que?
- Por que? Ai! de nós, aí! da vida se conseguíssemos desvendar o segredo da Morte. O azul é o azul da alma. Quando viajamos que fazemos nós no largo oceano - atravessamos a cortina diáfana, vencendo-a, deixando-a atrás? Não, porque ela sempre se nos opõe, ao longe. E por que a temos diante dos olhos sustamos a marcha? Não: prosseguimos com a certeza de topar em porto onde tomemos pé.
Ninguém se deixa ficar no oceano, à matroca - procura um rumo, norteia-se, toma um destino, rompe o azul. É preciso ter coragem e bússola para andar nos mares; é preciso ter crença e fé para levar a alma além da dúvida. Desesperos são temporais e é justamente nos temporais que se conhecem os mareantes.
Se, no furor da tormenta, com os ventos desencadeados e o mar grosso, a tripulação descorçoa e abandona o governo do navio, não serão, decerto, as vagas que o hão de salvar do soçobro. É preciso ter fé, e tu duvidas.
- Eu quisera ver, ter uma prova, por menor que fosse.
- Não as tens porque as buscas materialmente. No escuro não poderás achar o perdido; procura com luz e a Luz, para pesquisas tais, e a fé. Espera, continua a esperar, espera sempre e um dia, talvez, quem sabe...!
Como pensas? Concentrando-te, isto é: encerrando-te em ti mesma. É em nos mesmos que encontramos os nossos mortos. Eles vêm a nos, como a luz; nós não podemos ir a eles.
Achas que Deus não é bom porque cerra, em impenetrável sigilo, o segredo da Morte. Engano teu. Que seria a vida, senão horrenda tortura, se tal mistério não existisse? Fosse o Além o Nada, o inferno ou o Paraíso... Se fosse o Nada, todos viveriam a lamentar o perecimento, a destruição definitiva; se fosse o inferno, que dor saberem todos que os aguardava o tormento;
se fosse o Paraíso, não haveria felicidade na terra porque, comparando a via contingente e sofredora com a delicia da existência paradisíaca, tudo fariam para desertar este mundo precário, com ânsia do outro, de eternidade feliz. E os berços, que se aureolam de sorrisos, cercar-se-iam de lamentações, porque viver seria tanto como penar.
Achas que Deus não é bom, porque não consente que o vejas. O nosso egoísmo é que nos agrava o sofrimento. Tu, em verdade, não choras o filho que deixou de viver, que está livre de todos os males que nos torturam: choras o filho que perdeste, o bem que te foi levado, o amor que te falta. Choras sobre ti mesma e julgas chorar sobre o seu túmulo.
- E isto basta-te? consola-te?
- Sim, basta-me, consola-me como me basta, para consolação de tudo quanto tenho sofrido, a certeza, em que estou, de que Deus existe. E se tu invocas o espírito do morto é porque estás certas de que ele não desapareceu com a morte, não se desfez como o corpo e agora, mais do que quando convivia conosco, triunfal, puro e eterno, tão puro como o teu amor, em que ele se encarnou, e eterno, tão puro como a Essência a que regressou.
- E achas que faço mal em trazê-lo assim enfeitado de flores?
- Mal? Por que mal? É um culto e todos os cultos, quando neles há sentimento, como nesse em que pões toda a alma, são belos e dignos de respeito.
Falo-te assim para que não chores tanto. Flores são carinhos; lágrimas são tormentos e, se ainda o chamas de filho e o queres venturoso, porque o hás de perturbar, entristecendo-o com tantas lágrimas?
Flores, sim quantas queiras. O que a morte podia levar, levou. O que nos resta ficará conosco eternamente, a saudade, e chorá-lo é devolver ao coração as lágrimas que dele tiramos.
SOMBRAS
Que resulta da nossa aliança com a luz? Sombra, nada mais.
Alegria é luz e assim como na maior claridade as sombras tornam-se mais negras, mais a tristeza se agrava se dela, em volta, a alegria exulta, O silêncio é alivio: calma. Na quietude em que me refugio chego a não acreditar na tua morte porque te sinto em mim, comigo, como se vivo foras.
À noite as sombras não aparecem; todas se recolhem aos corpos que as expuseram. De dia, porém, destacam-se, prolongam-se com a terra.
No apogeu meridiano, não suportando a claridade fúlgida, acolhem-se ao de que saíram, como se concentra na dor um coração ferido se, em torno dele, há expansões de vivida alegria.
Felizmente, porém, o sol pouco se demora no zênite e logo que declina projetam-se, de novo, as sombras, até que todas se fundem em uma única, que é a noite.
Isolo-me, não porque aborreça a vida e inveje a felicidade alheia, mas para forrar-me no alvoroço da alegria.
Que o coração adormeça tranqüilamente, no silêncio, e sonhe, como quem dorme.
Sonhando, anda que em vigília, - porque recordar é sonhar de olhos abertos - vê o que foi, reconstitui, um a um, os dias venturosos até aquele que ficou eterno na memória, como jazem imóveis sobre as horas que não soam mais os ponteiros de um relógio cuja máquina parou.
O PIANO
Seis meses já haviam passado e, todavia, ninguém ousava abrir o piano. Mais do que escrúpulo havia medo.
Como que se temia o instrumento: negro, alongado a um canto da sala, em forma de altar, tendo sempre em cima um vaso de flores.
Rondávamo-lo sem ânimo de o tocar. De quando em quando uma das meninas folheava um álbum, de preferência o colecionado por ele, com as peças de sua predileção. Marejavam-se os olhos e, em silêncio, tornavam os volumes aos seus lugares, na estante.
