Alfarrábios: o Garatuja
O Garatuja é a primeira de uma serie de chronicas dos tempos coloniaes, algumas já escriptas, outras apenas esboçadas, em tempos idos, quando o pensamento, ainda não de todo enredado nas teias do mundo, tinha folga para vaguear pelo passado, e entreter-se com as pieguices e ingenuidades de nossos pais, a quem o mais simplorio garoto de agora enfiaria, não pelo fundo de uma agulha, o que não fôra nenhuma façanha, mas pela cabeça de um alfinete.
Todavia, se o leitor no folhear estas paginas, tiver tempo de pensar, e se deixe ir a cogitar na singularidade da revolução, que esteve para ensanguentar VI CAVACO
a heroica, mas pacata, cidade de S. Sebastião, lembre-se da magna questão do martellinho, que por pouco não perturbou a paz maçonica, da mesma fórma que outr'ora o hyssope na igreja d'Elvas.
Então ha de concordar comigo que o homem é sempre menino até morrer de velhice; e que depois das criançadas do pirralho, vêm as travessuras do rapazola, e por ultimo as estrepolias do barbaças, as quaes são as peiores, sobretudo quando começa-lhe a grizar o pello.
Quem duvidar do cunho historico d'esta simples narrativa, poderá facilmento verifical-o abrindo o 3o volume dos Annaes do Rio de Janeiro, escriptos pelo Dr. Balthasar da Silva Lisboa.
N'aquelle tempo o cidadão, porque servíra o cargo de juiz de fóra e presidente da camara, julgava-se obrigado a offerecer a seu paiz o fructo dos conhecimentos adquiridos nas diligencias do serviço publico, Hoje em dia nem a juizes, nem a CAVACO VII
edís, sobra tempo para se occuparem com taes nugas, pois todo se vae em subir e descer escadas, pôr e tirar o chapéo, dobrar e torcer a cerviz.
No referido tomo, a pagina 314, entre os parrafos 35 e 39, apanhou o chronista fluminense pela rama os acontecimentos que pozeram em tumulto a cidade. Ahi se encontram até eruditas elucidações do caso juridico, sobre o qual o Dr. Balthasar entendeu que- devia emittir seu juizo.
Não é elle o unico dos compiladores de noticias, que n'este paiz se metteu a tralhão, recheando a historia com os lardos de uma erudição rançosa. Outros o excederam de muito n'essa mania encyclopedica.
Escaparam porém ao chronista muitas particularidades, que elle descurou, e que eu pude obter consultando um archivo archeologico, bem provido, e que tenho á minha disposição, para o estudar á vontade.
Meu archivo archeologico, por cautela VIII CAVACO
vou prevenindo, não custou um ceitil aos cofres publicos, nem aspira á honra de ser comprado pelo governo do Sr. D. Pedro II, como está em voga desde a consciencia até as leis, que tudo hoje em dia se vende, por atacado ou a varejo, em codigos ou empreitadas.
A minha preciosidade litteraria, não custou nem mesmo o trabalho de andar cascavilhando papeis velhos em armarios de secretarias, ou a canceira de trocar as pernas pela Europa, cozido em fardão agaloado a pretexto de representar o Brazil nas côrtes estrangeiras. Que formidavel prosopopeia !
Quero fazer ao leitor a confidencia do meu achado.
Costumava outr'ora, como ainda hoje, ir pela manhã ao Passeio Publico, onde ha uma meia duzia de arvores que o bom Deus ali conserva para refrigerio dos emparedados da cidade. Tem esse jardim uma qualidade mui apreciavel : é uma perfeita solidão, no meio do borborinho, com o CAVACO IX
bond á porta, e ao alcance do olhar protector do ministro da justiça; por conseguinte, facilidade de conducção, e segurança individual: duas importantes garantias da liberdade. Da verdadeira liberdade pratica, e não d'essa que anda nos cartazes politicos, para o effeito scenico.
Assim passeia-se ali na maior tranquillidade de espirito. Ás vezes descobre-se, é verdade, um urbano, mas estendido em um banco a dormir : o que ainda mais serena-me o espirito. Quando a policia dorme é signal de que não ha a menor particula de crime na atmosphera; e assim podemos considerar-nos ao abrigo de um e de outra ao mesmo tempo : do crime e da policia.
Era ali indefectivel um velho secco e relho, o qual se me afigurava a metempsycose de algum poento in-folio da Bibliotheca Nacional, que porventura fugíra pela janella, e se abrigára á sombra dos castanheiros para livrar-se da furia archeologica dos antiquarios. X CAVACO
Cortejava-o eu com o respeito devido a um homem que víra dois seculos, e talvez se preparava para ver o terceiro. Á minha saudação respondia elle com um modo desconfiado, que eu não levava a mal, por comprehender que o individuo logrado por tres gerações tinha o direito de suspeitar até dos santos.
O meu velno não tomava rapé, nem fumava; aborrecia a politica, e não lia gazetas ; ajunte-se uma carranca sempre fechada, uma gravata, para não dizer rodilha, que embrulhava-lhe só a metade inferior do rosto, porque á outra lh'a disputava o chapéo á catimplora; e tudo isso, retocado por uma rabugem veneranda e quasi secular.
Bem se vê que encouraçado de tal fórma, era o sujeito inabordavel por qualquer dos meios indirectos que servem na sociedadepara travar um conhecimento. Muito havia eu alcançado em inserir a minha cortezia n'aquella refolhada antiguidade. CAVACO XI
Não desanimei todavia. Ha uma fineza a que os velhos maiores de setenta annos não resistem : é tocar na sua longevidade, sobretudo orçando-lhes uns dez annos de menos.
Um dia, pois, tomei de escalada o velho, indo a elle, e dizendo-lhe sem preambulos:
— Seguramente o senhor anda rastejando pelos oitenta.
Diluiu-se-lhe a carranca em um riso lavado.
— Os oitenta!... Onde vão elles, meu senhor? Então ainda eu me considerava rapaz : vinha á pé da Pavuna e voltava.
— E com quantos está agora !
— Ora adivinhe!
— Oitenta e seis ou oitenta e sete.
-Oh ! Oh!... Noventa.
— Não é possivel!
E tres, meu senhor! Este Passeio Publico que o senhor está vendo, ainda o Senhor Vice-Rei Luiz de Vasconcellos não sonhava de mandar fazê-lo, nem de cá XII CAVACO
vir, que já eu estava nascido, e quando se abriu, que foi uma funcção para a cidade toda, tambem vim com minha mãi e a prima Engracia, que já estava eu taludinho e com ponta de buço. Ora faça o senhor as contas!
— Não ha duvida : mas fique certo que ninguem acredita!...
Esta palavra poz o remate á conquista.
D'ahi em diante o velho me pertenceu, e eu pude folhear á vontade esse volume precioso de anecdotas e casos antigos.
Quando tiver folgas, irei dando á estampa o que me confiou esse marco do seculo passado, por cima do qual vae passando, sem o abalar nem submergir, o turbilhão do presente.
Rio, 1 de Dezembro, 1872.
J. DE ALENCAR. O GARATUJA
I
TRES ANTIGOS LUZEIROS ESCAPOS Á POEIRA DOS
TEMPOS
No dia 3 de novembro do anno que se contou 1659 da graça e nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo, a leal cidade de S. Sebastião de Rio de Janeiro, estava em grande alvoroto.
Não era a então nascente capital, socegada e pachorrenta, como a grande côrte em que se transformou. Se não mente a chronica tinha n'aquelles tempos affonsinhos o genio trefego, e um sestro de intrometter-se com as cousas da governança para não deixar que os officiaes d'el-rei lhe tosquiassem muito cerce o pello e a bolsa.
Promovida a côrte, lembrou-se no principio alguma vez da balda antiga; mas com a vida palaciana, breve esqueceu de todo os ardores da juventude, e aquellas desenvolturas de rapariga.
I. 1 2 ALFARRABIOS
Agora dá-se a respeito. Já não é a carioca faceira e petulante, de saia de crivo e olhos bregeiros, estalando castanholas ao som do fadinho.
Fez-se dama; traz anquinhas, e arrasta a cauda com donaires de matrona.
Sete horas acabavam de soar na torre do mosteiro, e apezar do muito cedo o povo enchia as poucas ruas que formavam n'aquelle tempo o ambito da cidade, ainda conchegada ás abas do outeiro de S. Januario, que a protegia com seu castello roqueiro.
Onde porém mais alvoriçava o arruido era no Rocio do Carmo, nome que tinha então nos livros da vereança o Largo do Paço, ao qual não obstante a arraia miuda continuava a dar a alcunha popular de Terreiro da Polé.
Golpes de gente azoinada e assustadiça borbotavam uns após outros da rua Direita e beco dos Barbeiros, mas sobretudo das bandas da Misericordia, Castello e Ajuda, área onde mais se condensava o povoado.
Varios ajuntamentos se haviam formado aqui e ali no circuito da vasta praça, separados pelo refluxo dos mais alvoroçados, que não se podendo ter parados um instante, ferviam, á maneira das ondas em torno de abrolhos, e borborinhavam O GARATUJA 3 sofregos de colher pormenores da grande nova.
Desafrontada do paço, que só muitos annos depois devia ser construido, a praça estendia-se até a rua da Misericordia, onde se erguera a nova igreja de S. José, cuja capella mór, de recente fabrica, entrava pelo mar a dentro.
Do lado opposto, desde o canto da Rua Direita alongava-se um renque de lojas e tercenas, esboço do opulento emporio que derramando-se pela varzea havia de cubrir antes de dois seculos a vasta marinha. No lugar onde mais tarde se edificaram as casas do Telles e o arco, famoso na chronica fluminense, via-se ainda a velha tenda do ferreiro, que dera nome ao logar.
A face de terra era occupada pela capella de Nossa Senhora do O' e pelos dormitorios dos Carmelitas cuja cerca terminava na Rua da Cadeia.
Ainda não existia o templo que hoje serve de capella imperial, erguido um seculo mais tarde sobre as ruinas d'aquelle.
A face do mar descortinava o formoso panorama da bahia. Junto á ilha das Cobras balouçavam-sé os galeões da frota proxima a partir para o reino.
Na praia, onde brincavam as ondas, ainda não rechassadas por cães ou aterro, abicavam de ins-
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tante a instante as canôas da outra banda e as barcas dos pescadores que tornavam do mar.
Dentro da praça, mas encostada á igreja de S. José, destacava-se a casa da camara, com o seu campanario, e as enxovias da cadeia, corridas de um e outro lado do pavimento terreo.
Em frente, a alguns passos de distancia, no lugar onde fica actualmente a ucharia imperial, erguia-se o pelourinho, esse padrão do governo da cidade, ao qual o povo chamava cruamente —
a polé.
Era justamente em torno da columna da governança, que se apinhava a multidão, cujas vistas inquietas, desenganando-se de achar na picota qualquer edital da vereança ácerca da grande novidade, voltavam-se para as janellas ainda fechadas da casa das sessões.
Uma canôa de voga acabava de chegar á praia;
e d'ella saltava nas costas do escravo remeiro um velho secco e alto, de rija tempera, e cujos movimentos vivos e articulados davam-lhe ares de um grande grillo em posição vertical, vestido de garnacha preta, com os competentes calções e meias da mesma côr. Tinha de mais um casquete de abas reviradas, sapatos de cordovão com fivella de.prata, e uma desmedida bengala, O GARATUJA 5 cujo castão de ouro, representando uma borla doutoral, lhe roçava o queixo adunco, quando a empunhava direita.
Era esse o licenciado João Alves de Figueiredo que aproveitára os dias feriados para refocilar em sua quinta de S. Lourenço á outra banda. Tornando á cidade, e surpreso do alvoroto em que a vinha encontrar, mal pisou em terra, barafustou á cata de novas.
Foi dar em uma pinha de gente, que imprensava-se para ouvir a narrativa do caso, feita por uma voz fanhosa e estridula.
Pertencia essa falia de arripiar os nervos a um sujeito pequeno, rolho, já velhusco, vestido pelo mesmo teor e fórma do licenciado, como official que era do mesmo officio. O letrado acompanhava os esguichos nasaes da palavra com um accionado consoante; seu gesto oratorio mais valente era uma lançada que dava ex-abrupto na cara do auditorio, com os dois dedos indicador e maximo, espetados á guisa de sovelão.
Havia seu perigo em escutar de perto um tão valente casuista; nos momentos de calor seria capaz de vasar um olho, ou esbrugar um dente ao incauto para mostrar-lhe ao vivo a força da sua dialectica. 6 ALFARRABIOS
Defronte do orador estava um frade, que pelo habito negro, os cordões brancos e as alpergatas se conhecia ser dos mendicantes. Era tambem cheio do corpo, mas de uma obesidade balofa, que não sobresahiria tanto, se não fosse a fradesca indolencia com que elle se entulhava sobre si mesmo, mettendo a cabeça pelos hombros, e o ventre pelos quadrís.
Com os olhos abotoados e a comer a boca do orador, por vezes tentára o frade tomar-lhe a palavra, e afinal decidiu-se a arranca-la á viva força. Mas o guincho do letrado, lhe retalhara como uma navalha a voz de baixo profundo, por modo que era impossível perceber-se uma syllaba.
Reconhecendo de longe nos dois emulos o padre mestre frei João de Lemos, da ordem de S. Francisco, e o bacharel Dionisio Mendes Duro, que fazia profissão de letrado forense, o licenciado desconjuntou-se na guinada do costume, e fendida a mó de gente com um rasgo da enorme bengala, surdiu avante.
Os tres sujeitos que ali estavam em trempe, no centro da pinha de gente, eram tidos e havidos pelo bom povo fluminense como as tres grandes luminarias da epocha. 0 GARATUJA 7 Ao frade, reputavam o primeiro prégador do seculo. Como o licenciado, não havia outro para decidir o mais intrincado caso in utroque jure.
Quanto ao bacharel, esse levava as lampas a qualquer no manejo dos negocios, tanto na audiencia, como nas cousas da governança.
Tal era a nota e conceito das tres respeitaveis cacholas, e tão firmada estava sua voga, que os unicos a dissentir eram elles proprios, mas a respeito dos dois outros, porque em relação a si dignavam-se de concordar com o vulgo.
Fr. João de Lemos, além de primeiro prégador, guindava-se á honra de mestre em theologia, e grande sabedor nos canones, o direito por excellencia. Assim nos dois letrados, via elle apenas uns leigos, com fumaças de doutores.
O licenciado João Alves, acreditando piamente ser um portento na jurisprudencia e sem contestação a primeira cabelleira do mundo, tinha o frade e o bacharel na conta de dois rabulas, lardeados de sabença de orelha e latim de algibeira.
Por sua vez o Dionísio Duro, apregoava que os seus emulos não passavam de portadores de bul-
-as falsas, alisadores dos bancos da escola, onde haviam encruado umas letras gordas. Elle, sim, que estudára na pratica e era um poço de scien-
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cia, capaz de afogar em um espirro a tonsura do frade e a guedelha do licenciado.
Com a subita chegada do João Alves, estacou o bacharel no meio de uma campanuda digressão.
— Então qual é a novidade ? perguntou o licenciado.
— Pois não sabe ? acudiu o frade.
— Se agora ponho pé em terra.
— Foi o prelado, que lançou a excommunhão sobre o ouvidor; tornou o bacharel.
— Que me diz ?
— Esta manhã, quando o doutor Pedro de Mustre se ia embarcar para a capitania do Espirito Santo, intimou-lh'a o padre Raphael Cardoso, da parte do vigario geral.
— Depois das tres admoestações canonicas, concluiu o frade.
— É a praxe, observou os canones.
— Como ordenam as decretaes, corrigiu o licenciado. Mas o porque do caso, é que ainda estou por saber.
— Fallam na devassa que tirou o doutor Pedro de Mustre contra os familiares do prelado no negocio da assuada ao tabellião. Parece que se procedeu injuste et malitiose. O GARATUJA 9 — A devassa foi este seu servo quem a requereu, Sr. Dionisío Duro, como patrono do Sebastião Freire, atalhou o licenciado; e na melhor forma e via de direito, ex vi juris et legis, ut Ord.
liv. 5° tit. 48 Dos que fazem assuadas, etc.
— Que era o caso d'ella, non-est disputandum, tornou o bacharel ; mas se o julgador a tirou ab irato, eis o ponto da questão.
— Sem fallar da excepção, inimico et suspecto judice, ponderou o padre mestre ; porque o estarem os minorenses de tonsura e habito, in actu delicti, é de notoriedade publica.
— Suspectus et varicator judex, Sr. padre mestre, seria o ouvidor se não guardasse a ordenação, quando por ella requerido, ou mesmo que o não fosse, pois era o caso de proceder-se ex officio, sicut — Philippina no liv. 5° tit. 45 § 3. Mendes á Castro — Praxe — Parte 1a livro 1o cap. 2o n. 38, e Senador Sardinha, allegação 96 n. 23, ubi refert iudicatum.
O licenciado, irriçando a cabelleira com o castão da bengala, ameaçava despenhar sobre os dois emulos uma cascata de citações attinentes ao caso, sem esquecer os commentarios e castigações dos respectivos doutores. Infelizmente um 1. 10 ALFARRABIOS
reboliço do povo atalhou aquella torrente de erudição forense.
As janellas da casa da camara se abriam ; e a sineta do campanario annunciou que o senado da leal cidade de S. Sebastião ia entrar em vereação, para deliberar sobre os negocios da republica.
Entre os de maior monta que n'aquelle dia tinham de occupar a attenção dos conselheiros do povo fluminense, avultava o caso gravissimo da excommunhão do ouvidor.
Quem reflectir na disciplina rigorosa que ainda n'aquella epocha exercia a igreja sobre o poder temporal, embora já decahida do que fôra em antigas eras, comprehenderá quanto a pena severa fulminada contra o primeiro ministro da justiça de el-rei por elle posto na capitania, devia abalar os povos sujeitos á sua jurisdicção e derramar na cidade o terror e a consternação.
Apezar de não ser então a população fluminense, como attestam os documentos da epocha, das mais fervorosas no zelo catholico, e exemplares na pratica do cathecismo, todavia dominava na massa geral o respeito tradicional que infundia a religião de seus maiores, c augmentado pela superstição propria d'aquelles tempos de ignorancia. O GARATUJA. 11 O conílicto, que o prelado levantava com a magestade secular, collocava os moradores da terra em collisão terrível, perplexos entre o acatamento que deviam como fieis ás censuras da igreja e a obediência que tinham de guardar como súbditos aos ministros da republica.
Imagine-se pois a anciedade com que esperavam todos a junta dos vereadores em camará para destrinçar com o parecer dos doutos caso tão abstruso e emmaranhado, livrando os povos do perigo imminente de ficarem, ou excommungados ou rebeldes. A MAIS AFIADA LINGUA ENTRE AS FAMOSAS QUE ENTÃO
HAVIA NA LEAL CIDADE DE S. SEBASTIÃO
Em outro ponto do rocio, para o lado da Misericordia, tinha-se formado novo motim de gente, que se apinhava para ouvir os pormenores do caso.
Quem fallava era uma velha, de trunfa bem riçada em topete, com a mantilha trançada acima do hombro e repuxada por baixo do braço direito, o qual gesticulava de uma maneira desabrida.
Tinha a regateira uns olhos tão pequenos que pareciam dois caroços de feijão preto embutidos na testa; as pestanas, as comêra a sapiranga que lhe arroxeava as palpebras. A boca, de bom tamanho, desdentada na frente, em fallando, o que era o seu estado habitual, mostrava uma lingua II O GARATUJA 13 fina e ligeira, que espivitava os beiços delgados, como o ferrão de uma vespa devorando por dentro a casca de uma goiaba.
Essa linguinha afiada, que tinha fama de cortar como nenhuma outra na pelle do proximo, pertencia á sra. Poncia da Encarnação, que fazia vida de regateira; mas não se occupava de outra cousa senão de espreitar por detraz da rotula o que ia pela rua, para enredar os vizinhos e fallar mal da vida alheia.
Fronteiro a ella, e seu attento ouvinte, apparecia o Belmiro, sujeito esgrouvinhado e macilento, com um corpo desengonçado sobre duas pernas de taquari.
As pastas de alvaiade que tinha pelo cabello ruivo e assanhado, bem como as dedadas de oca e zarcão, apalpadas nas mangas e peitos do jubão de côr indescriptivel, estavam-lhe denunciando o officio de pintor.
— Ninguem me tira de que tudo isto não passa de artes d'aquelle capeta, Deus me perdôe, do Garatuja... Sabem ? O cujo da Rosalina, que ella chama de engeitado!-... Nanja eu, que engula essa!
Ai, a sujeita é matreira ! Lá isso é, não tenham duvida! Como ella arranjou o tal engeitadinho tão a ponto, que foi mesmo um traz, zaz; sahiu 14 ALFARRABIOS
por uma porta, entrou por outra, e manda el-rei meu senhor que me conte novas. E o maganão do alferes, que ainda anda na côrte requerendo licença para metter-se em matrimonio, e já o filho... Olhem que não sou eu quem diz; a cidade anda cheia... e já o filho quer passar-lhe a perna.
Pois não verão frango com gogo ? O peralvilho do engeitado a se derrengar com a filha do tabellião, a Martha !... Sonsa como ella só ! É rapariguinha para dar sota e basto a um seminario inteiro de minoristas, e ainda sobra! De olho só, gentes, não estejam ahi a maldar; só de piscar o olho e namorar de janella é que eu fallo, que lá do mais não sei!... Emfim eu cá não metto minha mão no fogo por ninguem ! Deus me defenda!...
Tomára eu poder com os meus peccados, quanto mais ainda por cima carregar lá com a culpado que os outros fazem !
Ao cabo d'esta lenga-lenga, que zunia como uma matraca tangida em officio de trevas por garoto formigão, tomou a Poncia respiração, mas para despedir-se em nova parlice.
— A tal rapariguinha... Não digam que foi a Poncia quem contou. Menos essa, que não quero enredos comigo ! A sonsa da Martha anda desinquietando os familiares do prelado. Os mino-
O GARATUJA 15 ristas, já se sabe... isso de rapazes perto da cachopa, é como algodão que em lhe tocando fogo, fica logo em labareda!... Mas o Garatuja, como não lhe cheirasse a cousa, lá fez das suas trampolinas, e pregou algum mono á clerezia, a qual se engrilou com o Sebastião Ferreira, e então arrumou-lhe a assuada! Pudera não ! Os formigões !... Escrevam, e verão se eu lhes engano. A
tramoia toda foi arranjada pelo demonio do Garatuja... Cruzes, filho de Belzebuth, engrimanço do porco sujo!... O tabellião e o prelado andam ahi vendidos!... Sou capaz de jurar!... Agora se o Almada tambem está enfeitiçado pela rapariga, e teve algum bate-barba com o tabellião, pelo que assanhou a clerezia contra elle; póde bem ser; não digo que não; mas com certeza o Garatuja andou mettido em toda essa embrulhada.
— Elle póde ser, disse o Sr. Belmiro. Aquelle rapaz é das Arábias !... Dizem...
Levou o pintor a mão esquerda espalmada ao canto direito da boca, á guisa de empanada, e sombreando a voz concluiu :
— Dizem que tem partes com o demo !...
— E o senhor anda mettido com elle ! acudiu a Poncia. 16 ALFARRABIOS
— Pela razão do officio, que o diabo do rapaz tem geito para a cousa.
— Vá-se fiando na Virgem e não corra. Um dia quando estiver desprecatado, elle é capaz de embrulhal-o nas barafundas do inferno, e pum!...
Lá vae! Carrega-o direitinho para as caldeiras do Botelho!... Eu cá, gentes, como por mal de meus peccados moro defronte da arrenegada da mãi, vivo me benzendo!... A rotula, todo o santo dia que Deus manda, não me fica sem um raminho d'arruda, que é para arredar o mofino, se lhe der na veneta de vir tentar-me!... Credo!... Que só de pensar nisto, estou tremelicando toda por dentro e por fóra, que nem passarinha de carneiro!... E
um pucarinho d'agua benta com seu raminho de alecrim, que todos os domingos trago do collegio, que me dão os bons padres. Santos homens, agarradinhos, é verdade, que nem escurrupichado sahe d'ahi um tostão!...
Ia continuar a Poncia, tosando um tanto a pelle aos jesuitas, com quem aliás tinha suas privanças; mas agitaram-se outra vez as turmas de gente que cercavam a casa da camara por não poderem penetrar no interior, e foi a beguina enrolada em um remoinho, produzido pelo retrocesso da multidão. O GARATUJA 17 Dera causa a esse novo reboliço a entrada no rocio de um ajuntamento de pessoas, que se encaminhavam em fórma de cortejo para o senado fluminense. Traziam todas as roupas talares, de estofo preto, como então usava a gente de justiça;
e se não eram rigorosamente conformes aos preceitos da pragmatica, não davam escandalo, como acontecia na occasião de festas e até mesmo em visitas do quotidiano.
