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Textos para uso geral de domínio público.

Hóspede

Capítulo I
Como no relógio da parede soassem quatro horas, Nenê, num movimento de desânimo, deixou escorregar-lhe pelo corpo abaixo o jornal que estava a ler distraidamente. Algum pensamento triste acabrunhava-a. Tanto que por sob as madeixas sedosas da franja adivinham-se umas rugazinhas pequeninas a franzir-lhe a testa, aproximando-lhe os sobrolhos levemente arqueados. Veio-lhe um gesto grande de inquietação e com o pezinho delicado batia febrilmente no assoalho. Depois o braço torneado e alvadio, nas curvaturas graciosas fortemente desenhado pela manga estreita do casaco, apoiou-se ao encosto da cadeira de balanço para suster mais comodamente a cabeça gentil dos traços finos numa pureza ideal de Juno. E dali seus olhos verdeazulados - imensos lagos de ternura a desafiar os pescadores do amor, volveram-se languidamente, absortos na contemplação daquele quadro holandês todo feito com a mansuetude da vida caseira.
A luz viva de um sol, que ao termo da viagem galopava ligeiro com pressas de pernoitar na grande hospedaria do ocaso, entrava francamente pelas janelas abertas clareando aquele salão de gosto antigo, de uma grande prodigalidade de madeiras severas e embaciadas, sem o falso brilho dos vernizes. No fundo escuro paredes forradas em imitação de grandes panos de carvalho embutidos em largos caixilhos de mogno; e a harmonizar-se com elas uma pesada mobília Luís XIV de altos espaldares cheios de obras de entalhe. Apenas como nota vibrante e alegre - o refrangir dos cristais e dos serviços de eletro-prata a rebrilhar no grande armário envidraçado; e no centro da casa a mesa elástica já convenientemente preparada para o jantar com a toalha alvejante e o branco luzidio dos pratos dentre os quais se erguia, a tocar quase no lustre bronzeado, a fruteira de bacará - pirâmide alaranjada que se terminava floridamente num grande ramo de crótons.
No meio deste espetáculo, como a imagem da vida, sonolenta nas paixões, petrificada em sua impassibilidade, o vulto nobre e altivo de d. Augusta. Sentada junto à janela oposta, em uma cadeira baixa a contrastar com a uniformidade da mobília, tendo junto a si uma pequena mesa de costura sobre a qual repousava uma cestinha de vime, entretinha-se em alinhavar umas camisinhas de criança que ia jogando no chão à medida que as aprontava. Suas mãos longas e delicadas de aristocrata moviam-se em grande volubilidade. E por sobre tudo isto a sua cabeça de velha que atravessou uma existência calma, nua de desgostos, conservando a sua pele acetinada, tendo apenas branqueado os cabelos ao suceder dos anos.
Uns cabelos formosos e bastos que penteava em grandes bandos por cima das orelhas às quais se suspendiam uns compridos brincos de charão.
E Nenê esquecia-se do tempo. Achava aquilo tão bonito. Vinha-lhe uma sensação boa de felicidade a beijar-lhe o colo quase nu sob o rendilhado do casaco. Encolhe-se toda na cadeira num gesto elegante de gata friorenta e deixou que o seu olhar boiasse a flux do lago de mansidões. Para que incomodar-se? Ela sentia-se tão bem naquele descanso do organismo inteiro. Demais não estava com fome. Não valia a pena inquietarse por tão pouco. O jantar podia muito bem ser demorado um bocadinho. E deixou que a embalasse o oscilar da cadeira, seu pezinho delicado surgindo de entre as saias a desenhar-lhe os contornos sensuais da perna.
Voltara-se para as bandas de fora. Gostava do verde escuro das folhagens espessas, e achava graça na voz do vento a sibilar pelas ramadas. Além, no branco arenoso da alameda brincava o filhinho louro muito entretido em encher de terra os vagões de um pequeno trem. Estava tão bonito com a sua roupa azul de marinheiro e o rosto inteligente e rosado a enquadrar-se na moldura dourada de suas longas madeixas!
E Nenê sorria-lhe mostrando-lhe os dentes alvos, toda embebida nesse espetáculo, com vontades de ir brincar também, de beijá-lo muito e muito, nuns grandes pruridos de maternidade.
Entretanto o relógio batera quatro e meia. D. Augusta levantara-se e reunia as costuras. A coisa não podia ficar assim! Era preciso dar-lhe uma decisão, e já que o Pedro não vinha, jantarem sem ele! Nenê protestava. Ainda poderiam esperar mais um bocadinho. Pelo menos até cinco horas. E novamente umas rugazinhas pequeninas franziram-lhe a fronte. Qual o motivo dessa desacostumada tardança? Ter-lhe-ia acontecido algum contratempo? Repassava na memória todas as possíveis eventualidades. Semelhantes perspectivas repugnavam-lhe. Em tais condições ela sempre receberia muito cedo a triste notícia. Mas voltavam-lhe visões fantásticas de desastres por mais que ideasse para afugentá-las uns pensamentos alegres. Veio-lhe então um grande desânimo, um abandono de si mesma. Que necessidade havia de preocuparem-na com estes assuntos! E forcejava em voltar ao quietismo de idéias em que se lhe absorvia a existência inteira.
Capítulo II
Ouvira-se porém o parar de um carro e os gritos alegres do menino que correra para o portão. Nenê debruçara-se na janela, intimamente sobressaltada, presa ainda daqueles pesadelos medonhos de suas cismas de havia pouco, querendo saber do que se tratava, receosa ao mesmo tempo de conhecer a realidade que podia muito bem não lhe deixar a zona vaga da esperança onde arquitetar um castelo de felicidades. O ver o marido que caminhava alegre trazendo o filhinho ao colo foi-lhe de um grande alívio. Respirou mais livremente, como se lhe tivessem tirado de sobre o peito algum peso que a oprimia.
Correu ao seu encontro, desejosa de abraçá-lo logo e logo, de lhe fazer mil perguntas, de conhecer a causa de semelhante demora, cheia de contentamentos, feliz até com as suas primeiras apreensões que lhe faziam saborear com muito mais prazeres aquele beijo afetuoso que ia receber. E foi com a fisionomia assim animada, numa grande gentileza de movimentos, que ela se lhe ofereceu ao costumado ósculo vespertino.
No afã de abraçar o Pedro não reparara que ele vinha acompanhado por um outro homem; e ao vê-la - essa fisionomia estranha que divisava pela primeira vez - ficou muito perplexa, levemente ruborizada, não sabendo o que devia fazer nem como acolhê-la. Ao rápido relancear de olhos com que o examinara pareceu-lhe achar-se em presença de um amigo e julgou prudente dar-lhe um desses sorrisos benévolos de mulher bonita. De mais achou-o muito simpático, com a sua epiderme fina, olhar azul e cabelos castanho-claros.
E como o marido lhe pegasse no rosto e a beijasse longamente nas duas covinhas da face fez-se de muito escandalizada. Mas o Pedro gostou desse movimento arisco de pombinha branca que limpa as penas e voltou-se para o companheiro com uma risada franca e jovial. A mulher tinha dessas coisas! Também a culpa era dele que não começava pelo princípio e estava de braços cruzados em vez de apresentá-lo!
E para obviar o esquecimento foi logo dizendo à moça que aquele era o Marcondes -
o tal companheiro de colégio de que lhe falava tantas vezes. Então os dois cumprimentaram-se quase como velhas relações, conhecendo-se um ao outro por intermédio do Pedro, contentes de se verem, achando-se mais ou menos semelhantes às pinturas que deles havia feito o amigo comum. Agora Nenê examinava-o mais detidamente e agradou-se muito do seu aspecto correto com as roupas elegantes e os bonitos bigodes cuidadosamente retorcidos; e o rapaz por seu turno deixava-se prender pela atmosfera atraente de canduras que parecia circundá-la em suas formas graciosas de mulher bem feita.
Não havia porém tempo a perder! Era preciso quanto antes aprontar o quarto lá de cima do sótão porque as malas já estavam em caminho e chegariam de um momento para outro! E o Pedro entrou em explicações. Estava na rua do Ouvidor quando se encontrara com o amigo que naquele instante mesmo desembarcara de Pernambuco onde acabava de se formar, e andava à procura de um hotel. Ele entendera de seu dever não consentir em semelhante projeto, e trazê-lo para casa na qual se acomodaria muito bem porque o sótão tinha uma entrada independente. Além disto era questão de dias, apenas enquanto o Marcondes arranjava uma promessa de promotoria!
Esta resolução do marido surpreendeu-a algum tanto, se bem que já estivesse habituada a semelhantes inconsiderações de franqueza. Dentre todas as coisas preocupava-a essencialmente a forma pela qual a mãe receberia a notícia. Sabia-a muito cheia de etiquetas e de severidades no tocante a certos assuntos e de mais a mais de algum tempo para cá andava a evitar um choque entre a velha senhora e o marido. No final das contas e apesar dessa aparência de afabilidades em que viviam sentia haver de parte a parte um quer que fosse de hostil. Mas o mal já estava feito, não havia mais possibilidade de dissuadir o marido da idéia e a única obrigação pareceu-lhe o ajudá-lo na empresa.
Foi em tais disposições de espírito que ela dirigiu-se para o interior da casa a fim de ordenar as arrumações necessárias. Manobrou porém de forma a achar-se presente quando o Pedro apresentou o amigo a d. Augusta que, muito tem educada e gostando pouco de escândalos, contentou-se em corresponder-lhe com uma grande frieza. Mas tanto ele como o Marcondes, atarefados com as malas que acabavam de chegar, não se aperceberam disto. Ambos tratavam de acondicionar tudo aquilo da forma mais rápida possível, desejosos de se porem à fresca e com grande apetite porque tinham apenas tomado uma xícara de café ali no beco das Cacelas. E era então um desencontrado de opiniões, uma grande lufa-lufa que demorava ainda mais o serviço. Só depois de meia hora de contínuos e intermináveis vaivéns ficou tudo provisoriamente arrumado e eles puderam tirar as roupas que traziam e vestir os paletós de palha de seda com que compareceram à sala de jantar.
Capítulo III
O jantar corria mansa e sossegadamente. D. Augusta, à cabeceira, continuava com os seus modos glaciais, sem dirigir palavra ao genro e ao amigo, descarregando-se de toda a bílis no Valentim, que não sabia servir a mesa, e na cozinheira, que deixara a fumaça entrar nas panelas. E nem queria ouvir explicações a respeito. Azedava-se quando lhe diziam que tudo isto devia ser atribuído à demora inesperada. No final das contas essas desculpas avivavam-lhe mais no pensamento aquilo que ela forcejava exatamente em esquecer. Também que idéia extravagante tivera o genro de trazer para casa um companheiro de colégio que ele não vira mais depois da sua formatura no Pedro II, e que não conhecia absolutamente a família da mulher! Se o Pedro a tivesse ao menos previamente consultado! Mas qual! Ele era incapaz dessas pequenas deferências!
Supunha-se dono da casa e queria fazer tudo conforme lhe vinha à cabeça! Por isso também andava a meter os pés pelas mãos e a cometer quanta imprudência havia! Ele porém que tomasse tento porque ela não estava disposta a prestar-se a semelhantes desregramentos!
Nenê observava-a. Assistia àquele monólogo tumultuário de idéias que a mãe estava ali a ruminar no seu silêncio esfingético. E retraía-se absorta em uns tristes pensamentos, previa umas grandes atrapalhações a perturbando-lhe o calmo da existência e vinham-lhe umas sensações más de infelicidades. Ela sentia-se tão boa, tão fácil de contentar no seu egoísmo de sossego! Para que procuravam atormentá-la, lançá-la de repente, assim sem mais nem menos, numa questão entre a mãe e o marido? Decididamente estava muito só no mundo, sem uma grande afeição protetora a acolchoar-lhe as asperezas da vida.
Revoltava-se. Se ao menos eles pudessem brigar sem envolvê-la na questão! Não contava porém com semelhante coisa, e a imagem dessa desavença evocava-se por si mesma como encarnação pavorosa do futuro próximo, tornando-a apreensiva, cheia de inquietações. Admirava sobretudo a atitude tranqüila do marido que ainda não percebera a catástrofe iminente e continuava muito alegre a encher os intervalos dos pratos, dando ele sozinho vazão às necessidades da conversa.
Ao Marcondes não passava porém desapercebido este ar de constrangimento com que o tratavam. Sentia-se demais. Arrependia-se de ter aceitado o oferecimento do Pedro.
Mas ele tinha insistido tanto, mostrado tão veemente desejo de trazê-lo para ali! E
recapitulava a cena inteira. Aqueles grandes e cordiais abraços do primeiro encontro, a conversa apressada e genérica que haviam tido no café, a proposta repentina do amigo exatamente quando ele pedia-lhe informações sobre os hotéis da Corte. No final das contas não devia ter acedido a semelhante coisa; sua obrigação em tal caso era examinar bem as circunstâncias que o rodeavam e não entrar assim às tontas por uma família adentro. Se tivesse refletido, este seria o seu procedimento. Mas eles se haviam resolvido tão às pressas! E intimamente parecia-lhe que o outro era o culpado de tudo isto. Desde o colégio, naqueles bons tempos em que os dois saíam juntinhos das aulas para darem os seus passeios, que ele notara no Pedro um certo estouvamento, umas grandes imprudências e irreflexões, que então lhe pareciam muito engraçadas e de que os dois já se tinham habituado em carregar com as conseqüências.
Agora era novamente preciso que ele se metesse pelo negócio e acalmasse os ânimos enquanto não arranjava um pretexto para se retirar. Tinha muita confiança em si.
Lembrava-se das dificuldades quase idênticas em que se achara por vezes e que conseguira sempre resolver com a sua brandura e pacatez - inimigo como era desses choques brutais de temperamentos e de individualidades. Para dar princípio às suas resoluções, para entrar imediatamente nesta campanha à conquista de paz, parece-lhe bem conveniente começar pela criança, por aquele menino louro que estava ali a seu lado, na cadeirinha alta, muito sério, sem dizer uma palavra, com modos de gente.
Perguntou-lhe o nome. Chamavam-no Pedroca para não confundi-lo com o pai. E desde então rodeou-o de cuidados e atenções, procurando contentá-lo em todos os desejos, prestando-se às suas pequenas exigências e ouvindo com um sorriso benévolo a narração dos seus brinquedos. De mais encontrava nisto um grande prazer. Achava-o muito engraçadinho a gaguejar umas palavras quase ininteligíveis. Oh! Ele gostava tanto de crianças!
E o Pedro continuava muito alegre e satisfeito, banhando-se naquela atmosfera de limpidez fictícia, completamente alheio a tudo quanto se passava, estranho a esse drama da vida caseira que estava se preparando como uma nuvem borrascosa a subir pelo firmamento acima, todo entregue aos vislumbres de felicidade que pareciam rodeá-lo.
Achava tão boa essa vida de mansidões que ia a viver pela existência afora, entre a esposa e o filhinho! Vinham acariciar-lhe as faces umas sensações agradáveis de felicidades. Fora até por um requinte de bazófia, um desejo de mostrar ao amigo essas doçuras em que se reclinava como numa rede macia e perfumada, embalando-se molemente às tépidas virações do amor, que ele insistira tanto para que viesse, para que aceitasse aquela hospedagem oferecida com toda a lhaneza de um velho amigo de colégio. E agora queria fazer ostentação de todas as amenidades que o cercavam, darlhe a palpar esse mundo inteiramente novo para o Marcondes, que andara sempre nessa boemia das repúblicas - mundo onde pretendia pilotá-lo com a maestria de um consumado conhecedor.
Capítulo IV
O jantar prolongara-se muito, tanto que quando o terminaram já começava a anoitecer. Apesar disto porém o Pedro não quis que se alterasse o hábito contraído de tomarem o café lá fora na calçada. Demais contava aproveitar-se da ocasião para mostrar ao amigo o jardim que rodeava a casa e que lhe parecia muito bonito. E como d. Augusta não quisesse acompanhá-los porque o sereno lhe fazia dor de cabeça, Nenê teve ao princípio desejos de ficar junto dela, com tenções de preparar-lhe o espírito e evitar qualquer incidente desastroso. Mas a moça gostava tanto daquele pequeno passeio por sob as árvores, achava tão boa a estada ali na calçada a ver quem passava, que mudou de idéia e resolveu juntar-se ao grupo. O Pedroca, que começara a simpatizar muito com o Marcondes, abria a marcha, com uns grandes transbordamentos de alegria, querendo mostrar tudo ao seu novo amigo, falando-lhe principalmente do repuxo que espirrava água para cima, e achando muita graça no barulho que os calçados faziam na areia dos caminhos.
Chegados ao portão sentaram-se todos em umas cadeiras de ferro, que haviam trazido do jardim, e houve uma pequena pausa, um momento de silêncio durante o qual puseram-se a contemplar o espetáculo que se lhes oferecia. Lá longe, no princípio da rua do Matoso começavam a acender os lampiões. As luzes surgiam bruscamente do meio das trevas, enfileirando-se como soldados, naquele grande paradoxo do ângulo nulo formado pelas paralelas que se encontram no infinito. O calçamento claro e asseado ia tomando um aspecto elegante de bulevar. Era um grande rio marginado de arvoredos por onde se escorria brandamente a linfa humana. Com os seus vestidos brancos e as risadas argentinas, por entre frases murmuradas aos ouvidos, subiam e desciam lentamente grupos de moças que, numa grande familiaridade, convertida a rua em salão comum, trocavam cumprimentos de uma para outra calçada e entravam em grandes permutas de beijos quando se encontravam frente a frente.
Por detrás deles a atmosfera balsâmica dos jardins. Uma viração suave a farfalhar molemente no verde-escuro das folhagens, impregnando-se de odores bons ao passar pelas murtas e manacás floridos. Ouvia-se o ruído refrescante do repuxo. E dentre aquela mole de árvores e arbustos erguia-se com as suas arestas vivas e os cantos angulosos o vulto, esbranquiçado como um fantasma, da casa onde residiam. Em paralelepípedos de luz a projetarem-se através do jardim, iam-se uma a uma, clareando as janelas que, abertas todas inteiras em suas vidraças de batentes, despejavam de lá de dentro um bafo animado e quente de vida. Uma grande harmonia comunicativa se estabelecia entre quatro. Os estômagos cheios, sem as preocupações da vida do dia a dia, absortos em seus pensares, a refletirem sobre os sucessos do momento, calavam-se todos. Apenas o Pedroca dava-se ao trabalho improfícuo de uns movimentos, forcejando por subir ao colo do Marcondes, e como este o suspendesse e o pusesse a cavalo sobre a coxa, o menino interrompeu o silêncio com uma gargalhada de criança que bota o corpo para trás e deixa sair a alegria aos borbotões.
Entretanto o Valentim aparecera com a bandeja do café e o licoreiro, que foram colocados sobre uma mesinha redonda de ferro. Os dois acenderam os charutos enquanto Nenê servia o açúcar e passava-lhes as canequinhas. E quando concluíram os últimos goles, veio-lhes espontaneamente um suspiro de satisfação. A vida assim era tão boa! Mas a moça não concordava. Para os homens, talvez; mas para as mulheres, não!
Eles examinavam aquilo superficialmente, não entravam em minudências, não sabiam quanto trabalho dava essa aparência de quietismo que os rodeava. E como protestassem, entrou em explicações. Só as criadas bastavam para fazer a gente criar cabelos brancos!
Eram de uma má vontade e estupidez incalculáveis. Ocasiões havia em que se tornava preciso repetir uma ordem três e quatro vezes, e mesmo assim nunca saía coisa que prestasse! Se pudesse ver-se livre de toda esta cambada de vadios! Mas qual!
Infelizmente ninguém podia dispensá-los! E além destas, muitas outras contrariedades!
Só mesmo vendo era possível formar opinião a respeito!
Os dois riam-se. Era ela quem não sabia ajuizar claramente os fatos e consideravas falsamente em suas exterioridades! Com efeito devia-lhe parecer muito boa e agradável aquela aparência de liberdade de que gozavam! Mas em troca disto quantas obrigações!