E o piano permanecia mudo.
Um dia, porém, com receio de que as cordas se estragassem, abrimo-lo e a enervação metálica do instrumento rebrilhou ao sol.
Levantada a tampa do teclado, como um lábio que se arregaçasse em riso irônico, o fio das teclas apareceu ebúrneo.
Acercamo-nos todos do piano, olhando-o como se o víssemos pela primeira vez e dele esperássemos pressagamente revelação de segredo sombrio. Um momento ali ficamos, tácitos e quedos.
A mãe foi a primeira a afastar-se; as meninas seguiram-na às surdas, como se temessem, com o rumor dos passos, despertar o mistério. Bem sabiam elas que o instrumento havia de as fazer sofrer e a mim, e a todos, à própria casa que ele, dantes, alegrava com as suas melodias.
Seria pelo som? Se por tal fosse por que não nos comoveriam as vozes de tantos outros pianos que soam na vizinhança e só a daquele nos havia de entristecer?
É que as outras são vozes alheias, de outros lares. Nunca soaram para ele, nunca ele as despertara fazendo-as traduzir o que trazia na memória.
Ali passava ele horas e horas recordando trechos ou, entre nós, recolhido em êxtase, ouvia a mãe repassar as melodias que tanto amava.
E como as sentia! Com que enlevo, verdadeiramente religioso, ficava a ouvi-las, quieto, imóvel, sonhando. Enfim...
Um dia - era necessário que a casa retomasse o rumo na serenidade, reentrando na vida costumeira - abriram o piano e as cordas, que dormiam, despertaram.
Um frêmito percorreu todas a casa, a própria luz tornou-se tíbia e pálida, como acontece com a das lâmpadas de vigília quando entra na alcova o sol, e todos os olhos velaram-se de lágrimas.
Foi como se ele houvesse tornado: sentimo-lo presente.
E o instrumento gemia, soluçava. A própria musica, tão alegre outrora, vinha em pranto.
Seria o instrumento que a modificava ou os nossos corações? Eles, decerto.
O mesmo seria trasfegarmos de fonte a vasos que contivessem ou houvessem contido essência a água pura que logo se infundiria em aroma.
A música, impregnando-se de saudade, recordava e, com tal transporte, já não ouvíamos o instrumento, senão a ele, a voz dele e víamo-lo, sentíamo-lo, tínhamo-lo conosco e, a cada nota que vibrava, o coração respondia com uma lágrima, mandada aos olhos.
Ó arte misteriosa, arte etérea e evocadora! De que força superior dispões para que ressuscites mortos e exsurjas do túmulo, redivivos, os que se foram; as vozes, que se calaram; o corpo, porque o sentimos; o espírito, porque o percebemos no encantamento sonoro! Será a música sortilega como os conjuros dos nigromantes, que têm poder de trazer da Morte as presas sepulcrais?
O certo é que a música realizou o milagre que os nossos corações deprecavam.
Ele veio por ela, acudiu à invocação dos sons, desceu do Além e pairou sobre nós.
E toda a casa ficou, um momento, em alvoroço como a granja da parábola, de onde desertara o filho pródigo, quando os seareiros, avistando-o na estrada, largaram o serviço e correram alvissareiramente a dar a boa nova aos pais e aos irmãos do que tornava.
E quando a mais triste das mães se assentou ao piano, abriu o álbum que ele lhe dera e começou a executar débil, tremulamente e chorando, foi ele quem mais atentamente a ouviu, porque todos nós o sentimos, não aqui, ali, mas em nós mesmos, como todos vêem e sentem a luz ou o perfume em uma sala, se nela há sol ou flores vivas.
Ó arte miraculosa! E nós que temíamos ouvir-te! Nós que tanto tempo evitamos o altar da ressurreição, de onde ele saiu nos sons, como se evola o aroma nas espiras de fumo dos incensórios, vindo a nós, envolvendo-nos, visitando-nos com a sua presença imaterial, enchendo com ela o grande vazio da nossa saudade, imenso, sem termo como o infinito.
Já agora que importam as lágrimas! sabemos como atraí-lo. Ele adorava a música, buscava-a onde ela soasse. Por que não o havemos de chamar aos nossos corações com a voz harmoniosa?
E o piano, outrora temido, é hoje o nosso companheiro e confidente.
Abrimo-lo, e, em contraste com o sepulcro, que não nos restitui o que, avaramente, guarda, ele, com a vibração das suas cordas, traz-nos o espírito adorado, atrai-o do Além e fá-lo vir até nós, conviver conosco, senão em corpo carnal, na essência que dele se acha integrada em Deus, da qual conservamos a lembrança na memória do coração, que é a saudade.
A MEMÓRIA
Dantes não havia homem mais rico do que eu, e o meu tesouro chamava-se – memória.
O que eu tinha ali acumulado o com que ordem! Desde a infância a ajuntar por dia...
E tanto era eu desejar como ser logo atendido.
No dia último dos dez do meu martírio quando me convenci que morrias, não sei que se passou em mim.
Foi como se reduzissem a cinzas todo o meu tesouro.
Falando ou escrevendo esquecem-me as expressões, faltam-me os termos. Só tu ficaste, tu só, tudo mais se esvaiu.
Assenhoreaste-te da casa das relíquias e nela imperas, solitário e dono.