O da frente era o ouvidor, e os outros, officiaes da justiça d'el-rei, por elle postos n'aquella capitania, que vinham todos unidos em corpo protestar contra a violencia inaudita que tinham recebido na pessoa de seu cabeça, o primeiro ministro togado, e presidente da comarca.
Ali ia tambem o tabellião Sebastião Ferreira Freire, a causa primeira da mitrada que desfechára o prelado sobre a toga do ouvidor, e que ameaçava de grandes calamidades a cidade de S. Sebastião.
Emquanto os juizes, vereadores e homens bons, assentam em conselho no melhor meio de salvar a republica, remontemos nós o curso dos acontecimentos para conhecer as causas do imprevisto successo, que poz em alvoroto a população fluminense. III
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UN TYPO QUE JÁ NÃO SE ENCONTRA NO TEMPO D'AGORA
A rua do Aleixo Manoel, que só um seculo depois veio a chamar-se do Ouvidor, quando ahi se estabeleceu a residencia effectiva do primeiro magistrado da capitania, n'aquelle tempo nem indicios dava da brilhante galeria do luxo e da moda, que se começou a formar com a vinda de el-rei D. João vi, em 1808.
Muito lhe faltava ainda para merecer o nome de rua, que nem toda a gente lhe dava, dizendo simplesmente. « Para as bandas do Aleixo Manoel. » Teria então meia duzia de casas; o mais eram cercas ou quintaes.
Proximo á travessa do Sucussára, via-se ainda a antiga loja do mercador que primeiro ali morára e d'onde lhe viera o nome, e fronteiras umas casas de taipa com dois lanços, e quatro O GARATUJA 19 janellas de rotulas, como eram quasi todas n'aquelle tempo.
O lanço que ficava á direita, para o lado da esquina era occupado na frente por um repartimento espaçoso, vestido de alto abaixo com pannos de prateleiras carregadas de autos. Como não bastassem as paredes para accommodar toda a papelada, sahiam do meio d'ellas outros renques de prateleiras atravessados, formando uns cubiculos estreitos, onde viam-se bancas apinhadas de rimas de processos. Por detrás d'essas muralhas de autos arrumadas á guisa de torre, ouviase ranger a penna no papel, signal infallivel de que ahi estava a rabiscar um escrevente do cartorio.
Em uma especie de nicho que havia para o fundo do aposento, contra a parede interior assentava uma longa banca de pau santo, sobre seis pés torneados, cada qual mais grosso do que a viga da casa. Como as outras, servia esta mesa de sapata a um castello de papelorio; mas aqui as ameias eram feitas não só com muralhas de autos, mas com baterias de formidaveis bacamartes encadernados em camurça vermelha.
No meio da banca, dentro da cava aberta para accommodar o corpo, surgia um busto de ho-
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mem, coberto de tabaco e poeira, com um chinó tão escandalosamente ruivo, que já firisava com o vermelho.
Oculos de azas de estanho, trepados no respeitavel cavallete, envidraçavam de verde uns olhinhos redondos, vivos, espertos, que pulavam das orbitas como a pupilla do mollusco. O
queixo fino e agudo, á feição do gume de uma fouce revirada, bem como as faces chatas e batidas, pareciam chanfradas em carão de pau, coberto de velho pergaminho.
Constantemente sorvida, certo indicio de concentração de espirito, a boca não passava de uma ligeira commissura, que seria imperceptivel, si a conformação do rosto não indicasse n'aquelle ponto o hiato da gula.
Ás orelhas que não invejariam as de um perdigueiro, no tamanho e nas ouças, servia-lhes de ornato duas pennas de ganso, que lançando as longas ramas sobre as espaduas, espetavam-lhe na testa os bicos rombos, e cobertos com espessa crosta de tinta.
Quando succedia escarrapachar-se a que estava de serviço, ia substituir uma das duas de reserva nas cantoneiras, provavelmente a mais repousada: assim revesando-se, despejavam-se as O GARATUJA 21 tres sobre o almasso por modo que as folhas e cadernos de papel desappareciam devoradas pelo infatigavel gregotim.
A parte de mais nota era a mão, que poderia servir de bitola ao palmo craveiro, pois assentando o punho em baixo da pagina alcançavalhe o tope com os bicos da penna encravada nos tres dedos, que a apertavam como os dentes de uma tenaz de aço. Encolhendo-se á medida que desciam as regras da escripta, a tal mão de tarracha só levantava-se da banca para virar a folha com um piparote, enxombrado da saliva que o dedo minimo furtava á boca, mas com a rapidez de um tiro de bodoque. N'estas occasiões o beiço em constante synalepha, desabrochava da cisura, graciosamente estufado, como a fava de um chichá.
Era este o dono do cartorio, Sebastião Ferreira Freire, tabellião do publico, judicial e notas, da cidade de S. Sebastião, morador qualificado não só pela importancia do cargo, como pelos mais predicados de sua pessoa.
Tudo ali revestia-se do aspecto poento e venerando d'aquelle alfarrabio vivo encadernado em pergaminho humano. As teias de aranha desciam do tecto, formando pelas estantes festões e re-
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quites, com recamos e debuxos de alto bolor. O
tinteiro de chumbo, com bocal de vasta dimensão, já desapparecia por baixo do espesso coscorão da borra, que entornando pelo rebordo, lhe mudava a forma chata em funil, onde entrava o tubo da penna até ao meio. Cada pennada d'estas era a conta de uma lauda com quarenta regras, segundo o regimento.
Terminada a pagina, se a boceta poedeira já não tinha areia, por havel-a consumido o monte de escripta que lá eslava sob o calhamaço, não carecia o destemido rabiscador senão de sacudir a esguia cabeça, e cahia-lhe da cabelleira pó bastante para matar o borrão.
Esse pó era um mixto indescriptivel em cuja composição entrava, além da parte subtil da terra, os borrões de tinta que se desfaziam de seccos, e o esturro da enorme boceta ali posta ao lado.
De instante a instante a mão esquerda descrevia uma especie de rotação, com a regularidade do pendulo de uma guinda. Resaltava do bordo da mesa onde calcava com um murro o papel;
cahia a prumo, fincando as costas da boceta na banca, e abrindo a tampa com a unha mestra do pollegar, tirava uma pitada tabelliôa, que é mais do que doutoral, pitada de três dedos. O GARATUJA 23 Assim carregada com aquella dóse formidavel de esturro, a respeitavel trempe subia direita ao nariz, para abarrotar as ventas que fungavam com estrepitoso ronco. Então, formando chave, os tres dedos penteavam a trunfa do chinó, e beliscando rapidos a ponta da lingua que o fungo nasal espremia na boquinha, esfregavam as pontas para arredondar a classica bolota, que voava pelos ares com um piparote da unha mestra.
Em todo este tempo desde que a mão esquerda sahia de sua posição habitual até de novo armarse, em forma de socco, no bordo da mesa, a penna não cessava de esgrimir sobre o papel. PORQUE O SEBASTIÃO FREIRE NÃO FECHAVA MAIS OS
OLHOS PARA FAZER O SIGNAL PUBLICO
Cada dia que Deus dava, invariavelmente, ás oito horas de inverno e sete de verão, escanhoado, almoçado e tabaqueado, sentava-se o Sebastião Freire á carteira, e desunhava-se em borrar papel até meio-dia.
A' ultima badalada das doze trocava a banca de escripta pelo bufete onde o esperava o jantar.
Terminado este, deitava-se em um catre de couro de veado, que tinha na varanda e ahi fazia o chylo, dormindo a sua sesta.
Despertava da somnata com tal exactidão, que se o relogio da torre do mosteiro de S. Bento, o regulador do horario da cidade n'aquelle tempo, se desconcertasse, não seria preciso tomar-se a meridiana; porque a cabeça pontuda do tabellião IV O GARATUJA 25 espirrava da almofada infallivelmente no momento em que a sombra do ponteiro cahia sobre as duas.
Voltava então á banca, e esgrimia de penna até que se fizesse noite na casa do cartorio, o que succedia meia hora mais cedo do que na rua, por causa dos grandes armarios que interceptavam a luz.
Concluida a tarefa do dia, com desencargo de consciencia por estar cumprida a obrigação, dava o Sebastião Freire sua hora á devoção. Depois de rezar trindades, sahia pela vizinhança a desenferrujar a lingua e as pernas, que lhe ficavam um tanto perras. Outras vezes acompanhava a dona e a filha, que iam de visita em casa d'alguma comadre, porém mais frequentemente á casa da sra. Romana, sogra do nosso tabellião, e uma das matronas respeitaveis da cidade de S. Sebastião, que as tinha outr'ora de veneranda trunfa.
Esta faina diaria, sómente se alterava nos dias de guarda, que o Sebastião Freire como bom catholico reservava ao repouso depois da missa conventual ; e nos dias de audiencia, em que pela accumulação do judicial estava elle obrigado a assistir ao despacho do ouvidor. Afóra estes dias era mais facil desapparecer da bahia o nariz do I. 2.
28 ALFARRABIOS
Corcovado, do que o nariz do tabellião de cima do livro das notas.
Estirando o gregotim pelo papel, não perdia o Sebastião de vista o cartorio, e ora um, ora outro dos olhinhos de azougue, enfrestava-se pela aberta das cangalhas á espreita dos escreventes, que trabalhavam na rasa, cada um em sua banca, atravancada de autos.
Era especialmente quando se preparava para pôr o signal, que o tabellião aproveitava para a rapida pesquiza do cartorio.
O signal, historiado e vistoso, tinha seu que de hieroglypho; e para o nosso homem era como um brazão de officio ou timbre, de que elle se desvanecia. Se lhe coubesse tambem alguma vez a mercê de habito, como a estavam dando os governadores por graça de el-rei, sem duvida que as armas da familia haviam de ser a copia do signal publico, que authenticava as escripturas lavradas nas notas.
Consistia o dito signal em um ésse gigante, que se enroscava de alto a baixo da pagina. No centro d'essa maiuscula via-se um feixe de riscos sem fórma com que o tabellião pretendia representar uma forja, emblema do sobrenome Ferreira. Da extremidade inferior do ésse nascia uma cetra, a O GARATUJA 25 qual depois de cingir a firma se enleava em um labyrintho de voltas, que figuravam as voltas de um escapulario, symbolo do Freire.
O Sebastião Ferreira Freire tinha por timbre fazer o signal de olhos fechados, para mostrar quanto estava d'elle senhor, a ponto que mesmo dormindo, si lhe encaixassem a penna nos dedos, seria capaz de traçal-o de um jacto.
Em chegando a occasião, aprumava-se o nosso homem sobre o tamborete, esticava o pescoço para traz, e segurando a penna a meio, verticalmente fincava o bico no alto da pagina final. N'esse momento fechava os olhos, e começava a barafunda com a rapidez da aranha a urdir o fio da sua trama.
Depois de certo tempo, porém, uma novidade se introduzíra nos habitos regrados do tabellião, o que em homem tão pautado e sisudo era para admirar-se. Em vez de fechar de todo os olhos para fazer a cetraria, apenas fingia, e pelos cantos esguichava um olhar de punção para um angulo do cartorio, alvo de sua attenção suspicaz.
Na betesga ou escaninho que formavam ali dois pannos de prateleiras, havia uma banca estreita, a unica desafrontada das tulhas de autos e baca-
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martes, e sobre a qual escrevia um rapaz de vinte annos.
Pelos modos conhecia-se que era aprendiz do officio e tratava de ageitar-se para tornar-se algum dia um dos moços do tabellião, ou rato do cartorio, como dizia pittorescamente o povilhéo.
O rosto fresco e rosado que salpicavam as chispas de um sorriso zombeteiro e a malícia não vesga ou rebuçada, mas louçã e garrida que lhe fervilhava nos olhos travêssos, essa flôr de uma mocidade isenta e viçosa, não a fanára ainda o bafio do cartorio.
Ainda aquella atmosphera poenta não ressequira sua cutis, dando-lhe o tom desbotado do almasso; nem a fadiga da vista lhe tingira de bistre as grandes olheiras como succedia com seus companheiros, em cujo numero os havia aliás de pouca mais idade.
Era justamente a ausencia absoluta d'essa mascara de cera, que tanto inquietava o tabellião e enchia-lhe o animo de suspeitas. Aquella massa não lhe parecia da especie de que se fazem escreventes; muito curtida e sovada talvez não desse ainda assim para um máo carregador de autos.
—Se me sahe d'aqui um dos taes garotos, que vivem a estropiar a escripta, para fazer uns pe-
O GARATUJA 29 daços de regras, que lá elles lhes chamam versos?
Era esse o grande susto do tabellião, que tinha a trova em conta de heresia, e estremecia de horror com a idéa de lhe estar dentro do cartorio, a trasladar-lhe autos e instrumentos, um d'esses endemoninhados.
Uma beata de truz, em desobriga com um fradeco dengoso, rescendendo a pivete, não o olharia com tamanha desconfiança, receiosa de ver surgir-lhe debaixo do capuz a munheca do Tinhoso, como o Sebastião Ferreira espreitava o rapaz.
Que este não lhe entrára em casa muito de seu agrado, era cousa que logo se percebia. Alguma razão maior houve sem duvida que levou o tabellião a tomar para seu cartorio aquelle filhote de cigano, como o chamava.
Não será demasia, já que estamos em cartorio, tirar as inquirições do caso. COMO SE AGEITAVA UM ENGEITADO N'AQUELLE SECULO
PUDICO
A sogra do nosso tabellião, a sra. Romana Meneia, era apontada entre as pessoas de maior devoção da cidade.
Além do terço que se resava todas as semanas em sua casa, gostava a devota de fazer o presepio de Natal, e suas novenas pelo correr do anno.
Uma novena n'aquelle tempo fazia as vezes da partida familiar em nossos dias. Emprazavam-se umas tantas familias do trato e conversa intima da sra. Romana com o fim de festejar algum santo por tenção especial.
Armava-se o oratorio, tirava-se para a frente a imagem do santo em cuja tenção era a novena, e durante oito dias, e á boca da noite, resava-se V O GARATUJA 31 a ladainha. Afinal chegava o dia da festa, em que havia luminarias e outras frandulagens.
Depois da resa, os velhos franceavam contando historias do bom tempo que não volta, e recordando as rapazias que tinham feito. As devotas de respeito destrinçavam na vida alheia, mas sempre arrenegando dos mexericos dos novelleiros; as meninas fingindo escutar as mãis, acompanhavam com o canto do olho os folguedos dos rapazes que saltavam no quintal, atacando foguetes ou fazendo sortes.
Afinal vinha a ceia, forte e succulenta, como precisavam para conciliar o somno os estomagos de nossos avoengos. Em vez do sorvete, chupavase o excellente ananaz e a laranja, e por volta das nove horas, estavam todos recolhidos.
Uma das vizinhas da sra. Romana Mencia tinha um engeitado, que era estudante. Chamava-se o rapaz Ivo do Val, e fôra achado uma noite á porta da casa, onde morava então com sua familia, como donzella recatada, a sra. Rosalinda das Neves, que veio a servir-lhe de protectora e mãi de criação.
Boquejou-se, embuste de praguentos, que o engeitado não era outro senão o fructo dos amores da donzella com um alferes do terço da infanta-
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ria, vindo do reino. O official promettêra casamento; mas para desempenhar-se de sua palavra honrada, esperava a licença de el-rei, da qual aliás não carecêra para o mais que adiantára por conta da futura boda.
Assim não chegando a pedida venia, impetrada para Lisboa, e avultando á Rosalinda umas esperanças, que já lhe não cabiam no justilho, emquanto lhe minguavam as outras, que d'antes lhe enchiam d'abundancias o coração, tomou a mãi da moça as devidas cautelas para tapar a boca aos praguentos.
A moça adoeceu de ruim achaque; e ao cabo de umas tantas semanas, lá em certa noite appareceu na soleira da porta a resmelengar, uma trouxa que não se soube d'onde vinha. Disse a gente de casa que a trouxera um rebuçado em baixo do ferragoulo, e mal ali a pousou, logo deitou a correr.
Quem isso affirmava era a velha, que estava passando o seu rosario bem descansada, quando ouvira um grunhido na porta; e abrindo a rotula depois dos indispensaveis exorcismos e benzimentos, logo poz em alvoroço a vizinhança, gritando:
— Abrenuntio! Abrenuntio!... Cruzes! Te esconjuro ! O GARATUJA 33 — O que é, comadre? perguntou-lhe a vizinha do lado.
— O porco sujo que me está fossando na porta, senhora!
— T'arrenego!
— E íoi um maldito cigano que o trouxe! Eu bem o vi pelo buraco da rotula quando passou cosido n'um couro de bode, e então deitava uma catinga de enxofre.
— Que me conta, comadre?
— É como lhe estou dizendo.
— Espere, vizinha, que já lhe levo o meu coto bento de Jerusalem. Si for o cão tinhoso, ha de ver como espirra, por mais artes que tenha.
Aquillo é um vela milagrosa!...
Sahiram as vizinhas com os maridos, e toda a casta de reliquia e esconjuros, e afinal conheceram que a causa do barulho era um engeitado, e de gente pobre, pois estava embrulhado em uma esteira velha.
Nos meio das exclamações de espanto, e observações das comadres, ouviu-se um risinho de mofa. Era a vizinha defronte, a Poncia, uma lingua de lanceta, que se divertia cantarolando n'um falsete de tirar couro e caballo :
Elle sahe pelo quintal, 34 ALFARRABIOS
Porém entra pela rua Ora, etcetra e tal;
Tudo o mais é falcatrua!
Seu alferes, al não al.
— Que é isto, vizinha, cantando a esta hora da noite.
— Ai! ai! gente, quem canta seus males espanta.
— Enredeira do inferno! resmungou a rnãi da Rosalinda.
Criou-se o menino; e chegando á idade o mandaram á escola aprender as humanidades, para depois lhe arranjarem algum modo de vida. O
rapaz era esperto, até de mais; porém não dava para clerigo, como dizia então o povo dos que não mostravam aptidão litteraria.
A razão d'esse dito é que n'esse tempo a instrucção no Brazil era um privilegio das ordens regulares, especialmente dos jesuitas. O estudante confundia-se facilmente com o minorista que se preparava para o sacerdocio.
Ivo era assiduo no pateo do collegio, mas no tempo em que devia prestar attenção ao mestre, distrahia-se em ver os paineis que pendiam das paredes, e as imagens das capellas. Ficava assim O GARATUJA 35 horas e horas com os olhos pregados n'essas figuras, como si as quizesse embutir dentro d'alma.
Ao sahir da aula, armava-se de um carvão, e lá se ia a despejar pelos muros do convento caretas e engrimanços de toda a sorte, pelo que estava constantemente a levar carolo do padre reitor, quando não era a penitencia de joelhos ou em cruz, e o jejum a pão e agua.
Mas apezar de todo esse rigor, era preciso de tempos em tempos caiar as paredes do dormitorio, pois pareciam um panno de raz, com as figuras e novidades de que as enchia o endiabrado rapaz.
Afinal cansados os padres de aturar aquelle eterno pintamonos, e convencidos de que era um borrador impenitente e relapso, despediram-n'o do pateo, onde pouco aproveitava, pois além de ler e escrever, o mais que sabia era de outiva, e não passava de uma tintura de cada cousa.
Assim ficou o Ivo senhor de seu tempo, para trocar as pernas pelas ruas de S. Sebastião, e riscar toda a parede, que lhe cahia debaixo do carvão; d'onde veio chamar-lhe a gente o Garatuja.
Com isto davam-se a perros os donos das casas, que as tinham de caiar a miude; mas o 36 ALFARRABIOS
povo divertia-se a ver as diabruras do rapaz, como hoje em dia, nos pasmatorios da rua do Ouvidor, aprecia as caricaturas expostas nas vir draças.
Os malignos achavam nos bonecos algumas parecenças com certos grandes da cidade, e descobriam umas allusões aos boatos e mexericos do tempo. VI
DESACATO QUE COMMETTEU O IVO CONTRA AS
REVERENDiSSIMAS VENTAS DA COMPANHIA
É para notar que passando a Companhia de Jesus por tão solicita em aproveitar as varias aptidões da infancia, cuja instrucção tinha a seu carrego, expulsasse o Collegio de seu pateo ao rapaz que tão decidida vocação revelava para a pintura.
Mas esse zelo e perspicacia era estimulado pelo espirito de corporação e interesse no engrandecimento da ordem. Assim nada o excedia quando se tratava de adquirir para o Instituto um engenho superior ou mesmo uma aptidão artistica.
Pela mesma razão, se lhes escapava a consciencia do menino em quem lobrigavam a centelha do genio, e pressentiam n'elle os assomos da independencia, seu desvelo era suffocar essa alma 38 ALFARRABIOS
na sua nascença, crestai-a como ao botão de flôr sem agua nem sol. Assim conseguiam muita vez um aleijão moral, que servia para beato, se não dava para mendigo.
O Ivo cedo mostrára a ogeriza que tinha pela roupeta. Desde as primeiras rabiscadellas, não lambusava uma figura de raposa sem o trajo de rigor. Os Padres arrenegavam-se; o rodeiro andava constantemente de brocha em punho para apagar aquellas artes do demo; mas ainda havia esperanças de torcer o pepino.
Até que perdeu o reitor a paciencia; e o caso não era para menos.
Havia em S. Sebastião uma velha ricaça, chamada D. Anna Carneiro, que morava lá para as bandas da Quitanda do Marisco quasi no canto, onde se levantou mais tarde a igreja de S. Pedro.
A Companhia andava desde muito angariando a gorda herança, quando correu na feira a nova de que a velha fizera testamento e deixava todo o possuido a seus collateraes.
Murchos ficaram os Padres com o logro; e póde-se bem imaginar a ira fradesca de que foram acommettidos, quando ao outro dia lhes veiu dar aviso um irmão, dos de capa curta, de que na taipa da descida do Castello para o lado do O GARATUJA 39 Boqueirão da Carioca, havia um rascunho ou grutesco allusivo ao logro.
Era o Ivo que na vespera, por trindades, ao sahir do pateo, puzera o caso ao figurado. Primeiro pintára um bicho que se conhecia bem ser um carneiro, a correr com um velha trepada nas costas, e a cauda a abanar. Atraz, mas logo atraz, enfiava uma pinha de narizes, de varios tamanhos e feitios, todos a farejarem com olfacto de perdigueiro o objecto que lhes estava adiante.
Cada qual d'esses vultos era um retrato; não havia mais que uma roupeta e um nariz, porém tal expressão lhes dera em dois riscos o diabrete do rapaz, que ali estava a Companhia em peso representada pela fiel effigie de suas reverendissimas ventas.
Á vista de tamanho desacato dividiram-se os pareceres; chegou-se a fallar no Santo Officio, e na necessidade de relaxar em carne o relapso ;
tambem houve quem lembrasse o exorcismo e o carcere; prevaleceu todavia o alvitre mais prudente de abafar o negocio e evitar o escandalo.
Os jesuitas eram mestres da vida; e ninguem os excedia n'essa arte proveitosa de concertar as pancadas, dando umas em cheio, e outras em vão, o 40 ALFARRABIOS
que tornou-se hoje em dia a summa da boa politica.
No fim de contas, Ivo não passava de um pobre rapaz, que deixado a si, nada valeria, baldo como era de meios, e sem industria para os haver. A sua birra com os padres não vinha senão de o constrangerem ao estudo, e do receio tambem de que mais tarde lhe encaixassem a roupeta de noviço. Uma vez sobre si, e desaffrontado da suspeita, não se lembraria mais de embirrar com a Companhia.
Por outro lado, desde que perseguissem o estudante com severo castigo, não era provavel que lhe acudissem de romania como protectores, os poderosos inimigos do Instituto? E nas mãos d'esses,,não se tornaria o rapaz perigoso instrumento, de cuja obra ali tinham uma tosca amostra? Estas ponderações, fel-as o Padre Francisco Madeira, o professo que mais voz tinha no capitulo, pelo grande fundo de saber, como pelo tento no manejo das temporalidades. Movido por voto de tanto peso, e tambem pela voga em que andava o rapazola entre o povilhéo, adoptou o Padre Antonio Forte, reitor do collegio, o alvitre, e com o melhor exito; pois ninguem aventou a cousa que passou desapercebida. O GARATUJA 41 Ficou o Ivo como queria, vivendo á mangalaça pelas ruas de S. Sebastião, e nos arrabaldes, que a pouco e pouco se foram transformando em bairros, e estão agora dentro da cidade.
Tinha n'aquelle tempo a capital um pintor de casas, que se não era o unico, passava pelo melhor. A elle, ao Sr. Belmiro Crespo, cabe a honra dos boscagens e frescos que talvez ainda se encontram por ahi n'algum tecto de sobrado ou retabulo de igreja.
Era artifice de consciencia; moía as suas tintas como não faria um moleiro ao trigo; concertava-as na palheta com o brio de uma doceira a anaçar gemmas d'ovos; e de tento na mão, traçava na madeira, na cal, ou no panno, as suas figuras, com escrupulo de copista e paciencia de chim.