Se ela pudesse formar uma idéia a respeito veria que a vida, para os homens, era muito mais atrapalhada e cheia de contrariedades, ao passo que as mulheres tinham apenas para as atormentar aquelas ninharias domésticas de que elas gostavam, no final das contas! Nenê, porém, teimava em suas proposições e amontoava argumentos sobre argumentos para demonstrar que na partilha do mundo o seu sexo tinha ficado com todos os dissabores, enquanto ao outro havia cabido o lado brilhante e fácil. E que não a atrapalhassem nem lhe quisessem fazer acreditar no contrário! Não admitia réplicas! Era força concordar com as realidades! Os homens que deixassem de se adornar com penas de pavões e dessem o seu ao seu dono! Não pedia nada demais!
Capítulo V
Entretanto o sereno fazia-se forte e o Pedroca podia se constipar. Era prudente não ficarem mais ali e irem todos para dentro. Demais, d. Augusta estava sozinha e era preciso não abandoná-la assim sem mais nem menos. A velha senhora era muito boa, mas cheia de nicas, de forma que às vezes zangava-se por uma qualquer coisa onde enxergasse falta de consideração. E levantaram-se todos, cada qual tratando de repor as cadeiras de ferro no lugar em que as havia achado, sem interromper porém a discussão em que estavam empenhados. Nenê continuava ainda a defender a sua tese. Não queria admitir que lha contestassem. E a volta para casa fez-se em grandes alegrias e rumores de vozes a dialogarem. Apenas o Pedroca, que não entendia nada daquilo em que se ocupavam, conservava-se calado, muito unido ao corpo do Marcondes, que o trouxera ao colo, com medo da escuridão das árvores, não achando mais graça no barulho dos calçados a remexerem a areia dos caminhos que destacavam-se como faixas brancas no fundo negro do quadro.
Foi a sala de visitas o ponto escolhido para a reunião. Além de ser ela muito clara e confortável, era aí que se achava o piano e Nenê poderia distraí-los executando diversos trechos clássicos de que gostava muito. E, como Marcondes aproveitasse o ensejo para fazer um paralelo entre a música alemã e a italiana, que lhe agradava muito mais a moça engajou uma nova discussão, apreciadora como era de Beethoven e Mozart. Cada qual forcejava em produzir argumentos em seu favor, cantarolando trechos; os dois sozinhos, junto ao piano, porque D. Augusta conservava-se do lado oposto, sem dizer uma palavra, com o seu ar severo de vestal ofendida, e o Pedro não entendia nada de música e nas suas horas de pilhérias chegava mesmo a dizer que o piano fazia um barulho infernal a incomodar-lhe os ouvidos. Mas nesse momento ele estava com boas disposições, tanto que quis intrometer-se na conversa e concluiu no meio de gargalhadas que a música mais harmoniosa era a dos sinos de igreja quando dobravam por causa de algum defunto.
Nenê não gostava porém dessas caçoadas. Quem não entendia do negócio devia conservar-se calado! E o Pedro fez-se muito sério. Em toda a sua vida aquela história do piano fora sempre para ele motivo de contrariedades, porque a mulher acabava sempre por debochá-lo, meio amuada, não podendo compreender bem que houvesse gente com tanta aversão à música. Ao menos para não ficar calado quis dirigir a conversa para outro terreno e lembrou ao amigo as aulas do Matias. Como a moça desejasse explicações sobre as risadas com que foi acolhido este nome, entraram em detalhes. O Matias era o professor de música lá do externato d. Pedro II. Um bom homem, coitado, mas muito tolo e que se deixava ridicularizar pelos rapazes! E cada qual queria contar uma história a respeito. Falaram dos solfejos no meio dos quais se desentoava com uns grandes guinchos que revolucionavam em gargalhadas a aula inteira. Enfim, como não se fizesse exame da cadeira, só aprendia quem tinha vontade! E o Pedro disse então à mulher que o Marcondes era exatamente um daqueles que, no tempo, mais vocação havia mostrado.
O rapaz desculpava-se, fazia-se de modesto. Era verdade que tinha algum gosto para a coisa e que chegara mesmo a aprender um bocadinho de flauta! Mas não passava de um curioso! Nenê queria porém ouvi-lo e, como ele dissesse que trouxera uma, pediram-lhe muito para que a fosse buscar. Exatamente ela tinha uma música com acompanhamento e que lhe parecia muito fácil. Rápida em seus desejos, revolveu logo a estante e mostrou-lhe a partitura, que os dois examinaram enquanto o Pedro insistia e dizia ao amigo que não se fizesse de tolo e se deixasse de cerimônias. E tais foram os rogos e os pedidos que lhe dirigiram que o Marcondes viu-se obrigado a fazer-lhes a vontade. Começaram então de parte a parte os ensaios, cada qual trabalhando por acertar o compasso, e no fim de alguns instantes tiraram completamente a música e deram princípio à execução. O Pedro aplaudiu-os vivamente com grandes e estrepitosas palmas, e a própria d. Augusta, saindo bruscamente de sua atitude reservada, dirigiu ao rapaz algumas palavras de animação.
Nenê, essa nadava em contentamentos. Havia tanto tempo que ela sonhava encontrar alguém que a acompanhasse ao piano, com quem pudesse conversar sobre música, que a compreendesse enfim! E instintivamente estabelecia um paralelo entre o marido e o Marcondes. Se ela fosse casada com alguém nessas condições como havia de ser feliz! Vinham-lhe então umas lamentações íntimas. O marido, com as suas continuas pilhérias e aquelas declarações brutais de que o piano era um tacho rachado, estava até a fazê-la esquecer-se do que já sabia! Mas agora ia tomar um fartão! E
planejava umas longas noitadas assim como essa, ali entre a mãe, o marido e o filho, durante as quais havia de executar com o outro as peças que aprendesse durante o dia Muito encantada com o projeto, queria logo procurar uma outra música, presa de estado febril, atirando-se no mais forte do caudal, com uma grande voracidade de prazeres, numa prodigalidade de alegrias. E o Marcondes prestava-se boamente às suas vontades, também encantado com semelhante desenlace, intimamente satisfeito de poder dar largas a sua paixão musical.
Capítulo VI
Já ia porém se fazendo tarde e o Valentim viera preveni-los de que o chá estava na mesa. Com grande pena de Nenê, que queria ainda tocar mais uma peça, dirigiram-se todos para a sala de jantar e o Marcondes, para se fazer amável, ofereceu o braço a d.
Augusta. Havia entre todos uma alegria comunicativa, e a boa senhora, a pesar seu, sentia-se arrastada na correnteza de simpatias que se dirigiam ao hóspede tão bruscamente aparecido. Mas o aspecto severo da sala de jantar com o seu papel e adornos escuros, limitando a luz do lustre a um pequeno círculo no centro da casa, fez esfriarem-se quase aqueles primeiros ímpetos. Não se respirava mais aquela atmosfera saturada pelos acordes do piano e da flauta. A mudança de aposento transtornara a direção das correntes magnéticas, e o abandono dos lugares já aquecidos e aos quais se haviam habituado parecia ter também contribuído para semelhante sucesso. Demais, pelas janelas abertas entrava um ar frio, fazendo experimentar umas sensações más de isolamento, por sob as roupagens.
Foi pois quase cerimonialmente que eles tomaram assento à mesa nas mesmas posições que haviam ocupado ao jantar - d. Augusta à cabeceira, o Pedro e Nenê à direita, o Marcondes e o Pedroca à esquerda. Cada qual atento a si mesmo, começaram a tomar o chá que fora servido em xícaras delgadas como folhas de papel, cobertas com essas pinturas burlescas da chinesaria. O silêncio prolongava-se, todos à procura de uma frase para dar princípio à conversa, não a achando e parecendo-lhes que a cada momento aumentavam as dificuldades. Como porém estivessem a comer as infalíveis torradinhas com manteiga forcejassem debalde para não fazer barulho ao mastigá-las, o Pedroca riu-se muito, mostrando por entre os lábios rubros e úmidos de chá os dentinhos brancos e ainda não completamente unidos. Todas as noites era sempre essa história, e o menino julgava não ter tomado o chá com prazer quando não dava essa risadinha e não dizia que a mãe parecia um ratinho. Sempre acolhiam com grande entusiasmo a caçoada da criança e era esse o ponto habitual de partida para a viagem dos felizes horoscópios.
Mais do que tudo isto, era em tal momento um ótimo meio de entabular novamente a conversação e o Marcondes aproveitou-o. Desde que o vira, quando ele fora ao portão para recebê-los, que achara no Pedroca um arzinho de inteligente e decidido! Sim senhor, a criança prometia! O Pedro aprovava muito com a cabeça estas frases. Era essa também a sua opinião. O filhinho desde pequenino revelara grande presença de espírito e um gênio empreendedor! Não podia estar parado um só instante e o seu grande prazer era ir lá para o fundo do quintal onde levava uma porção de tempo a remexer na terra fazendo buracos com a colher de pedreiro das plantações. Dentre tudo achara-lhe muita graça uma ocasião em que o encontrara a querer pregar na parede uma torneira quebrada que andava rolando pelo chão e da qual, quando terminasse o trabalho a que se entregava com tanto afã, e ele esperava ver sair água. E o Pedroca sorria-lhe maliciosamente, muito contente em que se ocupassem com ele, admirado porém de acharem graça numas coisas que lhe parcelam tão naturais, lá um pouco sonolento, a cabecinha loura encostada à beira da mesa, tendo ainda na mão um pedacinho de torrada.
E a conversa generalizava-se. Nenê voltara a tratar de música, elogiando muito o Marcondes pelo seu talento e facilidade em tirar qualquer pedaço. O rapaz fazia-se modesto. Não era tão habilidoso como parecia, até mesmo não sabia nada de música e tocava muito de ouvido! Também isto até em certo ponto desculpável na vida que levara lá em Pernambuco, onde nunca recebera uma lição, mesmo porque também não tivera tempo para isto, muito ocupado como andava sempre! Chegara mesmo a abandonar quase a flauta e fizera-se muito forte no violão, que era aí muito estimado nas pândegas de estudantes! Nenê mostrou então vontades de ouvi-lo ao violão.
Devia ser muito bom, sobretudo quando o tocador tinha boa voz. E como insistisse muito o Marcondes prometeu fazer-lhe a vontade. No dia seguinte, quando fosse a cidade, havia de procurar um, porque ao partir do Recife dera o seu a um amigo. Apenas d. Augusta não simpatizou muito com a idéia, achando a filha estouvada em fazer o pedido, atendendo a que o violão era instrumento de gente ordinária.
E como o Pedroca tivesse adormecido durante a conversa, um pouco zangado porque não se ocupavam mais dele, conservando ainda a atitude engraçadinha em que se pusera para ouvi-los, com a cabeça à beira da mesa reclinada sobre o bracinho esquerdo e um pedaço de torrada na mão, a velha senhora propôs que o fossem deitar.
Então ela e a filha suspenderam a criança muito delicadamente a fim de não acordá-la e antes de se retirarem para o quarto deram boas noites, contando não voltar mais à sala.
Todas as noites era aquilo mesmo e o Pedro que gostava muito de chá e tomava cinco ou seis xícaras antes de se deitar já se habituara a ficar sozinho, na debandada dos pratos, esvaziando o bule e acabando as torradas. Era então, nesse grande isolamento, sentindo atrás de si os últimos ecos murmurantes do dia que findava e a atmosfera abafada da casa lá fechada, que ele se sentia inteiramente feliz, quase sem aspirações, num embotamento de fantasias, todo entregue à elaboração sossegada de suas digestões burguesas.
Capítulo VII
Ficava ali mesmo na sala de jantar a escada que conduzia ao sótão onde tinham preparado o quarto do Marcondes; e como se fosse fazendo tarde e o bule já estivesse esvaziado o Pedro lembrou a oportunidade de irem deitar-se. Antes porém queria acompanhar o amigo até o seu aposento para ver se faltava alguma coisa e de que modo haviam executado as suas ordens. Demais, era este o seu primeiro encontro depois da formatura de ambos no externato do Pedro II. Havia cinco anos que não se viam, comunicando-se apenas por meio de cartas, na continuação, através da vida séria, daquela grande amizade do colégio - uma amizade cheia de veemências amorosas, toda feita com ternuras infantis que iam a caminhar pela existência afora. E eles agora tinham tanta coisa a se dizerem mutuamente - coisas que não se escrevem nas cartas, essas grandes ninharias de cada dia que fazem a vida inteira, que determinam-lhe todas as fases, a cujo instigamento a gente vai andando pelo mundo adentro e que entretanto formam um todo caótico, reconstruível apenas nessas longas conversas de recordações, quando cada um vai trazendo seus parcos subsídios a aviventar a memória.
Nos primeiros transbordamentos, naqueles abraços efusivos feitos com os juros de uma amizade capitalizados durante anos, e depois, quando entre eles andava toda a nova família do Pedro - Nenê tão amorosa e o Pedroca tão vivo e inteligente com a sua cabecinha loura, quando sentiam a moderar-lhes os ímpetos o vulto cerimonioso e gelado de d. Augusta, eles se haviam retraído, guardando para mais tarde as mútuas confidências, para quando pudessem estar mais livremente, em ceroulas e camisa, sem a etiqueta enfadonha das gravatas e colarinhos para dificultar-lhes os movimentos. E
trataram de aproveitar a ocasião, planejando uma noite comprida de conversas, precavendo-se por causa das dúvidas com urna garrafa de conhaque e o açucareiro.
Principalmente para o Pedro, tudo isto tomava as proporções de uma enorme patuscada.
Como havia de ser boa aquela noitada longa de palestras entremeadas com uns grogues fracos e açucarados, bebidos simplesmente para molhar a garganta! E todos os seus instintos represados de boêmio vinham-lhe a flux da pele, enquanto o Marcondes tomava uns modos distraídos de quem lá está farto de semelhantes esbodegações.
Logo de principio não quiseram, porém, entrar no assunto. Precisavam retemperarse nas evocações daquele passado comum que haviam vivido juntamente - espécie de embasamento por sobre o qual devia assentar o edifício do que iam dizer. Falaram dos companheiros, dessa grande turma de cento e tantos rapazes que tinham entrado no primeiro ano, que a pouco e pouco fora depurando-se, deixando em cada exame um pedaço de si mesma, e que chegara ao sétimo apenas reduzida a oito companheiros.
Três estavam na academia de medicina, um em direito e dois na politécnica. Os outros andavam aí pelo mundo, uns já formados, outros empregados públicos, outros caixeiros, e tantos outros mais já perdidos de vista, disseminados pelas províncias! E iam assim, relembrando nomes. Cada um trazia umas grandes recordações - lembranças de outros tempos e de outras alegrias. Rememoravam fatos - os castigos que tinham sofrido, os grandes temores do fim do ano, quando o exame vinha se aproximando e oscilava-lhes pela imaginação o vulto fantástico e aterrador de uma bomba.
Agora, completamente despreocupados das intrigazinhas e pequenos sucessos de então, julgando serenamente os acontecimentos, eles surpreendiam-se de encontrar tanta coisa boa, aí nos tempos buliçosos e alegres das suas primeiras mocidades. Tinham saudade. Saudade dessa vida de meninos! Saudade de toda essa gente que os cercara então! Se eles pudesse revivê-las - essas quadras sorridentes das suas infâncias, ir novamente para o pátio arenoso do colégio jogar a barra com os companheiros, voltar do recreio esfogueados e exaustos, para recordar rapidamente as lições, ouvir de quando em vez o grito dos inspetores chamando-os à ordem e procurando contê-los nos seus ímpetos de crianças, por certo que não teriam dúvida em voltar atrás, em recomeçar a existência! Era tão bom aquilo tudo! Havia ali tanta alegria, tanto prazer! E a imagem desse colégio, onde eles tinham vivido os seus primeiros anos, surgia-lhes de entre as recordações, correta e grandiosamente, como um castelo suntuoso de fadas numa orgia honesta de alegrias santas.
E eles demoravam-se prolongadamente na reconstrução desses tempos idas, tendo talvez vontades de parar aí - nessa primeira pátria dos seus espíritos. Para aquém, para as bandas do presente, havia muita lágrima, muita tristeza e muito dissabor. E fizeram um silêncio grande, cada qual reconcentrado em si mesmo, esgravatando ainda um farrapo de recordação. Quais esses peregrinos que se abalançam para regiões ignotas e que lá do cabeço do monte derradeiro pairam um pouco o olhar para ver a imagem sagrada da casa paterna que se dissolve além, nas fímbrias nevoentas do céu, eles puseram-se a relembrar esse dia em que pela primeira vez vestiram a casaca das solenidades e, joelho em terra, cingiram à fronte aquele barrete branco, imaculado e puro das suas crenças e das suas virgindades. Depois... vinha a vida! E os dois olhavam-se mutuamente, tendo a pelejar-lhes nos olhos umas lágrimas de saudade, com vontade de revivê-lo novamente -
esse passado de infâncias que haviam vivido juntos.
Capítulo VIII
De todas essas evocações do passado que eles tinham vivido juntos na grande efusão dos primeiros anos nascia-lhes um imenso bem-estar, uns redobramentos de e amizades que os reuniam em desejos enormes de comunismo. E os dois olhavam-se com exuberâncias de ternura, rearquitetando aquele edifício transposto da sua vida, com vontade de encontrá-lo novamente, saudosos desses tempos em que os prazeres lhes pareciam mais agradáveis, e não andavam cheios de preocupações, irrefletidos sobre o mundo, às soltas pelos campos sem fim da fantasia. Agora eles tinham inúmeras responsabilidades, eram homens feitos a principiar a vida séria; impunha-se-lhes a obrigação de construir umas pousadas - casulos tirados do próprio organismo, onde pudessem descansar mornamente, na grande elaboração biológica da família, às voltas com a atmosfera opressora do convencionalismo. E essa imagem alegre dos tempos que foram rejuvenescia-os, deixava que eles se embalassem as virações boas do ideal, blindava-os contra todo o meio opressor que os circundava.
Veio-lhes então imperiosamente a necessidade de completarem aquele quadro, de dizerem-se um ao outro tudo quanto lhes havia sucedido, esse desfilar peripecioso dos dias no lento trabalho do gota a gota que faz os estalactites das cavernas. E eram tão diversos os rumos que haviam seguido! o Pedro logo depois de sua formatura no colégio, sem mais detenças nem estadas pelas academias, entrara para a vida prática, achandose sem família, sozinho no mundo, único arrimo de sua velha e entrevada mãe que morrera algum tempo depois. O emprego público fora para ele a única franquia que se lhe oferecera a mitigar as vicissitudes da sorte. Nem outra direção lhe era possível dar às suas aspirações, pois as outras carreiras andavam cheias de sobressaltos e de imprevistos. Ao princípio encontrara grande dificuldade em sujeitar-se a esse modo de existência, e ainda conservava umas tristes recordações dos tempos em que andara pelas secretarias a fazer concursos e a arranjar cartas de empenho. Fora mesmo uma campanha gigantesca o conseguir a sua nomeação como praticante da Secretaria de Agricultura.
Habituara-se porém àquilo tudo, e desde então começara a saborear pacatamente as beatitudes do sossego. Regrara a vida, numa grande atrapalhação para gastar o tempo que lhe sobrava. Bastava-lhe estar na repartição às horas e sair às duas horas para ter cumprido exemplarmente as suas obrigações. E todo o resto do dia, esse longo suceder de horas, parecia-lhe muito enfadonho, difícil de passar. Sem encontrar atrativos na vida boêmia da rua do Ouvidor, incapaz até de uma leitura, tendo abandonado os livros todos, vira-se numa grande inação, necessitado de ocupar-se em alguma coisa para não morrer de tédio. Pusera-se então a freqüentar os salões e as casas de família, muito bem recebido em toda parte porque granjeara a reputação de rapaz ordeiro, considerado como um bom partido, moço inteligente e cheio de futuro. Foram nesses tempos uns encadeares intermináveis de aventuras galantes, três em quatro namoradas ao mesmo momento, viajando pelos bondes da casa de uma para a da outra, colhendo um beijo aqui, outro ali! tudo aliás feito com uns requintes de honestidades, não ultrapassando as raias do decente simples curioso a viajar pelos balcões onde a gente compra uma mulher.