E, agora, se recorro à memória por um nome, é o teu que, de pronto, me responde; se procuro recompor uma imagem, é a tua que se me afigura; se atento a um som remoto, ouço-te voz; se insisto em recordar uma cena, vejo te, e como? Infante, menino, adolescente ou jovem, como te perdi? Brincando, estudando, na arena, no trabalho, à mesa, na alegria da família, forte, feliz em suma? Não! Vejo-te sempre na hora extrema, estendido no leito arfando encarado em mim, com o crucifixo ao peito, entre as mãos gélidas, diluindo o derradeiro olhar em lágrimas.
Que alivio seria para mim perder o que me resta da memória!...
Mas não! Perder esse pouco, que é tudo. seria esquecer-te, nunca mais sentir-te, proceder com a tua lembrança como faz o túmulo com o teu corpo.
Não! Pereça tudo! Esqueça eu tudo, contanto que fiques no fundo da memória, tu, como fica a esperança no coração do mais desventurado.
RECORDANDO
Fica-me em caminho a casa em que nascente. Vejo-a diariamente e, olhando-a, lembro-me da manhã de alvoroço quando dissipaste o silêncio daquele lar com a alegra do teu primeiro choro.
Como me ecoou no coração a tua voz deserta: sons apenas, vazios; espaços em que deviam, com o tempo, desabrochar palavras, flores que não se trazem do céu, por serem efêmeras, próprias da terra.
Lembro-me de ti ao colo de tua mãe, tão pequenino e tão chegado ao seio como se fosses o seu próprio coração.
No breve instante que dura a minha passagem por esse oriente toda a tua vida passa-me pela alma, atravessa-a de golpe, cinde-a com a velocidade da luz.
Quantos sonhos ali entretecemos com idéias felizes, desenrolando infindavelmente o novelo de ouro das nossas esperanças!
Sete irmãozinhos teus já nos haviam deixado sós. Sete vezes, chorando, foram levar os enjeitadinhos da vida à roda lúgubre dos que, expostos na terra, são recolhidos no céu.
Sete vezes havíamos perdido os bens que Deus nos dera.
Temendo que te acontecesse o mesmo redobrávamos, à noite, a vigilância para que a Morte, ladra dos nossos amores, não nos entrasse pelo sono furtando-te também.
Se te aquietavas serenamente desconfiávamos da tranqüilidade; se te agitavas temíamos que fosse de febre. E tanto desvelávamos em volta do teu berço que despertavas assustado aos gritos.
Que alegria quando te ouvíamos chorar!
E tua mãe, sorrindo, dava-te logo o seio e, inclinada sobre ti, mais do que o leite, o que te oferecia era a própria alma. Tais eram as cenas de amor, iluminuras da minha felicidade.
Aconselharam-me a mudar-me para casa mas desafogada, que tivesse jardim onde respirasses ar livre, pudesses gozar o sol, passar as manhãs entre árvores.
Achei perto o que desejava. Casa ampla, terreno vasto, arvoredo e flores. Ali sim! Acordavas com o canto dos passarinhos.
Eras pequenino, de colo, quando me apartei de ti. Durante sete dilatados meses, errando por brenhas, correndo o mar e rios, parando em vilas sertanejas e em cidades, acompanhei o dealbar da tua vida pelas cartas de tua mãe.
Em uma anunciou-me ela os teus primeiros passos; em outra o teu primeiro dente; em outra a tua primeira palavra. E eu via-te no meu pensamento, sentia-te dentro de mim.
Quando regressei contavas um ano e três meses.
Ao entrar em casa, vendo-te formoso, com os cabelos em cachos, os dentinhos alvos à flor do sorriso, como se acabasse de mamar e trouxesse ainda a boca cheia de leite, olhando-me espantadamente, com a inocência a brilhar dentro dos olhos, fui-me direito a ti de braços estendidos.
Refugiste arisco para junto de tua mãe, com um beicinho de choro, que me fez sorrir.
Não me conhecias. Era natural. Pouco a pouco porém, fui conquistando a tua confiança e já na tarde desse venturoso dia éramos amigos íntimos.
E tu, tomando-lhe pela mão, levaste-me a percorrer o teu pequenino paraíso, a chácara em que te criaste, entre árvores, uma das quais a ameixieira, foi a tua ama mais solícita, dando-te os frutos dos seus galhos e agasalhando-te à sua sombra, onde brincavas, e, quanta vez! dormias.
Desde então até o dia triste se nos separamos foi por ausências breves.
Cuidava eu, na minha confiança, que assim seria sempre até que me soasse a hora de sair na viagem infinita.
S foste tu que partiste!
Eu deixei-te pequenino, quando não sentias ainda a minha falta: deixei-te, mas regressei. Tu me deixaste cheio das tuas raízes, já me havias tomado todo o coração... e não voltas, não voltarás nunca mais!
Passo diariamente perto da casa em que nasceste, olhando-a, porém, logo me lembro do túmulo em que jazes. Tu, não: teu corpo criado por nós, a nossa parte humana, que a divina foi por Deus reavida e lá está com Ele, longe de nós, longe da terra, tão longe!
Longe, todavia está o sol e aclara-nos; longe estão os demais astros, e vemo-los. Só tu não nos dás sinal de ti a não ser pela saudade em que te transformaste e que não nos deixa, tão viva em nós que eu, às vezes, tenho medo de que te estejamos a prender conosco, privando-te do Paraíso, encarcerado, como te trazemos, em nossos corações.
Mas se deles saíres que nos ficará neste mundo, perdida a única consolação que nos resta, que é a tua, lembrança?
Vive, vive em nós, no mais íntimo da nossa alma: vive na saudade como antes vivias, em esperança, no mais profundo do nosso amor.