O Sr. Belmiro Crespo pintava por molde; e n'esse genero era insigne. Mas fóra d'ahi, não havia meio de tirar delle, nem sequer uma casa, o abecê da paizagem. Era incapaz de copiar da natureza, ainda com o auxilio do espelho.
O nosso Ivo sentia desde muito uma attracção bem natural para a tenda do pintor, e furtava horas ao recreio para as gastar ali, de pé na porta, a ver as grinaldas e passarinhos que o 42 ALFARRABIOS
Belmiro transportava dos recortes de papelão para os seus paineis de lona.
Agora, livre do pateo, podia fazer sua assistencia na tenda do official, e ali com effeito passava o melhor de seu tempo, a ajudar os varios misteres da pintura, no que se foi tornando perito.
O Belmiro, que a principio o tratava como um pé rapado, começou a acamaradar-se, logo que lhe descobriu os prestimos; e por fim tão prendado ficou do diacho do rapaz, que o trazia nas palminhas; e muito se rosnou pela visinhança ácerca de um pacto que o pintor havia feito com o diabo, para este lhe servir de aprendiz em paga da alma que lhe vendeu.
Estes cochichos e dizeres vinham de uns segredos que os dois tinham entre si, e das cachas que usavam passando horas e horas trancados, sem duvida a fazer brucharias e outras maldades.
Ao mesmo tempo, apparecia grande novidade em S. Sebastião. A cansada grinalda e os passaros, com que o Belmiro invariavelmente ornava as paredes e tectos das casas, forão substituídos por festões de flôres graciosas e trechos de boscagens que pareciam copiados das florestas da Carioca e Tijuca.
Dizia o Belmiro, que tardando-lhe os moldes O GARATUJA 43 encommendados para Lisboa, cerca de anno, e estando os antigos já muito vistos, elle se propuzera a fazer novos, e pedia indulgencia para os seus humildes esboços, filhos só da boa vontade. C API T U L OVI I
O CAIPORA QUE FOI A CAUSA DE TODA A EMBRULHADA
DA EXCOMMUNHÃO.
Certa manhã, andava o Ivo a pautear com o nariz ao vento pelas margens da lagôa das Marrecas, espantando os irerês e colhendo flôres para as copiar á tempera, lá na tenda do Belmiro.
Cobria a lagôa das Marrecas a rechã, onde corre hoje a rua do mesmo nome, até as faldas dos tres outeiros do Desterro, do Carmo e do Castello, entre os quaes se derramava como acolchoado de um divan, cujo recosto formassem as verdes encostas das collinas.
O caminho da cidade cortava pela frente da Ermida, pequena capella da invocação de N. S. da Ajuda, construida no lugar onde faz esquina agora a rua da Guarda Velha, que não passava então de um carreiro. Serpejando pela falda do outeiro do O GARATUJA 45 Carmo, na direcção que ainda hoje tem a rua dos Barbonos, seguia pela frente do Hospicio dos Barbadinhos, e pouco adiante bifurcava-se.
Uma das voltas, cortando pelas abas do monte do Desterro, era o caminho chamado de Matacavallos, por onde se sahia da cidade para o interior.
Contornando a quinta das Mangueiras, situada em um espigão do morro, a outra volta subia para a Carioca, encontrando á esquerda com uma vereda que descia para a banda do outeiro da Gloria.
Estava o Ivo na encruzilhada, quando ouviu uns apitos como de sabiá que salta de ramo em ramo, e antes que pudesse imaginar d'onde sahiam, appareceu-lhe em frente uma menina que vinha pelo caminho da Carioca asoquilipe, ora sobre um, ora sobre outro pé, com os cabellos ao vento, e a saia rocegada por causa do orvalho.
Tinha a travêssa menina um rostinho de alfenim, com sobrancelhas de til e labios de pincel, como não era capaz de tiral-os sobre o marfim, em laivos de nacar, o mais delicado pintor. Embutia-se aquella figura angelica n'uma como redoma que lhe formavam as ondas bastas dos cabellos cendrados, a borbulharem em cachos 3. 46 ALFARRABIOS
dos bordos de uma pequena coifa de seda escarlate.
Esbarrando com o Ivo, soltou a menina um grito de susto, e fazendo sem querer uma pirueta que metteria inveja a um dansarino famoso, desandou a correr pelo caminho em que vinha.
— Que foi, Martha? perguntou uma voz de mulher.
— Senhora mãi, um caipora!
— Ave, Maria! Minha mãi de Deus!...
— Ai, que susto! murmurava a menina estremecendo ainda como uma rola.
— Como ha de ser, Sr. Sebastião Freire? Eu ahi não passo, nem que me arrastem. Então na encruzilhada!...
— Que partes são estas agora, Sra. Miquelina dos Anjos; não parece mulher de quem é, acudiu a voz de meio bordão do nosso Freire.
— Mas homem, se não está em mim.
— São visagens da pequena.
— Eu vi, senhor pai; acudiu Martha.
— Havia de ser algum macaco, ainda que já elles não andam por estas paragens, tornou o tabellião.
— Reparaste no pé, menina? Tinha unha de...
d'aquelle bicho. O GARATUJA 47 — Isso não tinha; mas olhava para a gente com uns modos.
— Fez-te uma careta, não foi? É macaco, não tem que ver.
— Sempre era bom esperar mais...
— Faz-se tarde, e já deviamos estar chegados.
Ande d'ahi, mulher!
Resolveu-se afinal a Sra. Miquelina dos Anjos a passar; mas por cautela ia resando a meia voz a magnificat, e ainda era preciso que o Sebastião lhe désse uma demão, empurrando-a ás guinadas com o cotovello.
A Martha, essa ia adiante, e embora se embiocasse toda, lidando por esconder-se dentro em si mesma a uns olhos que estava entrevendo por toda a parte e em cada folha, comtudo não mostrava lá muito medo do caipora.
Ivo, surpreso da encantadora apparição, ia perseguil-a com o pensamento já todo cheio de nymphas e dryades, quando a voz grossa do tabellião, espancou-lhe as doces illusões, e arrojou-o da mythologia na realidade.
Escondeu-se atraz do tronco de uma paineira, que ainda as havia n'essa altura, e espiou a passagem do tabellião que voltava com a familia de uma quinta da Carioca onde fôra passar o do-
48 ALFARRABIOS
mingo, e pousára para tornar com a fresca da manhã, pois estavam na força do verão.
Fez-se a passagem do ponto arriscado, que era justamente a encruzilhada, sem o menor contratempo : a viração serenára; nem um ramo farfalhou, nem uma folha estalou no matto. Já a Miquelina respirava quando ouviu-se ali perto, dois passos atraz, um estridulo, que aos ouvidos da mulher soou como uma gargalhada de bruxo.
— O caipora! bradou ella, e disparou pelo caminho fóra.
O Sebastião Freire, sarapantado e um tanto bambo das pernas, com os olhos gazeos a saltarem d'esta áquella banda do caminho, lá se foi de recúo, aos trancos, receioso de que lhe surgisse do matto algum máo companheiro, caipora ou bicho, com quem se visse abarbado.
A unica pessoa da familia em quem os guinchos não produziram grande susto foi em Martha.
Apezar de seu modo bisonho e timido, bispára ao passar o vulto do Ivo de espreita por traz da arvore; e atinou logo com a travessura, pela simples razão de que no logar do rapaz, ella faria o mesmo.
Quando pois o Garatuja arremedou o conhecido regougo do macaco, conheceu logo a pequena O GARATUJA 49 d'onde vinha a artimanha, e em vez de susto, o que teve foi vontade de rir; mas tolheu-a o respeito dos pais, e tambem o acanhamento de mostrar-se ao rapaz em correspondencia de travessura com elle.
Até as abas da cidade, cujo povoado começava na Rua da Ajuda, foram o tabellião e a sua metade em constante sobresalto por causa do maldito macaco, que os perseguia saltando de pau em pau :
— Arrenegado bugio, gritava o Sebastião; vou d'este passo encommendar-te ao almotace, para te filar e torcer-te o gasnete.
— E o senhor a teimar com o macaco! Quando lhe digo que é, o Caipora, legitimo de Braga! Se inda agorinha lhe bispei os chifres. Não vistes, Martha?
Ante a formal intimação, não havia titubear :
— Creio que vi!... Agora me lembro, vi mui bem!
— Não vistes nada!... berrou o tabellião perdendo a tramontana. É forte embirrancia! Declaro eu, Sebastião Ferreira Freire, tabellião do publico judicial e notas d'esta leal cidade de S. Sebastião de Rio de Janeiro por el rei, nosso senhor...
Aqui o nosso homem desbarretou-se com as maiores mostras de reverencia. 50 ALFARRABIOS
— ...que Deus guarde...
Novo desbarretamento...
— ...por muitos e dilatados annos, como todos havemos mister a bem do reino e da religião catholica apostolica romana, unica verdadeira...
Tomou respiração e continuou :
— Declaro que é macaco, do que dou testemunho e porto por fé, e em prova da verdade firmo com meu publico signal...
Estacou de repente o Sebastião, e cahindo em si, viu que não estava no cartorio a ler o fecho de uma escriptura, mas em caminho para a casa.
Encapelou o feltro paulistano na cabeça, e deitou-se a pernadas pela Rua da Ajuda.
Ao entrar em casa, Martha disfarçadamente volveu o rosto e viu de esguelha no canto o Ivo, que a espreitava. VIII
SUMIÇO QUE LEVOU UM CUPIDO ARMADO EM
GUERRA E ESTAMPADO EM PERGAMINHO
D'aquelle encontro em diante, tornou-se o Ivo menos assiduo na tenda do pintor.
Levava os dias agora a calcurriar a Rua do Aleixo, já atirando pedras aos passarinhos, já perseguindo os gafanhotos na relva, ou as rans nas touças de bananeiras. Tudo lhe servia de pretexto para volver atraz, passar e repassar por diante das gelosias e fincar-se horas e horas, como um mastro de Natal, em frente á porta do tabellião.
Tornava á casa muito contente de si quando lograva entrever pela rotula uma sombra que podia ser do talhe de abelha da menina Martha, como do cocó da sra. Miquelina, ou mesmo do gato dá casa. O quer que fosse lhe dava uns 52 ALFARRABIOS
repiques no coração; e aos olhos subia uma nevoa rubra, que lhe escurecia a vista; mas n'esse crepusculo apparecia-lhe o rostinho de prata que elle víra com sua redoma de cabellos castanhos.
Ao cabo de alguns dias gastos n'essa vadiagem, sentiu Ivo o impulso irresistivel de communicar com o querido objecto de seus pensamentos e inunda-lo com as abundancias de seu coração.
Ivo era mecanico, para fallar a linguagem coeva, pois que artista n'aquelle tempo servia para indicar os grammaticos e rhetoricos, ou os matreiros ferteis em manhas; e nada d' isso tinha o nosso estudante, cujo peccado não passava de uma ponta de sarcasmo, ao demais original, pois lh'o dera a natureza, e não o podia negar.
Mecanico e artifice, não por mister e necessidade de ganhar a vida, senão por veia, tinha n'alma as primaveras floridas, que os poetas chamam lyrismos.
O céo de uns olhos limpidos havia luzido n'aquella existencia; e os raios que lhe infiltrára no seio, estavam abrolhando em flôres e boninas, que por força haviam de romper-lhe do coração.
O que havia elle de dizer a Martha e o como havia de fallar-lhe, não o sabia. Poetas são como as brisas, que pelo espaço vão caladas e tristes, O GARATUJA 53 mas encontrando as franças das roseiras, logo desatam em suaves arpejos.
Começou o rapaz a scismar e andou um par de dias zonzo até que tomou-se de uma rebentinha, que parecia corrupio o estouvado, a girar de uma banda para outra.
Arranjou como poude um pedaço de pergaminho de Flandres, tamanho de palmo; e depois de bem respançado metteu-o, na grade. Então, munindo-se das côres precisas, trancou-se em casa e ei-lo a esboçar a miniatura, em que punha toda sua arte.
Foi apalpando o branco com a laca e a sombra para fazer os encarnados, até que se destacou em colorido a figura esboçada de um cupido brincão e gentil, armado em guerra, de arco e aljava. O
pintor o figurava em acção de brandir uma setta, cuja ponta embebia na luz de uma estrella radiante em céo azul, para cravar um coração cahido por terra e já crivado por um molho d'ellas.
Terminado o colorido e bem apalpadas as sombras e realces, quando ia passar á illuminação, esqueceu-se que faltava-lhe pão d'ouro para o farpão das settas, e correu á tenda do Belmiro a pedir-lhe um tantinho d'elle; de caminho foi arranjando o conto que lhe havia de fazer para occultar o verdadeiro fim. 54 ALFARRABIOS
De volta, achou-se em branco o nosso Ivo. Tinha-lhe desapparecido o painel, sem deixar indícios de quem o levára. A camara onde trabalhava tinha uma só porta que elle tivera o cuidado de fechar á chave, e uma janella que dava para a cerca. Era por ahi sem duvida que entrára o larapio.
Correu ao peitoril, e só descobriu um gozo da cozinha, acocorado no quintal em frente d'elle, e a olha-lo com focinho chocarreiro, como se estivesse applaudindo o logro, que haviam pregado no nosso namorado, e mofando de sua figura estatelada.
Dando com os olhos no cão teve o rapaz um presentimento cruel. O pergaminho, apezar do respanço e da imprimadura, no fim de contas não passava de couro de carneiro, e todo o cachorro tem sua queda para esse despojo animal, até mesmo quando o encontra no cisco em forma de sapato velho.
Convencido de ser o gozo quem surripiára o malfadado cupido, e talvez áquella hora o tinha no buxo, o Ivo, com o sangue a íerver-lhe, galgou de um pulo o batente da janella, e foi-se como um raio ao cão. Mas esse que lhe presentíra o impeto, escafedeu-se. Perseguiu-o o pintor, bem resol-
O GARATUJA 55 vido a agarral-o e abrir-lhe o ventre para extrahir a miniatura, de que ainda esperava aproveitar o pergaminho. Batendo o matto e correndo o rocio da cidade no encalço do fugitivo, consolava-o a ideia, de que o verdete e o zarcão dariam cabo do bicho.
Lá por volta de ave-maria, tornou elle á casa prostrado de fadiga, esgalgado de fome, mas sobretudo minado pelo desespero, que é a peior das rafas, pois esmicha a alma.
Afagar por muitos dias um pensamento; sonhar a realidade d'essa inspiração; brotal-a da imaginação, como a arvore brota a flôr; vê-la espontar, a principio tenue gomo, depois capulho, mais tarde já botão, e finalmente corolla esplendida, recendendo fragancia e vertendo as mais lindas cores!
Chegar até ahi; e quando não faltava senão o ultimo toque, suprema caricia que o poeta e o artista não se cansam de fazer ao seu lavor, antes de o despedir de si, ver perdida a obra querida, o filho de sua alma, e não só perdida para elle, como para o mundo, condemnada antes de vir á luz!
Essa dôr, só a imaginam os que marcou Deus com o sello da fatalidade para fazerem de sua alma 56 ALFARRÁBIOS
a hostia do progresso, e darem sua vida á commungação dos povos: são os martyres da sciencia e da arte. Ivo estava predestinado a ser um d'esses.
Para o mancebo, o painel era a sua primeira prenda de amor; e todavia por maior que fosse o desgosto do namorado, sobrepujava a desconsolação do pintor.
Ao entrarem sua casa da Rua do Cotovello, esbarrou-se o Ivo com a sra. Rosalina que o esperava, inquieta por causa de sua ausencia. Ao vel-o porém, dissipou-se o desassocego em que estava; e ficou apenas uma certa sofreguidão alegre, porque lhe esboçava nos labios um sorriso, a muito custo disfarçado.
Ivo não deu por isso, aborrecido como vinha de sua vida, e ia passando sem fallar com a madrinha. Foi esta que o reteve :
— Ivo!...
Como não tivesse resposta, insistiu:
— Ivo!... Responde, gente!
— Estou ouvindo! respondeu a final o rapaz com um modo emburrado.
— Esta noite, quero levar você a uma parte.
— Eu não vou!
— Como ha de ser agora? Se prometti á sra.
Romana. O GARATUJA 57 — Qual Romana? acudiu lesto o rapaz. A sogra do tabellião?
— Ella mesma, menino, sem tirar, nem pôr.
Ivo hesitou um momento, buscando um disfarce para voltar da primeira resolução. Afinal sahiu-se com esta :
— Como é aqui perto, eu posso ir até a porta.
— Pois sim.
E a Rosalina esfregou as mãos de contente. PROVA-SE A BOA RAZÃO QUE TEVE CAMÕES ENTRELAÇANDO A MYTHOLOGIA COM O CATHOLICISMO
Que era feito do painel ?
Ivo teve impetos de pedir á madrinha novas d'elle; mas arrependeu-se.
Entretanto ninguem lh'as podia dar tão cabaes; pois fôra ella com sua mão quem o tirára do cavallete, onde o deixára o rapaz, emquanto corria á tenda á cata do ingrediente para a illuminação.
Esta ligeireza da Rosalina carece de explicação.
De muito ruminava a antiga noiva do alferes nos modos de arranjar uma entrada com a sra.
Romana Mencia, geralmente conhecida entre os garotos da cidade pelo expressivo appellido de matrona, que lhe valêra sua muita severidade com as fraquezas do proximo.
IX O GARATUJA 59 Ora a chronica dos amores da Rosalina, e o episodio do engeitado, apezar dos vinte annos decorridos ainda estavam bem vivos na memoria da matrona; e tanto bastou para que se baldassem todas as investidas da mãi do Ivo.
Mas não desacoroçoou a Rosalina; e cada vez mais se occupou do modo de insinuar-se na casa da Romana. Carecia d'isso, não só para satisfação de seu amor proprio offendido, como para ageitar a protecção de tão boa madrinha em favor do seu Ivo.
A sra. Romana Mencia era sogra do tabellião, e este bem podia admittir no seu cartorio o rapaz, encarreirando-o em sua profissão, das melhores n'aquella epocha; pois era nos cartorios e nos conventos que formavam então os homens para o manejo dos negocios da republica, da mesma fórma que hoje fazem os estadistas nas tricas das secretarías, e nas alicantinas e rabulices do fôro.
Na occasião em que Ivo, fechando a porta da camara, espirrou pelo corredor como um foguete á busca da tenda, a mãi que o viu tão pressuroso, quanto refolhado, teve uns assomos de saber o que estava fazendo o rapaz. Empurrou a porta e achou-a fechada. Mais se lhe accendeu 60 ALFARRABIOS
a curiosidade : rodeando pelo quintal bispou da janella o painel, que estava bem á mostra no meio do aposento.
— Ai!... exclamou alvoroçada. Que menino Jesus tão lindo, senhor Deus!...
De repente entrou-a um pensamento, que a poz em faisca. Lembrára-lhe que a Romana Mencia era uma devota, como não havia outra, perdida por tudo quanto era santo e cousa de beatice.
Recobrando a sua agilidade, do tempo do alferes, quando tantas vezes saltára essa mesma janella para ir-lhe ao encontro na cerca, por traz da atafona, a Rosalina com algum esforço conseguio apoderar-se do painel, e cosendo-se com elle dentro da mantilha acatasolada, deitou-se de um folego para a casa da matrona.
Esta não se achava só, mas concertando com a nora e mais a Engracia, uma das vizinhas, a novena d'aquella noite. Vendo entrar pela casa, e sem licença, a Rosalina, as duas se admiraram;
más a velha enquigilou-se ao sério.
— Quem a chamou cá, mulher?
— Com perdão de Vm., sra. Romana, pela confiança de entrar assim na casa alheia, sem pedir licença: mas como é para bem!... O GARATUJA 61 — Isso é que está por ver, que seja para bem;
redarguiu a voz fanhosa da velha.
— Ai! Era preciso que não fosse devota do menino Jesus!
— A que vem isso agora?
— É ou não é?
— Se d'outro modo não se vai e me deixa descansada, digo-lhe, senhora abelhuda, que sou, e torno a ser. Agora musque-se!
— Pois então, exclamou a Rosalina, desenrolando a mantilha com ar de triumpho, recreie esses olhos em sua benta imagem.
Com um gesto pathetico apresentou o painel.
A Miquelina e a Engracia cahiram logo em extase diante da pintura; mas a velha desconfiada e prevenida levou algum tempo a firmar a vista, e compenetrar-se bem do que olhava. Então não se pôde conter e, pondo as mãos, entrou por sua vez em adoração.
Passado aquelle primeiro enlevo contemplativo, cobraram as tres a falia, e com a Rosalina fizeram um perfeito quartetto de tagarelice.
— Onde achou este retabulo, mulher? perguntou Romana.
— Foi o Ivo, o meu engeitadinho que pintou!
respondeu a Rosalina cheia de si.
I 4 62 ALFARRÁBIOS
— Que me diz? Pois elle é capaz!
— Oh! tem uma habilidade, que é cousa por maior; o Belmiro não póde com elle.
— Ha de traze-lo cá. Em o vendo, logo conheço se é verdade.
— A senhora póde experimentar.
— Deixe estar que ninguém me logra.
A esse tempo travára-se entre a Miquelina e a Engracia, renhida disputa a respeito do painel.
— Mas, senhora, dizia a Miquelina, está-me catucando cá dentro que este não é o menino Jesus!
— Quem ha de ser então? O archanjo S. Miguel?
— Tambem não. Quem diz que este painel é de devoção? A mim está-me parecendo pintura de pouca vergonha!
— Jesus! Que blasphemia! Pois não está vendo as azas de cherubim?
— Mas este coração aqui, assim todo crivado, como almofada de renda? Aqui ha tafularia, senhora.
— O coração... Mas é para significar as tribulações que a gente passa antes de ganhar o céo.
Estes são os espinhos...
— Espinhos não, que settas, e bem settas. O GARATUJA 63 — Vem dar na mesma.
— Eu cá, não sei o que tenho; mas era capaz de jurar que isto não passa de bruxaria.
— Qual, senhora! Pois eu não vi o Ivo quando estava copiando do proprio que tem nos seus divinos braços a Virgem Santissima dos Carmelitas?
A Rosalina tivera essa idéa, quando pela primeira vez deu com o painel; não podendo comprehender que o filho tirasse da fantasia, sem auxilio de copia, o lindo vulto do menino Jesus.
Não duvidou pois dar como visto, o que fôra apenas imaginado.
— Que é pintura de devoção logo se vê, observou a velha Romana. Se não fosse, não punha o menino assim núsinho, sem malicia nenhuma, o innocente! N'essas pinturas desavergonhadas, não vêm como elles escondem as patifarias, que nem parecem ?
Esta razão era sem replica; á vista d'ella ficou assentado que o painel representava o menino Jesus; e a sra. Romana o collocou sobre uma toalha no trumó, mandando logo recado ao seu capellão e confessor, um frade capucho, para vir benzel-o.
Foi ahi que o viu o Ivo, ao entrar em casa da 64 ALFARRABIOS
Romana, na alheta da Rosalina, que o puxava pela aba do gibão com receio de que lhe escapasse.
E não era sem razão; pois o rapaz, ao transpor a soleira, estava como que cheio de espavento e quizera achar-se a legoas d'ahi. DO ALVOROÇO QUE PRODUZIU UM GRILLO
NA NOITE DA NOVENA
Havia novena essa noite.
Já as devotas começavam a chegar; e lá estava o tabellião com a familia.
Foi o Ivo recebido com muitos agasalhos pela velha Romana, e todo o mulherio, que estava em contemplação diante da pintura. Atarantouse o rapaz, e não sabia como atar-se, quando felizmente deu o tirador da ladainha signal para começar a novena.
Collocou-se o rapaz de modo que pudesse espiar o rostinho de Martha, occulto sob o capuz da mantilha, que ella de propósito conservava sobre a cabeça para melhor recolher-se no seu pudor, como a corolla da flôr que cerra com o raio do sol.
4 X 66 ALFARRABIOS
Bem vontade tinha a menina de lançar de esguelha e a furto uma olhadella para ver como resava o rapaz; não se animando, vingava-se em contemplar o improvisado menino Jesus, como se o quizesse comer com a vista.
Notou a sra. Romana que a neta varias vezes errára as palavras da resa; com o que teve algum desconsolo, pois seu maior desejo era fazer de Martha uma devota insigne, digna de receber a herança de seu oratorio, de suas imagens, reliquias e todo o mais beaterio.
Terminada a novena, os velhos sentaram-se na calçada, sobre o tijolo, com excepção do tabellião e algum outro tambem qualificado, para quem vieram cadeiras de couro. Rolou a pratica sobre as novas do reino trazidas pela ultima frota, e afinal depois de tocar em outros themas, veiu a cahir na mudança da unica matriz que possuia então a nascente cidade, da igreja de S. Sebastião do Castello, onde a tinham collocado desde a primitiva fundação, para a igreja de S. José, de recente fabrica, e apenas acabada.
Foi este para nossos dignos antepassados negocio da maior monta, ou como agora se diria a grande quentão. Não abalaria tanto os animos hoje em dia a mudança da côrte para as cabeceiras O GARATUJA 67 de S. Francisco onde ha muito devêra estar, como n'aquelles tempos affonsinhos a mudança da sede parochial da freguezia de S. Sebastião do Rio de Janeiro.