Em uma dessas excursões agradara-se de Nenê, numa grande exuberância de paixões, fanatizado por aquela figura esbelta, tão gentilmente enquadrada na moldura singela da vida retirada que a moça vivia junto à mãe. E historiava todas as alternativas do seu namoro, as grandes esperanças que o arrebatavam às regiões sem fim da fantasia, os súbitos desânimo que o surpreendiam de momento a momento - enormes castelos abastilhados, erguendo-se de uma frase, de um incidente, à mão possante e tenebrosa do ciúme. Casara-se enfim e desde então sua vida tomara umas composturas burguesas, uns ares calmos e refletidos, sem desperdício de efusões, rotineira e uniforme como a evolução de um ponteiro por sobre o mostrador. Nascera-lhe o Pedroca, e convergira na criança toda a seiva apaixonada que porventura lhe circulava através do corpo. Ao mesmo tempo tinha melhorado a sua posição oficial. Agora, graças às relações que adquirira e às de d. Augusta, ia a pouco e pouco ascendendo na hierarquia burocrática, construindo silenciosamente um ninho acolchoado e tépido onde sonhava descansar a sua velhice satisfeita.
E vinha-lhe um desejo de ostentações, vontades de mostrar ao amigo esse esquema alegre da vida que ia vivendo pelo mundo afora, num grande sonho de aspirações. Bem verdade que por sob aquela capa de mansidões andavam disfarçadas as contrariedades de cada momento, os pequenos nadas da existência, toda a guerra surda e sem tréguas que ele pelejava constantemente com d. Augusta. Mas o que eram essas ninharias!
Coisas que a gente esquece nesse bosquejos risonhos! Grãos de argila que turvam por um instante as águas, mas que acabam sempre por se depositarem no fundo, deixando que lhes corra pelo dorso a limpidez cristalina do regato! Naquela ocasião ele mesmo os esquecia - esses pontos negros na fotosfera de suas felicidades. Não precisava de cálculos nem de reservas, nas descrições que ia fazendo ao amigo dos encantos que o rodeavam. Bastava-lhe deixar às soltas as suas impressões para que todo o seu otimismo de burguês contente e superficial banhasse de luzes o quadro imaginoso de sua vida, tal como ele a via através da sua convicção de homem satisfeito, sem aspirações, a sonhar um sonho alegre de festins floridos, sem ter ao menos como perspectiva admissível o receio de despertar no meio de alguma realidade tenebrosa.
Capítulo IX
O Marcondes, esse passara em Pernambuco uns intermináveis cinco anos de vida acadêmica, longe da família, que residia em Santa Catarina de onde era natural, quase completamente entregue a si mesmo, tendo polido o seu espírito na convivência da rapaziada boêmia da qual gostava de imitar as teorias e as aspirações. Seu maior prazer era fazer-se de debochado, rodear-se com a reputação de homem pervertido e mau, culotado nas orgias, militante ativo nas fileiras da crápula. Dava-se uns aspectos dramáticos de d. Juan tenebroso que anda aí pelo mundo a conquistar mulheres; e para emprestar a tudo isto uns ares de verossimilhança citava fatos, contava histórias complicadas de adultérios em que vivera envolvido e nas quais reservava sempre para si os papéis simpáticos de galã nos romances da velha escola. Até mesmo a força de repetir as mesmas anedotas, os mesmos episódios, forjicados nas longas noites de insônia, chegara a convencer-se da sua veracidade, firmemente crente de que tudo aquilo se havia passado, apelando para o testemunho dos companheiros.
E ele não se esqueceu de reeditar todo esse peripecioso suceder de aventuras escabrosas. Aos olhos admirados do amigo, a quem iam-se um a um revelando bruscamente os mistérios insondáveis de uma vida para ele completamente desconhecida e inacreditável, fazia o Marcondes deslizar lentamente o caudal majestoso das epopéias à la Murger. Eram aqueles longos, intermináveis dias de fome em que até faltava dinheiro par cigarros, existência penosa, coberta de maldições, bruscamente transmudada em risonhas orgias, o vinho correndo em profusões, sorvido a longos tragos por entre os beijos das mulheres bonitas que faziam coro a orquestrar-se no estampido do champanha que desarrolhavam. A sempre eterna história das sete vacas gordas e das sete vacas magras, alternativas isocrônicas de abundâncias e de misérias, de risos e de prantos, do meio às quais, em carnaduras fortes e risos epicurianos, surgia a imagem fantástica da vida descuidosa boiando sem rumo, num grande abandono de si mesma, aos vaivéns da sorte.
Mas veio-lhe logo em seguida uma volta à realidade das coisas. Todo o seu temperamento ordeiro e pacato acatava sempre confessando a si mesmo os dissabores e vexames dessa vida que ele pintava tão alegre e da qual chegara a viver um bocadinho.
No final das contas isso não era tão bonito como parecia. Havia enormes contrariedades, ocasiões em que tivera vontade de romper com os companheiros, de liberar-se completamente dessas relações que só lhe traziam prejuízos. Essa mesma reputação, que a si fazia, incomodara-o extraordinariamente por diversas vezes. Enfim! Por mais que o quisesse, faltava-lhe vocação para Schaunard e, se se deixava fascinar pelo exterior formoso dessa existência aboemiada, não lhe faltavam momentos em que se arrependia de ter seguido uma tal diretriz. Em todo caso achava desculpas ao seu procedimento, procurava justificar-se aos seus próprios olhos e concluía atribuindo tudo isto à irreflexão própria da rapaziada. Agora porém que já estava formado e ia começar a vida séria e responsável, deixava-se atrair por outras aspirações, aparentando uns ares honestos de burguesia.
E os dois, dando de mão àquele lado fantasioso da vida, puseram-se a conversar num grande desdobramento de filosofias práticas. O Pedro já estava arranjado; bastavalhe apenas dar tempo ao tempo, deixar que os anos fossem no seu lento trabalho de petrificação a consolidar-lhe as felicidades. O Marcondes, porém, só agora ia começar a existência, lançar os embasamentos do seu futuro viver, E ele dizia os seus sonhos, Queria ver se arranjava a promotoria de Santa Catarina e para isto contava com algumas relações de que dispunha a sua família. Fora até para conseguir isto que resolvera-se a ficar uns cinco ou seis dias na Corte, porque contava levar ao presidente umas cartas do Ministério. Depois bastava-lhe deixar correr o barco. E ia numa longa vista pelo futuro adentro acompanhando o seu lento progredir através da magistratura. Havia de acabar ministro do Supremo Tribunal! Apenas em seus cálculos, um x imprescindível e incógnito -
o seu casamento, que se lhe apresentava como necessidade imperiosa para o complemento do seu próprio ser e a consolidação das suas alegrias.
Entretanto ia-se fazendo tarde. Já por duas vezes Nenê mandara chamar o marido que, absorto naquela mútua confissão, perdia a noção das horas e rompia brutalmente com todo o seu costumeiro viver. Mas infelizmente tinham esgotado o montão de comunicações que desejavam permutar. Bem verdade que ainda havia uns pontos duvidosos, uns pequenos incidentes, umas grandes ninharias que eles tencionavam não deixar ocultas naquele entusiasmo do primeiro encontro. Isto serviria porém de tema às futuras conversas! Ainda tinham tantos dias para viverem juntos que não valia a pena esgotarem-se logo de uma vez, e parecia prudente guardar algumas reservas para as noitadas vindouras. Demais, estavam com sono e o conhaque, que tomaram em repetidos grogues, quase insensivelmente, na grande febre de intimidades, pesava-lhes na cabeça e amortecia-lhes os olhos, principalmente os do Pedro que não estava habituado a estas coisas. E foi num grande transbordamento de amizades, por entre palavras arrastadiças, que eles se despediram um do outro, augurando prazeres ainda maiores nessa convivência em que iam viver.
Capítulo X
Posto que as janelas tivessem ficado completamente abertas e de havia muito o sol clareasse o aposento, o Marcondes continuava a dormir, cansado por essa noitada de conversas, prolongada até as tantas, depois das grandes fadigas da viagem. Demais, ele gostava tanto do sono da manhã! Lá em Pernambuco habituara-se a levantar-se ali pelas 11 horas, e às vezes mesmo prolongava a sua estada na cama até o meio-dia, apreciando muito esses momentos de moleza em que a gente fica inerte por entre a branda quentura dos lençóis e as fofices do colchão, deixando que o pensamento vá boiando à toa pelos mares sem fim da fantasia! E para que acordasse foi preciso que o Valentim batesse por diversas vezes na porta a fim de lhe entregar a xícara de café. Só então levantou-se. Mas como pusesse a canequinha no bidê e se assentasse na beira do leito para enrolar um cigarro, veio-lhe uma grande preguiça a percorrer-lhe os membros, uns desejos de descansar ainda um bocadinho, apenas uns cinco minutos; e deitou-se novamente encolhendo as pernas, envolvendo-se todo nas cobertas ainda quentes do sono.
Foi então que se pôs a refletir sobre a sua estada ali naquela casa. No final das contas era uma coisa sem explicações nem justificativas! O Pedro parecia-lhe bom rapaz, muito seu amigo, mas apesar de tudo quanto lhe dissera na véspera, a sua vida íntima não deixava de andar muito atrapalhada por um mundo inteiro de contrariedades, e até mesmo tinha ares de quem não estava em sua casa! E o perfil cerimonioso de d Augusta surgia-lhe ameaçador, cheio de terríveis perspectivas, como a prometer-lhe um suceder de dissabores. Apesar da afabilidade e simpatia que Nenê lhe mostrara por ocasião das discussões sobre música ele também não deixava de nutrir algumas apreensões por este lado, e recordava a reserva e quase frieza com que a moça o tratara na mesa do chá!
Apenas o Pedroca, com a sua cabecinha loura e o seu olhar de criança inteligente, parecia sorrir-lhe meigamente nessa evocação da gente que o rodeava. Enfim, ele e o amigo tinham feito uma grande tolice, admissível aliás na efusão de sentimentos do primeiro encontro, mas que cumpria emendar.
E veio-lhe então a idéia de uma mudança rápida e imediata, enquanto as coisas não se tornavam mais feias, e ela podia ter ainda o aspecto de uma retirada airosa. Se o amigo residisse sozinho não teria dúvidas em aceitar-lhe a hospitalidade, porque os dois poderiam se entender facilmente e entre eles não havia cerimônias! Mas, assim como se achavam os negócios, era impossível! De mais a mais, apesar da grande confiança que aparentava no tocante à rápida obtenção da promotoria, poderiam sobrevir inúmeras dificuldades que o forçariam a prolongar por tempos indeterminados a sua estada no Rio de Janeiro. Enfim, ele havia de falar ao Pedro com toda a franqueza, e os dois juntos arranjariam a coisa da melhor forma possível. E nesses pensamentos, que lhe saiam da cabeça em grandes hélices a acompanhar a fumaça do cigarro, deixava-se ele absorver, esquecido das horas, todo entregue à beatitude da imobilidade, o corpo amolecido, caindo ao azar da sorte naquele ninho fofo de lençóis e travesseiros onde se sentia tão bem, no grande aniquilamento do seu próprio eu.
Urgia, porém, reagir contra esta preguiça. Já ia se fazendo tarde e lá embaixo deviam estar à sua espera, porque o Pedro lhe dissera que costumavam almoçar cedo.
Mas estava tão bem! E custou-lhe muito o sentar-se na beira da cama, procurando os chinelos para levantar-se. O café ainda estava ali na xícara. Esquecera-se de bebê-lo e agora ele tinha esfriado, mas não fazia mal! E foi tomando-o aos goles, por entre baforadas de um novo cigarro que acabara de preparar. Só então pôde erguer-se, ainda meio atrapalhado com a arrumação do quarto e dando-se a grandes trabalhos para procurar nas malas, em que não havia medido até aquele momento, a roupa que pretendia vestir. Demais, retinha-o a preguiça que se aproveitava de todas as ocasiões para deixá-lo parado, com vontades de se deitar novamente. Gastara muito tempo em mudar os botões da camisa, praguejando contra as engomadeiras, que não abriam as casas; e para acordar verdadeiramente foi preciso a brusca sensação da água fria com que se pôs a banhar o rosto numa prodigalidade de sabonete.
E como o Valentim viesse bater-lhe novamente à porta chamando, para almoçar, começou a vestir-se apressadamente. No último ano da vida acadêmica, quando prestes a formar-se, contraíra o hábito de brunir-se todo nuns grandes requintes de toalete, e era incapaz de sair do quarto sem estar preparado com todas as regras da arte. Era da sua parte uma adoração constante à própria pessoa que o fazia ficar longas horas defronte do espelho, a contemplar-se, achando-se muito bonito. E naquele dia, por mais pressas que quisesse ter, absorvia-se no exame do seu rosto, profundamente incomodado porque só tinha feito a barba na Bahia, havia três dias, e os cabelos já principiavam a nascer. No final das contas tudo era possível neste mundo! E como lhe aparecessem as suas aspirações a d. Juan de envolta em toda a sua exterioridade canalha, lembrou-se do busto estatuário e correto de Nenê. Era uma idéia como outra qualquer e que de mais a mais o lisonjeava muito! Bem verdade que o Pedro era seu amigo! Mas se havia de ser um outro... por que motivo não seria com ele?!
Capítulo XI
Lá embaixo já estavam à sua espera para dar princípio ao almoço que esfriava sobre a mesa e ele incomodou-se muito com isto. Por que não tinham começado a refeição sem dar mais importância à sua demora? E ao mesmo tempo procurava desculpar-se. As viagens eram tão afadigosas e cheias de trabalho, de mais a mais enjoara tanto a bordo, que contra a sua vontade prolongara o sono além das horas do costume! Todos ouviamlhe as desculpas, muito distraidamente, sem responder-lhe mais uma palavra além dos bons dias secos com o que haviam recebido; o Marcondes continuava sempre, numa grande prolixidade de palavras, atrapalhado por esta ducha gelada de cerimônias que lhe caía assim sem mais nem menos pelo corpo abaixo, a resfriar-lhe os seus primeiros ímpetos, fazendo-o bruscamente esquecer todas as suas esperanças e cálculos de ainda havia pouco, trazendo-lhe novamente à idéia a perspectiva de uma mudança obrigatória que vinha agora desordenar-lhe os anos sedutores, exatamente quando o perfil correto de Nenê lhe aparecia numas linhas sensuais por sobre o fundo negro do salão.
Atrapalhava-o de entre tudo o ar reservado com que d. Augusta e a filha ostentavam tratá-lo. Necessariamente elas deviam ter conversado a seu respeito e tudo quanto faziam era a execução de algum plano adotado que ele forcejava por adivinhar, desejoso principalmente de conhecer o juízo que haviam de ter formado sobre ele. E procurava examiná-las cuidadosamente, continuando sempre a falar, num interminável jorro de palavras, a fim de disfarçar o acanhamento que a pouco e pouco lhe ia invadindo o organismo inteiro. A velha senhora de pé, encostada ao espaldar da cadeira da cabeceira, cuidadosamente penteada nos seus eternos bandós de cabelos brancos que lhe passavam por sobre as orelhas, com a pele acetinada e fresca da lavagem, conservava o seu ar esfíngico, apenas sublinhado por um riso sardônico que lhe contraía levemente os lábios delgados. Sentada à cadeira de balanço, Nenê trajava umas vestes caseiras mas não despidas de elegância, seus bastos cabelos divididos em duas largas e compridas tranças que lhe caiam pelo colo abaixo, o olhar verde-azulado mergulhando-se distraidamente no vago do infinito.
Demais, ele não podia compreender nem sabia explicar o modo acanhado e quase cerimonioso com que o Pedro lhe respondia monossilabicamente às perguntas. Na véspera o amigo mostrara-se tão cordial e afável, tão cheio de expansões, numa grande facilidade de frases afetuosas! E agora assumia uns ares discretos e comedidos, como que a refletir sobre o caso, talvez já arrependido dessas primeiras efusões, quiçá mesmo desejoso de vê-lo em mudanças, à procura de algum meio decente de lhe pedir a retirada!
Decididamente tinham longamente falado a seu respeito e d. Augusta com toda a sua diplomacia andara a minar-lhe os derredores, trabalhando para circunscrevê-lo em um isolamento atroz! Vinham-lhe então uns desejos de luta, vontades de lançar-se inteira e cegamente à conquista de afeições. Havia muito que sonhava coisas destas, batalhas encarniçadas feitas de sorrisos e de calembures. Ao seu espírito romantizado agradariam muito mais umas encenações medievais, uns montantes pesados de ferro a arrastaremse pelos lajedos do castelo indo tudo liquidar-se ali adiante nos fossos onde devia ficar o corpo de um dos combatentes. Mas era preciso conformar-se com o espírito da época e aceitar o combate no terreno em que lhe ofereciam.
Entretanto tinha começado o almoço e cada qual acomodava-se no lugar que ocupara na véspera, sem pronunciar uma só palavra, naquele grande silêncio em que se geram os tristes pensamentos. D. Augusta presidia a refeição, com o seu eterno sorriso de cortesias ferinas, como que a petrificar-lhe os lábios, quedando-se flácidos e amolecidos, apenas a remexerem-se para a deglutição da comida. O Valentim circulava preguiçosamente, mudando os pratos, fazendo de longe em longe uma pergunta relativa ao serviço, sua voz a perder-se no imenso da sala. E o Marcondes sentia-se opresso e desajeitado, sem coragem para continuar na sua loquacidade de ainda havia pouco, à espera de um ensejo para reatar o fio da conversa, já meio acovardado, calculando que não podia obter a vitória nessa luta em que tinha vontades de se empenhar, achando até mais conveniente uma retirada airosa que viria contentar a todo o mundo, meditando mesmo sobre o pretexto de que serviria para levar a efeito o seu novo plano que agora lhe parecia muito melhor.
Apenas, de entre toda essa gente, o Pedroca conservava o seu rosto prazenteiro de criança, alheia aos pequenos nadas do convencionalismo social, que não sabe refrear os seus sentimentos nem pode compreender as variabilidades e alternativas de conduta. Ele continuava a testemunhar grandes simpatias ao Marcondes e era o único que lhe dirigia a palavra para lhe fazer umas perguntas esquisitonas de menino ou lhe pedir um qualquer favor. E como o moço lhe prestasse muita atenção e se mostrasse sempre pronto a satisfazer-lhe os menores desejos, gostoso deste diversivo que vinha tão alegremente socorrê-lo na grande atrapalhação de conduta em que se achava, ele ia de momento a momento aumentando a sua afeição, e acabou até passando-se-lhe para o colo onde queria por força tomar o café com leite. Quando terminou-se o almoço e os dois amigos se prepararam para ir à cidade, o Pedroca acompanhou-os até o portão repartindo uniformemente entre ambos beijos e abraços, encomendando-lhes que não se esquecessem de lhe trazer bolas.
Capítulo XII
Ali pelo meio-dia, na grande força do sol a crestar lá fora as folhas das plantas, a sala de jantar tinha umas frescuras úmidas debaixo de ramagem mais semelhadas ainda com o escuro dos enrodamentos. E era bom de se passar aí a sesta, por entre aquelas ostentações de um luxo asseado e burguês. Sempre a essas horas, depois do abatimento determinado pelas ligeiras febres sibaríticas seqüentes ao almoço, mãe e filha gostavam de se reunir nesse aposento tão cômodo e onde se permitem as pequenas sem cerimônias de uma sala comum de vapor. Nessas ocasiões, quando as duas estavam bem sozinhas, sem que o Pedro, retido na repartição, viesse perturbar-lhes os colóquios, elas gostavam de discutir os acontecimentos do dia e de comunicar-se reciprocamente os pensamentos, as frases a saírem-lhe em grandes intervalos durante os quais iam-se distraindo com seus ligeiros trabalhos de agulha, cada qual no seu lugar favorito, tendo entre si todo o comprimento da mesa elástica e a vastidão escura da sala que as obrigavam a levantar um pouco a voz.
E elas lá estavam, d. Augusta na sua cadeira baixinha de costura, Nenê molemente reclinada na de balanço que se movia preguiçosamente, naquele dia mais animadas do que nunca nas suas conversas, quando se fez ouvir a voz argentina do Pedroca, que brincava no jardim, vibrando fortemente o nome de sá Jovina. A moça chegam à janela para gritar com o menino. Já lhe havia proibido por diversas vezes o andar exposto ao sol!