VISITA
A súbitas, sem causa, constringe-se-me o coração. Enche-se-me o peito de ânsia. Trava-se-me a respiração em angústia asfixiante.
Abre-se-me um hiato na existência como se fendem abismos na terra quando a convulsionam cataclismos.
Deve ser assim o morrer, o instante em que a alma, soltos os liames que a retém ao corpo, emerge em surto demandando o espaço para ascender ao céu, liberta.
O que se passa em mim em tais momentos lembra-se essas bolhas de ar que afluem na profundeza dos lagos e, mal chegam à tona, dissolvem-se integrando-se na atmosfera.
Sinto que alguma coisa se desprende do meu ser, como se desprende uma pétala da flor.
Arrasam-se-me os olhos de água e o coração, em sobressalto, precipita as pancadas.
És tu que passas por mim. És tu que me fazes vibrar de comoção. És tu que me atravessas instantaneamente a memória como um pássaro, em vôo de frecha, corta, alígero, o espaço.
Pássaros...! E que são as saudades senão aves de arribação? Ao invés, porém das andorinhas, que, a maneira dos heliantos, andam sempre procurando o sol e, as primeiras brumas, reunidas em caravanas, partem, céus em flora, em busca de climas tropicais, elas emigram no estio e é justamente no inverno que nos chegam.
Coração alegre não lhes serve: gostam de fazer os ninhos à sombra da melancolia e aí vivem e procriam.
No mais rigoroso da tristeza, quando as lágrimas são mais copiosas, levantam-se em revoadas e escurecem e entristecem ainda mais o que, já de si, é lúgubre: o coração magoado.
Se no momento, tais evocações excruciam-me, deixam-me depois a alma aliviada, como certos bálsamos que, no instante em que são aplicados às feridas, exacerbam-lhes as dores para as lenirem depois!
E por que assim se converte a angústia em conforto? Porque, por ela, me convenço da tua sobrevivência.
Se tornas, posto que só em espírito, é porque existes.
O nada não se levanta, não atende, não se manifesta. E tu surges, vens a mim, anuncias-te presente, ainda que invisível.
Caminhando ao longo do silvedo eis que nos chega um aroma. Senti-lo e logo saber que flor o exala é tudo um instante. E a flor ? Onde? Escondida na balsa, oculta nas frontes ou refolhada nos aningais do lago, algures, invisível, mas presente.
É o que se dá quando meu coração se retranse de saudade. Entristeço-me, logo, porém, consolo-me sentindo-te.
Melhor seria que eu te visse, que vivesses conosco. Mas o maior tormento, depois que te partiste, era imaginarmos que te havíamos perdido para o sempre. Não!
Estás longe, mas existes, não desapareceste porque o essencial de ti a parte eterna do que foste, vive.
O que lá está, na terra, é o casulo: a borboleta voa livre, na luz, e, de quando em quando, saudosa, baixa do céu à terra e pousa de leve em nossos corações.
TEMPESTADE
Noite lúgubre.
Estortegam-se agoniadamente as árvores ao vento. Bátegas rufam nas telhas. Por entre as frinchas das janelas afuzilam clarões.
Rápido esfria em regelo. À rajada mais forte o arvorado rumoreja estabanadamente. A
enxurrada chofra, gorgoleja torrencial, rasgada, de quando em quando, por automóveis que passam.
Troam, estrepitam, ribombam trovões.
No bater das portas e das janelas tem-se a impressão de que andam a forçar a casa.
Acendem-se luzes. São as crianças que despertaram sobressaltadas com os fragores.
A estampido mais rijo ei-las de pé, espavoridas. Correm a refugiar-se junto a nós.
E o estridor aumenta.
Deflagram explosões seguindo-se-lhes silêncio pávido.
De repente a chuva jorra cheia e grossa estalando na rua.
O vento uiva rondando o espaço; distancia-se, torna, envolve a casa como matilha que se encarniça furiosamente em presa.
Luzem relâmpagos mais freqüentes. A própria luz das lâmpadas vasqueja, freme em crispações de espamo e, a súbitas, apaga-se.
E a escuridão, que amedronta, laiva-se de livores convulsos.
Penso nos que se acham lá fora, à intempérie. Quantos!
Penso em ti!
Sentirás no teu túmulo o rigor da tormenta? Não creio.
Se tal se desse com mais razão terias sentido a que se desencadeou em nossos corações quando, com a respiração já flébil, nos arquejos dos últimos anélitos, tinhas em nós os olhos fitos e marejados de água.
Nada sentias - nem os soluços, nem as deprecações, nem as vozes desesperadas com que, através de lágrimas, bradávamos para que não partisses.
Se não sentiste naquele angustioso instante, quando ainda te não arrancaras de todo a nossa esperança. preso à vida pelo olhar, que poderás sentir agora, silêncio cm que jazes, nessa profundidade, a maior de todas as profundidades, onde, se riso chega o nosso amor, não chegará, decerto, a raiva das tempestades!
RAJADA
Como explicar tais surtos?
A mim mesmo, surpreso, lanço esta pergunta.
Que ele venha, invocado pela saudade, quando o coração, que se não resigna, o chama, é natural. Não há túmulo que resista a tal reclamo, pesem-lhe, embora, em cima, mármores e granito, metais e terra fúnera: o prestígio do amor tudo consegue.
Se a gota de água perene abre sulcos e atravessa penhascos, que não farão as lágrimas, muito mais poderosas, por virem de fonte divina?