Se já existira imprensa, com a sua giria moderna, que rajadas de eloquencia tribunicia não haviam de apparecer a proposito ? E como andaria em bolandas a opinião publica, essa bonita peteca dos jornalistas ?
No estrado do oratorio, corrida a cortina de crepe sobre o altar e as imagens, sentaram-se as devotas para a costumada pratica. Bisbilhotouse a vida do proximo; contaram-se historias de almas do outro mundo ou casos de bruxos e lobishomens. Tudo isto, a um tempo, em continua tagarellice, cada uma escutando e pairando do mesmo passo.
E não se falia de uns cochichos que se perdiam no rumor da pratica animada. Esses eram de labios frescos e rosados d'onde se escapavam a medo, envoltos em um suspiro ou na reticencia do pudor.
Quanto aos rapazes saltavam no quintal, ao clarão da fogueira, impacientes pela hora da ceia.
— Querem ver como eu tiro já as velhas do 68 ALFARRABIO S
estrado para a mesa? Esperem vocês, disse Ivo aos companheiros.
O diabrete do rapaz ouvira cantar um grillo ali perto, e foi-lhe á cata. No lugar onde o apanhou havia um pé de perpetuas; das quaes escolheu a mais avelludada. Acercando-se então da porta que ficava proxima ao estrado, atirou certeiro a flôr no regaço de Martha, que pensou morrer de susto.
— O que é? disseram as outras.
— Cahiu uma cousa!
— Não sei! respondeu Martha sacudindo o vestido.
Não appareceu a perpetua que estava bem fechada na mão direita d'onde passou disfarçadamente para o seio. O Ivo se escondêra logo depois de atirar a flôr, mas a menina o víra de relance.
A infatigavel curiosidade feminina procurava ainda o objecto cahido no collo de Martha, quando ouviu-se novo estrepito, e alguma cousa bateu na cabeça de uma devota. Mas em vez de ficar-se como à outra, descansada e quieta, começou a dar pulos tontos.
Foi uma debandada. Dispersou-se o mulherio como por encanto, no meio de guinchos e fani-
quitos. Esta desgrenhava o cabello cuidando que o trasgo, pois era um com certeza, lhe ficára preso ao toucado. Aquella sacudia as saias, examinando-as por dentro e por fóra. Essa outra embiocava-se, para examinar no seio, se por acaso não se enamorára a larva dos dois genipapos.
Ao grande espalhafato acudiu o tabellião, apunhando a enorme boceta de tabaco, á guisa de pelouro, na carencia de outra arma offensiva. Os outros velhuscos da roda, qual mais destemido, o acompanhavam, este com um pedaço de tijolo, aquelle com um tamanco velho.
Dos primeiros a acudir, senão o primeiro, foi o Ivo, e em tão boa hora que amparou sem querer o corpinho tremulo de Martha, quando ella ia cahir; mas apenas a apertou nos seus braços, que a desmaiada logo ficou de todo restabelecida, e fugiu-lhe como uma. sombra.
A causa de toda a balburdia fôra o grillo, que tão a ponto lançára o Ivo na roda das mulheres, e quando contava-se a historia de uma borboleta preta, que chupava sangue á gente, e não era outra senão uma velha bruxa.
Como prevíra Ivo, deu o susto em resultado apressar a ceia, visto que se tinham desmanO GARATUJA 69 70 ALFARRABIOS
chado as rodas, e não havia que fazer áquella hora para entreter o resto do tempo.
Depois da ceia, e antes de recolher-se com a familia, escapuliu Martha de perto da mãi, e foi ao quintal colher uma perpetua para deixal-a sobre o trumó, aos pés do menino Jesus.
N'esse entretanto o tabellião, sempre grave, compassado, e sacramental, como um instrumento em devida fórma, chamava de parte a dona de casa.
— Sra. Romana, minha respeitavel sogra, poderá dizer-me quem é este rapazola que vi hoje aqui pela primeira vez?
— É o sobrinho da Rosalina.
— A do alferes,? perguntou o tabellião vincando a testa.
— Falle mais baixo, sr. Sebastião, que ella póde ouvir!
— Vistos os autos, a referida está aqui ?
— Que tem isso agora ? Por que andaram a fazer enredos da pobre ? E não passa da Poncia aquella linguasinha de...
— Pois, sra. Romana, minha respeitavel sogra, urge que ponha cobro a isso, por quanto se a supradita e mais o bonifrate do filho, que a espertalhona alapardou em sobrinho, se metterem O GARATUJA 71 aqui, nem sua filha e minha mulher, nem a sua neta, filha minha e da sua tambem supradita filha, tornarão a pôr os pés em casa onde se agazalha gente descomedida, que...
Ora, sr. Sebastião, guarde seu palavreado lá para a rabulice. A Rosalina ha de vir com o filho e o senhor tambem com a Miquelina e a Martha !
— A senhora teima ? perguntou o tabellião em tom sacramental.
— Teima é a sua de engrimar-se com a coitada da mulher, que não lhe fez mal nenhum.
— Escandalisa os bons costumes; e bem vê que sendo eu um official do publico, judicial e notas, não posso tolerar...
— E que remedio tem o senhor ?
— Não me affronte, sra. Romana, senão... senão...
Fez o Sebastião uma reticencia tabelliôa, prenhe de solemnes ameaças.
A velha porém fincára as mãos nos quadris; e surdindo por baixo do nariz do tabellião, perguntou-lhe em ar de desafio :
— Senão, o que?
— Senão eu me recolho ao silencio! respondeu o tabellião com dignidade.
— É o melhor que póde fazer. NO FIM DE CONTAS EIL-0 O RATO DENTRO DO
QUEIJO
Não eram passados oito dias depois da novena, quando pela volta das sete horas da manhã, appareceu a sra. Romana Mencia em casa do genro.
Acabava precisamente o Sebastião Ferreira a sua refeição matinal e esgravatava methodicamente a dentuça com uma penna de gallo, esperando que pingassem as sete para encaminharse ao cartorio.
D. Miquelina e a filha sentadas ao lado direito da mesa, não tinham concluido a resa, em que o tabellião, como de costume, se despachava mais depressa que ellas.
— Deus esteja n'esta casa! disse a velha entrando.
XI O GARATUJA 73 — E os anjos a acompanhem, senhora mãe !
— Amen ! disse Martha.
— Muito bem apparccida, sra. Romana!
— Onde a gente é querida, sempre ha de ser bem apparecida.
Não deixou o tabeliião de reparar na visita da sogra áquellas horas canonicas do trabalho ;
mas foi quando notou o desempeno da velha, com a mantilha passada por baixo do braço direito, e a venta arregaçada, que o Sebastião Freire, agourou mal d'aquella vinda tão fóra de villa e termo.
Avisando como homem prudente em evitar a tormenta, fungou os restos da pitada, que estivera a rolar em bolota nos dedos, e foi-se esgueirando para ganhar o cartorio. Mas atalhou-lhe o passo a matrona, com ar decidido de quem traz negocio de monta.
— Temos que fallar, senhor meu genro!
— São horas de abrir o cartorio; bem sabe, primeiro a obrigação, depois a devoção.
— Póde abrir seu cartorio. Quem lhe impede?
Se é mesmo por elle que venho.
— Pelo meu cartorio, sra. Romana Mencia!...
Soltando esta exclamação foi tal o pasmo do tabellião, que inteiriçando-se-lhe o vulto já tão I. 5 74 ALFARRABIOS
esguio, tomou a figura de um ponto de admiração. O official das justiças d' El-rei não comprehendia que ingerencia poderia ter uma mulher, fosse ella sua sogra, em tão grave assumpto.
— Pelo cartorio, ou cousa que lhe pertence, que eu d'esta barafunda não pesco.
— Por certo que não é para mulheres entenderem com e serviço da republica; muito fazem ellas já em tanger o fuso e a roca, que algumas nem de remendar a roupa da casa se lhe dão.
— Está bom, isso é lá com a Miquelina. Com ella se avenha, que eu em brigas de marido e mulher não me metto. Só lhe digo que não fui eu quem lh'a metti a casa, mas o senhor quem andou arrastando-lhe a aza cerca de dois annos, como namorado sem ventura, até que afinal por diligencias do D. Abbade de S. Bento...
— Ora pois, deixemos estas historias velhas, senhora, e vamos sem mais detença ao que a trouxe, que o tempo perdido não se recupera.
— Encontra-se o desejo com a boa vontade;
nem para outra cousa estou eu aqui ha um poder de tempo, e o senhor a dar á taramela.
— Sra. Romana, não se exceda. Isto não são modos de se fallar a um tabellião do publico ju-
O GARATUJA 75 dicial e notas por el-rei, que Deus guarde muitos e dilatadissimos annos.
— Amen, e a todos nós para o servir e respeitar. Quer então saber a que vim ?
O Sebastião Ferreira, temendo que uma resposta vocal provocasse novos ricochetes da velha, concentrou-se d'esta vez em um aceno compassado, abanando com a cabeça do alto: a baixo.
— Pois eu lhe digo. O senhor ha de precisar de um escrevente ou copista para o cartorio.
— Não ha tal... ia dizendo o Sebastião.
— E eu tenho um papafina para lhe dar. É o Ivo.
Espetou-se no cume da ponta da cabeça a ruiva cabelleira do tabellião; os olhos esbugalharamse; e a voz sossobrou-lhe no esophago com a concussão que soffrêra todo o individuo.
— O da Rosalina? gaguejou o homem.
— Esse mesmo, sem tirar nem pôr! retorquiu a matrona sem voltar pé atraz.
— Com a devida venia, a senhora não está em seu juizo, minha sogra! desembuchou afinal o tabellião.
— Tão são tivesse o senhor o miolo, que já me está cheirando a mandioca puba!...
— Sabe acaso a senhora, o que seja um carto-
76 ALFARRABIOS
rio ? Pois aqui Ih'o digo: e o deposito da paz e honra das familias, em cujas notas se guardam os titulos de seus haveres, e os segredos de suas casas. Não será muito chamal-o o tombo da cidade, pois que ahi se vão lavrando e autoando todos os successos da republica, ainda os menos importantes. E para um mister de tamanha ponderação, ha de se admittir ahi qualquer valdevinos...
— Apre lá! Não me esteja a estrelicar os ouvidos com suas cantigas. O rapaz ha de dar um bom copista. Ande lá! Tem uma letra chibante!...
— Tire semelhante idéa da cabeça, senhora.
E com sua licença!...
— Não se ponha comigo n'estes pontos, sr.
Sebastião. Olhe, depois não se arrependa! intimou a velha, mostrando-lhe a unha do pollegar, que espetava o indicador com frenesi.
Já a meio da porta o Sebastião parou perplexo.
As palavras da sogra davam-lhe que pensar; e não era a primeira vez, que melhor avisado, elle tinha mudado de parecer diante d'aquella ameaça da velha.
Boquejavam pela cidade que a Romana Mencia tinha uma bota de potro inteiriça, que fôra de seu defunto marido, cheia de meias doblas e O GARATUJA 77 patacos era prata; a qual, segundo os novel -
leiros, estava enterrada por baixo do oratorio da casa.
Se fôra essa bota o talisman que prendêra o Sebastião aos encantos da Miquelina, não resa a chronica; mas que era ella o condão com que a velha amansava o turrão do genro, e lhe abaixava a grimpa no meio de seus frenesins, n'isso maldavam os murmuradores, quando ao cahir da tarde, na Ribeira do Peixe, tomando a fresca e assistindo á chegada das canôas dos pescadores, tasquinhavam na vida alheia.
Verdade, ou não, o caso é que o tabellião já a meio da porta, parou atado, e esteve um instante a considerar no meio de tirar-se da embrechada.
A Romana que esperava pela volta, disfarçou :
— Emfim não havemos de brigar por causa d'isto, disse afinal o Sebastião virando-se.
— E como queira ; eu cá danso segundo me tocam, replicou a velha.
— Vou pensar sobre o caso, e depois fallaremos.
— Está bem aviado! Ainda vai pensar? Pois eu cá não sou de sanxa e marranxa; já pensei e repensei. Basta que trouxe o rapaz commigo, para d'uma feita deixal-o no cartorio. E por si-
78 ALFARRABIOS
gnal que ha de estar bem cansado de esperar, o coitado, feito pé de muro, ahi de fronte da casa.
— Então a senhora já contava coma cousa?...
perguntou o Sebastião sentindo revoltar-se a sua dignidade de homem e de tabellião.
— Pois eu podia capacitar-me de que o senhor rejeitasse um tão bom achado?... Olhe, que o rapaz escreve que é mesmo um debuxo.
O tabellião sacudiu os hombros desdenhosamente.
— Mande-m'o cá, senhora, que eu lhe tirarei os pontos.
Sumiu-se o Sebastião pelo corredor, em demanda do cartorio, onde em pouco foi achal-o a sra. Romana, que levava o nosso Ivo á sirga, tirado pela aba do gibão.. X II
DO PRIMEIRO TRASLADO QUE O IVO TIROU NO CARTORO
Pouco demorou-se a matrona. Empurrando o rapaz á frente do genro, disse-lhe :
— Ahi o tem; ha de ser preciso tosa-lo seu tanto, que está muito pelludo.
E voltando sobre os pés, foi-se a sra. Romana á sua obrigação.
— Pelludo !... resmoneou o tabellião entre dentes, quando eu o acho delambido de mais!
Todavia hei de pol-o a geito.
Esticou-se o Sebastião no tamborete, equilibrando o gancho dos oculos em cima do beque, abriu a boceta com um estalo sonoro, e sorvida em cada venta a pitada mestra com um estrepito solemme, dirigiu a palavra ao Ivo, que o estava espreitando atravez do acanhamento de se ver mettido n'aquella arriosca. 80 ALFARRABIOS
— Com que então, moço, você quer ser da obrigação d'este cartorio?
— Se fôr do gosto de vossa mercê; que eu estou prompto a ser não só da obrigação, mas tambem da devoção.
— Como se entende isto?...
— Saberá vossa mercê que isto subentende-se.
— Falle-me raso e chão, moço; que eu não sou homem de remoques.
— Com perdão de Vm. eu queria dizer que hei de esforçar, não só pela vontade de ganhar, senão pelo gosto de o servir.
O tabellião fungou o resto da pitada, arregaçando as ventas; o que n'elle equivalia a interjeição de suspeita e desconfiança.
— As fallas não são más, resta ver as obras.
Mettendo uma costaneira de papel entre o indice e o maximo da mão esquerda, com a direita escolheu na pilha de bacarmates que tinha ao lado um volume.
— Tire-me o traslado d'esta escriptura, disse o Sebastião Ferreira abrindo o volume no lugar onde estava marcado com uma tira de couro.
— É para copiar palavra por palavra? perguntou o Ivo, que não sabia o que era traslado.
— E sem faltar uma virgula. O GARATUJA 81 — Em que lettra quer vossa mercê que eu copie? Em lettra redonda, cursiva, grifa, italica ou bastarda?
— Hemh! hemh! fez o tabellião, embasbacado com aquella nomenclatura. Nada, moço; aqui não se querem cl'essas artes e novidades, que são boas para copistas de pergaminho. Escreva-me lettra de mão e bem corrida, como está ahi nas notas.
Ajoelhou-se o Ivo do outro lado da mesa, e sacando do bolso o seu tinteiro de chifre e a penna de ganso bem aparada, preparou-se a tirar o traslado do bacamarte reclinado diante d'elle sobre um enorme cunhete de jacarandá. Tinha o rapaz a maior confiança no seu bonito talhe de lettra e esperava sahir-se bem das provas; mas surgiu-lhe um embaraço com o qual não contava, e que o fez descoroçoar da empreza.
Era a escripta do Sebastião Ferreira a mais tabelliôa que se póde imaginar : difficilmente conseguiam os velhos escreventes metter-lhe o dente.
Uma linha tremida estendendo-se horizontalmente, e com umas pontas que lhe sahiam para cima e para baixo, tal era o aspecto d'esse gregotim indecifravel.
Debruçado sobre o bacamarte, o Ivo concen-
82 ALFARRABIOS
trava todos os, esforços para destrinçar aquelle texto emmaranhado, e já lhe corria o suor pela testa abaixo, sem que tivesse conseguido soletrar duas palavras.
Extenuado, reconhecendo a impossibilidade de penetrar jamais o sentido daquelle hieroglypho, assentou o rapaz dar de mão á empreza, e voltouse para o tabellião na intenção de communicarlhe a resolução em que estava. Mas o Sebastião Ferreira, de todo entregue ao desempenho do officio, não dava fé, nem do que ia pelo cartorio, nem mesmo da presença do Ivo, ali, a dois passos d'elle.
Ficou pois o rapaz com os olhos pregados no tabellião, acompanhando-lhe a penna que ringia sobre o papel e á espera da primeira pausa, para encartar a sua despedida. No mais attento de sua observação estremeceu de susto.
Na porta a que dava costas o tabellião, se abríra uma fresta por onde enfiou o olhar curioso de um cantinho apenas dos mais lindos olhos castanhos, que dar-se podem. Se não fosse a volta da testa de marfim que apparecia no batente da porta, o rapaz não se teria apercebido da apparição.
Esqueceu o Ivo tudo, o cartorio onde estava, o tabellião e mais o seu gregotim, para espreitar O GARATUJA 83 aquelle cantinho de olho que o espiava pela fresta da porta. Era elle capaz de jurar que a dona do olhar de maliciosa se estava rindo dos apertos em que o via.
Com receio de que o surprendesse o Sebastião no mais doce de seu enlevo, arranjou-se de novo o Ivo em posição de escrever, puxou á frente o grosso in-folio para lhe servir de baluarte contra os oculos do tabellião, e assentou no alto do papel segundo as regras calligraphicas a mão prompta a lançar o rasgo da primeira lettra no mais aceado bastardo.
Mas sentiu certas cocegas nas pontas dos dedos, e sem saber como, achou-se a fazer a bico de penna a copia fiel d'aquella fresta da porta, onde apparecia o céo de uma testa de marfim, e um olhar, que era a estrella do tal céo.
Bem percebeu Martha pelos modos, que o moço lhe estava tirando as feições; e escondeu-se de vergonhosa, mas para voltar logo depois, descobrindo um pouquito mais do rosto. Disfarçava a sonsa, fingindo-se attenta para outro ponto da sala, e a descuido mostrava o lindo perfil; até que de repente sumia-se, como se então somente descobrisse o Ivo a observal-a.
Não obstante as negaças da menina, traçára o 84 ALFARRABIOS
rapaz o seu desenho, e aproveitando uma vez em que Martha se mostrava mais, a contemplava com olhos de amante e artista, para dar os ultimos toques á figura.
No mais absorto, assustou-o certo ruido cavernoso, semelhante ao ornejo de um jumento, e que não era senão o estrepito da pitada do Sebastião Ferreira, echoando pelas cavernas ou fossas nasaes. Achou-se então o rapaz em face do carão descarnado e impassivel do tabellião, que lhe estava observando o pasmo.
— Que faz você ahi embasbacado, moço? perguntou o tabellião.
Teve o Ivo um estremeção, que ia dando em terra com o bacamarte. Felizmente segurou-o a tempo, quando elle escorregava pela aba da mesa.
— Estava á espera do senhor tabellião, respondeu o Ivo aproveitando a primeira desculpa que lhe acudiu.
— Á minha espera!... Não está má!
— Pois não é Vm. que dicta?
— Dictar o que, moço, se já lhe apontei ahi a escriptura...
— Ah! é para copiar d'este livro?...
— Então, moço! E avie-se, que isso de lesmas, O GARATUJA 85 não servem cá para escreventes. Quer-se sujeito despachado!
Receioso de ser recambiado do cartorio, arranjou-se o Ivo para dar conta da tarefa, e outra vez com a penna embutida nos tres dedos, abriu o corte da primeira maiuscula. Mas ahi estava a difficuldade. Que lettra lançaria elle senão conseguira destrinçar ainda as rabiscas do tabellião?
Relanceou para a porta um olhar de desespero;
mas já a fresta se havia cerrado, e não viu ali para consolal-o em sua afflicção, nem sequer o olhar á sorrelfa, que poucos momentos antes o viera desinquietar. Com o espirro paterno, Martha fugíra espavorida.
N'estas estreitas sentiu o rapaz no peito do gibão o amarrotar de um papel; e indagando da novidade descobriu que era uma folha de almasso a sahir do bacamarte, e justamente pelo verso da maldita escriptura que estava condemnado a copiar sem entender.
Examinando o manuscripto, pareceu-lhe pelo geito, ser um traslado da tal abstrusa escriptura, começado a tirar por algum escrevente do cartorio. Sem mais e á ventura, poz mãos á obra, e com pouco estendeu sobre o papel todo o traslado 86 ALFARRABIOS
em um bastardinho bem lançado c do mais lindo talho.
Levantou-se o rapaz, e por cima da mesa apresentou a copia ao tabellião, mas vendo que este não se distrahia lá da sua tarefa metteu-lh'a por diante do nariz.
— Hemh!... Então já acabou, moço?
— Veja o senhor tabellião!
— Está bom; já se vai desasnando! Ora vejamos lá isso!
Fincou bem os oculos no cavallete, encrespou o sobrolho sobre a testa, enfeiou a carranca, c empinando-se no tamborete, esticou a folha de papel aberta a dois palmos do nariz.
Immediatamente a cara tabelliôa decompoz-se toda, e embrulhou-se n'uma careta displicente, como uma bexiga assoprada, quando lhe falta o ar, e se enruga.
O Ivo ficou frio.
— Sempre arranha no officio; mas olhe, moço, esta lettra casquilha e delambida póde servir lá para illuminações e grifarias; cá no fôro não se admittem estas desenvolturas. Está entendendo ?...
Quer-se um talhe de lettra corrida, e que seja composta e sisuda como se requer nas cousas de justiça. Uma escripta á tôa como esta, que ahi O GARATUJA 87 todo o gato e sapato póde ler sem titubear, não vai bem n'uns autos ! Isto de papel forense, nem todos lhe mettem o dente; é preciso ter pratica.
Faça-me uma lettra pelo molde da minha, e vamos bem. É deixar correr a penna!
Ouviu o Ivo com espanto esta lição de calligraphia forense; e revoltado n'elle o sentimento do bello, ia protestar, quando pareceu-lhe que de novo entreabria-se a fresta da porta, e tanto bastou para dar-lhe a força de conter-se. Não eram aquelles gregotins, que o obrigavam a fazer e a decifrar, os elos que o prendiam á casa de Martha?
No dia seguinte tomou o Ivo conta da mesa de cedro em que o eneontramos.
Ficava-lhe a dois passos a mesa de um outro escrevente, de nome Sabino, moço como elle, e que não se conformava com a presença d'esse intruso, pois vinha disputar-lhe o lugar de calouro do cartorio, que elle até ali occupára sem rival.
Tinha o Sabino vinte annos, e como esses vermes que se formam no côco, e tomam-lhe a feição e o gosto, parecia o rapaz um feto concebido e criado no cartorio. Borrado de tinta e poento como uns autos, a cutis era de almasso amarrotado, os beiços arregaçados como as beiras do 88 ALFARRABIOS
protocollo, e a cabeça arripiada que nem as abas de baeta preta que desciam da mesa.
Quando se dirigia a seu canto, percebeu Ivo o olhar com que o examinava o collega, e conheceu que ia ter n'elle um amolador. Felizmente dividia-os um panno de prateleira, que interceptaria a espionagem. XIII
UMA EDIÇÃO ANTIGA DO PRELADO MODERNO
Ao tempo d'estes acontecimentos, cuja importancia talvez escape ao leitor indifferente, que não prescruta os arcanos da historia, nem se occupa do encadeamento dos factos, ainda a leal cidade de S. Sebastião não tinha bispo, e muito menos capellão mór.
M M as por isso não deixava o povo fluminense de s ser menos religioso, do que é hoje em dia, nem t tambem de grassar pela recente colonia essa lepra social, que chamam com a maior propriedade de lazarismo, e que vai cada vez mais carcomindo a consciencia da grande cidade imperial.
E Era então administrada a igreja fluminense por uma simples prelazia creada desde 1557 por breve de Gregorio III; e no anno de 1659 occupava esse cargo o doutor Manoel de Souza e Almada, pres-
bytero do habito de S. Pedro. 90 ALFARRABIOS
Nomeado por provisão de 12 de dezembro de 1655, tomára posse em julho de 1659, e sem apresentar o seu titulo de nomeação entrou a exercer a jurisdicção ecclesiastica na diocese, com aquelle escandalo do abuso, que tão bem acclimatou-se cá na terra.
Era o doutor Almada um padre ás direitas. De mediana estatura e bem apessoado, envergava a batina e os habitos talares com uns modestos ademanes que dão o cunho á elegancia ecclesiastica. Tambem não havia quem no altar fizesse com tanta graça uma genuflexão, nem suspendesse o sagrado calice.