Dessa forma ele bem podia apanhar uma febre que o prendesse na cama por muito tempo! E teimava com a criança para que entrasse imediatamente. Mas o rapaz fingia não ouvi-la, encaminhava-se em grandes alegrias para o portão.
D. Augusta também não achava muito bom o procedimento do neto, mas desculpava-o. Eram coisas próprias da idade! Demais, um bocadinho de sol não fazia mal! E voltara-se para o interior da casa, chamando pelo Valentim, mandando que alguém fosse correndo para abrir o portão.
Poucos instantes depois sá Jovina fazia sua entrada na sala de jantar, sempre acompanhada pelo Pedroca, que se lhe segurava à saia, saudada jovialmente por d.
Augusta e pela filha que lhe correram ao encontro. Era uma velha de idade indeterminável, muito baixinha, o corpo envergado em forma de s, o torso para trás e a cabeça para adiante a repousar por sobre o peito. Sua pele de um amarelo pergaminhento enrugava-se fortemente nas comissuras dos lábios e dos olhos, formando uns leves de profundos sulcos. Ao rir-se, por sobre as gengivas nuas, mostrava os restos legendários de um dente que existira em outros tempos. Nas têmporas umas mechas desastradas de cabelos brancos saíam de debaixo dos bandós negros, revelando uma cabeleira com que pretendia ocultar a calvície. Mas apesar deste conjunto estrambótico, evocando imagens tétricas de sibilas priscas, circundava-lhe o todo uma atmosfera de bondades e de mansidões, talvez gestada por seus olhos de um escuro russo continuamente a remexerem-se nas órbitas à flor do rosto.
Apreciavam-na muito por causa da sua constante alegria e do modo pachorrento com que ia aturando todas as maçadas e debiques - espécie de retribuição exigida pelos benefícios que lhe prestavam. Em outras épocas, quando ainda podia trabalhar e não tinha a vista estragada, fora uma excelente costureira a andar de casa em casa para aprontar vestidos e até mesmo enxovais. Datavam daí as suas relações e, habituada a este gênero erradio de vida, continuava em sua peregrinação, passando uma semana em um lugar, outra noutro, sem residência fixa, velha boêmia através do mundo ao qual entretanto não se fazia pesada porque, nessas longas visitas, encarregava-se de costuras ligeiras ou pelo menos ocupava-se em remendar alguns trapos velhos. Desejando viver sobre si, sem os grandes vexames dessas hospedagens, tentara ao princípio fazer-se lavadeira quando os seus olhos cansados não se prestaram mais a acompanhar a agulha nas rápidas e complicadas evoluções do pesponto. Mas este serviço tomara-se-lhe muito penoso e vira-se obrigada a largá-lo apesar do imenso prazer que encontrava na vida independente.
Desde então andava assim, de porta em porta, a visitar as suas antigas freguesas, hoje já velhas e mães de filhas casadas. Em toda parte era sempre muito bem recebida, e apesar das caçoadas as vezes um tanto pesadas que lhe dirigiam, gozava de uma certa consideração e respeito por parte de todo esse mundo novo, que carregara ao colo, que acompanhara nas lentas evoluções através da sociedade. Tinha um lugar reservado em todos os enterros, em todos os casamentos e em todos os batizados. Mas o seu verdadeiro trono, onde ela gostava de se mostrar aos seus, era ali à noite, depois do chá, rodeada pelas crianças que lhe pediam histórias Então a boa velha procurava endireitar o corpo e ia, uma a uma, desfiando todas as Mil e Uma Noites peneiradas através de uma corrupção popular. E outras ocasiões entrava pelo seu passado adentro, um passado honesto e chão de virgem macróbia, sem incidentes, que guardara apenas recordações dos tempos agitados de Pedro I e da Regência, que conservara até umas vagas e incertas reminiscências da chegada de d. João VI, naturalmente adquiridas pela tradição.
Capítulo XIII
Receberam-na com grandes alegrias e expansões de desejando saber por que passara tanto tempo sem aparecer. Sá Jovina ouvia-as com um sorriso benévolo, procurando responder às interrogações que lhe faziam, explicando as razões da sua tardança. Estivera muito doente com umas febres que se manifestaram em casa do conselheiro Pedrosa, onde teve de ficar duas semanas de cama! E louvava muito o conselheiro e a d. Ritoca, que se lhe tinham mostrado extraordinariamente desvelados e cuidadosos, chegando mesmo a mandar chamar um médico que fora visitá-la de dois em dois dias. Depois tivera de ir ao casamento da filha de d. Juvência e a d. Sinhazinha levara-a para Petrópolis de onde tinha chegado na véspera. Entrava então em pomposas descrições da viagem, não poupando nenhuma minudência, entusiasmada com o trem da serra, dilatando-se principalmente no tocante aos passeios que fizera e nos quais por diversas vezes encontrara-se com o imperador, que ela achava muito parecido com o pai e quase se admirava de ver tão acabado.
Depois desta ligeira prosa foi tratando de entrar em seus cômodos. Ela já tinha o seu quarto reservado, ali junto à sala de jantar, por baixo da escada que ia para o sótão. E
dirigiu-se para lá, a fim de tirar a saia - uma saia de seda preta com rendas de vidrilhos que lhe dera a d. Rosinha e que afecionava dentre todas as coisas. Acompanharam-na e assistiram-lhe à toalete, ajudando-a a tirar o chapéu, numa grande expansão de contentamentos, continuando a fazer-lhe perguntas, caçoando-a pelo cuidado que dava às suas vestimentas. Mas sá Jovina ouvia-as com o seu sorriso benévolo, sem lhes dar resposta, ocupada em escovar e dobrar cuidadosamente a sua saia, um pouco inquieta porque estava a despregar-se uma das plumas do chapéu, querendo consertar imediatamente o estrago, e só volvendo à sala de jantar quando deixou tudo convenientemente acondicionado na gaveta da cômoda e não lhe pareceu haver mais possibilidades de encontrar uma qualquer avaria nas suas vestes domingueiras.
Foi então que d. Augusta e Nenê lhe deram parte do ocorrido, de toda essa brusca revolução a perturbar-lhes o calmo da existência. Insistiam sobre o fato. Admirava-as muito que o Pedro, assim sem mais nem menos, trouxesse para casa um companheiro.
Concordavam em que o Marcondes era muito atencioso e bem-educado. D. Augusta gabava-lhe mesmo o trato ameno e a consideração que lhe mostrava; mas apesar de tudo isto o genro devia tê-la previamente consultado a respeito e não fazer as coisas estouvadamente, sem prevenir a ninguém! Nenê por seu lado não deixava de louvar o talento musical do rapaz que a acompanhava tão bem ao piano. Em todo caso a gente não devia formar opinião pelas primeiras impressões e era possível que mais tarde tivessem a lamentar algum desaguisado! Enfim, de comum acordo, tinham resolvido conservar-se na mais estrita reserva, não poupando recriminações ao Pedro, que seria o único responsável de qualquer coisa que porventura acontecesse mais tarde, por isso mesmo que não quisera ouvir conselhos sobre o negócio.
Sá Sovina, porém, mostrava-se conciliadora e desculpava ao Pedro. Ela conhecia muito o que eram amizades de colégio! E citava fatos. O filho do conselheiro Pedrosa levava todos os dias uma porção de companheiros para casa do pai, e quando era de noite a rapaziada juntava-se toda lá no sótão e punha-se a fazer uma barulhada infernal!
Demais, elas não tinham nada a recear! Ainda se existisse em casa alguma moça solteira haveria possibilidade de suceder alguma desgraça! Mas nem isto tinham que temer! O
melhor era tratar o Marcondes com muita cerimônia porque ele perceberia logo que estava se tornando incômodo e procuraria um leito de ir-se embora! Em todo caso não achava bom o fazerem-lhe má cara, nem aprovava as tensões que tinha Nenê de ficar zangada com o marido por uma coisa que não valia a pena.
Nessas questões de marido e mulher a sua longa experiência do mundo lhe tinha ensinado que a gente, de qualquer lado que se voltasse, só saía perdendo!
Entretanto o Pedroca, que ouvira calado todas essas explicações, vendo que a conversação começava a esfriar, pediu a sá Jovina para lhe contar uma história. Ele gostava tanto quando a boa velha o sustentava ao colo, lhe falava de umas princesas encantadas e muito bonitas que viviam acorrentadas e sofredoras até a chegada de algum príncipe que lhes restituísse a liberdade! E insistia ante as negaças da senhora.
Trepava-lhe pelo colo acima, não obstante as advertências de Nenê, e tanto fez que a obrigou a satisfazê-lo. Antes porém de dar princípio à sua história era preciso que sá Sovina merendasse qualquer coisa. Dona Augusta chamava pelo Valentim e pela Marocas para que trouxessem uns pratos e talheres e pusessem em cima da mesa o queijo e o doce. O Pedroca quis fazer companhia à sua boa amiga e as duas senhoras, apesar de não terem o costume de comer qualquer coisa entre o almoço e o jantar, resolveram-se a acompanhá-la. Foi então, ali em derredor da mesa um grande redobramento de confidências íntimas ditas baixinho, a despertar a curiosidade do menino, que distraidamente ia mastigando o doce de laranja.
Capítulo XIV
Os conselhos de sá Jovina pareciam ter fortemente impressionado a mãe e a filha.
Tanto que, à chegada dos dois amigos, foram eles recebidos quase cordialmente, com grande espanto do Marcondes, que esperava encontrar umas fisionomias enregeladas de cerimoniosidades, e por causa das dúvidas fora durante a viagem do bonde preparando o espírito do Pedro para a sua mudança. O Pedroca tinha ido recebê-los lá fora no portão e, trepando-se para o colo do rapaz, falou-lhe desenvolvidamente sobre a velha senhora, procurando repetir-lhe a história que acabava de ouvir. Depois quis acompanhá-lo ao sótão onde assistiu-lhe à mudança de roupa, vivamente interessado pelas escovas e frascos de perfumarias que havia em cima do toalete. Então, para contentá-lo, o Marcondes penteou-o com requintes de perfumes. Ao regressarem para a sala de jantar, naquela pequena espera do jantar que o Valentim estava pondo na mesa, o menino andou a mostrar os seus cabelos a todo mundo, exigindo que lhe cheirassem a cabeça no meio da geral alegria.
A refeição correu em grandes contentamentos, amenizada pelas graças de sá Jovina, que contava uma história a todo o propósito e a quem o Pedro excitava com contínuos apetites e perguntas. Por vezes d. Augusta mesma esquecia-se do seu aspecto severo de dama antiga e compartilhava das risadas satisfeitas com que iam todos distraindo o tempo. Nenê abandonara completamente os modos reservados do almoço, conquistada por essa superficialidade de alegrias intimamente gostosa da feição acomodada que iam tomando as coisas.
O Pedro, sempre bonachão, alheio a tudo quanto o rodeava, vivendo num mundo de sonhos, tornara-se também brincalhão, procurando recobrar-se do mau humor com que aparecera de manhã, depois da noite mal dormida que passara. E o Pedroca, sentado entre o Marcondes e sá Jovina, mimado pelos seus dois vizinhos, que procuravam adivinhar-lhe as vontades, dava uma nota de alegrias infantis, modulada no argentino suave das risadas a adornarem-lhe a boca rubra e pequenina.
À tarde, foi aquele mesmo espetáculo da rua convertida em salão comum, nas grandes familiaridades da vizinhança. D. Augusta acompanhara-os até o portão e agora envolvia-se na conversa, prestando atenção ao Marcondes, que se divertia em discutir com sá Jovina a dissolução da Constituinte e o 7 de abril; ela mesma acrescentando algumas minudências e detalhes que ouvira em outros tempos nas conversas de família, falando desassombradamente da marquesa de Santos, que chegara a conhecer. Nenê brincava distraidamente com o Pedroca, aborrecido daquilo, não podendo compreender como havia gente que achasse graça em semelhantes coisas, procurando de quando em vez interromper o fio da conversação, chamando-a para um outro terreno onde lhe fosse permitido fazer também as suas observações. O Pedro por seu lado não estava muito contente com isto. Não que ele tivesse opiniões assentadas em política! Era-lhe completamente indiferente a questão de forma de governo; embora tivesse uns amores secretos pega República, votava sempre pelo governo e em casa não gostava de conversar sobre este assunto.
Entretanto as duas velhas continuavam a remexer o entulho das suas recordações.
Entravam francamente nuns detalhes crus, pela grande pornocracia do Primeiro Império.
Evocavam por entre umas auréolas de glória o vulto abandalhado de Pedro I, e compraziam-se em contemplar a estatura corpulenta do real bilontra. Ele surgia-lhes na imaginação com o seu todo varonil e os olhos lúbricos a destilarem vícios, mas uns vícios nobres, que não se escondem nos camarins, que vêm para o meio da rua com a coragem de sua existência e a ostentação de suas torpezas! Aquilo sim era um homem! E d.
Augusta, sem segundas intenções, aliás, comparava-o ao filho e achava este muito desajeitado, falto de elegâncias na sua eterna casaca sebosa. Ao menos naquele tempo a gente podia chegar à janela quando o imperador passava, certa de ver uma bonita cavalhada! Ela era então muito menina, mas ainda se lembrava de ter admirado por diversas vezes o brilhantismo do séquito imperial!
E vieram a falar sobre a independência. No final das contas, havia ali um mistério, uma coisa que nunca foi devidamente esclarecida, mas de que em tempos se falava extraordinariamente. Pelo menos sá Jovina lembrava-se de tê-lo ouvido a diversas pessoas. E a boa velha fez-se discreta, abaixando a voz, como quem ia comunicar um segredo. Jorge de Avillez, o comandante das tropas portuguesas no Rio de Janeiro, dizia ela, fora casado com urna senhora muito bonita por quem o Pedro I se apaixonou. Este apaixonou, a velha senhora o sublinhava, nuns tons cômicos, cheios de segundas intenções. Parecia, acrescentava ela, que o general não gostara muito da coisa e reunira as tropas na Armação para se vingar. Mas o imperador, que estava no teatro, foi avisado em tempo e obrigou a legião lusitana a capitular. E sá Jovina sorria maliciosamente.
Achava muito engraçada esta idéia de fazer depender o 7 de setembro, e tudo mais, de uma aventura galante, de uma simples briga entre um marido altivo e um príncipe metido a d. Juan!
Capítulo XV
Então, naquela grande paz das digestões a elaborarem-se nuns laivos de beatitudes, vieram a falar sobre a política. Um assunto corno outro qualquer, para matar o tempo, essas longas intermináveis horas do entardecer, quando o ar embalsamado que se coava pelos jardins afora lhes trazia, de envolta com o perfume das murtas e das madressilvas, a sensação boa da vida honesta e pacata a escoar-se mansamente através dos anos pelas uniformidades enfadonhas do rotineiro! Urna coisa que a gente lia de manhã cedo nos "A Pedidos" do Jornal do Comércio, que ouvia nas palestras do bonde, ao alcance de todo mundo, que se podia discutir à vontade, em opiniões autoritárias, sem ter o trabalho de estudar, deixando apenas às soltas a louca fantasia! E eles entravam francamente na matéria, cada um trazendo o seu contingente, todos construindo um Brasil lá a seu jeito, fazendo uma atmosfera propícia à vitalidade das suas teorias, concordes sempre em que o governo fazia tudo mal, admirando-se de tanto amontoado de desatinos!
O Pedro pertencia à mocidade decrépita de hoje em dia. Tomava parte nas conversas da repartição, discorria nos cafés da rua do Ouvidor e chegava mesmo a ler a Gazeta da Tarde quando voltava para casa. No seu modo de considerar os negócios havia os ressaibos de umas leituras revolucionárias que não tinham sido bem compreendidas. Inclinava-se às aspirações modernas e chegava mesmo a ter uns pruridos republicanos. No final das contas o país estava à beira do abismo e em pouco tempo a bancarrota nos viria bater às portas! Era preciso um remédio violento para esse estado de anarquia e dissolução! E dava-se uns aspectos científicos para falar no ferro em brasa, na amputação das partes grangrenadas do organismo social. Chegara o momento dos grandes heroísmos e das grandes dedicações. A nau do Estado não podia continuar a viagem sem alijar metade das velharias que lhe entulhavam o porão!
Mas o Marcondes divergiu completamente da sua opinião. Em tempos ele também deixara-se enlevar por estas teorias bonitas dos panfletários! Chegara mesmo a ser sócio fundador do clube dos Girondinos, e escrevera alguns artigos de propaganda republicana na revista desse clube! A pouco e pouco, fora porém mudando de idéias e, quando se esvaíram os seus sonhos da mocidade, quando aparece-lhe o juízo calmo e refletido, deixou de parte todas estas baboseiras próprias da rapaziada e converteu-se aos sãos princípios de um liberalismo moderado. A tal República era simplesmente uma especulação com que meia dúzia de esfarrapados andava empulhando a pobre humanidade idiota! Demais, ele agora não tinha tempo nem meios de ser político.
Principiava a vida, e precisava arranjar um meio de subsistência, um ganha-pão com todas as garantias legais. Mais tarde, quando já tivesse uma posição independente, refletiria sobre o caso e alistar-se-ia em um dos partidos militantes! Por enquanto a sua obrigação era não se meter nestes negócios para não angariar antipatias gratuitas que só podiam perturbar-lhe o desenvolver da existência!
D. Augusta aprovava-o, revoltada às idéias do genro, achando o Marcondes muito ajuizado e bem pensante. Ela votava sempre pelo sossego, gostando da política pacífica, intimidada à expectativa de uma qualquer coisa perturbadora. Demais prendiam-na à causa monárquica as suas tradições de família preciosamente guardadas no relicário do seu peito. O pai emigrara com d. João VI, e o marido possuíra o título de conselho! Além disto, das muitas obrigações que devia à família imperial, outras razões ponderosas havia a lhe ditarem todas estas crenças! No final das contas, as coisas não eram tão feias como pintavam! Todo mundo vivia bem, sem grandes inquietações! Tanto que sobrava tempo para discutir política! E em todo este negócio convinha observar que não valia a pena a gente dar-se ao trabalho de uma mudança para pior! O que seria do Brasil quando a hidra da anarquia tomasse conta do território? Só o pensar nisto bastava para arrepiar os cabelos!
Nenê também ritmava pelos mesmos tons Não achava fundamentos nas acusações que dirigiam ao imperador! Ele era tão bom, tão caritativo! Quantas e quantas mulheres, pobres viúvas desamparadas, iam aos sábados receber a esmola com que ele as sustentava? Nem valia a pena falar na imperatriz! Todo mundo sabia reconhecer-lhe o subido mérito! A princesa, essa, era tão agradável de trato! Não tinha presunção de qualidade alguma, falava com grandes amabilidades e, nos bailes que dava no Palácio Isabel, era tão cortês! Enfim! De que eram eles culpados? Para que atribuir-lhes a origem dos males que porventura houvesse? E em presença destas três convicções que lhe batiam todos os argumentos o Pedro teve de dar-se por vencido, ruminando ainda umas objeções vagas e indefinidas, em grandes frouxidões; ele próprio, meio duvidoso das suas crenças, republicano para ter uns ares guerreiros de moço modernista, incapaz de ir além da esfera palavrosa das discussões, amando dentre tudo o grande quietismo de existência em que ia vivendo.
Capítulo XVI
Atardecia. O vago escuro da noite que vinha fundia as arestas num mesmo quadro de negridões sem plano. Os lampiões iam bruscamente surgindo das trevas como estrelas candentes a alumiarem-se no suspenso da atmosfera. Falaram então na conveniência de irem para a casa que ainda se destacava brancamente por entre as folhagens das árvores. Já estava se fazendo tarde e o sereno que começava a cair podia constipar o Pedroca! Então, lentamente, cada um indo repor a sua cadeira de ferro debaixo do caramanchão, foram todos se encaminhando para o interior da casa, com passos vagarosos, parando de tempos em tempos para respirar mais de perto o perfume dos manacás! O repuxo do aquário continuava a umedecer o ambiente nuns ritmos alegres de chuvisco. E o Pedroca, ora junto a um, ora junto a outro, caminhava por entre risadas, achando muito engraçado o barulho das botinas a enterrarem-se nas areias soltas e branqueadas das alamedas.