Assim, compreende-se que a invocação do amor consiga trazer da morte, em espírito, aqueles que desaparecem, mas que, de improviso, espontaneamente, eles nos surjam, entrem-nos pelo coração... só se neles também perdura o amor, se a saudade insiste em os prender à vida para que, por ela, tornem, como a andorinha regressa do exílio ao ninho antigo, mal se dissolve a neve que a repeliu para outro clima.
Ainda que o não esqueça instantes há, porém, em que o não sinto, tanto ele se aquieta como adormecido no fundo da memória. Basta, porém, um rumor leve de lembrança, uma subtil reminiscência para que ele desperte.
Assim, porém, como na vida quando os trabalhos nos solicitam e saímos por eles, deixando em casa os filhos, cada qual naquilo que lhe consente a idade - um, no estudo; outro, brincando e o pequenino no berço ou no aconchego do colo maternal, sem que deles nos esqueçamos, posto que os não tenhamos presentes, assim, também horas há em que nos abstraímos dos mortos e se isso importasse em esquecimento da mesma ingratidão se poderiam igualmente queixar os vivos.
Em tais momentos quem nos encontra no giro do trabalho, falando a um e outro, rindo com eles, não dirá que toda essa aparência de alegria ou indiferença assenta em melancolia.
Profundezas, quem as sonda? Penetrais, quem os alcança?
Julgue-se o oceano pela superfície que rebrilha ao sol em frisos ondulantes, riso efêmero das águas que se desfaz em espumas.
Julgue-se a brenha pelo que dela se avista, verdura matizada pela florescência dos ramos.
Julgue-se o infinito pelo azul que o olhar abrange. Quem sabe lá o segredo do abismo, o mistério da selva, o arcano da altura.
O coração é a profundeza em que jazem os sentimentos, em que se ocultam as paixões: amor e ódios, saudades e remorsos, todo o bem e todo o mal.
A noite é bem a imagem da morte.
Vai-se o sol e as sombras parciais desaparecem, fundindo-se na escuridão universal, que é a Treva. Vai-se a alma, que é luz, e o corpo, sombra da terra, torna ao de que veio: a Terra.
E, assim como o sol, e retorno, refaz o dia, assim a alma, depois do tramonto e da depuração, regressa à vida e ilumina outro ser, efêmero como o dia.
Mas essa luz instantânea, luz que brilha e extingue-se, relâmpago que apenas serve para mostrar-me o deserto, claridade que fulgura tão só para que eu veja toda a imensa extensão da minha desventura, quem a acende, e por que?
Como explicar tais surtos, esse ressurgimento do morto dentro da minha saudade? Quem o invoca e que chamado atende? Será Deus que o mutila para consolo da minha alma ou será ele próprio que se desprende da Eternidade e, a súbitas como para certificar-se de que não morreu no meu amor, desce em visita ao coração, que era o seu ninho? Não sei.
Na maior serenidade, tudo em calma: o céu azul! com o sol em pleno, as árvores imóveis nos ramos as aves alacres cantando. De repente, sem nuvem que a anuncie, sopra de longe, das montanhas, frias, ríspida rajada.
Curvam-se as frondes, sobe a poeira em torvelins, abrumam-se os ares, negros bulcões empastam, escurecem o céu em cariz de borrasca.
Mas o sol esgueira um raio, abre, por fim, a larga alara de ouro. Reacende-se a claridade, limpase de todo o azul, tornam os pássaros ao vôo e a vida serenamente continua.
Assim, por vezes, no meu coração.
Trabalho na quiete do meu gabinete ou cruzo a multidão nas ruas: movimento ou placidez, rumor de vida ou silêncio. Atento em dar forma a uma idéia, torturando, polindo e repolindo a frase eu sigo distraído do turbilhão tumultuário, tanto como folha morta levada ao léu da correnteza. Nele não penso. Acha-se onde o amor o recolheu quando a morte o prostrou, no mais recôndito do coração, onde a saudade conserva carinhosamente o seu tesouro.
De repente o coração me estremece, como abalroado e, no alvoroço que o agita, transbordam os seus veios sentimentais e logo se me marejam de lágrimas os olhos.
Que encontro tê-lo-á abalado assim, ao pobre coração tão quieto, para que dele tanto se ressinta? Que rajada passou por ele toldando-lhe a alegria, perturbando-lhe a tranqüilidade, como esses improvisos ventos das montanhas frias que, inopinadamente, se levantam, sopram ríspidos carreando nuvens que escurentam o sol, retorcem angustiadamente as árvores e tomam um céu claro acumulado bulcão de cúmulos tempestuosos?
Rajada de saudade, vinda não se sabe de onde nem por que. De onde? senão da morte; por que, senão por ciúme, desconfiança, talvez, de que haja sido esquecido para surpreender a alma, apanhá-la distraída e ver se nela o lugar que era, outrora, seu foi ocupado ou esquecido, enchendo-se de nova alegria ou deixando em indiferença como os terrenos que, por abandono, desaparecem em maninho agreste.
Como te enganas, espírito amoroso!
Vem! E sempre que apareças, baixando de onde assistes, acharás o teu lugar florido de saudades, flores que não morrem nunca porque, para regá-las, há no coração uma fonte que não cessa de correr e cada vez em maior cópia.
Vem na vigília ou no sono, vem! e acharás o teu lugar tal como o deixaste, e verificarás que és nele dono e único senhor; que nada do que te pertencia, e te pertence, foi ali tocado que continuas a ser nele quem dantes foste e agora és mais que nunca e vives e sobre o que de ti ficou não tem poder a morte, porque é a mesma Vida, que não perece, Vida como a da Eternidade, por ter a sua origem em Deus: a alma.