Doce e mansueto, sempre envolto em uma cordura que o vestia como sobrepeliz, o canonico doutor nunca se alterava. Assim deixou fama de sua grande affabilidade e prudencia, do que se encontra noticia no almanach historico do Rio de Janeiro, interessante chronica de Duarte Nunes, tenente de bombeiros d'esta capital no fim do seculo passado. Felizmente ainda não havia a praga das gazetas; do contrario com a labutação de escrever noticias de incendios, em louvor proprio, não teria o homem folga para esmerilhar antigualhas.
Voltando ao nosso doutor, havia quem dissesse O GARATUJA 91 que sob aquelle bioco de alfenim que lhe assucarava o risonho semblante, dormia uma colera fradesca, terrivel em suas explosões e, tanto mais para temer quanto, receiosa do escandalo, ella subtrahia-se a todas as vistas para estrebuchar em segredo, escondendo os seus esgares.
D'estes accessos, parece que lhe ficava uma raiva fria e cruel, que elle embainhava no coração. Era como a braza de ferro que se bate na forja, e da qual se tira a lamina fina e buida do estilete.
A verdade é que o novo prelado da igreja fluminense, no seu fervor de curar do rebanho e grangear o amor de suas ovelhas, se houve por modo que annos depois os cariocas já bastante edificados por suas virtudes, assestaram-lhe contra a casa uma peça de artilharia, devidamente escorvada, com a mecha accesa, e calculada para dar tempo aos autores da graça de se porem ao fresco.
Isto corre por conta do tenente de bombeiros, que não nos diz se do tiro resultou incendio, nem se antes d'este declarado já tinha elle comparecido. Apenas sabemos que o canonico doutor escapou da entrosga, e como lhe cheirasse a cousa a chamusco, foi tratando de passar-se a 92 ALFARRABIOS
Portugal, privando assim esta ingrata cidade do espectaculo de suas virtudes.
Apenas mitrado, isto é, empossado da mitra que lhe conferiu o breve do Santo Padre, deu o doutor Almada a amostra do panno de que era feita a sua batina.
Refogado na soberba que o clero oppunha n'aquelle seculo ainda á decadencia de sua antiga primazia; imbuido nas falsas doutrinas consagradas pela bulla da ceia, o doutor Almada, como em geral os sacerdotes d'aquelle tempo e muito mais os prelados, julgava-se revestido de um poder superior a toda autoridade temporal, qualquer que fosse a sua jerarchia.
Recebendo do rei a graça e mercê de sua nomeação, entendia que, uma vez provido, escapava á mesma jurisdicçao da qual lhe provinha o cargo; e não só isso, mas que lhe competia incontestavel proeminencia e censura sobre a corôa e seus ministros para defeza da religião catholica.
O prelado fluminense, e como elle os mais, acreditava-se ingenuamente revestido de autoridade para excommungar qualquer ministro secular, e até o proprio rei, se o embaraçasse no exercicio de sua jurisdicção ecclesiastica. É verdade que nem por sombras se lembrára elle de jamais O GARATUJA 93 desembainhar o seu gladio espiritual e affrontar-se com a propria corôa, contentando-se em arranhar-lhe o braço secular na pessoa de seus ministros. Tinha o clero de então a manha que dura ainda hoje, na igreja e no estado, de amaciar a cabeça com toda a especie de bajulação, para devorar o corpo.
Foi a mudança da sé o ponto que o novo prelado escolheu para exhibir-se, e mostrar a suas ovelhas o pulso com que tangia o cajado apostolico.
A cidade de S. Sebastião, que então era simplesmente leal, pois não havia ainda praticado o insigne heroismo de receber D. João VI e a sua côrte de validos; a futura capital do reino unido e depois do grande imperio, formava n'aquella epocha uma só freguezia, cuja matriz era a velha igreja de S. Sebastião, do orago da cidade e de sua primitiva fundação.
Situada no cimo do morro do Castello, onde o seu esqueleto ainda em pé campeia sobre a bahia e onde assentou-se a primitiva povoação, a igreja de S. Sebastião, symbolo da expulsão dos francezes e conquista da terra, tinha para o povo fluminense um caracter legendario. Ahi estavam, n'aquelles muros, archivadas as pri-
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meiras e gloriosas tradições da sua cidade. Esse templo fôra como o berço da religião para a nascente colonia.
Mas contra esse generoso sentimento do povo, surgiu como sempre succede o fermento do egoismo que subleva a camada superior da sociedade. Com o incremento natural da população, foi a cidade descendo das encostas da collina e estendendo-se pelas varzeas que a rodeavam, sobretudo pela orla da praia que cinge o regaço mais abrigado da formosa bahia, e corre em face á ilha das Cobras.
Ahi, fronteiro ao ancoradouro dos navios, com o fomento do commercio, se ergueram as tercenas e os caes, onde não tardaram a agrupar-se em volta das casas das alfandegas e dos contos as lojas e armazens dos mercadores. Apoz essas, embora já mais arredadas da beira mar, vinham as outras classes trazidas pelo desejo de estarem mais proximas ao centro do povoado, onde é mais activo o trafego.
Á medida que a cidade abandonava as alturas para se espraiar na planicie, a matriz ia ficando longe para os moradores do bairro mais povoado. As ladeiras do Castello, principalmente a do becco do Cotovello, primam no ingreme da rampa, talhadas como foram pelo molde das escadinhas e zig-zags de Lisboa e Porto. Galgar uma subida d'essas, em horas de soalheira, e na força do verão, é uma estafa capaz de arrefecer a mais sincera devoção.
Solitaria no alto do morro historico, em face dos bastiões aluidos do antigo castello roqueiro;
já isolada das residencias do governador e ministros de el-rei, outr'ora grupadas em torno d'ella, começou a velha sé a ser desdenhada. Com excepção dos carolas e das beatas, a quem não faziam mossa nem o sol, nem a chuva, os fieis buscavam de preferencia para seus actos de devoção algum templo mais proximo, e só iam á matriz nas festas da municipalidade ou para actos parochiaes.
Com a sagração da igreja de S. José, que se acabára de construir, foi a velha sé despojada de sua proeminencia politica; pois o senado, por suggestão do governador e a empenho dos principaes moradores, começou a celebrar « as festas do estado », como então se chamavam as nacionaes, em o novo templo, que ficava na melhor posição.
Então cahiu a matriz em completo abandono e desleixo, não conservando de sua primazia, como O GARATUJA 95 96 ALFARRABIOS
casa parochial, mais do que um nome vão. Ao proprio domingo já não concorriam fieis á missa parochial; corriam os banhos e liam-se as excommunhões, para as paredes, que não havia na igreja viva alma. As festas da Paschoa e do Natal, unicas entre as annuaes, que ainda ali celebravam-se, para terem quem as assistisse, levava o vigario a sua negralhada, que o acompanhava mal contente por se ver privada de ir ao Collegio dos Padres ou a S. Bento, onde havia outra pompa.
Estavam as cousas n'este ponto, quando empunhou o baculo o doutor Almada; e visto por elle e examinado o caso, resolveu logo mudar a sé para a ermida do patriarcha S. José.
Mal constou a determinação, assanharam-se os homens da governança, despeitados com o prelado pela arrogancia com que este dispunha em negocio de tanta monta e tão do interesse do povo, sem ouvir seus procuradores e conselheiros. X I V
O N DE SE MOSTRA. QUE SE OS POVOS SERVEM DE INSTRUMENTO, TAMBEM OS REIS SERVEM ÁS VEZES DE
PRETEXTO.
Ninguem mais do que o illustrissimo senado desejava a transferencia da sé, que em grande parte promovêra, retirando da igreja de S. Sebastião os assentos dos camaristas. Se não a levára avante, fôra pelo receio de desagradar a el-rei, obrando em negocio que excedia a sua alçada.
Agora porém o caso mudava de figura; e cumpria-lhe zelar na manutenção de seus privilegios, menoscabados pelo prelado.
Preparados de antemão os bandos de sequazes, que usurpam o nome do povo, convocou-se sessão extraordinaria para assentar no que mais convinha; e ahi em presença do governador, ouvidor geral, provedor, e officiaes da camara, le-
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vantou-se Francisco Pires Chaves, procurador do conselho, para representar contra a mudança que á sua noticia chegára. E depois de bem exposto o caso, concluiu por este teor:
— « Basta que S. Sebastião é o divino Padroeiro, por cuja protecção se tomou a cidade, obrando n'essa empreza façanhas e milagres, que os antigos experimentaram sensivelmente por signaes visiveis, e os presentes veneram por tradição viva na memoria do povo. Essa efficaz protecção ainda agora a logramos, assim nas materias de guerra, ficando esta cidade sómente livre dos inimigos que invadiram todas as praças do Brazil, como tambem no tocante á saude, livrando-nos de peste e contagio, como cada um por si tem testemunhado.
« E porque mudada a fabrica da igreja do Santo Padroeiro, para outra de orago diverso, como se intenta fazer, altamente perde-se a primeira instituição parochial, e o primeiro ser e nascimento da igreja fluminense; acrescendo o receio em que ficariam os moradores de que, diminuida a devoção, que sempre lhe tiveram, e tirada á cidade a invocação de seu nome, se dispensasse o nosso santo Padroeiro, que sempre o foi, de acudir-nos em nossas necessidades; por isso O GARATUJA 99 e mais razões obvias a naturaes, requeiro em nome do povo, e na presença das suas autoridades se resolva no melhor parecer, para que o glorioso S. Sebastião não perca o seu titulo de Padroeiro de sua igreja e parochia, que tem desde o nascimento da cidade. E n'estes termos receberei justiça e mercê.»
Ouvidos os pareceres e tomados os votos, que sem discrepancia adoptaram as razões deduzidas pelo procurador do Conselho, assentou-se em camara que ficasse o negocio da matriz no mesmo estado em que até então se havia conservado, em quanto se esperava que Sua Magestade, attendendo ao que se lhe havia avisado sobre a materia, decidisse como fosse a bem do povo; e d'esta determinação, mandou-se dar communicação ao prelado.
Bufou o doutor Almada ao ler a carta que lhe enviára o senado n'esse mesmo dia 3 de agosto, e enxergou n'ella um attentado contra sua jurisdição. Não viu que pelo direito do padroado, á corôa exclusivamente competia destinar o lugar do culto, e nem admira tal cegueira em um prelado do seculo XVII, quando do mesmo, senão peor achaque, padecem os bispos de hoje.
No dia seguinte « desembainhando as armas 100 ALFARRABIOS
espirituaes », como disse o senado a el-rei, o imperioso prelado despediu contra a illustrissima camara uma bomba ecclesiastica de formidavel calibre. Avalie-se da força do projectil, por esta intimativa : « Agora lhes digo, que se em tres dias que lhes dou pelas tres canonicas admoestações que começarão da entrega d'esta, não revogam o assento que fizeram, os hei de declarar aos que se acham assignados na sua carta por incorridos na excommunhão da bulla da ceia, e do mesmo modo hei de declarar a qualquer pessoa que n'esta materia fizer qualquer impedimento directa ou indirectamente. E por esta os notifico a Vms. para dita declaração. »
A essa bomba não admira que respondesse o povo annos depois com o tal canhão que embocaram á porta do prelado; e se em vez de uma, os gaiatos carregassem a peça com tres balas, não fariam mais nem menos do que praticou o doutor Almada com as tres canonicas admoestações.
Hoje em dia talvez muita gente ignore o que é excommunhão. Não foi assim n'aquelles tempos de prisca fé, quando bastava a palavra para fazer arrepios, e com razão, que era bem má graça ficar a gente, como pesteado, de quem todos O GARATUJA 101 fogem, e a vagar por este mundo como um refugo do inferno, á espera de que o leve o demo, ou se lhe cosa na pelle.
Por isso não deve surprehender que arrefecesse um tanto o enthusiasmo do senado pela defensão do padroado real, em pró do qual aliás não duvidariam os camaristas « pôr suas cabeças » como disseram na carta de 6 de novembro a Affonso VI. Responderam ao prelado protestando que no accordão tomado nunca fôra seu intento encontrar a jurisdicção ecclesiastica, senão só acudir á sua obrigação, por ser a sé igreja do padroado d'El-rei, para que em tempo nenhum se lhe pudesse dar em culpa, e arguir de pouco zelosos no serviço do dito Senhor; pelo que esperavam que não continuasse com a censura notificada.
Interpoz o governador seus bons officios, e afagada a soberba do prelado com o tom submisso do senado, condescendeu este em suspender a excommunhão intimada, até resolução de el-rei, a quem se dirigiram as duas partes, pela frota de novembro, a primeira que partiu depois d'esta occurrencia.
Resa a chronica que no intuito de justificar a sua determinação de mudar a sé, affirmava o doutor Almada que a igreja de S. Sebastião estava 6. 102 ALFARRABIOS
em matto; sendo preciso que o vigário lhe abrisse caminho para o transito dos fieis nas festas e procissões. Não faltava á verdade o reverendo;
apenas omittia uma circumstancia bem insignificante: que o matto era de malvas, bredos e gramma.
Assim terminou o conflicto entre a mitra e o senado; ou antes, sopitou-se para rebentar pouco depois, e com maior violencia, como veremos. UTILIDADE QUE DM NAMORADO PÓDE TIRAR DOS RIVAES
E DOS PINTOS
A' rua da Quitanda, nome que lhe viera da banca de marisco, já então mudada para a Praia do Peixe, foi morar o reverendo doutor Almada, n'uma casa proxima ao canto da rua do Ouvidor, e fronteira ao quintal do tabellião.
Construida ao gosto do tempo, de regulares dimensões, o que se via mais notavel na tal casa era uma grande pitombeira que havia na cerca, onde servia de regalo á vista pela belleza de sua copa frondosa e de refrigerio á calma pela fresca sombra que derramava no horto.
Era costume n'aquelle tempo, mais do que hoje, de acompanharem-se as dignidades da igreja de não pequeno numero de famulos, de ordinario mancebos que na qualidade ide minoristas cursaXV 10 ALFARRABIOS
vam as aulas e se preparavam para tomar as ordens maiores. Formavam essas famílias ecclesiasticas pequenos seminarios, que se não eram de profanidades, como dizia um celebre prégador, não estavam isentos d'ellas.
Entre os famulos do nosso prelado e primeiro dos minoristas, contava-se um sobrinho, Claudio de nome, endiabrado rapaz, que fazia-as todas e dava sota e bastos ao mais arteiro dos garotos da cidade.
As horas de folga e os dias de sueto, passava-os aquella rapazia trepada na pitombeira, comendo fructa e desinquietando as visinhas, a quem atiravam as cascas e perseguiam de galhofas. De todas porém as mais expostas ás chacaras dos minoristas eram a Miquelina, mulher do tabellião, e sua filha Martha, por ficarem defronte.
Das grimpas da arvore, occultos pela folhagem, devassavam os rapazes não só todo o quintal, como a varanda de jantar, e os quartos do outão.
Não punham mãi e filha o pé na cerca, nem passavam por perto das janellas, quenão fossem alvo dos remoques e chacotas dos brejeiros.
Advertido o Sebastião do desaforo, uma vez sahiu á varanda com a sua mais grave compostura tabelliôa; e em voz de audiencia, fanhosa e estri-
O GARATUJA 105 dente, intimou aos rapazes que se comedissem. A
resposta foi uma tremenda surriada e um granizo de caroços de pitomba, que bombardeou a respeitavel penca do Sebastião Ferreira.
Vendo em grave risco, não somente a integridade de sua pessoa, como a dignidade de seu caracter publico, o tabellião bateu em retirada, e abrigou-se por detraz de uma pilastra da varanda.
Com os escreventes acudíra o Ivo, que aprovei tára a occasião de avistar-se mais de perto com Martha, e atirar-lhe um segredinho ao passar por alguma porta entreaberta. Á vista do desacato que soffrêra o Sebastião, correu o rapaz a elle :
— Deixe-os estar, senhor tabellião, que amanhã virei munido de meu bodoque, e então lhes faremos as contas. Hão de ver o que é mais rijo, se as suas pitombas, ou os meus carolos de barro.
Ficou o tabellião um instante perplexo, e como saboreando o antegosto d'aquella desforra que lhe offerecia o escrevente; mas ao cabo, pensando bem no caso, resolveu não consentir na travessura do rapaz.
— Nada de vias de facto, moço, que não condizem com um official da justiça de el-rei. Estou que elles com a ceboleta que lhes dei se aquieta 106 ALFARRABIOS
rão; e quando não, irei então ás vias judiciaes, e terão de haver-se comigo.
Longe de se aquietarem, redobraram os minorenses as diabruras, e tão apouquentadas se viram a Miquelina e a filha, que todo o santo dia viviam encerradas na sala da frente, para escaparem ás chansonas dos formigões. Não tardou porém que desconfiassem do couto, e então levavam a espiar pela rotula, atirando bouquinhas e escriptinhos pelas frestas.
Quando se tornavam por demais insupportaveis, a senhora Miquelina mandava pela filha chamar o tabellião, o qual tomando a competente pitada, sobraçava o seu espadim de ceremonia, encaixava na cabeça o enorme tricornio, e sabia fóra flanqueado dos escreventes armados de reguas, cunhetes e cabos de vassouras. Com a apparição d'aquelle p'quete, desapparecia o bando dos minorenses, que se ocultava no canto da casa, á espera de vez para outra investida.
A principio mordia-se o Ivo com a maganeira dos minorenses; porém mais tarde, cogitando melhor, se consolou da perseguição que faziam á moça, pelas occasiões que lhe davam de vêl-a no cartorio, quando ia ao pai com recado da se-
-hora Miquelina. O GARATUJA 107 Além d'essas rapidas entrevistas, arranjára o Ivo meio engenhoso de communicar-se innnocentemente com Martha.
Tinham as casas antigas uma particularidade, de que nunca me deram cabal explicação. Havia nas portas interiores junto ao solo, uma pequena aberta em meia lua, de palmo de altura. Se era para não impedir ao bichano a caça dos ratos, se para dar a estes passagem franca, evitando que roessem a taboa, ou esburacassem o soalho, é ponto este de archeologia que ainda não foi decidido, e espera a profunda investigação dos que desenterraram os ossos de Estacio de Sá.
O certo é que na porta da serventia interior do cartorio havia um rombo d'aquelles; e que uma gallinha com a sua ninhada de pintos, abusando da liberdade, que as donas de casa costumam deixar n'esse periodo interessante da criação, todas as manhãs se introduzia no sanctuario forense, e faltando com o respeito devido á veneranda poeira d'aquella arca, levava a ciscal-a por baixo das mesas e prateleiras.
Foi essa visita uma fortuna para o Ivo, que sentia a sua jovial mocidade suffocada pelo silencio espesso e polvorento d'aquella atmosphera de alfarrabios. Desde o primeiro dia em que appare-
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ceu-lhe a ninhada no cartorio, buscou elle entrar na privança, e ganhar a amisade d'aquella familia gallinacea. Mas a poedeira mostrou-se arisca, lembrada sem duvida dos pontapés que lhe disparavam o tabellião e seus escreventes, quando ella passava-lhes por baixo da mesa.
Mudaram essas disposições logo ao outro dia, pelo cuidado que teve o rapaz de levar no bolso do gibão um brôa secca de milho, a qual lhe servia não só para ir merendando emquanto copiava, mas tambem para familiarisar-se com a ninhada, espalhando as migas, que ella vinha comer a-seus pés.
A cabo de uma semana, estavam intimos, a ponto que em toda confiança deixava a gallinha ao Ivo apanhar-lhe algum dos pintainhos, e alisar-lhe a pennugem dourada. Então levou o rapaz de casa certo papelinho, onde havia pintado um coração com azas que voava pelos ares, como se fôra um pombinho, e que era de subito trespassado por uma setta cruel.
Esse papelinho feito em rolo e atado com um fio de seda côr de rosa, guardára-o o rapaz no peito da vestia com todo o resguardo porque nem o perdesse, nem o amarrotasse. O GARATUJA 109 Na volta do meio dia, vinda que foi a ninhada ao cheiro da brôa, apanhou o Ivo um dos pintainhos, e pondo-lhe no pescoço á guisa de collar o papelinho enrolado, guardou-o na gaveta, tendo o cuidado de o regalar de migas, para evitar que piasse muito forte, e avisasse o tabellião.
Não tardou que assomasse á porta o rostinho de camafeu da Martha, que vinha a recado da mãi, por causa das perseguições dos rapazes do prelado.
Como os olhos da menina, embora com disfarce, de curiosos que eram, todas as vezes se enfrestavam pelo vão dos armarios, viram o pintainho, que lhes mostrava o Ivo, e mais a redoma de papel que tinha ao pescoço.
Se ella entendeu a mimica, não se sabe; mas no dia seguinte quando a ninhada beliscava-lhe os pés impaciente pelos farellos da brôa, notou o brejeiro do escrevente que um dos pintainhos tinha uma crista artificial. Era nada menos que uma perpetua branca, na qual contra todas as noções da botanica, achou o nosso namorado um perfume suavissimo.
Desde então se estabeleceu por aquelle novo correio uma correspondencia innocente e pitto-
110 ALFARRABIOS
resca; pois de uma parte escreviam as pinturas e da outra as flôres.
É preciso advertir que apezar da esperteza do Ivo, não passavam de todo desapercebidas do Sabino estas artes. XVI
PERIGO DE METTER UMA FRANGA NO POLEIRO QUANDO
NÃO SE TEM O COSTUME DE LIDAR COM A CRIAÇÃO
Cedo veio uma manhã, fatal manhã, que dissipou os fagueiros sonhos do nosso Ivo, e annuviou-lhe os dias prasenteiros, ali fruidos n'aquelle soturno aposento, que lhe fôra um seio de Abrahão.
E todavia raiava o sol brilhante, e o céo ria-se de tão azul e transparente. Os passarinhos chilreavam entre os ramos das arvores, meneadas pela fresca brisa do mar, que já começava a soprar; e o escrevente de coração farto, e espirito folgasão, esforçava-se com ardor e prazer no trabalho, para adiantar o cumprimento da obrigação, de modo a distrahir uns momentos, os mais felizes da sua vida, quando pingasse meio dia da torre de S.
Bento. 112 ALFARRABIOS
Ainda faltava cerca de meia hora; mas a gallinha, ou porque esse dia se expedisse nas suas correrias, ou porque se fosse cada vez mais amorando ao lugar, apresentou-se com a ninhada.
Recebeu-a o rapaz com o costumado alvoroto, que logo cedeu a grande desconsolo; pois d'esta vez não traziam os pintainhos a prenda a que se acostumára o nosso namorado.
Já se sabe que não ganharam as migas da brôa; além de parecer-lhe justo castigar a pouca diligencia do mensageiro que vinha debalde, entendia o rapaz que era o modo de escorraçar d'ali a ninhada, e fazer que a menina reparasse o seu esquecimento, senão era antes alguma pirracinha.
Piavam os pintos e cacarejava a gallinha, a espicaçarem-lhe as pernas, e elle a enchota-las com a ponta do pé e a regoa; d'onde tal ruido se levantou, que já era um escandalo n'aquelle soturno asylo da murmuração forense. Felizmente o Sebastião Ferreira, quando se embrenhava em um alfarrabio, não dava pelo que ia cá fóra.
N'essa conjunctura soou pelo cartorio um zute, ao qual levantaram os escreventes a cabeça de sopetão para fitarem o vulto do tabellião. Este segurando na mão esquerda um auto, com a di-
O GARATUJA 113 reita erguida e espetado para o Ivo o indicador, tres vezes fechou em croque e abriu a formidavel phalange.
De prompto acudiu o rapaz ao chamado, acercando-se da mesa grande.
— Um edital por este theor e fórma! disse o tabellião com o laconismo do costume.
Mas a gallinha e sua ninhada não deixavam de atormentar o Ivo á gana das migas de brôa, e faziam tal matinada e cacarejo por baixo da mesa e entre as pernas do Sebastião Ferreira, que deu elle emfim pelo atrevimento d'essa profanação de seu cartorio transformado em terreiro de criação.
— Enchote-me esta cambada, moço! gritou o velho escriba.
Fêl-o o Ivo, mas debalde, que a ninhada lhe voltava no encalço.
— É teimar em vão, já agora tomou esta manha.
— Feixe a porta que já não tornam.
— E o buraco ? retorquio Ivo apontando para o rombo. O remedio é prendel-a no gallinheiro.
— Pois prenda-a, e não me atormentem.
Isto, disse o Sebastião ao Ivo e á gallinha conjunctamente.
Lesto, como o galgo que aventou a caça, tan-
114 ALFARRABIOS
geu o rapaz diante de si a ninhada pelo corredor a fóra em busca do quintal, com o ouvido alerta e olhar á espreita na esperança de lobrigar de longe a filha do tabellião. Mas não viu sombra da linda imagem que trazia n'alma.
Encaminhou-se pois ao gallinheiro, bem desconsolado de sua vida; e lá deixou, com a ninhada, a esperança de receber n'aquelle dia a lembrança do costume. Ao voltar tropicou com a fraqueza e tremor que lhe deu das pernas.