Lá dentro dirigiram-se todos para a sala de visitas, cada qual tratando de se meter em seus cômodos, o Pedroca trepado no colo de sá Jovina a quem pedia insistentemente uma história. Mas a mãe fê-lo calar-se, recomendando-lhe que ficasse muito quietinho para não perturbar a música. A moça reclamava o auxílio do Marcondes. Ainda lhe tinham ficado gratas recordações daquele concerto da véspera, e agora que uma atmosfera de benevolências parecia circundar o rapaz, queria recomeçar com ele essa função de sonorosidades alegres. Sentada ao mocho do piano, ferindo a intervalos as teclas, clareada pelas luzes, um sorriso provocante a animar-lhe os lábios carnosos, sensuais e o luzidio dos olhos ternos, instava para que fosse buscar a flauta. E, como ele se resignasse a satisfazê-la, deram princípio à execução das partituras que se sucediam interminavelmente na estante. Eram de constante, umas surdinas harmoniosas, uns acordes fortes, apenas virgulados pelas palmas do Pedro e as aprovações de d. Augusta e sá Jovina, em meio à tristeza do menino que não ouvia a história.
Entretanto o Valentim viera interrompê-los, prevenindo-os de que o chá já estava na mesa. Nenê levantou-se de mau humor, com vontades de prolongar ainda aquela sessão musical que atualmente lhe constituía o único divertimento do dia. E quando todos se agruparam em torno à mesa, nos lugares que habitualmente ocupavam, a moça ainda conservava estampado na fisionomia o contradizer das sensações que a agitavam, misto de prazeres e dores, o meigo êxtase às vibrações harmoniosas que lhe repercutiam pelo interior do crânio e a contrariedade por ter-se visto obrigada a suspender bruscamente essa fonte sonora de doces enleios e poéticas visões. Distraída do que se passava, parecia absorta nuns mundos estranhos, sem dar atenção ao que a rodeava. E o chá ia sendo tomado aos bocadinhos, num grande silêncio de vozes, perturbado apenas pelo barulho dos dentes a mastigarem as torradas, esse barulho de ratinho que divertia tanto ao Pedroca. O menino porém conservava-se quieto, nuns ares de zangado, porque lhe tinham imposto silêncio e não o deixaram divertir-se em ouvir a história de sá Jovina.
Calava-se, a cabecinha loura descansando sobre o braço nu, à borda da mesa.
Para contentá-lo, e como o Marcondes fizesse notar o modo tristonho da criança, a boa velha tomou-o ao colo e pôs-se a lhe contar uma história muito comprida. "Era uma vez um velho lavrador que tinha três filhas, tão bonitas que uma se parecia com o sol, a outra com a lua e a terceira com as estrelas! E o bom velho era pobre, tão pobre que nem tinha criados e ia ele mesmo ao mato para fazer lenha! Uma noite quando voltava para casa, carregando às costas o feixe de lenha, encontrou-se com um príncipe muito bonito, tão bonito que se parecia com o azulado do céu". E sá Jovina continuava no mesmo tom, a repetir pedaços de frases que o Pedroca parecia beber-lhe dos lábios numa grande sinergia de prazeres. Em torno da mesa tinha-se feito o silêncio e, a pouco e pouco, iam prestando atenção à boa velha, comprazendo-se em ver esse pequeno quadro da vida doméstica, enquanto o menino deixava amolecerem-se os membros que caíam pesadamente prostrados ao sono lentamente a invadindo-lhe o organismo inteiro, marmoreando na estátua das felicidades infantis.
Então, espontaneamente, de todos os corações ergueu-se um coro de hosanas às alegrias da vida. Era tão bom aquilo! A gente sentia-se tão bem! E reunia-os umas grandes simpatias, a comunidade de existência e de aspirações. Tinham cessado inteiramente as primeiras hostilidades surdas com que na véspera haviam recebido o Marcondes. Agora todos tratavam de indenizá-lo das iniciais más vontades. Não poriam dúvidas em lhe abrir um cantinho onde vivesse, naquele ninho acolchoado e quente onde vinham quebrar-se em mansidões as vagas do exterior. Sentiam-se bem. O vento que lá fora remexia a folhagem trazia-lhes, pelas janelas abertas, o ar embalsamado dos jardins.
Da mesa, onde quedavam-se, num desastre de refeições já feitas, os pratos e as xícaras servidas, vinham todas as sensações boas das honestidades burguesas. Sá Jovina continuava a sua história, numa voz plangente, como a melopéia tristonha das mornesas vitais. E todo este quadro da vida íntima encerrava-se na esfera luminosa do lustro, esfera sem limites demarcáveis, em zonas intermediárias de claro-escuros a fundir na vastidão negra daquela sala de madeiras.
Capítulo XVII
E debaixo destas impressões benfazejas, em sonhos gentis de alegrias que caminhavam do futuro para si, que o Marcondes dirigiu-se para o quarto. Já não lhe vinham mais as tristezas do amanhecer, não palpava mais aquelas hostilidades surdas a atrapalharem-lhe a existência, a ditarem-lhe uma pronta e imediata retirada. Todos estavam conquistados a si, envolvendo numa atmosfera benevolente como um desdobramento das primeiras efusões com que o recebera o Pedro. E toda a flacidez de suas carnes, que no aboemiado da vida acadêmica sonhara tantas vezes um cantinho assim macio e acolchoado onde pudesse descansar, ideava-se em perspectivas sorridentes, fazendo-lhe achar a existência tão boa e cheia de bem-estares! Ali pelo quarto tão asseado, a despertar-lhe uns desejos preguiçosos, ele passeava nuns compassados de movimentos, despindo as roupas, preparando-se para dormir, a ruminar todos estes pensamentos, enfeixando-os ao grande poema otimista que andava compondo nuns versículos de risadas burguesas e de digestões pacíficas.
Depois, sentou-se à beira da cama, vestindo apenas um chambre, as pernas cabeludas saindo-lhe pelas aberturas, a balançarem-se compassadamente. A luz da vela tinha uns palores mórbidos clareando vagamente o aposento. E ele recostara-se, a cabeça por sobre o travesseiro. Esperava. Antes de se retirar tinha falado a respeito com o Pedro, e este lhe prometera arranjar tudo imediatamente. Desde a viagem que andava um pouco incomodado e na véspera tomara apenas um banho frio.
Contava porém melhorar com um de água morna, e como o amigo lho prometesse, admirava-se de que tardasse tanto, já quase adormecido. Entretanto um barulho de balde a gemer nas argolas vinha subindo pela escada acima. Enfim a Marocas entrou-lhe pelo quarto, desculpando-se da demora, apressando-se em dispor as coisas. E o rapaz soerguera-se um bocadinho, a fitar nuns olhares lúbricos a mulata que circulava pelo quarto, remexendo garbosamente os quadris das grandes curvaturas sensuais, desenhando pela parede em sombras fantásticas o seu perfil provocador.
No final das contas ele conhecera-as muito inferiores! E examinava-a com uns grandes gestos de conhecedor blasé que não discute grandemente estas coisas e vai buscar o prazer onde o encontra. Então, para dar princípio ao negócio, pôs-se a falar-lhe, numas frases acanalhadas, cheias de subentendidos que a rapariga ouvia em sorrisos benévolos e provocadores com que acompanhava as suas respostas sempre prontas.
Aos poucos a conversa ia tomando uns ares sérios de operação comercial não muito debatida e em que as partes entram imediatamente em acordo. O Marcondes levantarase, e teve pequenas brutalidade a fim de vencer umas mascaragens de negaças. Ele não gostava destas criançadas! Preferia-as arrogantes no impudor, levantando o pano de boca ao estrídulo do apito, franqueando bruscamente os cenários ocultos - esses palcos feéricos dos dramas carnais! E sem mais parlamentações atirou-a, ali para cima da cama, deixando-lhe as pernas pendidas para o assoalho num amortecido gentil, enquanto galgava-lhe o corpo na febre da sensualidade. Depois, quando o organismo inteiro se lhe arrebentou num desmoronamento de prazeres, ele levantou-se meio enjoado, achando aquilo simplesmente porco.
Vieram então a falar em grande intimidade, a Marocas respondendo-lhe às perguntas enquanto a água do banho esfriava-se a pouco e pouco. A rapariga contava-lhe tudo quanto ouvira entre d. Augusta e Nenê, quando na véspera o Pedro estivera cá em cima a palestrar com ele. E o Marcondes ia ouvindo-a, num súbito aniquilamento de si mesmo. Parecia-lhe impossível continuar a viver naquela casa depois de informado sobre os juízos acabrunhadores de ridículo que mãe e filha haviam formulado a seu respeito.
Agora só lhe cumpria retirar-se! Nem lhe restava outro alvitre desde que a moça o achara um importuno a perturbar-lhe o calmo da existência! Far-lhe-ia a vontade! Deixá-la-ia a sós com a sua gente! Admirava-se apenas de que ela após tudo isto ainda o tivesse convidado para os acompanhamentos de piano! Não podia também compreender como a velha senhora lhe tivesse mostrado tanta afabilidade no dia presente quando na véspera falara até em exigir do genro a sua pronta retirada!
E ele adormeceu nestas tristezas de pensamentos, firmemente resolvido a mudar-se no dia seguinte, não querendo mais ficar numa casa em que o tinham qualificado de importuno. Entretanto, e apesar dos esforços que fazia para afugentá-la, sorria-lhe meigamente uma visão feita de memória e fantasias a inspirar-lhe uns pensamentos cálidos de voluptuosidades canalhas. O busto encantador das curvaturas graciosas e carnações sadias de Nenê aparecia-lhe animado com aquele sorriso de desejos que a moça lhe dirigira havia pouco tempo quando lhe pedia que viesse buscar a flauta para acompanhá-la. No final das contas só podia ser uma conquista cheia de honrarias para quem a conseguisse, prometedora de felicidades sem fim! E recordava todas aquelas palestras da vida acadêmica em que os companheiros afirmavam não haver mulher que não tivesse sua hora de fraquezas. Repugnava-lhe a forma genérica e absoluta da proposição. Mas por que Nenê não seria dessas que caem?! E, como de repente se lhe evocasse a imagem sincera nas amizades do Pedro, procurou enxotar de si estes pensamentos satânicos e assentou definitivamente para o dia seguinte a sua partida.
Capítulo XVIII
Ao amanhecer do dia seguinte depois de uma noite em que levara a pensar muito sobre o assunto, o Marcondes levantou-se firmemente resolvido a retirar-se imediatamente daquela casa. Não havia mais razão para ficar ali a incomodar os outros, ele mesmo tolhido em seus movimentos, obrigado a sujeitar-se num sistema de vida ao qual não estava habituado! E vestia-se apressadamente, tratando logo de acomodar nas malas, ainda não completamente desarrumadas, os objetos e roupas que pusera da banda de fora. Apenas parecia-lhe um pouco difícil arranjar um pretexto para tão brusca reviravolta no seu modo de pensar. o Pedro se lhe mostrara muito amigo e prestadio. Não valia a pena bangá-lo, dar-lhe inquietações, talvez mesmo determinar urna pequena altercação entre marido e mulher por uma coisa tão insignificante. Arranjaria qualquer justificativa, a primeira que lhe viesse à cabeça, e faria a mudança sem mais explicações, contando voltar pouco àquela casa da qual entretanto levava Intimamente umas bem gratas recordações.
Lá embaixo receberam-no muito alegre e benignamente. O Pedroca saltara-lhe ao colo, querendo repetir uma história muito engraçada que sá Jovina acabava de contar. D.
Augusta, amenizada, sem os cerimoniosos e reservados da véspera, sorria-lhe benevolamente, informando-se de como tinha passado a noite. Nenê mostrava-lhe uma fisionomia prazenteira, admirada de vê-lo tão madrugador, ainda fresca e rosada do banho de chuva que vinha de tomar, os longos e bastos cabelos a caírem-lhe por sobre as costas ao longo do torso embrulhado numa toalha branca. E o Marcondes atrapalhavase. Não podia compreender tanta hipocrisia nem sabia como explicar estas aparências de jovialidade com que o recebiam, a ele que andava a incomodá-las, como elas próprias o diziam. Punha-se a refletir sobre o caso. Talvez houvessem mudado de opinião, modificado as impressões do primeiro momento! Em todo caso ele era quem não ficava mais ali! Estava resolvido a mudar-se e havia de falar com o Pedro a este respeito!
Durante o almoço, na boa e franca intimidade das refeições, teve por diversas vezes vontade de encetar o negócio. Para animar-se a si mesmo tentara persuadir-seode que era conveniente preparar o terreno para não esbarrar de encontro aos sobressaltos de uma bruscaria. Mas havia alguma coisa a atrapalhá-lo que não lhe deixava liberdade de expressão. Não sabia bem compreender o que se passava em si! O certo era porém que se sentia já arrependido do pouco que deixara entrever. Agora aquela vida lhe parecia tão boa e tão calma! Comparava-a com os imprevistos e dificultosos da existência em hotel. E
vinham-lhe umas vontades de ficar. No final das contas não lhe tinham dito nada, não sentia mais a envolvê-lo esse ar constrangido do primeiro dia, cercavam-no de carinho e de afetos, tratavam-no já como filho da casa e, se a Marocas não lhe tivesse revelado a conversa de Nenê com a mãe, ele se teria deixado ficar ali, compartilhando dessa vida calma e honesta, enquanto não arranjava a promotoria e não seguia para Santa Catarina!
E andava assim, nessas irresoluções, já não sabendo mais o que devia fazer, preso e fascinado por umas perspectivas de existência naquele canto alegre de umas felicidades mansas.
No bonde, porém, quando se havia quebrado todo o encanto que o circundava e ele sentia-se mais livre, sem o peso daquela sala de madeiras a se lhe impor, voltaram-lhe as primeiras resoluções. E pôs-se a meditar sobre a forma pela qual havia de dizer ao amigo o súbito desenlace que pretendia dar àquela situação. Seu espírito alternava entre as branduras e as bruscarias, Principalmente importunava-o a escolha do pretexto. Enfim, entrou na matéria, amontoando considerações sobre a vida do solteiro, a falta de hábito em que estava da existência familiar. As palavras vinham-lhe a flux dos lábios desordenadamente, contradizendo-se, numa dificultosa elaboração lógica à qual ele não sabia como pôr o remate desejado. o Pedro escutava-o, meio atônito, adivinhando algum pensamento oculto, forcejando por saber aonde o outro queria chegar. E o Marcondes continuava no mesmo desalinhavado de palavras, até que por uma transição brusca formulou francamente a sua resolução, declarando que de tarde pretendia mudar-se para um hotel do Rio Comprido.
Então o Pedro zangou-se. Insistia para que o amigo lhe explicasse categoricamente a razão de ser de semelhantes idéias. Perguntava-lhe se tinha encontrado falta de alguma coisa, ou se alguém o havia molestado. E, como o Marcondes declarasse que não tinha motivo de queixa de quem quer que fosse e principiasse a entoar louvores à gente da casa, o outro disse-lhe que se deixasse de tolices, que continuasse a residir com e enquanto não arranjasse a promessa da promotoria e que não andasse a importuná-lo com semelhantes escrúpulos. O rapaz ouvia-o calado, sem fazer-lhe mais objeções, já arrependido do que dissera, intimamente gostando da insistência do amigo que lhe dava ensejos de continuar naquela existência apenas entrevista e lhe parecia tão boa. Acabou aceitando novamente os oferecimentos do Pedro, dizendo-lhe que não ficasse zangado com aquilo, que ele tivera como obrigação sua tentar uma saída desde que vira as dificuldades que ia encontrar para obter a promotoria. Mas já que o amigo insistia e queria-o junto a si, ele não se fazia de orgulhoso e guardaria sempre umas gratas recordações das bondades com que o estavam tratando. Mais tarde, se o Pedro quisesse experimentar-lhe o reconhecimento, era só dar-lhe ordens.
Capítulo XIX
A pareceram então umas grandes intimidades. O Pedro falara com a mulher e a sogra a respeito do Incidente do bonde, e houve desde este dia um recrudescimento de atenções. Procuravam cercá-lo de mil afetos e carinhos, reservando para ele os melhores pedaços, numa sinergia inexplicável de simpatias. O Marcondes deixava-os fazer.
Gostava dessa vida que lhe davam. Sonhara sempre uma coisa assim - em torno de si gente alegre e satisfeita, passeando umas fisionomias prazenteiras, atentas aos seus menores desejos, a fazer-lhe a existência alcatifada de flores e de prazer, evitando sempre o encontro com as dores e contrariedades - essas modalizações horríveis da vida, junto às quais devia-se passar distraidamente! E agora que tinha assim arrumado o seu cantinho calmo e sossegado, preocupava-se pouco com a promotoria e contentava-se em aparecer todos os dias na Secretaria da Justiça e em fazer uma ou outra visita de cerimônia para conseguir alguma carta de recomendação com, em tudo isto, uns modos aboemiados de quem liga pouca importância ao futuro e tem tempo de sobra para esperar.
Fora logo se habituando ao regime da casa e a pouco e pouco granjeara urna certa ascendência. Agora, durante as refeições, falava alto, dava ordens ao Valentim e por vezes, nuns requintes cerimoniosos para com d. Augusta, tomava a si o encargo de trinchar. O Pedro olhava-o serenamente, num tom brando de amizade contínua e inabalável, despida de acidentações. E o rapaz ia lentamente ganhando terreno na conquista daqueles corações todos. Sua grande aliada em tudo isto era sá Jovina, a quem trouxera de presente um leque de fantasia. A boa mulher, que, a insistências de Nenê, resolvera-se a passar um mês ali na casa para consertar a roupa branca que estava toda sem botões e descosida em alguns lugares, deixara-se facilmente fascinar pela superficialidade brilhante e luzidia do Marcondes. Ouvia-o atentamente, gostando muito daquelas histórias novas que ele contava tão bem, envolvendo em meias-tintas e diáfanos de gaze o seu fundo acanalhado. E, quando ele estava ausente, a velha senhora não o esquecia nunca, falava sempre a seu respeito e arvorava-o em árbitro de qualquer questão suscitada.
D. Augusta tinha-o em muito boa conta. Achava-lhe um ar sério de homem prático que sabe encarar devidamente o mundo. Augurava-lhe um esplêndido futuro e chegava mesmo a estabelecer um paralelo entre a sisudez do rapaz e as leviandades inconcebíveis do genro. Ali, antes do jantar, quando ele voltava mais cedo, a boa senhora gostava de fazê-lo sentar-se junto dela. Então os dois começavam a discorrer largamente sobre qualquer assunto que se lhes apresentava, entravam num desnovelar de considerações intermináveis, admirando-se da uniformidade de pensamentos que os animava, E iam por aí afora, cada que dando pasto às suas maledicências, fazendo-se confissões mútuas num grande transbordar de amizades. Ela assumia uns ares protetores e ditatoriais de mãe benévola, que fecha os olhos a muitas escapadelas, mas que às vezes, arrependendo-se das suas condescendências, ralha, já disposta a perdoar. E o Marcondes deixava-a fazer, prestava-se boamente a esta comediazinha, gostando de tudo isto, sentindo-se mesmo ainda um pouco estouvado e precisando ter quem o guiasse, frouxa e bondosamente, neste labirinto dificultoso e complicado que se chama a vida social.
À noite, assim que começava a cair o sereno, iam todos para a sala de visitas e davam então princípio ao concerto habitual. Nenê já tinha aquilo em obrigação. Mal chegava à sala ia para o piano e punha-se a ferir distraidamente as teclas enquanto o Marcondes tirava uns ligeiros acordes da flauta. Depois os dois começavam a execução e caminhavam seguidamente, de partitura em partitura, até a hora do chá. Agora andavam tirando umas peças novas e de muito efeito que ele trouxera da cidade. E os dois entusiasmavam-se, mergulhando-se numa comunidade de ondas harmoniosas a acariciar-lhes a plástica, apenas perturbadas de quando em vez pelos aplausos do Pedro, que ia tomando gosto àquilo e, a modo de graça, falava em comprar um realejo para aprender a tocar. Mas, quando ele prolongava demais as suas manifestações de aplauso ou vinha importuná-los com perguntas, mandavam-no embora tratando-o de desajeitado, dizendo que não podiam compreender como houvesse quem não apreciasse a música.
De tudo isto ia se formando entre os dois uma grande intimidade. Nenê já abandonara completamente os modos cerimoniosos de tratamento e às vezes chegava mesmo a servir-se para com ele desse tu que nivela os terrenos e suprime as distâncias.