Vem ou como quando atendes carinhosamente ao apelo da minha a saudade ou surgindo, em meio da minha alegria ou do afã do trabalho, como costumas aparecer inesperadamente, sempre bem-vindo, para consolo e martírio da minha saudade.
MEMENTO
Como se há de esquecer toda uma vida, que se prendia a nossa, se o operado, a quem amputam um membro, durante muito tempo guarda a impressão de ainda o possuir?
Se as dores ficam assim vivas, como se alguma das suas raízes não houvesse sido extirpada, se o sofrimento persiste em reminiscências, ainda depois de curado, como se não há de perpetuar, mesmo que a morte a leve?
Geme o enfermo dores que o não pungem só pelo hábito, em que estava, de as sofrer; e não há de chorar o que não se conforma com a desdita de haver perdido um ser amado?
Se de um membro apenas fica tão viva recordação no corpo como não há de subsistir em saudade na alma a lembrança de um ente estremecido?
O que se levanta do leito e dá pela ausência do que lhe foi amputado custa a convencer-se do que vê, porque continua a sentir, posto que em ilusão, o que, dantes, o atormentava. E o que perde um amor há de esquecê-lo? Não!
Sinto-te como se estivesses comigo. Levaram-te de mim, a todo o instante, porém, tenho-te presente.
E a ti não são dores que te recordam a minha alma, mas venturas, pelo que sofro ainda mais o bem perdido.
Se o operado não esquece o que o fazia gemer, como me não hei de eu lembrar do que me fazia sorrir?
A LUZ DA SAUDADE
Tanto se me fixou na mente o episódio lúgubre daquele imenso instante que, todas as noites, mal apago a lâmpada à minha cabeceira, a escuridão acende-se em luz lívida e nessa claridade fátua, instantaneamente, a cena reproduz-se vem projeção fantástica.
Triste ressurreição da morte!
Vejo-o no leito, tal como o tive ante a minha impotência desgraçada, extinguindo-se pouco a pouco, flébil: de olhos abertos, fitos, lábios hiantes, mudos.
Tão grande era o silêncio no aposento como só mesmo pode ser nos túmulos. Era a morte que entrava com ele, como a noite entra com a treva e a madrugada com a luz.
Abraçado com o moribundo eu sentia-o ir pouco a pouco esfriando. O silêncio já o havia penetrado parando-lhe o coração.
Pois assim havia de cessar aquela vida em flor?
Como prendê-la a mim? Como defender aquele ser querido que me era arrebatado dos braços sem que toda a minha força, toda a minha fé, que explodia em clamores a Deus, e o espanto em que se petrificara a pobre mãe surpresa, o pudessem reter?
Quem há capaz de suster a luz ou a sombra, deter o dia ou a noite?
Pobre filho! De que lhe valia a mocidade? Vinte e quatro anos! Plena juventude! E ali jazia, mais frágil do que quando eu o vira, recém-nascido, naquele mesmo leito, entre os braços daquela mesma criatura que o encarava extática sem compreender que ele, seu filho, sempre tão meigo, nem sequer se voltasse para olhá-la, a ela, sua mãe, que o chamava em desvairo, docemente, baixinho, com uma voz que lhe saia trêmula, débil, chorando, do mais fundo do coração.
E tudo, em volta, parecia sentir: as próprias paredes, os móveis, a mesma luz que tremia, como se soluçasse.
Sobre o peito robusto do jovem atleta, como em calvário, alguém pousara um crucifixo de bronze.
Soluços faziam a pulsação do silêncio, A vida, entanto, prosseguia fora no seu afã ruidoso e, indiferente, contínuo, acompanhando o tempo, o relógio picava os segundos como se desfiasse um rosário, conta a conta.
E o corpo juvenil imobilizou-se de todo, adormeceu sereno e fechou-se sobre ele a vida como se unem as águas sobre o náufrago que afunda.
O pranto desatou-se em volta.
Ela só não teve lágrimas: estava como árido deserto, ardendo em sede, na sua infinita e estéril desventura.
A dor imensa que me enchia todo o coração não achava passagem bastante para expandir-se, salvo se o rebentasse.
E assim, enclausurada, mantinha-a naquela aparência de impassibilidade pétrea, igual a que estatelou Maria junto à cruz.
E, todas as noites, é certo reproduzir-se a cena lúgubre. Eu já a espero e mal apago a lâmpada à minha cabeceira, preparo-me para o triste transe que se renova na escuridão, dentro dum halo feral, que outra coisa não e senão saudade, luz que alumia os mortos.
INSTANTE ETERNO
Através dos minutos como em poeira de entrada, os dias giram velozes na vertigem do Tempo.
Dealba, fulge o sol; empalidece a tarde; cinza-se o crepúsculo e a noite obumbra-se. Treva, de todo negra ou cravejada de astros.
Eis, de novo. a manhã clara. Sob o dia, reluma; logo, porém. começa a declinar e enubla-se.
Anoitece.
E não cessa o movimento: dias sobre noites, noites sobre dias.
Aquele instante, porém, subsiste eterno, o mesmo em que para mim, encerrou-se o ciclo da ventura.
Dias e noite são raios da roda que não pára; o lúgubre momento é fixo, como o eixo em volta do qual o Tempo célere circuita.
Anos que eu viva, séculos que vivesse, ainda que, por desdita, me tornasse eterno, toda a minha existência os meus dias, anos, séculos infindos haviam de girar em torno do minuto trágico em que o vi tombar da juventude no túmulo, como flor talada em pleno viço que caísse num lago e, ferindo as águas nelas abrisse círculos progressivos, até os extremos das margens.