E não era para menos. Encontrára-se rosto a rosto com a Martha, que ali estava diante d'elle, palpitante, como um passarinho sob o olhar do gavião, e fechada em seu enleio, como a flôr que abrocha em botão, com o temporal.
Tinha a menina cingida ao seio pelo braço esquerdo uma franga de pennas mui alvas, que a brancura de sua tez escurecia. Andava triste aquella diva do poleiro, talvez pelo seu estado interessante, pois achava-se no primeiro choco.
D'ahi vinham os desvelos de Martha, que depois de a tratar, ia leval-a ao gallinheiro.
Com o susto que sentiu a rapariga dando com o Ivo em frente a si, escorregou-lhe do braço a franguinha que, passado o primeiro instante de atordoamento, disparou a correr. Apoz ella partiu O GARATUJA 115 Martha, e no encalço de ambos Ivo, que se não fez esperar.
Começaram então as corridas e reviravoltas, de que se lembra com saudade quem em menino se divertiu a apanhar uma gallinha no terreiro da casa paterna. E os logros que pregava a maldita, e as quedas que se davam no brusco torcer do corpo, e as boas gargalhadas com que se adubava a travessura ?
No meio do péga que ia pelo quintal, não sei como foi, que os dous em vez de apanharem a franga, se agarraram a si. Um maldoso era capaz de cuidar que se tinham abraçado.
— Ai! gritou Martha soltando-se da cadeia que a prendia.
Tremulo, o rapaz não teve animo, nem forças de retel-a ; e ficou palerma, a olhar, balbuciando em voz sumida :
— Não foi por querer.
— É capaz de me pegar?... acudiu Martha com petulancia, acenando uma corrida. Nem nada!
— Quer ver ?
E o Ivo disparou atraz da menina uma nova corrida, que depois de muitas negaças e risadas, veio como a primeira acabar em abraço.
D'esta vez, naturalmente pelo cansaço, deixa-
116 ALFARRABIOS
ram-se ficar os namorados como estavam, arrimados a uma latada de maracujás, juntinhos e entrelaçados pela cintura.
Apage! Que tremenda algazarra soou de repente na copa da pitombeira onde já estavam encarapitados o Claudio e seus companheiros.
— Está bonito!
— Ai! que desejos !
— Mais outro!
— Bem apertadinho!...
— Agora uma beijoca !
— Ora, sem ceremonia!
— Sô malandro!...
— E o velho tonto que não dá pela maroteira!
— Pato choco!
— Quia! Quia! Quia!...
— Abraça, abraça, que da pelle te ha de sahir!
— Gostas, hem? Pois hei de dar-te um bem apertado, mas é de embira!...
— Ora vejam que patola!
— Bigorrilhas!
— Desavergonhado!
Esta saraiva de chufas e dicterios misturada de caroços de pitomba, não veio aos esguichos, o que talvez se induza das fallas assimapanhadas.
Foi uma vaia e cahiu de roldão sobre os dous O GARATUJA 117 miseros namorados como o fracassar de um raio que os fulminasse.
Martha, creando-lhe azas o pejo, sumiu-se no interior da casa. Quanto a Ivo, seu primiero impeto foi affrontar a récua dos minoristas, e expugnal-os á pedra. Mas lembrou-se do tabellião, e esfriou ; embiocando-se no gibão e esgueirandose pela cerca, pôde ganhar o corredor.
— Que ficou a cheirar lá por dentro, moço ?
gritou-lhe o tabellião ao vel-o entrar.
— Saberá vossa mercê que... Sim, senhor, que...
a franga deitou a correr, e foi preciso apanhal-a!...
— Apanhar... apanhar... repetiu o Freire arremedando o Ivo com o seu mais esganiçado falsete.
Apanhar precisava você na cabeça, mas era um carolo d'esta regoa.
— Alto lá, senhor Sebastião, que os truques não foram do ajuste.
— Não me respingue, hem!
Ainda uma vez soffreou o rapaz o impeto, lembrando-se de Martha cujo piso subtil lhe parecêra ouvir do lado da porta. PROGNOSTICO TIRADO POR UM TABELLIÃO DA ASCENSÃO
OU GRAVITAÇÃO DO NARIZ DE SEU ESCREVENTE
.
Sentado á mesa de cedro, no meio da furna de prateleiras e autos, o Ivo jurou a si mesmo recuperar o tempo vadio, dando conta com a maior presteza da tarefa do edital.
Mas se o corpo ali estava em face da folha de almasso estendida sobre a mesa, o espirito lá andava-lhe a correr pelo quintal, fazendo estrepolias por causa da franga, e escondendo-se em um seio palpitante, coberto por um justilho perfido.
No meio d'estas scismas, deu o Sebastião Ferreira um tremendo espirro que arrancou o escrevente ao seu enlevo, e o poz de penna armada, prompta a acommetter a abstrusa giria do edital.
Por uma coincidencia que mostra quanto é verdade haverem dias caiporas, ou nefastos, como XVII O GARATUJA 119 lhe chamaram os romanos, succedeu que no alto do manuscripto campeava uma lettra maiuscula, de golpe bastardo, e essa letra era um M.
Possuido de um repentino fervor, começou Ivo a talhar no ar com o bico da penna os contornos da lettra, que afinal se desenhou no papel com um traço finissimo, como se faz no primeiro esboço da pintura. Satisfeito de sua obra, ficou a contemplal-a com certo enlevo.
Era aquella a inicial do nome querido; e pois não admira que ahi se viessem agrupar as doces reminiscencias e os fagueiros pensamentos que lhe enchiam a alma, ainda mais n'aquella hora tão proxima do primeiro abraço.
Todas estas abundancias do coração namorado se derramavam no papel, sobre aquelle M adorado, mas pelos bicos da penna em cetrarias ou arabescos de toda a sorte e nos mais delicados lavores de paizagens. Aqui, em um contorno da lettra, eram pombinhos arrullando beijos; ali pelos travados e ligamentos, anjinhos a brincar esvoaçando entre as flôres, colibrís beliscando as fructas, e por toda a parte emblemas de amor, como corações agrilhoados, molhos de settas, e cupidinhos vendados.
Tudo isto, ia o rapaz pennejando sobre o papel, 120 ALFARRABIOS
com extrema rapidez, e no fogo da inspiração.
Passada porém a primeira effusão, depois que verteu a flôr de sua imaginação, no desejo de variar os ornatos, e compor novas figuras para as cetras e tabões, entrou a banzar.
N'esse ponto, rondando o cartorio com um olhar de esguelha, como era seu costume, o Sebastião Ferreira descobriu o Ivo na postura de um scismatico, immovel, com os cotovelos fincados na mesa, a cabeça presa entre as mãos espalmadas, e os olhos pasmados para o tecto.
— Humh ! fez o tabellião sorvendo uma pitada.
Na sua mocidade gostava o Freire de caçar, e tinha seus galgos e perdigueiros. D'ahi veio achar elle certa analogia entre um escrevente de cartorio e um cão de caça. Ensinára-lhe a experiencia que o nariz do bom escrevente deve sempre cheirar o papel, como a venta do bom podengo farisca o chão. Escrevente que anda com o nariz ao vento, perdeu o rumo, e não ha que fiar n'elle.
Em vista d'esta regra cynegetica applicada ao tabellionato, o Sebastião Ferreira ergueu-se devagarinho e rodeando por detraz das estantes, na ponta dos pés, achegou-se ao Ivo pelas costas;
mas recuou espavorido quando viu o grande M O GARATUJA 121 historiado que borrava toda a folha de papel destinada a um edital!
Horrivel profanação I Escândalo inaudito, e que podia damnar um cartorio sempre conceituado entre os mais graves ! Fazer de um papel forense uma borradela cheia de poucas vergonhas ! Sem duvida que era uma inconcebivel enormidade, de memoria d'homem nunca vista.
Atarascado pela indignação, que o impava como a um velho odre, o tabellião bem quiz pregar no atrevido a mais tremenda descalçadeira, que é possivel imaginar; mas-a raiva apertava-lhe o gasnete, e com violento esforço apenas esguichou uma palavra, que levou a rilhar entre os dentes, de tão cerrados que estavam os queixos.
— Birrrrr... bante!...
Essa cascata de erres despenhou-se como um cesto de cacaréos por escada abaixo, e estrondou na syllaba final.
Não teve o Ivo tempo de voltar a si do susto, pois travando-o pela golla do gibão, o Freire levou-o de arrastão até a porta da entrada, e empurrou-o na rua. Depois do que pela janella varejou o chapéo, o tinteiro de chifre, e tudo o mais quanto pertencia ao perverso rapaz.
Restava a folha de papel onde se estavam 122 ALFARRABIOS
desvergonhadamente derrengando os horriveis pennejados. Mas o Freire não se animou a tocar n'essa obscenidade:
— Suma-me d'aqui esta pouca vergonha! intimou ao mais velho dos escreventes. Reduza-a á pó que não fique signal.
Limpo assim o cartorio da praga que o infestára, voltou o tabellião ao seu tamborete, mas não á occupação, que estava ainda muito cheio do desaforo para cuidar em outra cousa. Comtudo não esbravejava; apenas resmungava entre si umas cousas que se não entendiam; e lá de vez em quando assentava uma regoada no proximo bacamarte, e acompanhava-a de uma exclamação n'este gosto.
— Marão!...
Ou senão :
— Excomungado!...
Foi assim que em um momento viu-se o Ivo transportado dos jardins esplendidos de seus castellos encantados para o olho da rua do Aleixo, onde ainda se achava atordoado com o que lhe acontecêra.
Mas não era elle rapaz que sucumbisse com um contratempo. Deitou-se a andar para a casa e em pouco voltou armado de um bodoque. Sal-
O GARATUJA 123 tando a cerca do tabellião, na esperança de rever Martha e fallar-lhe, o estouvado rapaz consolouse da sua desventura fusilando o Claudio e sua récua com bolotas de barro e coquinhos da praia, de que trazia os bolsos atopetados.
Os minoristas ainda lá estavam na pitombeira, á espreita de Martha, para a atormentarem com as costumadas pilherias e requebros. Assaltados de repente pela metralhada do bodoque, tentaram affrontal-a despejando sobre o Ivo um balde de ameaças e insultos; como porém a replica lhes vinha em carolos que doiam, e já lhes começavam a pular os gallos na cabeça, e os vergões nas costas, tramaram afinal descer para escovar o pello ao atrevido, o que percebido pelo assaltante, inspirou-lhe o prudente arbitrio de se pôr fóra do alcance da tal sucia de malandros ! DA PESCA FAMOSA QUE FEZ O IVO NOS BAGRES
QUE LHE PERSEGUIAM A PIABINHA
Emquanto, como o rato no miolo do queijo, o Ivo cocava a menina de seus olhos, dentro da propria casa, as impertinencias e filistrias dos minorenses, se por um lado faziam-lhe certas cocegas, por outro não deixavam de trazer-lhe seu proveito.
Não era esse atrevimento dos rapazes que fazia a senhora Miquelina mandar a Martha com recado ao pai afim de vir pôr cobro a taes demasias, e que portanto lhe dava a elle Ivo, o contentamento de ver a moça, e gozar-se de seu meigo sorriso ?
Uma vez porém despedido da casa, e por modo tão duro, imagine-se a gana que tinha o ex-escrevente aos minorenses, sobretudo com a lembrança da vaia que lhe tinham passado e á MarXVI II O GARATUJA 125 tha. Além de que, era o Claudio um rapaz bem apessoado ; e portanto ao engeitado deviam ferver os ciumes, vendo-o a requestar a moça com tamanho afinco.
Ia escapando que na semana decorrida depois de sua despedida, tentou o Ivo meios de obter do tabellião que relevasse a primeira falta, e de novo o tomasse ao serviço do cartorio. Valeu-se para isso do empenho da senhora Romana, que já lhe tinha servido de madrinha da primeira vez, e a quem para melhor dispor-lhe a vontade levou de mimo um S. João Baptista pintado por elle.
D'esta vez porém o Sebastião Ferreira mostrouse inexoravel, e toda a costumada petulancia da velha não pôde com elle. Basta que a lembrança do cano de bota recheado de moedas, achou-o impenetravel. Nada, que tratava-se da honra do officio publico, e decoro de seu cartorio.
Reduzido pois, mas não resignado, á antiga e triste condição de pé de muro, vivia-o ex-escrevente a rondar as cercanias da casa do Freire, obrigado a se esconder do tabellião, como dos minoristas que não lhe perdoariam as bodocadas.
De tudo, o que mais ralava ao nosso namorado era essa espionagem dos famulos do prelado, a qual não só lhe mettia sua ponta de ciume, como 126 ALFARRABIOS
impedia-lhe de aproveitar as furtivas occasiões de fallar a Martha.
Um dia faltou-lhe a paciencia, e assentou de acabar com aquella penitencia ainda que sahisse uma estralada. Levou a cogitar a noite; e pela manhã cedo, foi á ribeira do Rocio do Carmo, e lá arranjou de um camarada pescador um anzol de garoupa com uma guita capaz de aguentar um tubarão.
Como era uso n'aquella epocha, a entrada da casa do Sebastião Ferreira tinha, além da grossa porta inteiriça, uma rotula com seus postigos.
Mas esta em vez de se conservar fechada, como succedia no geral das moradas, andava sempre escancarada por causa da passagem frequente das partes e moços do cartorio que iam e vinham na constante labutação forense, Esquivou-se o Ivo pelo corredor e agachou-se atraz da porta á espreita.
Não esperou muito tempo. Apenas soou meio dia ouviu-se um vozeio na rua, entremeiado de risadinhas abafadas. Eram os minorenses que vinham na fórma do costume bolir com a Miquelina e a filha, e se apinhavam junto á rotula.
Desde certo tempo a mulher do tabellião, para defender-se da apoquentação dos formigões fe-
O GARATUJA 127 chava uma das janellas, e abrigava-se com Martha n'esse canto da sala, onde não a podiam bispar os peraltas por mais que enfiassem os olhos entre as gretas.
Mas os diabretes desconcertaram-lhe o plano.
Em achando fechada a janella mettiam-se no corredor, a espiar pelo buraco da fechadura. Era ahi que os esperava o Ivo, a quem desde o principio não escapára a manobra.
N'esse dia, pois, quando o Claudio e mais tres companheiros estavam mais entretidos em espiar, revesando cada um sua vez de pôr o olho á fechadura, o engeitado reunindo sutilmente as fraldas das sotainas, prendeu-as com o anzol, cujo cordel tivera antes o cuidado de atar com segurança ao trinco da porta.
Executada a empreza, escapuliu-se o Ivo sem que o presentissem, e chegando á rotula do cartorio, fronteira do tabellião, collou a boca na fresta para gritar com disfarce na voz.
— Uh! uh! velho urubú!
Ergueu-se furioso o tabellião, que brandiu o espadim e precipitou-se para a porta, mas depois de revestir-se da solemnidade precisa, encasquetando o grande tricornio. Seguiram-no os escre-
128 ALFARRABIOS
ventes, armados, como de costume, de vassouras, reguas e tamboretes.
Ao ranger da chave na fechadura, os minorenses advertidos escamaram-se para não serem apanhados em flagrante. No meio da rua porém, esticada a guita do anzol, esbarrou-os de repente na carreira, dando com elles de trambolhão em terra.
N 'esse momento chegava á porta o tabellião que vendo prostrado o inimigo o apostrophou com extrema vehemencia :
— Corja de biltres!... Malandros!... Sevandijas!... O que vocês mereciam era que eu lhes tonsurasse as orelhas, para dar-lhes juizo, brejeiros!
Entretanto arremettiam os escreventes, de re -
guas e vassouras em punho, bem dispostos a sacudir a poeira do costado dos rapazes, e applicarIhes uma sova mestra. Sentindo fervilhar-lhes o lombo, além de lhes arder as orelhas, afinal levantaram-se os minorenses disparando novamente a correr; mas outra vez a cambulhada dos rapazes, empencados ao anzol, estrebuchou no chão.
N'esse momento além, na rua, soou uma surriada formidavel.
— Formigão!... Uh!... Formigão!...
— Fiáo!... Fiáo!... O GARATUJA 129 — Basculho de igreja!...
— Morrão de tocheiro!...
— Minhoca de sacristia!
— Rabadilha de frade!...
E todo este berredo cortado de assobios estridentes, e acompanhado pela matinada infernal de umas matracas improvisadas com taquara rachada, e pelo ronco de um immenso caramujo.
Era autor d'essa grasihada de ensurdecer um bando de estudantes leigos, a quem o Ivo tivera o cuidado de avisar, promettendo-lhes um fartão de riso, sem comtudo explicar-Ihes a peça que ia pregar. Sempre houve, e ainda subsiste uma birra dos estudantes leigos com os seminaristas ou meninos de côro, a quem appellidam de formigão por achar-lhes certa semelhança com a saúva, uma das especies d'esse termita. Com que prazer pois não acceitaram os rapazes o convite do Ivo, e não se esconderam na visinhança por detraz de uma cerca, á espera do momento?
Surprehendidos com o apparecimento dos estudantes, e vendo-se na presença de testemunhas, os escreventes que sabiam o valor da prova, desistiram da sova que se dispunham a dar. Além de que, percebendo-se afinal a causa dos repetidos 130 ALFARRABIOS
trambolhões dos minorenses, dispararam todos em uma estrepitosa gargalhada.
Fustigados por esse riso implacavel, Claudio e os companheiros arrancaram tão furioso sacalão, que afinal escaparam-se deixando no anzol um farrapo da sotaina. X IX
MOSTRA-SE A VERDADE DOS DOIS ANEXINS : QUE
« O BOCADO NÃO É PARA QUEM O FEZ » E QUE
« PAGA O JUSTO PELO PECCADOR. »
Restituido ao tamborete furado, que lhe servia de curul, o Sebastião Ferreira repotreou-se contente de si, e tossiu uma risada, o que antes só lhe acontecêra duas vezes na sua vida de tabellião : a primeira ao receber a carta que o confirmava no officio; a segunda, quando teve a sentença favoravel nos embargos oppostos ao esbulho que o escrivão da provedoria tentou fazer de suas prerogativas.
A lição famosa dada aos minoristas do prelado vingava-o não só das continuas amofinações com que elles o atormentavam e á familia todos os dias, mas sobretudo do insolito desacato de que ••, • 132 ALFARRABIOS
fôra victima quando pretendeu desalojal-os da pitombeira.
— Quem seria o da lembrança? disse o tabellião para os escreventes que olhavam-no embasbacados. Olhem que merecia umas paschoas; e eu que Ih'as daria de boa vontade.
Entreolharam-se os escreventes, como consultando a resposta.
— Então não atinam com o cujo?
— A peça foi de truz; agora quem a pregou!...
Isso lá como se póde saber! acudiu um.
— Elle parece que não passou... ia dizendo o outro.
— Pois não estão vendo que foi o sonso do Sabino ! atalhou o tabellião.
O bioco do rapaz, com a cabeça entre os hombros, fingindo uma certa vergonha de ver descoberta sua estrepolia, escondia de modo a dar-lhe mais tom, um sorriso maligno, empastado nos labios amarellos.
— Eu não!... respondeu elle dando uma cotovelada na ilharga, o que era signal certo de grande emoção.
Essa negativa com o sotaque particular, que lhe imprimiu o rapaz, e o revirado d'olhos que lhe ser-
O GARATUJA 133 via de asterisco, era a mais ingenua das confissões voluntarias.
São de todos os tempos e de todos os dias estes e quejandos disfarces; pois no fim de contas a lei d'este mundo tem por mote aquelle versículo do bom Virgílio : Sic vos, non vobis.
Abençoados e felizes da terra, são os vobis para quem trabalhamos nós outros. Na cabeça do rol estão os primazes, vobis coroados, que se divertem á nossa custa, atirando ás rebatinhas dos grandes vassallos, sacos de ouro e massos de cedulas, fabricados com o suor do pobre e o pello que tosam a este povo bonacho!
Voltou emfim o cartorio ao habitual socego e modorra. Acabada a feria, na sahida, o tabellião, (espantoso successo) atirou um peteleco na venta do Sabino, e introduzio-lhe sorrateiramente na munheca um tostão de prata.
Assim foram surripiadas ao Ivo as honras e, o que mais é, o proveito da engenhosa pescaria de formigões, que tivera a fortuna de engendrar não somente para descanço de Martha e allivio seu, como para entrar nas boas graças do tabellião.
Tambem o culpado fôra elle, que durante os trambolhões dos minorenses se deixára ficar escondido atraz da cerca, no meio dos estudantes, I. 8 134 ALFARRABIOS
que instigava, mas longe da porta onde ficára atado o cordel do anzol.
Entretanto os minorenses, desesperados com a vergonha que tinham soffrido, e abespinhados como os maribondos quando os assanham, ardiam por tomar sua desforra do tabellião, a quem principalmente attribuiam a armadilha de que tinham sido victimas. Bem desconfiavam elles que ahi andavam o dedo e a ronha do Ivo, mas dispostos a pespegar-lhe uma sova a proposito, o primeiro impeto foi contra o Sebastião, a cujo mandado obedecêra o escrevente. Ignoravam ainda a despedida do Garatuja.
Na tarde d'aquelle mesmo dia, estava « peccador » do Ivo escondido no quintal em segredinhos cota Martha; quando o « justo » Sebastião Ferreira, já de retorno, vinha pela rua da Quitanda em busca da sua casa á esquina da rua do Aleixo.
Fôra o tabellião dar seu giro do costume, e aproveitára para referir em cada porta o caso engraçado. Agora voltava deleitando-se ainda com a lembrança das gargalhadas que o tinham applaudido, e caminhava teso e compassado ao longo da cerca do prelado.
Fatal imprudencia!
De repente sentiu o Freire metter-se-lhe entre O GARATUJA 135 as tibias, um objecto que elle a principio cuidou ser a propria bengala; mas não teve tempo de averiguar, porque apesar dê sua grave compostura foi obrigado a ir de ventas ao chão e esborrachar a respeitavel penca.
Rebentando com esforço pôde erguer-se, mas sem bengala nem tricornio, quando outra vez esgrimiu-lhe pelas canellas a taquara que o Claudio com os companheiros enfiavam pelo buraco da cerca. As ventas do tabellião do novo se achataram ; e mais uma figueira foi plantada.
Finalmente fulo de pó e bilis, conseguiu erguer-se o Sebastião Ferreira, mas foi para receber a mais tremenda encapellação, que já soffreu atrevido calouro no pateo de uma academia.
Os minorenses, saltando da cerca, tinham cahido sobre elle de petelecos e chufas:
— Uh!... Uh!... mestre urubú!
— Velho fuinha!
— Estaes tonto, pato choco!
— Ora vejam, que pascacio? A cahir pelas ruas!
— Se estará triscado!
— Qual! São manhas do sendeiro!
— Aguenta, ó pax vobis!
— Olha o casquete, que te esquece! disse o 136 ALFARRABIOS
Claudio fincando-lhe d'um murro o tricórnio na cabeça.
— Este traste será proprio? acudiu outro empolgando a penca afogueada do tabellião.
— Com certeza é postiço!
— Puxa-o tu que logo verás! Eu cá aposto que é beque de algum saveiro!
Tanto espremeram as ventas do pobre homem, que afinal rompeu uma descarga de espirros, a modo de fusilaria, e respingou de tabaco e monco os olhos e a boca dos rapazes. Diante d'esse fogo rolante fugiram os assaltantes, tomados de nojo e perseguidos pelas galhofas dos companheiros que haviam escapado á metralha narigal.
N'esse momento assomou o prelado á porta da rua, e com sua habitual mansuetude exhortou os seus famulos, ordenando-lhes que se recolhessem:
— Póde seguir descançado, senhor tabellião, que já os accommodei. Isto de rapazes, são como cachorros, que em pilhando a porta aberta, embetesgam por ella aí afóra, e não ha ter mão n'elles.
O Sebastião Ferreira não se dignou ouvir. Amarrotado pela encapellação na qual entretanto nunca perdêra a sua gravidade, enveredou para a casa, onde chegou bufando de cansaço e de raiva. O O GARATUJA 137 pavio de uma candeia não arderia mais do que o magriço tabellião acceso em ira.
No emtanto o Ivo, desapercebido do que succedêra, obtinha de Martha mais um abraço, que vinha completar as duas duzias em tres dias; e animado com esse successo atreveu-se, ainda que balbuciante, a pedir uma boquinha.
Teve em resposta um muxoxo, e viu desapparecer como por encanto o vulto da menina, que deitára a correr espavorida. XX
UM BECA DO SECULO XVII QUE NÃO CHEGA AOS
CALCANHARES DOS MODERNOS THEMUDOS
Á rua da Misericordia, proximo do beco do Cotovello, onde tinha residencia, estava o ouvidor geral, Dr. Pedro de Mustre Portugal, em sua recamera particular, atarefado com o despacho de processos.
Era homem de boa fevera, nedio e socado, com uma d'essas gorduras massiças e rubicundas, verdadeira polpa fradesca, da que se cria ao grosso unto do refeitorio, e na manga lassa do habito.