Depois da execução de cada partitura, quando ainda vibravam-lhes aos ouvidos os acordes sentimentais e tristonhos de Chopin, a moça fitava-o nuns olhos quentes de delírio, como a lhe agradecer aqueles instantes de ventura que lhe tinha proporcionado.
Nessa região mística dos sonhos e das fantasias ela lhe permitia uns amplexos de fraternidade artística. E eles juntos iam por ai afora a vogar mansamente, nuns doces enleios lamartinianos, pelos mundos etéreos dos sonhos, absortos nos seus cismares, como que desprendidos da realidade, num idílio murmurado brandamente em linguagem de harmonias. E iam assim através da vida, sonhadores de quimeras com um acordar sem sobressaltos nem inquietações, naquela mansidão de existência que viviam, encontrando em derredor de si apenas umas fisionomias alegres e prazenteiras a lhes sorrirem benevolamente.
Capítulo XX
Foram então uns períodos de prazeres e de contentamentos. A vida corria fácil e ligeira em pruridos de felicidades mansas e uniformes orquestrando-se numa monotonia sem fim. Eram todos os dias as mesmas cenas - uma espécie de opereta galante que caíra no agrado do público e mantinha-se garbosamente no palco à espera do centenário.
Os atores conservavam-se ainda na rijeza embaraçosa das primeiras representações, mas já iam se habituando ao papel, encarnando-se nas personagens, sem mais titubeios, gostando no final das contas da vadiação em que andavam a dispensar-lhes novos estudos e aquelas grandes cacetadas do ensaio, movendo-se como maquinismos ao apito do contra-regra. Enfim circundavam-nos uns horizontes azulados e límpidos, puros de névoas, sem prenúncios nem vislumbres de borrascas e tempestades, por debaixo dos quais fazia bem viver nuns anquilosamentos de bem-aventuranças, na grande paz quieta e sossegada dos paraísos - espécie de sono opiado sem perspectivas de acordar.
E o Marcondes sentia-se bem nesse banho tépido de dias uniformes. Deixava-se viver. Todo o seu egoísmo exultava numas modalizações barulhentas de contentamentos.
Sonhara sempre a existência assim, sem atrapalhações nem incômodos, tendo quem lhe cuidasse da roupa e lhe pusesse os botões na camisa. Insistira ao princípio com o Pedro para que este fixasse o preço da sua pensão ou pelo menos aceitasse alguma coisa como adjutório aos acréscimos de despesa. Mas, como o outro mostrou grandes repugnâncias à idéia, não lhe falou mais a respeito, resolvido a dar algum presente de valor quando se retirasse, limitando-se por enquanto a trazer algumas músicas para Nenê e voltar sempre da cidade com os bolsos cheios de bolas para o Pedroca. Assim lhe parecia tudo convenientemente arranjado, e ele mesmo não se ocupou mais do assunto.
E deixava-se viver tranqüilamente, sem se ocupar muito da promotoria, todo entregue a sua preguiça e à adoração de si próprio, achando muito justas e cabidas as atenções de que o rodeavam, numa grande calmaria de existência.
Em tudo isto surgia-lhe como um incompreensível e um problema a solver a imagem graciosa e simpática de Nenê. Lenta e lentamente, por uma amontoação de ninharias e de insignificâncias ele fora entrando-lhe na intimidade, a cada momento descobrindo-lhe uma nova feição, uma particularidade de caráter. Chegara mesmo a apropriar-se-lhe do aroma, daquele cheiro suave e discreto de jasmim que a moça exalava do corpo inteiro e que ele agora sentia na sua ausência, como parte integrante do próprio organismo. Tanto se habituara a vê-la e a tê-la sempre presente à memória que por vezes, à noite, no grande aniquilamento do sono, parecia-lhe distintamente senti-la junto a si nuns tangíveis de realidade. E quando acordava, meio contente, meio sobressaltado, custava em desvanecer-se daqueles sonhos, procurava a moça por toda parte, não podendo acreditar em uma simples visão, reconstruindo novamente esse perfil sereno das grandes curvaturas sensuais, querendo revê-lo novamente nas decorações fantasiosas do ainda havia pouco, alquebrado por todas essas comoções violentas que acabava de experimentar.
Vinham-lhe então uns desejos de conhecer o passado da moça. Talvez aí encontrasse alguma coisa que lhe servisse de orientação no proceder! Mas por mais perguntas que dirigisse à Marocas, que agora sempre tinha uma qualquer coisa para fazer no seu quarto às horas em que ele ia deitar-se, não conseguia descobrir o que queria. Nenê, através das longas e detalhadas narrações da rapariga, aparecia-lhe constantemente calma e sossegada, numa existência lisa e honesta, toda de meias-tintas.
Era um produto genuíno da educação fluminense, sem grandes paixões nem exuberâncias de sentimentos, a viver tranqüilamente entre a mãe, o marido e o filho. E o Marcondes remexia-a por todos os lados procurando algum ponto fraco, talvez mesmo alguma brecha por onde lhe fosse fácil a entrada na cidadela, desanimado de encontrá-lo mas procurando sempre, numa grande teimosia, esforçando toda a veemência dos seus desejos com as dificuldades que encontrava, querendo-a sem discussão de meios, até mesmo à força se não houvesse outro jeito.
E ele raciocinava demoradamente sobre o assunto. No final das contas o passado de quietismo e de sossego não provava coisa alguma. Era bem possível que a moça não tivesse caído até aquele momento porque encontrara sempre a estrada livre e macadamizada, sem uma dificuldade, sem uma pedra que a fizesse tropeçar! Mas por que ele não tentaria conquistá-la? Por mais que procurasse, não encontrava uma razão bastante forte para dissuadi-lo deste desígnio! E voltavam-lhe as recordações das conversas de república, quando os companheiros contavam proezas de seduções e ele ficava muito quietinho a um canto, sem ter nada que dizer, na uniformidade boçal dos seus amores pagos à hora! Mas havia de vingar-se desses tempos de obscuridade! Agora havia de ser como os outros! Teria também em seu passado uma aventura escabrosa de adultério para regar os amigos quando tivesse bebido um pouco mais, e fosse chegada a hora das confissões íntimas! E queria Nenê, veementemente, como um futuro adorno à sua individualidade de homem que conhece tudo, com todos os requintes da sua sensualidade brutal.
Capítulo XXI
Para se aproximar de Nenê, tê-la sempre junto a si, sentir-lhe o hálito perfumado, contemplá-la nas suas formas esculturais de carnações sadias, o Marcondes tornava-se de mais em mais freqüentador da sala de jantar. Ele gostava de ficar ali em meio às intimidades, por entre as saias e as conversas das três senhoras. Quase sempre tinha umas pequenas caçoadas para com sá Jovina, e a boa velha, sem mexer-se, continuando nas suas costuras e remendos, ia-lhe dando o troco respondendo-lhe no mesmo tom, não se recusando até a entrar francamente em uns duelos de espírito a que muito aplaudiam d. Augusta e Nenê. Eram então umas frases de duplo sentido, meio acanalhadas, a deixarem ver o pensamento por entre umas obscuridades fáceis, todo um mundo ligeiramente entrevisto a alegrar os circunstantes sem ferir-lhes as suscetibilidades em ostentações de rudezas, deixando uns refúgios já preparados a tendências moralizadoras, carnaval da bandalheira, em que ninguém repara, e que todos podem aplaudir sem comprometer os foros de boa educação e de severidade.
Às vezes d. Augusta tomava a direção das conversas dando-lhe um aspecto serioso de quem já viveu muito e fala em nome de uma longa e bem formada experiência. Ela gostava das investigações pelo passado adentro com súbitas e extemporâneas evocações de amigos, concluindo sempre por umas apaixonadas diatribes aos tempos que correm. Outrora a vida era mais amena, mais cheia de prazeres honestos e singelos, as amizades mais duradouras e veementes, os homens mais delicados, incapazes de fumar na presença de uma senhora, tudo enfim apresentava uns ares virtuosos e refletidos de quem media o alcance de qualquer ato antes de praticá-lo! E quando tinha acabado o elogio dos tempos que foram, fazia-se satírica, analisava com uns sarcasmos brutais todo este modernismo enfezado e hipócrita que lhe fazia mal aos nervos. Não poupava nenhuma minudência, carregando o quadro de forma a fazer sobressair o lado ridículo das coisas. Os outros riam-se, achavam-lhe graça nos comentários e não tentavam discutir, eles mesmos um pouco sectários da religião do passado.
Em outras ocasiões o Pedroca só a si tomava conta das atenções, divertindo os circunstantes com as suas ingenuidades, mostrando-se muito alegre e folgazão. Ele continuava a gostar muito do Marcondes, que lhe trazia bolas sempre que voltava da cidade, e nunca cessava de acariciá-lo. Ia quase constantemente esperá-lo no portão e saudava-o com umas alegrias ruidosas, procurando repetir-lhe as histórias que ouvira a sá Jovina, acabando por trepar-lhe ao colo. E, quando entravam na sala de jantar, começavam entre os dois umas grandes brincadeiras infantis. O menino escondia o rosto com as mãos e perguntava ao outro: - Onde estou eu? Então o Marcondes fingia procurálo em todos os cantos e por debaixo da mesa, acabando por perguntar a Nenê se o Pedroca não tinha ido para o jardim. E a moça continuava o brinquedo, debruçava-se na janela, chamando pelo filho, gritando com ele por estar apanhando sol e não obedecer às suas ordens, até que o menino, tirando as mãozinhas do rosto, corria ora para um, ora para outro, dizendo que estivera escondido ali mesmo na sala de jantar, que ouvira tudo quanto haviam conversado, achando muita graça na grande admiração que os outros mostravam.
O Pedro vinha também misturar a sua nota de boemia alegre àquelas conversas da sala de jantar, e quando voltava mais cedo da repartição tomava parte em toda essa intimidade de viveres. Ele trazia sempre um bafo quente da vida barulhenta lá de fora, andava muito bem informado dos escândalos da véspera e não perdia vaza para encaixar as pilhérias do momento. Atualmente o seu maior gosto era zangar alguém. Ia constantemente andando pelas suas teorias afora, de dedução em dedução, até que a mulher ou sogra lhe saltasse em cima, chamando-o de ateu ou de republicano, prometendo-lhe a maldição eterna, e as chamas de satanás. Então fazia-se alegre gostando daquilo, sentindo prazer em apregoar-se homem moderno, de idéias adiantadas e revolucionárias, tomando umas atitudes guerreiras de quem quer dar cabo do mundo. E
continuava, sem atender às exprobrações que lhe faziam, ostentando uns radicalismos inconcebíveis, até que d. Augusta se zangava seriamente e Nenê o mandava embora para o jardim, dizendo-lhe que não viesse mais aborrecê-la com as suas tolices e extravagâncias.
Era enfim uma boa vida honesta e pacata a que o Marcondes andava vivendo no meio de toda essa gente cujas simpatias iam aumentando de momento a momento. E o rapaz sentia-se bem, deixava-se embalar nesse quietismo de aspirações, não querendo mais do que isto mesmo, apenas escaldado por uns desejos sensuais que lhe faziam grandes placas vermelhas nos olhos e lhe aumentavam a intensidade das pulsações. Tão fortes lhe vibravam por vezes semelhantes desejos que ele punha-se a fitar longamente Nenê, tendo nos lábios uma torrencial de palavras prestes a desabar, retido bruscamente por umas atemorizações repentinas, temendo que a moça o repelisse logo à primeira palavra, preferindo mil vezes ficar-lhe assim na intimidade sem que ela suspeitasse a mais insignificante das suas intenções. Vinham-lhe por momentos umas vontades de abandonar completamente estes desígnios, de contentar-se com a vida mansa que ia vivendo, mas voltavam-lhe logo as primeiras aspirações aguilhoadas sobretudo pela necessidade que sentia de arremedar um homem, de ter uma conquista no seu passado.
Capítulo XXII
Nenê andava também grandemente sobressaltada, nuns incompreensíveis de existência que ela mesma não sabia explicar. Tinham-lhe aparecido agora uns recrudescimentos de efusões maternais Em repentes, pegava do Pedroca e beijava-o repetidas vezes, com umas grandes veemências que assustavam os circunstantes. Para com o marido tinha da mesma sorte uns transbordamentos de ternura, abraçando-o e beijando-o à vista de todos. Apesar do modo respeitador e quase cerimonioso pelo qual vivia com d. Augusta, esta não escapava às bruscas e repentinas manifestações de amizade que a moça atualmente derramava em mancheias ao derredor de si e das quais nem mesmo se livrava sá Jovina. Parecia enfim que Nenê sentia em si uma exuberância de afeições que ela irrefletidamente ia prodigalizando a torto e a direito, talvez por não poder gastá-la como sonhava, nuns esquisitos de caprichos de que se admirava mais tarde, fazendo-se faceira, trabalhando nuns requintes de toaletes, vivendo num estranho de ilusões e de fantasias onde não se reconhecia, em cujo terreno julgava não ter pisado até aquele momento.
Dominava-a agora uma grande paixão pela música. Sonhava umas harmonias deliciosas de instrumentos bizarros e nunca vistos, tangidos por mãos celestiais, a saturar o ambiente de sonorosidades excitantes, a banhar-lhe o corpo inteiro numas vagas de sensualidades. Era nuns automatismos de alucinada que ela caminhava para o piano, fazendo-lhe vibrar o teclado numas notas merencórias de tristezas sem fim por entre as quais, de momento a momento, destacavam-se nuns rápidos veios auríferos os ritmos alegres de Offenbach. Ela andava assim, a estereotipar na variabilidade das músicas o vasto movediço que lhe ia pela alma adentro; todas essas modalizações bruscas e antinômicas do seu espírito a vogar, a vogar indeterminadamente, aos azares da correnteza, pelo oceano marulhoso dos pensamentos. E quando, nuns rápidos momentos passageiros, sentia-se senhora de si e procurava sondar essas paragens ignotas, em que navegava agora, achava-se em presença de um abismo sem fundo cujas sensações más procurava abafar num mundo de harmonias.
Por vezes, mesmo durante o dia, ela exigia que o Marcondes fosse ensaiar em sua companhia alguma nova peça. Os dois dirigiam-se para a sala de visitas cujas janelas escancaradas deixam entrar francamente sol alegre e vivificante a alumiar umas paisagens verdes e encantadoras todas formadas com os arvoredos do jardim. Então olhavam-se nuns olhares longos, expressivos, que procuravam conter um mundo de pensamentos dissolvidos na tibiez própria de cada um. Olhavam-se e sorriam-se, atrapalhados, lamentando esse momento do frente a frente, que haviam desejado pouco antes, silenciosos, sem terem a coragem de pronunciar uma palavra, com medo de ouvir o som da própria voz, procurando esconder o acanhamento das suas posições. E para aparentarem uns ares de desembaraço atiravam-se logo ao piano e à flauta, tentando sufocar o que lhes ia pelo organismo inteiro, a febre que os devorava, num oceano sem fundos de harmonias, custando muito em acertar o compasso, tocando quase sempre ao acaso das recordações, vendo pouco e distraidamente a música que tinham diante dos olhos, com vontades de pôr um termo àqueles sofrimentos, de dizerem-se mutuamente os turbilhões de desejos que os abrasavam.
Pela porta que haviam deixado aberta, de envolta com o sopro de vida mansa e sossegada que vinha lá de dentro, Nenê sentia a beijarem-lhe as espáduas e a nuca, em satânicos de cantáridas, umas arreitações gostosas que a prostravam. Parecia-lhe ouvir, em tons murmurantes, umas excitações tresloucadas a lhe falarem de amor. Era a voz de d. Augusta, nas intimidades do a sós, tecendo elogios ao Marcondes, achando-o um rapaz sério e refletido que tinha diante de si largos horizontes e um futuro sorridente de prosperidade. Era sá Jovina entoando em homenagem ao moço uns louvores sem fim, descobrindo-lhe qualidades raras, fazendo o protótipo das virilidades. Era o Pedro, que à noite, no aconchego dos lençóis, lhe contava anedotas da vida colegial, uns rasgos de coragem do amigo, umas situações difíceis de que todos se haviam retirado sãos e salvos graças à sua valentia e presença de espírito. Eram enfim as risadas infantis do Pedroca, que gostava muito do seu amigo grande e lhe vinha mostrar as balas que ele lhe trouxera.
E a moça curvava a cabeça num gesto gentil de vítima pagã que espera sorrindo o golpe do sacrificador. Entregava-se. Não tentava mais lutar. Parecia-lhe que a casa inteira, a mãe e o filho, o marido e a velha amiga, até mesmo os objetos, tudo quanto a circundava, conspirava para lançá-la nos braços daquele homem. E ela ficava ali, quieta e sossegada, num grande aniquilamento de si mesma, à espera de que ele se abaixasse para tomá-la. Vinham-lhe umas submissões de escrava, vontades de que ele fosse brutal, desejos de cair nuns laivos de honestidades, aos últimos paroxismos de uma luta. E como ele se conservasse quieto, a olhá-la longamente numas ternuras medrosas, a moça levantava a cabeça e fitava-o com um sorriso triste de quem pede que acabem de uma vez com esses tormentos, de quem quer libertar-se quanto antes de perspectivas negras e ameaçadoras. Então os dois recomeçavam novamente a música, entoando as sinfonias tristonhas de uma qualquer balada alemã, procurando afogar o turbilhão de pensamentos, que lhes ia pelo cérebro adentro, no lago tranqüilo e calmo de umas melodias, norsas, merencórias e taciturnas como a natureza gelada de sua pátria.
Capítulo XXIII
A cada uma destas superexcitações de sentidos o Marcondes retirava-se alquebrado, tendo um mundo de ardentias a escaldarem-lhe as artérias. Vinham-lhe então uns longos abatimentos, umas prostrações sem fim. Recriminava-se a si mesmo! No final das contas devia atribuir tudo à sua covardia. Adivinhava-a prestes a desfalecer, a cair-lhe nos braços! Bastar-lhe-ia abaixar-se para apanhá-la, para tê-la como sua! Entretanto não fizera nada! Deixara-a quieta e sossegada a magoar-se daquela vitória não perdida! E de si para si, confessava-se uma besta, muito ignorante nestas matérias de amor! Se ele fosse mais brutal, não tivesse tantas considerações e respeitos, não andasse atemorizado com uns receios infundados, com certeza já tê-la-ia conquistado! E lamentava-se furiosamente da sua inépcia, maldizia estes tempos em que se metera nas conquistas fáceis e nos amores a cinco e até mesmo a dois mil-réis! Se ele tivesse aproveitado estes anos da sua primeira mocidade na aprendizagem da crápula do bom-tom, com certeza não estaria agora tão atrapalhado com este noviciato que lhe custava tanto trabalho!
E prometia emendar-se. Jurava a seus deuses que daquela época em diante havia de ser mais empreendedor. Castelava uns planos para o futuro. Agora queria Nenê fosse como fosse. Queria-a em nome de todas estas derrotas que experimentara por causa de seus modos esquerdos e de sua falta de prática. Queria-a em nome dessa paixão que lhe escaldava o sangue e lhe entontecia a cabeça. Queria-a como o primeiro degrau dessa escada por onde esperava subir ao canalhismo aristocrático, como embasamento sólido e gentil de arabescos sobre o qual pretendia erguer o monumento de suas futuras glórias dom-juanescas. Queria-a como o sarcasmo lançado aos amores fáceis do seu passado, como o complemento da sua carta de bacharel em direito. Queria-a fosse como fosse, custasse o que custasse, ainda mesmo que tivesse de passar por cima de um cadáver, numa grande superexcitação de espírito, alucinado por toda essa paixão sensual que lhe brotara de repente no organismo inteiro, nas veemências que geram as dificuldades não superadas.
Formava uns planos para futuros a sós. Dir-lhe-ia toda a imensidade de desejos que lhe abrasava o crânio. Ela havia de ceder, de se deixar cair nos seus braços. E depois?
Oh, como havia de ser bela a existência! Castelava-a numas alegrias sem fim, numas brutalidades enormes, nuns paroxismos de sensualidades. Viveria ali, naquela mesma casa, a amá-la constantemente, a rodeá-la de carinhos e afetos. Não lhe repugnava compartilhar com o Pedro esse tesouro de amores bons que lhe adivinhava. No final das contas o outro era marido e tinha direitos adquiridos, direitos em que não ousava tocar.