Assim também chegará até o fim da minha vida a lembrança do instante em que o perdi de mim em torno do qual os dias passam, passam os meses, hão de passar os anos sem que eu os sinta, porque todo me concentro no momento em que ele caiu para o sempre, eixo de onde partem, abrindo-se infinitamente e, cada vez maiores, as saudades no meu coração, como as enciclias se frisam e dilatam na água ferida em um ponto, pela flor decídua.
NA JAULA
Sentem-na os míseros leões cativos; sentem-na nos eflúvios; sentem-na no aroma que lhes chega com a aragem; sentem-na no cheiro cálido da terra adusta; sentem-na, a era da explosão da seiva, era em que se enfeita e alegra a selva. Sentem-na e fremem de nostalgia.
A ânsia de rever os sítios florestais e as dunas do deserto torna-os ferozes. Então, irritados, levantam-se, de ímpeto, na jaula, põem-se a rondá-la iterativamente, chegam aos varões, tentam mordê-los, grifam-nos a unhadas e, não os podendo quebrar, arfam aos rugidos surdos.
Como a esperança não os abandona deitam-se junto aos ferros inflexíveis e ali ficam, de olhos fitos no vago, o olfato esperto, arejando nas auras a olência do que não podem alcançar, do que lhes foi tomado para o sempre.
Vêem o que olham? Não! vêem o que sentem.
E o que sentem eles, os míseros leões? Sentem o que lhes acorda na memória - a brenha verde: espessa e sombria aqui; aberta em clareira além, com os voluteios cristalinos da água, os antros obscuros onde branqueia, esparsa, a ossamenta das presas, sentem os companheiros livres: uns, deitados sob ramarias, outros à espreita, nos juncais, à margem dos rios largos;
ainda outros, resupinos, brincando com os graciosos cachorrinhos.
E colham tristes, alongam infinitamente o olhar querendo ver além do seu, além da linha do horizonte a selva, as dunas, o que perderam no jamais.
Como alcançá-lo? Como sair daquela prisão alerta em grades que ainda lhes tornam mais triste o cativeiro com a ironia de lhes deixarem ver a liberdade?
Fora melhor, menos cruel, sem dúvida, prenderem-nos em ergástulo, onde não chegasse fisga de sol, onde não penetrasse o acre perfume de silvedo: ergástulo profundo, bem negro de escuridade opaca como a da cegueira; silêncios como a surdez, de onde se não vissem aspectos, nem chegasse rumor de vida e tudo se resolvesse em olvido.
Mas não! Presos em jaula, os leões olham e vêem, respiram o ar balsâmico, ouvem sussurros de árvores e aqueles mesmos ferros, por entre os quais avistam a vida, dela os separam inexoravelmente.
Míseros leões! E é no tempo em que florescem os bosques que o instinto se lhes aguça e mais os atormenta.
Assim, quando tudo é alegria e festa, na era de maior ventura para os livres, é que os leões cativos atroam as noites indo e vindo na jaula em fúria desesperada.
Melhor seria que os sepultassem em covas onde remasse escuridão eterna.
A jaula estreita, em que me agito sem sossego, é a minha angústia, agravada a todo o instante por lembranças, agora ainda mais intensas pelo tempo que se vem aproximando, florindo as árvores e desabotoando em alegria os corações felizes.
Sinto-o presente, vejo-o através dos varões da minha jaula, como os leões vêem o deserto e a selva - recordando.
Por que há de vir de tão longe, ao presídio onde peno, a lembrança constante do bem que se me foi, como chega ao faro dos felinos cativos a fragrância das florestas?
E agora, mais do que nunca, punge-me a saudade, porque os dias são de ventura.
Natal! Tempo do convívio familiar, tempo em que todos se reúnem - os que se acham fora acodem à casa pressurosos e a mesa rodeia-se e amores.
E ele?
Assim como o aroma das brenhas irrita, enfurece os leões cativos, assim essa alegria da vida aumenta o meu desespero.
Fora melhor para as feras que as encerrassem em covis subterrâneos, sem luz de sol, sem ar de silvas, onde tudo fosse negrume, umidade e bafio de sepulcro.
A nós fora melhor que Deus nos apagasse a memória.
Lembrar é como avistar através de grades, sentir o intangível, ouvir sem poder escutar; lembrar é viver no mundo das ilusões, entre espetros e sombras.
Neste tempo suave, todo do bonança, tempo em que os pais se revêem nos filhos e, com a mesma fé, no altar doméstico, comemoram a crença e o amor, o coração vibra mais sensível à ternura.
Todos os lares preparam-se para a comunhão feliz na grande noite de Cristo e, eu... Eu sofro como sofrem os beluinos sentindo na aragem o perfume das selvas que florescem.
Como poderei ter alma para celebrar um natalício, ainda o do próprio Deus, quando só penso na morte e, em vez de berço, o que se me opõe aos olhos é um sepulcro?
O aroma que respiro é de flores funerais; os sinos que tangem hosanas soam-me a finados.
O meu Natal é a saudade e, através das grades da jaula em que me agito desesperadamente, vejo o céu, o céu longínquo, o céu infinito... e nada mais!
A MINHA MESA
Sete palmos exatos mede a minha mesa, tantos como um túmulo. Não lhe sabia eu a extensão e nunca atenderia a tal grandeza, para mim maior do que a do mais vasto império, se a não houvesse tomado com o teu corpo.