Cá, por fóra dos conventos, tambem a terra produz d'essa fecula substancial, quando a pachorra se mette em bombachas ou cuecas, e deita a dormir a consciencia. Foi naturalmente por esse modo que o Dr. Pedro de Mustre Portugal obteve O GARATUJA 139 a rija carnadura que lhe realçava a compostura, e dava-lhe um aspecto, senão magestoso, certamente que importante pelo volume.
Sentado no telonio, sobre o estrado, esclarecido pela frouxa luz de uma lampada de azeite de mamona, o primeiro ministro da justiça de elrei, folheava os autos e os ia aviando, não sem escaparem-lhe- algumas observações, que nada tinham com as ordenações e os provarás.
— Hanh-hanh!... murmurava com certo sonsonete; cá está o Mathias Cosme!... Havemos de ver agora em que param as soberbias!... Se torna a voltar a cara para não se desbarretar quando eu passar? Tomára!...
Salpicou o magistrado esta ultima palavra com um riso de mofa, e guardou no fundo da gaveta os taes autos, passando a examinar o seguinte da rima que tinha a esquerda, e que a um e um transferia para a direita.
— Oh! oh! oh!... exclamou entre riso. Patrono do réo, o Duro ! Ha de levar a liçãosinha do costume, para não se ter em conta de grande lettrado!... Cuida lá de si para si que póde ensinar aos mais, o pedante !...
Sem consultar a ordenação, nem recorrer ao sujo canhenho, travou o nosso magistrado da 140 ALFARRABIOS
penna, e escreveu d'um jacto, Indeferido, tendo o cuidado de calcar a mão para fazer uma lettra bem grossa, já que não podia em voz ainda mais grossa chimpar o despacho laconico e peremptorio na bochecha do bacharel.
D'estas ingenuidades que tinha o Mustre a sós e entre si, não vão fazer máo juizo a seu respeito.
Passava por um dos magistrados mais honestos, que desde a creação da ouvidoria geral do Rio de Janeiro haviam n'ella servido.
Em seu tempo, e isto basta para honrar sua memoria, cessou uma balela que toda a gente repetia na cidade. Corria que certos mercadores de S. Sebastião mettiam-se com os ouvidores logo que estes chegavam á terra, e tanto faziam que os induziam a acceitar de empréstimo alguma somma, com que os tinham a geito para seus pleitos e os de seus adherentes.
Tambem diziam de outros que, rendidos aos encantos de alguma nymplia da Carioca, trocavam a venda de Themis pela de Cupido; e lá se iam ao sabor dos afagos as sentenças com que Venus comprava seus atavios e galas.
Ninguem ousou jamais suspeitar o Dr. Mustre de uma peita ou suborno. Cumpria á risca a ordenação não recebendo cartas relativas a deman-
O GARATUJA 141 das ; e levava este escrupulo ao ponto de tratar as partes desabridamente, quando o procuravam.
Tinha pois a consciencia de ser um magistrado integerrimo. E seguro de que não o podiam comprar, nem influir por empenho ou ameaça no exercicio de sua jurisdicção, do mais não se preocupava. Assim entendia que lhe era licito sophismar uma lei para dar quináo em um advogado ; demorar um processo para vexar a parte e obrigal-a á bajulação; inclinar-se em um ponto controvertido á decisão que favorecia seus amigos; satisfazer emfim todos seus caprichos e velleidades, dando-lhes a feição de opiniões.
É esta a peior especie dos máos juizes. Acastellados na sua honestidade, que nem sempre é inexpugnavel, põem a justiça ao serviço de suas paixões e venetas; e quando vem o clamor, não falta quem os defenda como integros, lançando á conta de erro, o que aliás foi astucia.
Serião oito horas da noite, quando bateram rijo á porta exterior da recamera. Surpreso de que o viessem perturbar áquella hora em seu trabalho, ergueu-se o Dr. Pedro de Mustre para ver quem o procurava.
— Com licença de vossa mercê, senhor doutor 142 ALFARRABIOS
ouvidor geral! disse o Sebastião Ferreira arremettendo pela porta a dentro.
— Servo do senhor doutor ouvidor geral!...
disse da porta o licenciado João Alves de Figueiredo, já nosso conhecido.
—Póde entrar, senhor licenciado; boa noite Sebastião Ferreira! Que novidade ha ?
Ainda revolto pela scena da encapellação, o homem não esperou que voltasse o ouvidor a seu telonio, e foi desde a porta acompanhando-o com a sua queixa.
— Aqui me tem vossa mercê em sua presença para querelar do Prelado e seus famulos que esta mesma tarde me perseguiram com voltas e assuadas, chegando sua malvadez a ponto de me maltratarem gravemente o corpo em diversas partes, como vossa mercê póde ver, sem o menor respeito, já não digo á minha pessoa, mas á justiça de El-rei, nosso Senhor, cuja sou official.
Fallou n'este geito por meia hora o Sebastião Ferreira, contando os pormenores da affronta que soffrêra e acabou apresentando ao Dr' Mustre sua querela em que requeria devassa na fórma da Ordenação.
Adivinhou logo o Ouvidor que o requerimento era obra do licenciado, e preparou-se para no-
O GARATUJA 143 tar-lhe os lapsos ou descuidos, afim de acachapar o velho advogado com a sciencia que lhe dava o provimento de El-rei; porque da que se bebe nos livros, tinha bem pouca.
Essa presumpção de grave jurista ia a ponto no magistrado, que sua rubrica era Dr. Portugal, querendo assim reviver para si a fama de seu homonymo o Dr. Domingos Antonio Portugal, dezembargador da Casa da Supplicação e autor da obra — Tractatus de donationibus regiis.
Entretanto apezar d'essas fumaças, o nosso ouvidor não queimava as pestanas sobre os livros, e além das Ordenações e das Extravagantes, era milagre encontrar-se em casa d'elle outra qualquer lettra de fórma.
Acabando de ler o requerimento espalmou o doutor a mão sobre o papel e disse com um sorriso :
— Careço de competencia, senhor licenciado!
— Com a devida venia, a Ord. do liv. 2.° tit.
1.° § 27 é expressa.
— Sem duvida, quando ao tempo em que foi commettido o maleficio não andava o querellado em habito e tonsura.
— Verum tamen! replicou o licenciado empertigando-se na emphase doutoral. Pondere vossa 144 ALFARRABIOS
mercê que o fôro secular tem a primazia, pois a regra é que ninguem pode escapar á manus regia.
É assim que a devassa se deve abrir, e os minorenses que venham com os seus artigos na fórma da Ordenação, pois a seu tempo se verá se hão de receber-se.
Bem desejava o Dr. Pedro de Mustre dar uma lição ao Prelado e Vigario da vara pelas continuas picardias que praticavam, intromettendo-se a cada instante com as cousas seculares. Mas empenhado o seu amor proprio na questão com o licenciado, esqueceu tudo e metteu os pés á parede.
— Implorando a venia do senhor Ouvidor Geral... disse o tabellião curvando-se.
— Diga!
— Penso que não haverá duvida, pois os biltres, com perdão de vossa mercê, têm habito sim, mas de tonsura nem signal.
— Está bem certo?
— Assim estivesse de obter desaggravo.
— Pois hade obtêl-o, que lh'o digo eu. Amanhã abrirei a devassa. Desque não são tonsurados!.. XXI
COMO SE ARRANJAVA OUTR'ORA DM MOTIM PARA DESFASTIO DO BOM POVO FLUMINENSE, EM VEZ DAS
INSIPIDAS LUMINARIAS QUE LHE DÃO AGORA.
No dia seguinte abriu o Dr. Pedro de Mustre a devassa e, inqueridas as testemunhas, mandou em segredo de justiça lhe fosse o feito concluso para julgar.
Quando chegou a noticia ao Prelado que o Ouvidor estava devassando de seus famulos, o reverendo urrou com a affronta, e no primeiro momento disse cousas que muito haviam de alegrar a Satanaz, se as ouviu. Vindo a reflexão, mandou chamar o Vigario Foraneo, o licenciado Villalobos, e com elle praticou, encerrados ambos na Camara Ecclesiastica.
N'essa mesma tarde apresentou-se em casa do Ouvidor o Padre Raphael Cardoso. Era uma sexta-feira, e contava-se 30 de outubro. Estava o Dr. Pedro de Mustre aproveitando o tempo em arranjar uma pacotilha para a viagem que tinha de fazer por aquelles dias ao Espirito Santo onde ia em correição tirar devassa da morte do capitão mór assassinado á boca de fogo, assim como de outros graves maleficios.
Apreciador do bom prato, o digno magistrado não deixava, nas suas excursões judiciarias, de levar soffrivel provisão de alguns temperos predilectos, que n'aquelle tempo, e talvez que ainda hoje, se não encontravam pelo interior.
Já tinha elle diante de si na mesa varios embrulhos de drogas, e ajuntava uma porção de cominhos espalhados na gaveta, quando entroulhe o Padre Raphael Cardoso.
— Deus dê boas tardes ao Senhor Ouvidor.
— As mesmas a Vossa Reverendissima. O que o traz por esta sua casa? perguntou o magistrado com fingida simpleza.
— Motivo bem desagravel, Senhor Ouvidor;
mas está nas mãos de Vossa Mercê que d'ahi não venham outras e peores consequencias.
— Como então?
— Bem a meu pezar, e por obediencia ao superior, que é um dos preceitos da nossa Santa Reli146 ALFARRABIOS O GARATUJA 147 gãio, venho por ordem do Reverendissimo Senhor Vigario Geral, Licenciado Francisco da Silveira Villalobos, notificar a Vossa Mercê para devolver incontinenti a devassa tirada por esta Ouvidoria contra os famulos do Reverendissimo Prelado ao juizo ecclesiastico de quem só releva este assumpto.
Ah! Foi só a isso que veio ? E se eu não quizer receber semelhante notificação?...
— O Senhor Ouvidor não fará isso!
— E porque o não farei, Reverendo, se desconheço a authoridade com que o Vigario Geral ou ainda o Administrador se intromette na jurisdição secular, e tem a protervia de mandar intimações a mim, Ouvidor Geral d'esta comarca?
— Assim Vossa Mercê persiste?
— Tenho dito.
— N'este caso sou forçado a consignar a Vossa Mercê tres dias para cumprir a notificação sob a a pena de excommunhão maior, que em nome do Senhor Vigario Geral lhe communico pelas tres canonicas admoestações.
Ao ver o tom citatorio, que tomou o beleguim do Vigario Geral, e sobretudo ao ouvir a ameaça de excommunhão, teve o Dr. Pedro de Mustre impetos de agarrar o padre pelo gasnete, e ati-
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ral-o pela janella fóra. Mas avisou que seria derogar de sua hierarchia tomar ao sério aquella farça ecclesiastica.
Entretanto havia o Rev. Raphael sacado do bolso da batina um rolo de papel, e depois de ler por tres vezes a canonica e paternal admoestação, estendeu o rolo ao magistrado.
— Vem a ponto ! disse o ouvidor com ar zombeteiro. Estava mesmo á cata de um papel para embrulhar este cominho!
E seu dito, seu feito.
— Cautela, Senhor Ouvidor! Veja o que faz!...
O Dr. Pedro de Mustre cresceu para o padre, e calcou-lhe a manopla no hombro :
— O Reverendo já fez as suas tres admoestações; agora quero eu fazer-lhe uma, uma só e que não tem nada de canonica. Suma-se e não me esgote a paciencia.
Não recalcitrou o Padre Raphael Cardoso, que só ao transpor o limiar da porta sentiu dissiparse o calafrio que produzíra n'elle o olhar do Ouvidor.
Ficou em segredo essa occurrencia, da qual não transpirou nova na cidade. Por sua parte o Ouvidor acreditando que a tal notificação não passava de uma ameaça para metter-lhe medo, O GARATUJA 149 persistiu em não tomar ao sério a embofia do Prelado; e a ninguem fallou do caso, que elle tinha como não succedido.
Quanto ao Prelado e sua roda, como esperassem reduzir o magistrado a abrir mão da devassa, assentaram que não era prudente mettel-o em brio com a divulgação do facto : o que tornaria indispensavel a excommunnhão. Embora resolvido a não recuar da grave censura, quando a necessidade o exigisse, entendia o Prelado que não devia levar o Ouvidor a tal extremo, tendo por mais prudente prevenir do que punir.
Assim decorreu o triduo da notificaão e veio o dia de finados que esse anno cahiu em domingo. Durante esse tempo preparou-se o doutor Pedro de Mustre para a viagem do Espirito Santo, fixando sua partida precisamente para a segunda feira.
Já o galeão, que o Governador pozera á disposição do presidente da comarca para tranportal-o em sua correição, estava sobre amarra, defronte do Rocio de Carmo, aprestado para a viagem e só esperava o magistrado para levar d'ancora e fazer-se ao mar.
A viagem do Ouvidor era n'aquella epocha facto importante, e pois servia de thema á parlice 150 ALFARRABIOS
das calçadas e boticas. Succedeu que ouvindo fallar da proxima partida do doutor Pedro de Mustre, a qual estava para a madrugada seguinte, o Padre Raphael Cardoso soltou uma risadinha sarcastica.
— Ve-lo-hemos!
— Cuida V. Revm. que não se partirá o Ouvidor?
— Não sei, tornou o padre, mettendo-se na concha. Se nesta terra, onde tudo anda em bolandas, se consente commercio com excommungados.
— Mas então?...
Rompera essa exclamação do pasmo que deixaram na roda as palavras encobertas do padre.
— Deus lhe dê as boas noites, disse o Reverendo embrulhando-se na capa; e sem mais abalou.
Derramou-se immediatamente pela cidade, o boato assustador de que o Dr. Pedro de Mustra ia ser excommungado pelo Prelado, se áquella hora da noite, sete dadas, já não estava. Uns recebiam a nova persignando-se; outros volviam os olhos em torno, como se receassem o contacto do re probo; e por toda a parte o rebate ia asso-
GARATUJA 151 prando no animo da população o terror e o assombro.
Não foi Ivo dos ultimos a saber da novidade; e atinando com a razão do conflicto armado entre o Prelado e o Ouvidor, sem mais detença tomou seu partido.
Immediatamente deitou-se para o Beco do Cotovello; mas em vez de buscar a casa, bateu á rotula da tia Poncia:
— Quem é? perguntou a regateira acudindo ao bater.
— Sou eu, tia Poncia, não me conhece ?
— Ah! O engeitadinho ?... Ora, esta minha lingua escorrega, que é um Deus nos acuda. Mas não foi por mal, menino. E para bem dizer não é crime ser engeitado, ainda que... Está bem, isto agora não vem ao caso. Então, menino, que bom vento o trouxe por cá ? É grande novidade.
— Pois não sabe o que vae pela cidade ?
— Eu ?... Sou lá alguma abelhuda mexeriqueira para andar mettendo o nariz por toda a parte! Mas visto isso succedeu alguma cousa? O
que é, menino ? Ande, não se faça de rogado!
Diga de uma feita !
— Ora, faça-se de novas? Então ainda lhe não sôou que o Prelado ia excommungar o Ouvidor? 152 ALFARRABIOS
— Abrenuntio.'... Credo!... Quem se póde julgar seguro quando a gente grande leva d'essas!...
Mas é que alguma elle fez, o tal doutoraço, que tambem não é lá boa rez. Eu desde que vi aquelle toutiço de frade, que lhe tirei as inquirições.
— O Ouvidor não fez nada de mais, tia Poncia.
O Prelado ou lá sua gente, que eu não duvido fosse elle mesmo, começou a desinquietar a familia do tabellião, e como este não esteve pela graça, deram-lhe uma assuada. Era caso de devassa, e o Dr. Pedro dé Mustre por queixa do Sebastião Ferreira, tratou logo de tiral-a, como tinha de obrigação. D'ahi vem tudo.
— O caso é este?... disse a velha piscando os olhinhos. Pois, menino, adeus, que tenho mais em que cuidar.
Fechou a Poncia a rotula; mas poucos instantes decorridos, o Ivo occulto n'uma esquina a viu sahir á surrelfa embrulhada na mantilha e enfiar rua acima a trote batido.
Era o que elle esperava.
Uma hora depois nos quatro cantos da.cidade corria a voz de que o motivo da excommunhão fulminada pelo Prelado não era outro no fundo, senão a raiva de ver burlados os seus requebros pela filha do tabellião. O GARATUJA 153 A tia Poncia tinha lançado em uma ou duas casas de terço, por onde passou, aquella semente que brotou com rapidez espantosa. O povo murmurava e teria dado desde logo signaes de descontentamento, se não fosse a hora da noite, pois já estavam muitos recolhidos.
Em todo o caso o motim ficava armado pelas comadres, tão geitosamente como o fariam as gazetas, que são as comadres do tempo d'agora. XXII
UMA CEREMONIA QUE JÁ NÃO SE VÊ HOJE EM DIA, APEZAR DE AINDA HAVER PROCISSÕES E MASCARADAS DE IGREJA.
Amanheceu o dia 3 de novembro sob a grave expectação de um grande acontecimento.
Muito antes das primeiras e tenues alvoradas, abriam-se as portas das casas e os moradores vinham á soleira, na esperança de colher algum vago rumor, que lhes communicasse o começo do successo extraordinario que todos esperavam, mas ninguem previa qual fosse.
Avistando-se uns aos outros, inquiriam-se mutuamente acerca do caso que os punha em alvoroto ; mas nada com isso adiantavam, pois nada mais sabiam além do zumzum que tinha corrido a noite passada, e a que dera causa a indiscrição do Padre Raphael Cardoso. O GARATUJA 155 Quando a primeira barra listrou o horisonte sereno e esclareceu os cimos da Jurujuba, o Dr.
Pedro de Mustre Portugal sahiu de sua casa, e acompanhado por sua comitiva composta de dois beleguins e um gallego, dirigia-se ao porto afim de embarcar para o Espirito Santo.
A' porta os visinhos e alguns curiosos que tinham vindo ao cheiro da novidade, se despediam do magistrado com os. costumados votos :
— Boa viagem, Senhor Ouvidor!
— Deus o acompanhe!
— Amen ! E o traga a salvamento.
— Que Vossa Mercê torne, como vae, na paz do Senhor!
E outras muitas variantes da mesma cortezia, a que o Dr. Pedro de Mustre respondia :
— Obrigado, minha gente! Obrigado; até a volta em que espero achal-os a. todos em paz com a sua consciencia e com a justiça.
N'isso rompeu entre os presentes o Padre Raphael Cardoso, acompanhado de dois acolytos com tochas accesas. Perfilando-se em frente ao magistrado, desdobrou um papel onde se via o grande sêllo da igreja, e alçando-o com a mão esquerda á guisa de estandarte, levantou-se no bico dos pés afim de fulminar do alto com a pa-
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lavra e o gesto ao corpulento magistrado :
— « Auctoritate Dei Patris Omnipotentis et Filii et Spiritui Sancti et beata Dei genitricis Marioe.
omniumque Sanctorum, pro Vicario generale, te excommunicamus, doctor Petrus de Mustre Portugalis, et anathematisamus, et a limilibus sanctoe matris Ecclesioe sequestramus; et nisi resipuerint et ad satisfactionem venerint, sic extinguetur lucerna eorum ante viventem in soecula soeculorum.»
Depois de ter ejaculado de um jorro a formula do ritual romano, o Reverendo engorgitou-se como um odre para gritar, vibrando a execração com o braço hirto:
—Anathema sit! Amen! amen! amen!
O povo em torno cahíra de joelhos e automaticamente, possuído de indisivel terror, ia repetindo : — Amen!
Ficára o Dr Pedro de Mustre atordoado com a excommunhão maior que lhe acabava de lançar o padre. Além de não acreditar que o Vigario Geral fosse capaz de levar a effeito a sua ameaça, a solemnidade da ceremonia e o terror que infundia no povo, o deixaram profundamente abalado.
Quando deu por si, estava só, no meio da rua;
já o isolamento do reprobo cahia sobre elle; nas esquinas ainda apparecia alguma gente a olhar O GARATUJA 157 o maldito; mas não ousava aproximar-se; e os proprios meirinhos, um tanto arredados, procuravam um pretexto para se escamarem.
Ordenou-lhes o Ouvidor que levassem aviso do acontecido a alguns amigos e pessoas de conselho, pedindo-lhes para virem á sua casa; feito o que recolheu-se a esperar que chegassem para deliberar com elles no mais consoante á difficil conjunctura em que se achava.
Entretanto o povo affluia para a casa da Camara, onde, n'aquelle tempo se consultavam e decidiam os mais graves negocios da governação e regimento da terra; pois ahi estavam os juizes e procuradores do povo, que formavam o senado da cidade.
Isto succedia n'aquelle bom tempo de governo absoluto, em que havia franqueza e lisura. Agora que se diz por ahi vivermos em regimem constitucional, ainda se ajuntam no mesmo sitio, onde era a antiga Vereança, os que se inculcam de representantes da nação; mas já nas suas horas de afflicção, nos seus dias inquietos, o povo não afflúe mais para ali, pois tem os olhos voltados para S. Christovão.
Ao rebate que ia pela cidade acudiu logo o juiz do povo, João Baptista Jordão; como presidente 158 ALFARRABIOS
que era da Camara, convocou todos os Officiaes d'ella, e bem assim os homens bons e o povo, para em vereação avisar-se sem perda de tempo sobre o caso estranho e tão fóra da norma commum, que não havia exemplo de outro.
Estavam já bem excitados os animos. A insistencia, que fizera o prelado para a mudança da matriz, era ainda muito recente, e deixára viva no espirito popular certa indisposição contra o o Dr. Almada.
O povo tem a religião do passado : elle venera as tradições da patria e da cidade; deleita-se com as reliquias e antigualhas, que lhe são como recordações da infancia, e lhe retraçam o berço onde se embalou á sombra da fé rude de seus antepassados. Por isso não ha mais puro sanctuario da historia, do que seja o povo.
Os fluminenses d'aquella éra, em que a vida não se tornára ainda uma empreza a commanditar, tinham seu fraco pela velha igreja, que primeiro se erguêra na terra selvagem da Guanabara; e eram particularmente devotos de S. Sebastião, que, na sua crença ingenua, se mudára para o Rio de Janeiro afim de servir de patrono a essa terra de sua predilecção.
Esse fermento de desfavor contra o Dr. Almada, O GARATUJA 159 veiu azedal-o a excommunhão do ouvidor, geralmente attribuida na cidade aos escandalos do Prelado que sabiam ser derretido por mulheres, e que se mettêra a engraçar com a filha do tabellião.
Se ainda havia alguma consideração nos animos tolhidos pelo respeito á Igreja, desapparaceu de todo com a irrupção que fez na praça um magote de rapazes. Era a corporação dos estudantes, que vinha tambem requerer á Camara remedio contra o excesso e exorbitancia da authoridade ecclesiastica.
Já n'aquelle seculo, essa respeitavel corporação tinha aquelle diabo no corpo, que no tempo de hoje faz estrepolias nos exames, e mais tarde deve.
produzir a alma nova da nação, a mocidade regeneradora de uma sociedade catholica.
Não era de admirar pois a parte activa que tomavam os estudantes no motim; sobretudo sabendo-se que Ivo estava á frente d'elles, e os fazia rir a gargalhadas. XX I II
•ONDE SE VÊ TRABALHAR A GOVERNANÇA ANTIGA, E SE
RECONHECE QUE N'ESSE MECHANISMO HAVIA DE MAIS
UM CYLINDRO CHAMADO POVO, QUE HOJE NÃO EXISTE.
Agora que são conhecidas as causas do alvoroto em que se achava esta pacata cidade na manhã de segunda feira, 3 de novembro de 1659, podemos continuar a narrativa dos successos que occorreram depois.
Acabava de entrar no Rocio o Dr. Pedro de Mustre Portugal, com o seu acompanhamento da gente de justiça; encaminhou-se elle direito á Vereança onde era esperado, e foi recebido no maior silencio, com uma tão anciosa curiosidade, que modernamente na linguagem parlamentar chama-se — movimento geral de attenção — e é a canella com que os tachigraphos, umas vezes por O GARATUJA 161 ironia e outras por lisonja, polvilham a insipida aletria de certos discursos.
— Senhor Juiz do Povo, Officiaes da Camara, homens bons da cidade e quantos me ouvem : A
Vossas Mercês em Camara, venho expor o mais grave attentado commettido contra a magestade de el-Rei, nosso Senhor, e sua authoridade que a todos nós fieis subditos, cumpre defender.
Narrou o ouvidor o conflicto suscitado pelo vigario geral a proposito da devassa; e arrazoando largamente sobre a incompetencia da authoridade ecclesiastica para avocar a si o precesso da alçada, declarou que ia ordenar a prisão dos authores da assuada, por ser caso d'isso; e concluiu com a excommunhão que n'aquella manhã lhe fôra lançada.