Seriam dois a amá-la. Apenas, evitaria por todos os meios que o outro conhecesse aquela vida a três. Era possível que o amigo não se agradasse muito com o negócio e convinha evitar as desavenças possíveis! Amá-la-ia em segredo, e sempre, e sempre. Para não abandoná-la, para nunca separar-se dela, ficaria ali mesmo no Rio de Janeiro, sem pensar mais em obter uma promotoria, limitando-se a abrir um escritório para viver honesta e decentemente.
Oh! Ele bem sabia o que fazer depois do primeiro abraço e do primeiro beijo quente, quando já lhe tivesse inoculado um pouco daquela seiva abrasada que lhe escaldava o sangue! Para ele toda a questão, todas as dificuldades estavam no primeiro amplexo.
Depois, tudo era fácil, devia suceder-se muito naturalmente como um desencadear de corolários. Apenas lhe parecia extremamente complicado o estabelecer a premissa. E a si mesmo confessava a sua impotência, reconhecia-se inapto para tanto, acobardava-se diante da perspectiva. Oh! se ele fosse ousado, se tivesse lá aprendido a aproveitar-se desses tão falados momentos psicológicos em que as mulheres param-se à beira do abismo onde se deixam cair ao mais leve impulso, com certeza já teria levado tudo de vencida, já estaria a viver aquela vida honesta e sossegada que se lhe afigurava tão brilhante e sorridente num conjunto de felicidades mansas! Oh! Ele queria dobrá-lo, este Cabo Tormentoso após o qual ficar-lhe-ia, ao fim da navegação, essa Índia poética e misteriosa das voluptuosidades asiáticas!
E como se reconhecia impotente e pequenino para tão grande empresa, incapaz de levá-la ao termo, sonhava uns meios de evitá-la, de pular por cima de todas estas dificuldades. Queria uns desenlaces rápidos e fáceis para esta situação que a cada momento sentia mais complicada. Por vezes, como uma idéia boa, pareceu-lhe muito mais agradável o deixar à moça a iniciativa dos primeiros passos. Assim era muito melhor!
Quando estava só, lá no quarto, todo entregue a este escaldar de desejos, mordendo os travesseiros nuns paroxismos de paixões, sonhava o vê-la chegar de repente e entregarse a ele cheia de súplicas, pedindo-lhe que a não fizesse mais sofrer, que a tomasse já e já. Ele então mostrar-se-ia bondoso e complacente, como um José que, depois de pequena resistência, acaba cedendo porque tem amor à roupa e não quer deixar a túnica nas mãos da mulher de Putifar. Assim, sim! E ele queria este desenlace como o mais cômodo e o menos trabalhoso, como a solução mais fácil àquele paroxismo de desejos em que viviam os dois. Havia de obrigá-la a isto, a vir-se-lhe entregar! E para determiná-la a tanto, para conseguir tudo isto procurava fazer-lhe brotar no crânio uns ciúmes fortes e veementes.
Capítulo XXIV
Havia já uns dez dias que o Marcondes chegara àquela casa pelo braço do Pedro e a sua situação, bruscamente melhorada logo no seguinte dia, ia lentamente complicandose tornando-se dificultosa e cheia de entraves com toda essa aventura amorosa que ele ateava constantemente e nunca conseguira deslindar com a sua natural tibieza e falta de prática. Sentia a necessidade de não prolongar por mais tempo este estado todo anômalo de viver. Precisava dar um desenlace a este pequeno incidente! E como não se reconhecia coragem para arcar frente a frente com a situação, como a sua franqueza andasse sempre a atemorizá-lo procurou uns caminhos tortuosos para chegar ao termo da conquista empreendida. Firmemente persuadido de que Nenê acabaria por entregar-se toda inteira, de corpo e alma, à discrição do vencedor, almejava fazê-la render-se sem combate e sem resistência, e pareceu de muito boa tática o despertar-lhe uns ciúmes em cujos acessos violentos a moça viesse procurá-lo; e só esperava um ensejo para por em execução este plano para ele tão cheio de prometedores resultados.

Uma noite quando todos já se tinham retirado do portão, e, reunidos na sala de visitas prestavam atenção a Nenê que preludiava no piano uma romanza italiana apareceu a visitá-los a família Moreira. Foram então uns grandes rebuliços uns transbordamentos de alegrias. Havia tanto tempo que não se viam! E de parte a parte recomeçavam os beijos e os abraços, um desencadear sem fim de efusões ternas o Marcondes foi imediatamente apresentado pelo Pedro ao sr. Moreira - um sujeito alto e bem falante já meio idoso, que ocupava uma posição elevada no funcionalismo. Logo em seguida, à voz de Nenê, que o chamava para o círculo das moças, ele dirigiu-se para junto do sofá onde recomeçaram as apresentações às filhas do tal sujeito. Eram três irmãs, muito galantes, de cabeças louras, os cabelos bastos e sedosos caindo despretensiosamente até a cintura. Trajavam igualmente uns elegantes vestidos de cetineta, com casacos de cetim arremedando fraques, quase disfarçadas em homens, com os competentes colarinhos e as gravatas com pregador em ferradura.

A conversa generalizou-se. Vieram logo a falar sobre modas. Nenê elogiava muito aquele feitio de vestido, e declarou imediatamente que havia de mandar fazer um igualzinho. Achava graça nessa ousadia de fraques e coletes. Mas o Marcondes entendia que cada sexo tinha obrigação de guardar os seus trajes e não se meter a inovações capazes de confundi-los. Então discutiu-se muito o assunto, cada qual trazendo o seu parecer, alterando a voz para se fazer ouvir no grande barulho que reinava. De modas, sem transição, passaram a tratar da rua do Ouvidor. As meninas Moreira tinham estado lá na véspera. Sempre muita gente! Às vezes era até difícil de atravessá-la! E diziam os encontros que tiveram: as filhas do Nicolauzinho, a noiva do Artur - um primo delas, e outras, e outras, um nunca acabar. O Marcondes ouvia-as com muita atenção, não perdendo vaza para encartar uma graçola ou uma amabilidade. Resolvera-se a aproveitar o ensejo para executar o plano concebido e olhava para as três, procurando escolher a mais bonita, indeciso, ainda não sabendo a qual devia dar preferência, acabando por decidir-se pelo narizinho arrebitado da mais moça, que respondia pela alcunha de Linda.

Como viessem a falar sobre música e sá Jovina contasse os concertos habituais da noite, as meninas Moreiras insistiram para que os dois fossem executar. Depois de umas pequenas negaças facilmente vencidas, Nenê dirigiu-se para o piano convidando o Marcondes a pegar da flauta. Então começaram. O rapaz fazia-se porém distraído, raramente acertando o compasso, voltado para a Linda a quem parecia fulminar com os seus olhares ternos a segredarem umas declarações de amor. E como observasse que Nenê apercebia-se dos seus manejos e não prestava mais atenção à música continuou, procurando fazer-se mais notado, muito contente em ter posto em prática o seu plano, prevendo desde já uma próxima cena de ciúmes veementes após a qual a moça se lhe entregaria inteira e completamente, pedindo-lhe que não fosse tão mau, que a amasse pelo menos um bocadinho! Entretanto a música terminara-se sem grandes entusiasmos de aplausos, apenas com uns cumprimentos de civilidade, sem insistência para que executassem mais alguma coisa, todos passando logo a outro assunto.

Desde então, já nas conversas da sala, já durante o chá, Nenê conservou-se muito irascível e cheia de bruscarias. Forcejava em atrapalhar todos os colóquios do Marcondes com a Linda; o rapaz, que notava estas súbitas transformações, fazia-se mais amável para excitá-la e provocar-lhe a tão ansiosamente esperada cena de ciúmes. A moça sentia-se fora de si, não podendo compreender tem o que se passava no seu organismo.
No final das contas ela gostava do Marcondes e percebera havia muito tempo que o rapaz lhe retribuía na mesma moeda! Nunca tivera a idéia de aceitá-lo para amante! Ela era muito honesta e não queria de forma alguma ser infiel ao marido! Mas o amor submisso e sossegado do moço lhe parecia muito decente, uma homenagem rendida à sua beleza vaidosa, homenagem recebida sem escrúpulos, nunca lhe tendo passado pela idéia a possibilidade de uma exigência! E agora zangava-se, não o queria para si, mas opunhase também a que ele andasse requestando outras mulheres, entendendo que o rapaz tinha obrigação de dedicar-lhe uma contemplação gratuita de devoto!
Capítulo XXV
O Marcondes exultava. Agora só lhe bastava deixar que a semente germinasse!
Nenê devia necessariamente fazer uma qualquer, uma demonstração repentina, um desses atos que desmascaram os mais íntimos sentimentos, e ele contava aproveitar-se do ensejo para a realização de todos Os seus desejos. Dera-lhe boas noites, assim como quem diz - até logo. Lá em cima, no quarto, esperava-a. Todo o seu romantismo natural fazia-lhe pensar que a moça arranjaria qualquer pretexto, aproveitar-se-ia do sono do Pedro para ir esprobar-lhe o seu procedimento, chamá-lo de traidor, acabrunhá-lo com impropérios, por trás dos quais se sentiria veementemente um mundo de paixões a calciná-la. Ele então seria bom, perdoar-lhe-ia todos estes insultos, procuraria acalmá-la, gastando-lhe o fogo nuns beijos longos, amorosos e quentes! E esperava sempre, indefinidamente, num exaltamento de sensualidades, tendo apagado a luz e deixado a porta aberta, estremecendo ao menor ruído, julgando a cada momento palpar-lhe, entre os braços, o corpo gentil das boas carnações sadias, das desenvolturas fáceis de serpente.
E de fato, Nenê com a longa meditação da noite, ali na cama, sentindo por entre a branda quentura dos lençóis o corpo do marido todo entregue à satisfação de dormir, burilava umas elaborações penosas de pensamentos maus. Achava que o Marcondes procedera muito canalhamente querendo namoricar, ali mesmo às suas vistas. Vinhamlhe uns verdadeiros ciúmes a escaldar-lhe o sangue. Queria-o para si, não como um amante mas como um adorador! Habituara-se àquelas demonstrações silenciosas e humildes de veneração. Toda a sua vaidade de mulher bonita gostava desse incenso com que lhe acariciavam a plástica graciosa. Chegara mesmo a sonhar a existência assim.
Numa grande calmaria de paixões e de rivalidades ela queria viver entre a mãe, o marido e o filho e tendo o Marcondes como um sacerdote da sua religião; ela lá em cima, em um altar, bela e impassível como uma deusa a respigar todos os fanatismos histéricos dos seus crentes, muito boa, consentindo que a adorassem!
E no dia seguinte a moça acordou muito enraivecida e de mau humor, ralhando com todo mundo e a qualquer propósito, fazendo-se má castigando o Pedroca porque fora ao jardim contra a sua ordem expressa. Durante o almoço mostrara-se muito cheia de bruscarias, tratando o Marcondes com umas ostentações de friezas. E assim levara todo o dia, sempre irritadiça, mudando constantemente de lugar. À noite, quando foram para o portão, naquele hábito contraído desde tantos tempos, continuou a perturbar todos os prazeres e divertimentos, interrompendo as conversações dizendo que estava incomodada, que os outros não lhe ligavam importância, que a deixavam sozinha sem lhe prestar atenção. Mais tarde, à hora costumeira da reunião na sala de visitas, ela ainda redobrou de maus modos e declarou positivamente que não queria mais tocar piano, que estava farta de cansar-se para divertir umas pessoas que não sabiam lhe agradecer e levavam a debicá-la e a criticar-lhe a execução, que chegavam mesmo a negar-lhe vocação musical!
Então a noitada tornou-se enfadonha e entristecida. Todos andavam inquietos, sentindo vagamente no ar que respiravam a ameaça de um cataclismo. D. Augusta quis mesmo fazer umas pequenas observações à filha, nas foi recebida com um olhar tão ameaçador que recolheu-se prudentemente aos bastidores. Nenê não era má, mas quando se zangava ficava insuportável, incapaz de atender a quem quer que fosse, e nessas ocasiões era sempre melhor deixá-la sossegada para não azedar-lhe o ânimo!
O Pedro também tentou intervir no negócio, não podendo compreender esta brusca reviravolta na mulher, ainda na véspera tão contente, cantarolando alegremente, tendo também de recuar ante o modo pelo qual foram recebidos os seus comentários. E sá Jovina, que não gostava destas brigas, propôs que tomassem imediatamente o chá e fossem todos deitar-se cedo, ela mesma resolvida a partir no caso de piorar a situação, adivinhando alguma coisa do que se passara.
O Marcondes lamentava-se agora de ter posto em prática o plano tão longamente concebido e do qual esperara tanto. Se ele não se tivesse metido a querer rapidez no desenlace daquela pequena aventura que ainda se conservava oculta, não lhe teriam acontecido coisas destas. Atualmente parecia-lhe que havia procedido mal e arrependiase do que fizera. Tinha mesmo vontades de chegar junto à Nenê e de dizer-lhe que o incidente da véspera não passara de uma farsa improvisada no momento. Mas a moça olhava-o com tanto rancor que não se animava a isto e conservava-se silencioso, não sabendo que jeito havia de dar a esta complicação, saudoso da boemia alegre dos outros tempos, com vontades de aniquilá-lo este dia que lhe parecia tão fatal aos seus amores, como que o esvaimento de todas as suas esperanças. E ficava irresoluto, não sabendo o que fazer, confiando no tempo para apagar todas estas reminiscências, esperando ainda na possibilidade de voltarem às grandes intimidades iniciais, apressando-se em ir para o quarto a fim de fugir a essa realidade opressora.
Capítulo XXVI
Desde então começaram a reaparecer aquelas friezas e cerimoniosidades dos primeiros dias, agora mais fortes e atrapalhadoras por todo este intervalo de intimidades.
Já tinham completamente desaparecido as conversas longas e intermináveis com que eles andavam a matar o tempo. Por vezes o Marcondes ainda tentava as familiaridades de outrora, mas via-se logo embaraçado com as respostas monossilábicas que recebia. O
Pedro mesmo não ostentava mais as primeiras expansões, tomava uns ares tristonhos e esquecia as suas boas pilhérias ruidosas de então. Apenas o Pedroca continuava a mostrar grandes amizades ao rapaz e a ir recebê-lo no portão. Durante as refeições a fisionomia séria e reservada de cada um abolira completamente as jovialidades com que eles costumavam apimentar os pratos e preencher os intervalos. Enfim o Marcondes, lenta e lentamente, sentia a formar-se em torno a si um grande vácuo no qual se debatia estonteadamente, não podendo compreender uma tão brusca transformação; ele mesmo achando agora que aquela existência não era tão boa como parecia, furtando-se a ela o mais que podia.
Nenê constituíra o centro deste movimento que ia lentamente minando e solapando o edifício de felicidades que o Marcondes se construíra. Agora a moça tinha-lhe uns ódios e uns rancores veementes. Não podia aturá-lo e ficava nervosa só com a sua presença.
Na grande febre dos seus ciúmes fora-lhe dado examinar em toda a verdade a sua situação. Vira-se prestes a cair, a desfalecer nos braços desse homem que o marido trouxera um dia para casa e que neste momento a impressionara tão desagradavelmente.
Sentira mesmo que devia à inexperiência e acanhamento do rapaz o ter-se ainda conservado pura e sem mácula. E odiava-o duplamente. Odiava-o por toda a sua honestidade que agora lhe vinha em borbotões à flor da pele, horrorizada do abismo pelo qual escapara de rolar tão desastradamente; odiava-o por causa desse amor que ainda lhe tinha, por causa de toda a sua mulheridade exuberante de moça formosa, por todas estas vezes em que estivera junto a ele a palpitar de sensualidades, por não se ter ele aproveitado dessas ocasiões que ela inconscientemente lhe oferecera tantas vezes! Oh!
Odiava-o muito!
Sá Jovina encarregara-se de fomentar todas estas tendências. Toda a sua bílis, acumulada na longa vida de dependências e humilhações, vinha-lhe à tona, numas frases causticantes que endereçava ao moço. Fora ela quem, reconhecendo as latências de animosidades que se convergiam lentamente para o Marcondes, estimulara-se e ousara mesmo pronunciar a primeira acusação, da qual todas as outras não eram mais do que conseqüências. E desde então ela, que já começava a sentir um tanto abalado o seu próprio crédito, firmava-o e restabelecia-o com os destroços dessa outra amizade que estraçalhava. Ao princípio Nenê e d. Augusta limitavam-se a ouvi-la, sem mesmo arriscar uma aprovação com a cabeça, intimamente gostando dessas críticas que concordavam tão inteiramente com as próprias opiniões. E a boa velha continuava lentamente no seu trabalho de toupeira a minar o solo em que pisava o rapaz, esperando já o momento em que lhe faltasse o terreno debaixo dos pés, contando aproveitar da ocasião em que ele desabasse para auferir alguns proventos, ganhar os resíduos dos destroços esparsos.
Todos iam se deixando arrastar insensivelmente, sem saber como nem por que, por esta correnteza a acumular desafeições contra o Marcondes. D. Augusta já não o ouvia mais como antigamente, não mandava-o chamar como dantes para as conversas íntimas de durante o dia, não podendo ela mesma explicar a origem de tudo isto, ouvindo benevolamente as maledicências por sá Jovina segredadas a seu respeito, compreendendo haver da parte de Nenê uma tal ou qual antipatia para com o rapaz. E a boa senhora não se dava ao trabalho de indagar a origem de tudo isto. Conservava-se muito calma e tranqüila sem querer ajuizar sobre o caso, entendendo que se tratava de uma qualquer coisa insignificante e passageira, lamentando até que não voltassem aos imediatamente primeiros dias, àqueles longos serões de músicas sem fim em que o espírito alegre e folgazão do Marcondes podia vagabundar pelos assuntos, animando a conversa, dando-lhe umas feições ao mesmo tempo séria e pilhérica, ajudando a gente a matar as horas enquanto não chegava o sono.
O Pedro mesmo, sem compreender o que se passava em si, começava a aborrecerse do Marcondes. Já não eram mais aquelas grandes efusões dos primeiros dias, aquelas conversas que se prolongavam pela noite afora. Ele agora fazia-se mais discreto e menos comunicativo. Apenas, nas horas de refeição, sentindo o mal-estar que lentamente se apoderava de todos, procurava animar a conversação, dar-lhe uns aspectos de jovialidades. E como reconhecia-se fraco ele só para tamanha empresa procurava um apoio no Marcondes, tentando espicaçá-lo a fim de rir-se do eflúvio de palavras e teorias pândegas, com que o rapaz costumava responder a esta ordem de provocações. Ao princípio servira-se de uns meios brandos, de umas caçoadas ligeiras. Mais tarde encontrando-lhe, com grande pasmo seu, uma epiderme moral muito coriácea, fora gradativamente aumentando a intensidade dos seus ditos, fazendo-os ferinos, contente quando o Marcondes zangava-se ou um sorriso de aprovação aparecia nos lábios de Nenê, compreendendo que se estava passando alguma coisa estranha, mas muito preguiçoso para se dar ao trabalho de investigá-la.
Capítulo XXVII
O Marcondes, que nos últimos tempos havia abandonado completamente a sua pretensão de obter uma promotoria, voltara a se ocupar assiduamente do negócio, contente em achar qualquer coisa que o prendesse na rua. Agora andava a fazer muitas visitas e a procurar cartas de recomendação para o ministro da Justiça que não mostrava muitos desejos de servi-lo. E ele teimava em ser bem sucedido, querendo seguir imediatamente para junto da família, já cansado da vida que levara, meio pessimista, a acusar o mundo das contrariedades que sofria, sobretudo não poupando sarcasmos à amizade - uma coisa com que a gente sempre se sai mal! Uma ocasião demorara-se fora além das horas do costume e fizera com que o esperassem muito tempo para o jantar.
Então, como notara um recrudescimento de antipatias, pedira para que nunca mais o esperassem além das quatro horas, e dois dias depois, convidado para um jantar de cerimônia em que esperava ser apresentado a um amigo intimo do ministro, prevenira o Pedro de que só voltaria de noite.