Não há chão mais fértil do que a tábua desse móvel, solo em que mourejo há trinta e três anos, sem repouso, granjeando a lenha, o pão e o linho e jamais deixou de medrar, ainda que o escopelismo da maldade por vezes tenha procurado abafá-la.
Por mais ásperos que hajam sido os temporais - e quantos me têm passado pela vida - nunca me sucedeu tornar desse abençoado alfobre, que rego com o meu suor, de mãos vazias.
Em qualquer dos seus pontos pode ser posto um sacrário por que, em toda ela, não há um milímetro inquinado.
Nunca a pena com que lavro abriu sulco para má semente: cova para protérvias, esconderijo para amealhar suborno. O que dela vem a flux pouco é, mas desse pouco é puro, sem cizânia, e sempre me bastou, e jamais dele me servi com remorso.
Mal amanhece busco-a e ponho-me logo a trabalhar e, assim como o lavrador enche os carros de ceifa, assim vou enchendo páginas com os meus sonhos.
E a imaginação, como as abelhas e as borboletas, que trazem pólen para fecundar as flores, traz, igualmente, para os meus devaneios, imagens e alegorias com que se ornamenta o agro dos meus escritos.
Nessa mesa fundei alicerces e levantei construções: ela é o meu pequeno império, o meu domínio, o meu diversório e o meu celeiro, o meu retiro de paz e o meu horto de oliveiras.
Sete palmos! Toda uma vida no espaço que tomou, estendido, um corpo morto: o teu, meu filho!
Foi nessa mesa que passaste a tua derradeira noite em nossa companhia, em tua casa, casa de teus pais e de teus irmãos.
Foi nesse campo de trabalho, transformado em essa, que ficaste exposto aos nossos olhos toda uma noite, a última e definitiva, noite subterrânea, impermeável à luz.
Ficaste onde ficam meus livros, na banca em que exerço o meu labor ingrato à qual, em pequenino, vinhas engatinhando e distraias-me com os teus tartareios infantis, que eram como botões das palavras que, pouco a pouco, se te desabrochavam na boca.
Foi nessa mesa que aprendeste a ler com tua mãe e garranchastes, de mão adunca. os primeiros gatafunhos.
E, quanta vez, à noite, enquanto eu trabalhava e ela sorria, contemplando-te de longe, escondida na sombra, tu, com os teus soldadinhos de chumbo, improvisavas batalhas, e o meu tinteiro era fortaleza e eram os meus livros e mais objetos espalhados, baluartes pugnacíssimos contra os quais impelias os teus batalhões de estanho.
E eu, suspendendo o que fazia, entrava no teu brinquedo, mais pueril do que tu, porque tomava a sério os combates e, a golpes de caneta ou espátula, arrasava as hostes que sitiavam um dicionário ou que procuravam escalar o porta-cartas.
E como terminavam as guerras das tuas conquistas? Com os soldados espalhados e os tachos da cabeleira do general no campo da batalha, porque a cabecinha linda, que tantos planos terríveis engendrara, não resistia ao sono e, inclinando-se sobre os bracinhos enrodilhados, ali ficava como a dos anjos rafaelitas, até que a ama, tomando ao colo o herói, que eras tu, deixava a mesa sem o seu gracioso ornato.
Agora, quando me sento para trabalhar, o que logo me aparece aos olhos é o teu corpo imóvel, rígido, vestido de negro, cercado de flores, entre círios, com um crucifixo nas mãos enclavinhadas. E depois no caixão em que te levaram de nós... Por fim, desfeita a visão a mesa reaparece, disposta, como outrora, antes do desastre, com os apetrechos de trabalho.
Tu é que és agora a minha inspiração, tudo me vem de ti e, assim como o teu corpo enche o âmbito da cova, a tua imagem ocupa a minha mesa, como se nela houvesse ficado impressa e a saudade, que é o que me resta de ti, enche-me a alma.
E tudo quanto imagino e busco traduzir em palavras ressente-se de ti - assim a água que brota de terreno mineralizado satura-se das substâncias que nele jazem e o ar que circula em silva em flor impregna-se de aroma.
Tornaste a minha mesa um campo santo. Nela demoraste horas: toda uma noite e toda uma manhã; dela saíste para o sempre, mas o que eu nela escrevo sente-se do que de ti lhe ficou.
Às vezes, no silêncio da casa adormecida, trabalhando, ouço trepidações e uma voz que parece vir dentro de risos incitando a combate. E a mesa enche-se de soldadinhos e uma cabecinha trêfega, aureolada de cachos, agita-se nervosa... Cessa a trepidação, aquietam-se os soldados, a cabecinha inclina-se...
Ó visão do passado, espetro da ventura, saudade! E tudo se resolve; infelizmente, em tristeza e, em vez de vitória, terminada com o sono do guerreiro, sono de que ele acordava com o renascer da luz, alegrando em rumor a casa toda, o que eu, então, vejo, é a derrota, o corpo inerte que adormeceu para o sempre entre flores e círios.
E é tudo que me resta na mesa em que trabalho, mesa que era o meu império, o meu domínio, o meu alfobre feliz, toda a minha riqueza, onde eu semeava e colhia à farta.
E não havia chão mais fértil do que a tábua desse móvel.
Hoje... que se pode tirar de um cemitério?
Que se pode semear nos sete palmos de um túmulo?
Lágrimas não florescem e bom é que assim seja, porque seriam letais, como as da mancenilha, as flores que produzissem.


Domínio Público Gov.BR


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