Foram grandes as alegrias experimentadas pela família ao saber da notícia. D
Augusta mesma já andava cansada das etiquetas a que se sujeitava por causa da presença do rapaz. No final de contas ele era um estranho e a gente não podia ter, à sua vista, a grande expansão das intimidades! Era preciso tomar alguns cuidados nas expressões, ostentar uns modos severos. Enfim, era sempre um estranho, um homem que se metera por ali adentro e que já começava a importuná-los! E todos apresentavamse com uns ares prazenteiros, fisionomias rejuvenescidas, prometendo-se uns mundos de prazeres. Até mesmo Pedroca parecia mais risonho, contente em poder ficar perto da avó que agora o enchia de carinhos, dizendo também as suas gracinhas, encantando a todos com as suas boas e argentinas gargalhadas infantis, comunicando aos outros toda a sua alegria de criança que gosta das novidades selam quais forem e que se aborrece logo que se sente dentro de uma habitualidade enfadonha.
Nenê, que andava sorumbática e amortecida, fez-se também alegre, voltando aos seus belos tempos despreocupados, servindo ao marido, querendo picar a carne do filhinho, num grande transbordamento de amizades. De momento para momento aumentava-lhe o ódio que dedicava ao Marcondes. Não podia mais aturá-lo e ficava nervosa com só ouvir-lhe a voz. Ele a fizera sofrer tanto! E sem formular bem claramente a acusação, sem mesmo compreendia inteiramente, exprobrava-lhe o ter ofendido a sua honradez e despertado a sua sensualidade, nem maculando a primeira, nem satisfazendo à segunda. Ela perdoar-lhe-ia tudo, uma declaração forte e veemente, uma audácia espantosa, o segurá-la de repente quando eles estavam a sós e beijá-la, beijá-la por muito tempo, indefinidamente. Nunca, porém, o que fizera o Marcondes - excitá-la, fazerlhe passar pela nuca uns hálitos quentes de arreitações para largá-la em seguida exausta e não satisfeita, a pedir mais, a pedir tudo e sem conseguir coisa alguma - espécie de gota d'água a aviventar a sede de quem a prova nos lábios ressequidos pela abstinência!
E no meio do bem-estar que sentiam todos com a ausência do Marcondes, sá Jovina julgou prudente lançar algumas das frases sarcásticas que lhe ditava a maledicência.
Como elas fossem muito bem acolhidas e d. Augusta arriscasse mesmo um comentário, a velha voltou à carga, muito satisfeita por lhe acharem graça, fiel à sua posição de divertidora, de quem paga a hospedagem com histórias engraçadas e até mesmo escabrosas, ao paladar do freguês. Então redobrou de causticante, haurindo coragem e incentivos nos aplausos que encontrava. Não o achava tão bonito como parecia. O nariz era muito grande; o corpo sem jeito, desengonçado. Depois passava-lhe em revista o moral, relembrava fatos, reconstruía-o em todos os seus ruins aspectos. Acusava-o de pretensioso, pensando-se uma grande coisa quando não passava de um bacharel sem fortuna, enfatuado, acreditando que todo mundo devia estar-lhe debaixo dos pés em contínua adoração.
O Pedro ao princípio tentara defender o amigo. Achava sá Jovina muito exagerada!
O Marcondes não era tão mau assim! Tinha boas qualidades que o recomendavam logo de primeira vista! Depois, fora sempre um bom companheiro, muito prestadio e serviçal!
No colégio prestara-lhe muitos obséquios e ele não queria mostrar-se ingrato! Mas a pouco e pouco, vendo o modo pelo qual lhe acolhiam as palavras, e os aplausos que sá Jovina continuava a receber, atrapalhou-se um bocado. No final das contas nem ele mesmo sabia explicar o que sentia, o que lhe ia pelo corpo adentro. Deixava-se porém arrastar pela correnteza de antipatias que convergiam para o Marcondes. Ele mesmo já estava cansado de encontrá-lo a todo momento, já gastara toda a reserva de amizades que acumulara durante anos, durante a prolongada ausência do amigo de colégio. E além disto, agora que o outro não estava ali, parecia-lhe tão boa a vida assim, sem um estranho a colocar-se de permeio às suas afeições! Tanto que se calou deixando a velha inteiramente senhora do campo, continuando indefinidamente nos seus sarcasmos e maledicências.
Capítulo XXVIII
No dia seguinte o Marcondes encontrou mais fortemente acentuada a frieza dos dias anteriores. As palavras de sá Jovina, tudo aquilo que eles pensavam em segredo mas que não tinham a coragem de formular, pensamentos anônimos que acabavam de encontrar na boa velha um editor responsável, produziam o seu efeito. Agora eles sabiam de que acusá-lo, corporizara-se a aversão vaga e indefinida - espécie de humores a vagabundar pelo organismo inteiro determinando umas perturbações gerais que acabam por assestarse em uma região qualquer e apresentam-se francamente nos conjuntos sintomáticos do tumor. Evitavam-no. Procuravam subterfúgios para não lhe responder, deixavam-no sozinho na sala de jantar a braços com um rumor indeterminado de acusações murmuradas. Ele fazia-se forte. Aparentava uns ares calmos e sossegados de quem tem a consciência tranqüila, fingia não se aperceber dessa corrente de antipatias que se dirigia para si como umas duchas fortes, tendo ainda a acalentar-lhe os sonhos uns laivos de esperanças.
Entretanto sentia-se a incomodar. Vinham-lhe aquelas sensações más dos primeiros dias em que aparecera ali, pelo braço do Pedro. E agora elas lhe pareciam mais fortes, mais veementes, mais difíceis de aturar. Não se tratava mais de uma reserva para com desconhecido, de uma inimizade gratuita. Por mais que quisesse pensar o contrário e se deixasse embalar pelos ventos brandos da esperança a sua situação não era a mesma.
Não se tratava de conquistar afeições, mas sim de reconquistá-las. Era preciso, agora que o atacavam, defender-se, provar as suas boas intenções, entrar novamente em campanha, mas numa campanha mais difícil porque não tinha aliados, sentia-se só, inteiramente só, quase abandonado pelo Pedro! E além disto, intimamente apareciam-lhe a contê-lo nos seus ímpetos guerreiros umas espécies de remorsos a reprovarem-lhe o procedimento, a dizerem-lhe que fizera mal em querer seduzir a mulher do amigo que tão fraternalmente lhe abrira a casa. Oh! Estava bem só, sentindo-se e mesmo contra si!
Até o Pedroca, que antigamente lhe dispensava tanta amizade e ia sempre recebê-lo ao portão, mostrava-se agora arredio às suas graças e amabilidades. Parecia também enfastiado da sua pessoa, com vontades de vê-lo pelas costas. E o Marcondes impressionara-se muito com isto. Tinha pela criança uma grande e verdadeira afeição.
Achava-o tão galante com a sua cabecinha loura e os olhos claros e inocentes, a boca pequenina e rubra que sorria tão bem, tão engraçada quando se remexia ao fluxo das palavras e das idéias! Demais redobrara-lhe a paixão por Nenê. Queria-a ainda. Queria-a sempre, fosse como fosse, custasse o que custasse! E o Pedroca parecia-lhe um pedacinho da moça, a trazer-lhe o seu aroma suave, a destilar aquela beleza das carnações sadias. Gostava de tê-lo ao colo como uma emanação do objeto amado. E a criança fugia-lhe, torturando-o, aumentando-lhe os padeceres, fazendo-o sentir mais grandemente todo esse isolamento e essa repulsão que haviam cavado em torno a si, onde ele se debatia em vão, onde gastava a sua energia inteira, sem encontrar ao menos um pretexto para romper, preso num círculo de cerimoniosidades.
Então e quis saber ao certo do que se tratava, acreditando ainda que a sua imaginação coloria negramente o quadro, fazia as coisas pior do que eram, esperando ser dissuadido, sonhando ter-se enganado e suspeitado aversões e ódios onde talvez houvesse apenas alguma dor íntima que lhe queriam ocultar. Recorreu à Marocas, crivando-a de perguntas, não lhe dando tempo para responder, desejando e receando ao mesmo tempo uma revelação. E quando a rapariga principiou a falar, entrando em detalhes íntimos, repetindo-lhe parte da discussão que ouvira ao jantar, achando prazer em remexer bem o ferro na ferida, ela mesma cansada de encontrá-lo a todo instante e das brutalidades de cada noite, o Marcondes sentiu umas lágrimas umedecerem-lhe a face. Por mais que tivesse dado pasto à sua imaginação nunca lhe passara pela cabeça a possibilidade de tantos horrores. E ficara abatido, sem coragem para reagir, arrependido de ter feito estas perguntas à Marocas, preferindo agora ignorar tudo quanto diziam a seu respeito.
E ele conservou-se assim, não sabendo o que devia fazer. Vieram-lhe a princípio vontades de lutar, de ir lá embaixo, de pedir satisfações a cada um, de brigar com o Pedro, de esbofetear sá Jovina. E em pouco abandonou completamente estas idéias belicosas. Lembrou-se de fazer-se humilde, de pedir perdão, de dar dinheiro à velha para que ela desmanchasse a sua obra e principiasse a falar bem a seu respeito. E andava assim, de um para outro alvitre, acobardado dentre tudo com a perspectiva enfadonha de romper bruscamente com aqueles sonhos de existência que fizera tão belos, de abandonar aquele ninho acolchoado onde se sentia tão bem. Mais tarde, e só depois de muita reflexão e de muito desânimo, resolveu-se definitivamente a mudar de casa.
Pareceu-lhe isto a melhor forma de sanar todas as dificuldades, de resolver aquele súbito problema que o acaso dos fatos lhe punha na frente. E com uma rapidez de execução, ali mesmo de noite, pôs-se a arrumar a bagagem, querendo retirar-se no dia seguinte, achando repugnância em conservar-se por mais tempo naquela casa.
Capítulo XXIX
Entretanto não lhe era de grande facilidade o formular a resolução tão bruscamente tomada. Ele continuava envolvido nuns círculos de cerimoniosidades que não lhe permitiam franquezas de movimento. Sentia-se como que tolhido e abafado. Não podia chegar lá embaixo e dizer assim sem mais nem menos ao Pedro que se via obrigado a mudar-se daquela casa porque o maltratavam, porque lhe faziam a existência má, porque Nenê se apaixonara por ele e as coisas não tinham ido até o fim e a moça, prestes a entregar-se, fugira bruscamente do abismo em que escapara de se precipitar. Era preciso aparentar cortesias! Lembrou-se então de que estava naquela casa havia perto de um mês e que tinha obrigação de dar um presente de valor, uma jóia qualquer, para pagar a hospedagem. Este pensamento revoltava-o e punha-o em embaraços. Pois ainda em cima de tudo quanto lhe haviam feito, ele tinha de fingir-se agradecido, de ficar devendo um favor, de sujeitar-se a oferecer uma pulseira ou um colar à Nenê?!
E continuava a procurar um pretexto. Temia, dentre tudo, que o Pedro, com o seu sistema de não ver nada, de passar desapercebido por junto de todos estes dramas de família, não compreendesse a situação e insistisse para que ficasse. lembrava-se da cena do bonde, quando ele quisera partir, e lamentava-se de não ter então mostrado mais energia. Quanta coisa não teria evitado com isto! E buscava um pretexto, um pretexto forte que não admitisse dúvidas. Veio-lhe então à idéia uma viagem. E recordou-se que em sua vida acadêmica, lá no Recife, estivera em contato e intimidade com muitos estudantes de S. Paulo que não poupavam elogios a esta última cidade e à sua academia. Por vezes projetara ir concluir aí os seus estudos. E resolveu-se então a dizer ao Pedro que encontrava muita dificuldade em obter a promotoria e formara a intenção de ir defender tese em S. Paulo, porque com esta nova carta aplainava todas as barreiras e ser-lhe-ia fácil arranjar o que quisesse.
Foi no almoço, quando já tinha deixado lá em cima a bagagem pronta, que ele formulou o seu projeto. Tencionava sair logo depois da refeição para comprar o presente e voltar de tarde para entregá-lo e levar a bagagem. Ficaria até a manhã seguinte em um qualquer hotel nas proximidades do Campo de Santana e partiria pelo trem da madrugada. E foi, aos bocadinhos, preparando o terreno, receoso de encontrar uns pedidos de desistência, querendo-os ao mesmo tempo, excitado pela presença de Nenê, pensando ainda possível remover todas as dificuldades e entrar francamente na sonhada existência de amores, que ele declarou a resolução que tomara. Como todos ficassem calados ainda não compreendendo bem o que ele queria, amontoava argumentos, atrapalhando-se visivelmente, tornando-se cada vez mais metafísico à força de querer explicar-se. E só no fim, quando ele não sabia mais o que dizia e procurava safar-se daquela situação falsa em que se achava, concluiu o seu pensamento dizendo que partia no dia seguinte e de tarde viria buscar as bagagens.
Então o Pedro aprovou muito o seu procedimento e continuou na mesma atrapalhação a ajuntar frases, não querendo dizer quanto estimava a notícia da sua imediata partida. Ele também pôs-se a discorrer sobre as vantagens da carta de doutor. A
gente ficava mais independente! Os ministros tratavam com mais considerações. E ia por aí afora, nem ele mesmo sabendo o que dizia, apenas dentre toda esta prolixidade, destacando-se como um estribilho, os louvores à resolução tomada. Fizera muito bem em não se sujeitar mais às maçadas das antecâmaras! Quando voltasse com mais este título, a sua pretensão, tão fortemente apostilhada, seria prontamente despachada. Se era uma futilidade aparente, o título de doutor não deixava de influir poderosamente na vida prática! E o Pedro continuava sempre na mesma toada, com receio de um silêncio durante o qual arrebentasse de repente este segredo que todos sabiam e que cada qual fingia ignorar.
Os outros mal podiam ocultar as alegrias que lhe vinham a flux dos rostos. De toda esta lengalenga só tinham compreendido uma coisa - que o Marcondes ia mudar-se, naquele mesmo dia, que logo de noite estariam a sós na grande intimidade da família, sem esse estranho a perturbar-lhes as expansões. D. Augusta, a fim de ocultar o seu contentamento, fizera-se ainda mais severa e cerimoniosa, presidindo a mesa com o seu busto aristocrático de palaciana. Nenê tornara-se francamente alegre, sorrindo para o filho, debruçando-se sobre a mesa para examinar-lhe o prato e picar-lhe a carne mais miudinha. Sá Jovina, essa, nadava em vanglórias. Sentia-se feliz e confiante nos seus préstimos. Tudo aquilo era sua obra! Fora ela, a desgraçada que não tinha casa, quem o pusera pela porta afora! E agora ia ficar sozinha, ali, sem nenhum outro estranho com que eles repartissem a afeição que lhes sobrava! E ficaria ali, a cobrar o trabalho, a pedir a Nenê que lhe pagasse o serviço, que lhe pagasse o sossego de corpo e de espírito em que ia dormir daquela noite em diante!
Capítulo XXX
A tarde, nas proximidades da hora do jantar, o Marcondes voltara com uma carroça na qual devia acondicionar as bagagens. Depois que esta partiu e cessou todo aquele rebuliço de carregadores a descerem as malas, o rapaz dirigiu-se para a sala de jantar, onde estavam todos reunidos, a fim de despedir-se e de entregar o presente que trouxera.
Resolvera-se por um relógio e corrente de ouro que pretendia oferecer ao Pedroca mas do qual Nenê podia servir-se se o quisesse, assustado com a idéia de ver a moça recusar o mimo no caso de lhe ser diretamente ofertado. Naquela hora sentia-se fraco e acabrunhado, a caminhar pesadamente, nuns passos ofegantes de condenado que se dirige à forca, Mais forte e apetecível do que nunca lhe parecia aquele quadro holandês de vida familiar e honesta no emolduramento artístico do grande salão de madeiras. E
lamentava o ter de abandonar todo aquele cantinho de mansidões em que por vezes sonhara viver uma vida morna de tranqüilidade sem fim a deslizar-se suavemente nos aconchegos bons desse ninho acolchoado.
Logo ao primeiro plano, como o vulto proeminente sobre o qual caíam fortemente os efeitos de luz, nas suas carnações sadias e belas curvaturas sensuais, destacava-se Nenê, a encará-lo fixamente, com um sorriso triunfal a entreabrir-lhe os lábios carnosos e rubros levemente separados pela linha branca da dentadura. Perturbou-se ao seu aspecto. Sentia-se pequenino e covarde ante aquela mulher que escapara de possuir, que por tanto tempo fora sua em pensamento, que tantas vezes sonhara abraçar no febril de uns sonhos de voluptuosidade, em cujos olhos vira tantas vezes tremeluzir uma súplica de amor. E este agora reaparecia-lhe mais forte e veemente, aumentado com os impossíveis que o rodeavam, recrudescido por tudo quanto havia sorrido. Os olhos se lhe umedeciam dolorosamente e, cada vez mais atrapalhado, reagia sobre si mesmo, querendo aparentar fortalezas, disfarçar todas as emoções que lhe enchiam sofredoramente o organismo inteiro.
Então começou a despedida, dirigindo-se primeiro para o Pedroca, que lhe escondia a cara, e a quem entregou a caixinha. Como a criança se voltasse e sorrisse, meio admirada, veio-lhe um grande prazer e abriu a caixinha de couro da Rússia para colocar ele mesmo a jóia. Abaixou-se, um joelho em terra para ficar à mesma altura, e pôs-se a brincar com a criança que se fazia alegre e o abraçava, contente de ter um relógio, querendo examiná-lo imediatamente, pedindo que lhe mostrassem o bichinho que fazia tique-taque, correndo de um lado para outro a fim de ostentar a todos o presente que lhe tinha dado o seu amigo grande. Foi esse um momento de satisfação para o Marcondes.
As fisionomias se tinham desenrugado ante o aspecto risonho da criança, disputando-a, achando muita graça em vê-la com a sua roupa de fustão azul-escuro por sobre o qual luzia o ouro novo da corrente. Apenas, o Pedro perguntara-lhe se ele queria pagar com aquilo a hospedagem, mas fizera-o numa forma de quem não estava zangado, dando-lhe ensejo para agradecer as inúmeras finezas e atenções com que o tinham tratado.
E depois de ter abraçado e beijado o Pedroca o Marcondes dirigiu-se para os outros.
Cumprimentou cerimoniosamente a d. Augusta, repetindo-lhe novamente os agradecimentos que fizera ao genro, oferecendo-lhe os seus pequenos préstimos e garantindo-lhe uma gratidão eterna, na grande hipocrisia da sociedade. A velha senhora respondia-lhe no mesmo tom, alambicando a frase, dando-lhe uns jeitos de quem tem trato de salão. Foi-lhe porém impossível continuar na mesma comédia com sá Jovina a quem nem mesmo estendeu a mão. Em presença de Nenê portou-se com bastante sangue-frio, encarando-a fixamente, agüentando-lhe o peso do olhar e aparentando sempre a mesma jovialidade. O Pedro abraçou-o e, como lhe voltassem as primitivas expansões de amizade, convidou-o para jantar. O seu talher ali estava a esperá-lo! O
outro recusou-se. Tinha prometido ir à casa de um amigo que o esperava. E ele retirou-se com um grande cumprimento acompanhado até o portão pelo Pedro e pelo Pedroca.
Lá fora, quando se sentiu só, enxugou o suor que lhe pelejava a testa. Sentia-se opresso caminhando vagarosamente, ainda não podendo compreender bem o que se passara, a reconstruir aqueles vinte e tantos dias que levara em casa do amigo. Reviu-se no primeiro dia, chegando ali pelo braço do Pedro, ainda fresco da viagem, topando de repente com uma antipatia inicial, com um retraimento de caramujo que se esconde na concha! Mais tarde, vencidas as primeiras dificuldades, ele dominara na casa, rodeado de afetos e de carinhos! E, depois desse apogeu de felicidades, a sua estrela começara a descambar! Agora saía expulso dali por todo um processo inconsciente daquele organismo familiar. Também a culpa era dele! Lá nos tempos bíblicos, e por um fato idêntico, o outro tinha ido para a cadeia! Mas a lição havia de aproveitar-lhe! No camarim da mulher de Putifar ele deixaria nunca mais a sua capa de José do Egito!


Domínio Público Gov.BR


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