— D'essa iniqua e exorbitante censura, attentatoria da authoridade real de que estou investido e com a qual officiava, já appellei coram probo viro, e de novo appello ante omnia a precepto comminationis, porque desconheço qualquer jurisdicção que possa tolher a execução da lei, e empecer no exercicio de suas prerogativas, ao Soberano de quem todos, ecclesiasticos e prelados, são vassallos e subditos, como o restante do povo. E assim requeiro que se tome em Camara a minha appella-
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ção para produzir seu effeito suspensivo, até que Sua Magestade resolva.
Em vista da gravidade do caso, deliberou o Senado pedir ao Governador e Capitão General a sua assistencia pessoal em Gamara : ao que deferiu elle permittindo que viessem os Vereadores a seu quartel ou residencia, no que se accordou para o dia seguinte. E não só por dar maior solemnidade ao acto, como para melhor esclarecer o intrincado ponto de praxe forense, sugeito á disputação, deliberou a Camara convidar os mais afamados doutores in utroque jure, que floresciam então na heroica cidade de S. Sebastião.
Foram segundo resam as memorias do tempo os seguintes luminares, de cujos nomes sacudimos a poeira dos tempos para envial-os á posteridade com esta chronica : os Reverendissimos Frei Pedro e Frei Mauro da Trindade, da ordem de S. Bento; os carmelitas Padre Mestre Frei Francisco de Lima, Frei João Pacheco e Frei Antonio da Conceição; o Padre Francisco Madureira, da Companhia; e o Padre Mestre Prégador da ordem de S. Francisco : estes na classe dos theologos; quanto aos juristas sabemos do licenciado João Alves de Figueiredo (que era o patrono do tabellião), e mais Gaspar Leitão Arnovo, Dionisio O GARATUJA 163 Mendes Duro, Antonio de Barros e Bartholomeu de Oliveira.
Bem se vê quanto já era abundante de lettrados a cidade de S. Sebastião e se n'aquelle tempo estivesse em uso a empreitada de codigos e leis, não faltaria quem a tomasse.
Entre aquelles nomes que citámos figuraram tambem o D. Abbade de S. Bento, o Prior do Carmo, e o Provincial dos Jesuitas, pela razão mui simples de que, sendo os cabeças de sua ordem, não podia haver ahi sabedoria que não viesse d'elles, por mais duro que tivessem o casco.
Deviam estes luzeiros da sciencia solver a importante questão de que dependia áquella hora a paz e socego da cidade; a saber : se a appellação interposta da excommunhão tinha ambos os effeitos e portanto suspendia a pena espiritual. Hoje não se faria tamanho barulho e gasto de saber com uma questão forense; cada juiz nasce mestre; tem a jurisprudencia infusa; não carece de ler, nem de consultar : é o que sane.
Emquanto nas livrarias dos conventos e telonios de advogados se deitam abaixo as rimas de bacamartes, e se vão espoando os alfarrabios de cujo ventre hão de sahir as eruditas citações para lardear as consultas, os Vereadores, tendo 164 ALFARRABIOS
provido á urgencia do caso, trataram de jantar.
Pautados pelo antigo anexim romano — Sine Cerere et Baccho frigel Venus, já n'aquelle tempo entendiam os conspicuos senadores fluminenses, que de barriga vazia não se póde deliberar sobre a governança e regimento dos povos.
Por outro lado, pensaram elles que era de bom conselho deixar esse intervallo de um dia para arrefecer á irritação popular. D'onde se vê que a protelação, esse achaque de nossa administração, vem de longe : é mal chronico.
O motim, que se formára pela manhã, não tinha augmentado, mas conservava-se no mesmo estado de surda agitação, como a tempestade encadeada pela calmaria. Sentia-se ali dentro, no seio da turba a ebullição da colera popular; mas alguma força occulta a sopitava.
O respeito tradicional á religião, o terror da Igreja, e os sentimentos de devoção que animavam os fluminenses, deviam conter os impetos da indignação popular contra o prelado, que no fim de contas, apezar de quanto o accusavam, era não sómente um sacerdote, mas a primeira authoridade ecclesiastica da igreja fluminense.
O povo é sempre assim: uma força magna e irresistível, porém céga. Carece de quem o dirija, O GARATUJA 165 e o maneje. O que dispõe d'esse poder tem a revolução fechada em sua mão.
Era essa cabeça que faltava então ao povo lluminense. O motim ali estava no meio da praça como uma bombarda carregada de metralha, á espera que lhe accendessem a mecha, e o arrojassem contra a arrogancia ecclesiastica, para a derrocar em um momento.
Qual seria porém esse que ousasse empunhar o cutello popular? Os principaes da cidade, aquelles que andavam na governança e estavam no costume de conduzir a plebe? Esses, ainda mesmo servindo-se d'ella para promover seu interesse, temiam-se da agitação mais forte que podesse desencadear-lhe as iras.
N'aquella emergencia, estimaram os Vereadores a manifestação popular que os apoiava; mais do que isto porém seria perigoso, e fóra de toda a regra, pois tinha o povo seus procuradores e conselheiros para avisarem no que mais convinha, e prover a tudo que fosse para seu bem.
Estava portanto gorado o levante, se o Ivo per-
cebendo o geito que tomaram as coisas não se incumbisse de arranjar a cabeça que faltava ao tronco popular.
Veremos como se houve n'esse mister. P ROCESSO PELO QUAL INVENTOU O IVO QUE HOJE
SE CHAMA O HOMEM DA SITUAÇÃO
Ao toque de meio-dia foram-se dispersando os magotes de gente. Os moradores tornaram á casa onde os esperava o caldo, pois não havia n'aquelle tempo quitandeiras e freges, onde a popular achasse jantar a qualquer hora e em cada canto.
Depois da refeição as ruas de novo se encheram ; mas como nada mais occorrêra de novo, e as cousas continuavam no pé em que as tinha deixado pela manhã o senado fluminense, concentrou-se o animo da população na expectativa do dia seguinte, no qual á vista do accordão tomado em Camara, com a assistencia do governador e conselho dos luzeiros da sciencia, se tinha de decidir a questão.
Correram pois as horas da tarde em socego; os XXIV O GARATUJA 167 ranchos de povo que desfilavam pelas ruas, embora animados ainda por um resto do alvoroto da manhã, já não tinham aspecto irritado e soffrego; mas ao contrario pairavam com moderação a respeito das occurencias do dia.
O assumpto que de preferencia os occupava era o voto dos theologos e jesuitas consultados sobre a intrincada questão; faziam conjecturas e commentos ácerca das disposições de cada um, e do alvitre que adoptaria.
— Olhem! acudiu um orador de esquina, dos que hoje abundam. Os padres do Collegio, esses podem ter certeza que são contra o Almada, pois é seu costume andar sempre a jogar as cristas com os bispos, prelados et reliqua. Lá quanto aos outros é perder a esperança; então os Benedictinos!... Se o Almada não se sahe do mosteiro!..
No meio d'estas diversões veiu a noite, e com ella outra vez se escoou o poviléo, deixando ermas as ruas escuras. A pouco e pouco foramse extinguindo os fogos, e não tardou que a cidade dormisse a somno solto.
Lá pela volta das dez horas, foi o silencio profundo da noite quebrado por um tanger de sino, que despertou parte da população. Pelo toque logo 168 ALFARRABIOS
se reconheceu que era rebate no campanario da Camara, o que ainda mais espanto causou, sobretudo no estado em que se achavam os animos.
Abrindo as portas, e sahindo á rua, avistaram os moradores por cima dos telhados lá para as bandas do Rocio do Carmo, um clarão, que avultava no meio da profunda escuridão da pequena cidade, a qual não conhecia ainda nem os lampeões de azeite de peixe, quanto menos o gaz.
— É fogo ! disseram.
Os primeiros despertos correram direitos ao ponto e de caminho iam dando vozes e rebates de fogo, que avisavam os mais; de modo que em poucos instantes meia cidade corria pelas ruas, e a outra não tardava a acompanhal-a.
Esbarrou-se a multidão com uma cousa que não esperava.
No alto do pelourinho estava um retabulo armado com pintura de transparente. A tela esclarecida pelo anverso com cabeças de breu representava em grande o vulto de S. Sebastião, baixando do céo ao morro do Castello. Com uma vergasta que tinha na mão direita o divino padroeiro expellia da sua cidade uma caterva de porcos que se tinham introduzido n'ella e estavam a fossar-lhe os muros. Na mão esquerda tinha o O GARATUJA 169 Santo arvorada sua bandeira, e a confiava á guarda do Sebastião Ferreira Freire, ali pintado em propria figura.
Mas o traço, sobre todos notavel do painel, era que os porcos tinham tonsura e cara de gente, vendo-se no maioral da frente a do prelado, e em seguida toda a fradaria, que o rodeava, desde o Vigario geral até o Claudio minorense.
Atinando com a allegoria, a multidão disparou em um frouxo de riso, cujo borborinlio cobriu o murmurio das ondas a rolar na praia. Rompeu a revolução da gargalhada, a mais assoladora, e ás vezes a mais cruel de todas as revoluções.
O respeito de que o seu caracter sacerdotal cingia o Prelado, a força moral, essa formidavel barreira que resiste ás iras populares, nos seus mais terriveis assomos, o ridiculo a acabava de aluir com um sopro. .
Era obra do Ivo, bem se percebe, a tal allegoria ou como hoje diriamos, a caricatura, e não ficava somenos nem pelo chiste, nem pelo desenho, ás melhores que figuram ahi pelas ruas da côrte em dias de carnaval.
Desde meio dia trabalhára o Garatuja sem descanço, ajudado pela malta de estudantes que pulava de contente com a estrepolia, e applaudia I. 10 170 ALFARRABIOS
a lembrança do rapaz, sem importar-se com o desacato á religião, que estavam preparando n'aquelle retabulo.
Emquanto elle pintava, os outros preparavam a armação e as cabeças de breu para o transparente.
O rebate foi dado por um pirralho, que animosamente trepou ao telhado da casa da Camara, e lá se foi com a subtileza de um gato até o campanario, onde debruçado á beirada, conseguiu tanger o sino.
Entretanto o povo, passada a primeira impressão, indagára entre si do author d'essa lembrança;
e não faltava quem attribuisse o inesperado e mysterioso apparecimento do retabulo á intervenção do poderoso S. Sebastião que ahi se representava para assim communicar sua vontade aos moradores da cidade. Esse encanto do maravilhoso é irresistivel para a imaginação popular.
Aproveitando o momento de commoção, Ivo galgou os degraus da pilastra hasteando uma bandeira de S. Sebastião, em tudo semelhante á do painel:
— Povo de S. Sebastião é preciso entregar sua bandeira áquelle a quem o nosso divino Padroeiro escolheu para defendel-a! O GARATUJA 171 — Bem avisado ! gritou uma voz.
— Vamos sem mais detença á casa do senhor Sebastião Ferreira, nosso tabellião.
Á casa do tabellião! gritaram todos.
Estremunhado de somno, saltou o Freire da cama aos clamores que o appellidavam, e ás tontas chegou á janella para ver o que lhe queriam ; mas não antes de lhe assegurarem de fóra que eram de paz.
N'um instante a turba multa o envolveu e arrebatou ; de modo que o pacifico tabellião achou-se sem accordo proprio e quasi sem conhecimento de si, no meio da rua, levado em charola, com a bandeira de S. Sebastião arvorada na sinistra, e uma catana empunhada na dextra.
Como isto se fizera não o sabia elle. Viu-se no meio de um torvellinho de gente, e cercado de fogaréos, que lançavam pelas ruas onde passavam uns lampejos sinistros e faziam-lhe calafrios, lembrando-lhe os autos de fé.
Eis como inventou o Ivo o homem da situação. O
que elle fez como seu pincel, ainda hoje ha quem o faça com uma gazeta, e com o mesmo desembaraço e petulancia. Do que não se precisa mais é de povo, essa antigualha sem serventia. Paga-
172 ALFARRABIOS
se a musica dos allemães; abre-se uma finta com o nome de subscripção para retrato ou jantar ; e ahi está uma notabilidade, um chefe de partido, um medalhão. XXV
UM DOS CASOS EM QUE A AUTHORIDADE OBTEMPERA
PROMPTAMENTE Á VONTADE DO POVO, E TIRA A
SARDINHA COM A MÃO DO GATO.
A troça dos estudantes com o Ivo á frente, servia de vanguarda ao motim, e fazia uma algazarra tremenda ao estalo da matraca, e ao zunido das cegarregas.
— Abaixo o prelado !
— E mais a sua clerezia!
— Fóra com a sucia!
— Não queremos simonia!
— Á fogueira com elles!
— E os formigões?...
— Havemos de pôl-os á viola !
— Qual viola, uma pisa!
— E o tal Claudio?...
— Eu cá, em o pilhando, migo-lhe os focinhos!
10. 174 ALFARRABIOS
Tomando a direcção que lhe deu o Ivo, chegou a multidão em frente á casa do Ouvidor, a quem saudou com repetidos clamores, instando por sua presença.
Velava ainda o Dr. Mustre, cogitando nos successos do dia e suas consequencias; e pois ouvindo os reclamos do povo, acudiu prompto.
Foi recebido com estrondosa ovação ao apparecer no lumiar da porta.
— Viva o Dr. Portugal!
— Viva!...
— Por muitos e longos annos — Viva!
— S. Sebastião, pelo nosso Ouvidor!
— Pelo nosso Ouvidor!
Destacou-se o Ivo, e acenando aos sugeitos que traziam em charola o Sebastião Ferreira para chegal-o á frente, assim fallou ao magistrado :
— Aqui estamos, os povos da cidade, e o snr.
Sebastião Ferreira Freire, a quem por influição do seu e nosso divino padroeiro, escolhemos e nomeamos por nosso procurador para defendernos contra a arrogancia da cleresia; e todos vimos para requerer a vossa mercê, como ouvidor de nossos aggravos e principal ministro da rustica de El-Rei, aquella que nos é devida, pela O GARATUJA 175 affronta que soffremos na pessoa do nosso tabellião.
— Queremos despical-o!
— Cala-te d'alii! Deixa fallar o rapaz.
— Está conclusa em mão de vossa mercê, continuou o Ivo, a devassa tirada contra os criados do prelado; e porque não é bem que se retarde a punição dos culpados, pedem os povos aqui reunidos que vossa mercê profira sua respeitavel sentença, para ser executada esta mesma noite;
assim que d'aqui não sahiremos sem ella.
— Venha a sentença! gritou a turba.
Não podia o Dr. Mustre cogitar melhor desforra contra o prelado do que essa que lhe acabava de suggerir o Garatuja.
Vendo-se apoiado pela efervescencia popular, e podendo em todo o tempo escusar-se a pretexto de coacto, decidiu-se o magistrado a responder á mitrada com uma chibatada de sua vara branca de ouvidor.
— Despachar os feitos com a maior presteza, é da obrigação do juiz, como é da minha satisfação prover ás urgencias dos povos de minha jurisdicção, e deferir a suas supplicas, sendo ellas fundadas em boa razão. Esperai em quanto torno !
Já se dissipára o atordoamento em que havia 176 ALFARRABIOS
cahido o Sebastião Ferreira; mas ao passo que fôra sahindo d'esse embotamento moral, o começara a invadir uma sorte de embriaguez : era a carraspana d'essa gerebita, que chamam popularidade, e á qual não resistiam os pacificos tabelliães de outr'ora, como tambem não lhe escapam hoje os nedios e massiços barões.
Vendo-se á testa d'aquelle ajuntamento de gente, que requeria dos ministros d'El-Rei em tom de mando, e não de supplica, o nosso tabellião revestiu-se da sua importancia de cabeça dos povos de S. Sebastião, e enchendo-se de enthusiasmo, exclamou :
— A sentença, Senhor Ouvidor, pois se recusaes a estes povos a justiça real, não estranheis que appellem elles para a justiça de Deus!
— Sim; appellaremos!
— Appellemos já!
— A toca do padre!
— Deite-se fogo á casa!
— De vagar, camaradas, clamou Ivo; é preciso fazer as cousas em regra. Se os bichos têm de ir lá parar, que vão com todas as ceremonias.
— Assim é !
— Esperemos a sentença.
Esta não se demorou. Breve assomou de novo O GARATUJA 177 á porta o Dr. Mustre, que deu leitura do decreto judicial pelo qual declarando procedente a devassa, sujeitava a prisão e livramento aos minorenses, famulos do prelado, ordenando se incluísse seus nomes no rol dos culpados, e se expedisse mandado de captura.
Com uma salva de applausos foi acolhida a sentença, da qual o escrivão ad hoc lavrou logo o termo de publicação, passando incontinente o mandado de captura, que foi entregue aos beleguins da ouvidoria para o cumprirem com assistencia dos povos.
Poucos momentos depois atopetava-se a multidão na rua da Quitanda em frente da morada do prelado, cuja cerca foi invadida, e posta em sitio a casa. Esta conservava-se fechada como estava, e em silencio, apesar do vozeio e borborinho do povo. Adiantou-se o beleguim, e batendo na porta com a vara, proferiu a seguinte intimação :
— Em nome d'El-Rei, e por ordem do Senhor Ouvidor geral, intimo os moradores da casa, ou quem n'ella estiver, a que abram a porta afim de cumprir a diligencia que me foi ordenada, e não o fazendo á 3.a notificação procederei a arrombamento e penetrarei á viva força e de mão armada, se fôr preciso. 178 ALFARRABIOS
Mal acabava o beleguim, que de sopetão abriuse a porta e assomou n'ella o vulto do prelado.
— Retirem-se desavergonhados, que não se pisa a soleira d'esta casa, sem nossa venia !
— Venia? Nós do povo lh'a escusamos.
— Avie com isso, meirinho!
Impellido pelo arrojo do popular, o meirinho desenrolou o mandado :
— Com o presente mandado de captura, requeiro a Vossa Reverendissima, snr. Dr. Manoel de Sousa Almada que entregue á prisão os seus famulos, Claudio de Sousa...
— Insolente, bradou o padre, cuja colera fez explosão. Desafio-te e a essa canalha, que transponham o batente d'esta porta. Aquelle que o fizer será maldito; em nome de Deus o excommungo, e o tecto d'esta casa se abata sobre os impios que a profanarem.
Ante essa execração, feita com gesto solemne e voz retumbante, a multidão recuou pávida;
mas ali estavam os estudantes para metterem o padre a ridículo, desarmando-o assim do prestigio que devia exercer no espirito d'aquella gente.
Rapazes, em lhe dando para rir, não respeitam as cousas mais sagradas; assim que soltaram os garotos um chorrilho de improperios : O GARATUJA 179 — Como grunhe o cevado! gritou um brejeiro alludindo ao painel.
— Anda lá, acudiu outro farçola; deite os bacorinhos para fóra!
Romperam as gargalhadas e chacotas com que a multidão, de novo excitada, assaltou a casa do Prelado.
Terriveis deviam ser as consequencias d'esse embate da onda popular, e não era dado prever os excessos que praticaria essa plebe, irritada com a resistencia, e dirigida por meia duzia de rapazes estouvados.
— Entregue os reus !
— Queremos os minorenses !
— Havemos de trancafial-os na cadeia.
O Prelado esmagou-os sob o olhar altivo e recolheu-se com a dignidade de um ministro da Igreja. XXVI
AINDA .UMA VEZ SE PROVA QUE O POVO É EM TODOS OS
TEMPOS A MESMA CREANÇA TRAVÊSSA, A QUEM SE ENGAMBELLA COM CM DOCE OU UM BONECO.
Felizmente n'esse momento da maior exacerbação, appareceram ali os camaristas, acompanhados de outros moradores que andavam na governança da terra, e tinham preponderancia sobre o povo.
Avisados do tumulto que ia pela cidade, e do perigo que ameaçava o Dr. Almada, receiosos por um lado dos desmandos populares, e por outro do desagrado d'El-Rei que por certo não levaria a bem o desacato á Igreja com offensa da dignidade prelaticia, tinham os principaes accudido com presteza no intento de evitar algum desastre.
Chãos e simples, como eram, os homens bons d'aquelle tempo valiam mais sem contestação do O GARATUJA 181 que os eminentes estadistas, que por ahi andam a granel, pois não ha gazeteiro que os não amasse em tal quantidade que o forneiro mór occupado em cozinhal-os para ministros, não lhes dá vasão.
Ás suasões do Baptista Jordão, o juiz, ás advertencias e rogos dos mais camaristas e principaes, moderou-se a turba, soffreando os impetos com que já investia contra a casa do Prelado. Porventura obteriam os prudentes que se retirasse o ajuntamento, e aguardasse o povo a resolução que ia tomar o Senado, se não fosse a rapaziada, que embirrou em levar a sua avante.
— Sem os formigões, d'aqui não arredaremos o pé!
— Querem que nos retiremos ? Pois deem os culpados á prisão.
— Cumpra o mandado!...
— Ou havemos nós de cumpri-lo.
— Não reconhecemos couto !
— Faremos respeitar a justiça d'El-Rei!
— Não o affrontarão na pessoa do seu ministro, que não consentimos!
Estas vozes carregadas de ameaças, circunscriptas no principio ao tropel dos estudantes, se propagavam logo pelo grosso da multidão. Conheceram os camaristas a difficuldade de obter a dis-
I. 11 182 ALFARRABIOS
persão do povo, sem até certo ponto attender á sua reclamação, que no fundo era da maior justiça, pois não pedia mais do que a execução de um mandado expedido pela Ouvidoria da Comarca.
Assentaram então os. apaziguadores do motim em instar com o prelado para entregar os minorenses á prisão, por bem da paz e para evitar damno irreparavel.
— É preciso lavrar o auto de resistencia, ponderou um dos camaristas.
— Meirinho!...
O beleguim sacou do bolso o tinteiro de chifre, e sentando-se na soleira da porta, começou a lavrar sobre o joelho o auto de resistencia que precede ao arrombamento.
Aproveitaram-se os camaristas d'essa pausa para interporem sua mediação; e avisado o meirinho que demorasse quanto podesse a sua gripharia, alcançaram o juiz e o procurador que o Prelado os admittisse a entrar para conferirem sobre o caso.
A principio mostrou-se intratavel o Reverendo;
mas ouvindo a vozeria do povo, que já revolviase impaciente com a demora da conferencia, e percebendo o terror de que se achavam possuidos O GARATUJA 183 os proprios camaristas, assustados com os excessos em que ia romper o motim, tornou-se mais accessivel a accommodação.
Insistira o juiz n'estes termos :
— Não dizemos que Vossa Reverendissima entregue seu sobrinho, ou aquelles famulos seus de mór estimação; porém os outros se os entregasse, podia-se alcançar do povo que se aquietasse, emquanto que assim recusando-lhe tudo, vae-se irritando, e ao cabo quem soffre somos todos nós.
— Os clerigos menores de habito e tonsura, famulos da Igreja, de que sou humilde ministro, esses, Senhor Juiz, não ha poder que m'os faça entregal-os á justiça secular, da qual não são subditos.
— N'este caso caia sobre Vossa Reverendissima o peso das calamidades, que vai acarretar a sua obstinação.
— Havia um meio, insinuou o Prelado.
— Vossa Reverendissima dirá.
— Tenho ahi dois moços que ainda não receberam a tonsura, mas destino-os tambem para clerigos, se forem aptos. Esses, vestindo-lhes o habito, podiam servir para apaziguar a canalha, se Vossas Mercês interpuzerem seu bom conselho. 184 ALFARRABIOS
O primeiro impulso dos camaristas foi repellir essa mystificação, mas urgia um remedio qualquer senão queriam ver desencadear-se a furia popular, alagando a cidade de sangue.
Vieram os taes moços, como o chamava o prelado. Eram um moleque, e um caboclo, ambos captivos, os dois coitados, que iam servir de victimas expiatorias das estrepolias dos minorenses.
Vendo-os, quizeram recuar os camaristas; mas o povo fóra rugia de colera, e começava a assaltar as janellas com pedras e calháos.
— Ao menos, observou o Chaves que era gracioso, arranjemos-lhe uma tonsura ou coisa que se pareça. Venha lá uma tesoura.
Emquanto se mettiam o moleque e o caboclo em habito e tonsura, sahiu o juiz á porta :
— Moradores de S. Sebastião, e povos da cidade ! Por bem da paz e socego de todos pensámos em conferenciar com o Reverendíssimo Prelado sobre a entrega dos reus; e mostrando a plena justiça da vossa reclamação o reduzímos a restituir desde já á prisão dois dos culpados, fazendo o mesmo aos outros logo que os tenha á mão.
— Todos, queremos todos e já!
— Mas como? gritou o Chaves, se amollaram as palanganas, e lá se vão zunindo! O GARATUJA 185 — Aonde?
— Para o mosteiro em busca de asylo. Agora é assobiar-lhes ás botas, ou aos calcanhares.
— Péga! exclamou um mais ardente e disparou a correr.
Outros o seguiram machinalmente. Ao mesmo tempo o meirinho com seus acolytos, capturando os dois improvisados minorenses, se affastaram com elles, levando apoz a maior porção de povo.
Assim conseguiram os camaristas salvar a casa do Prelado da devastação que a ameaçava.
A poucos passos de distancia os estudantes, expulsando os beleguins, tomaram conta dos presos e fizeram com elles coisas do arco da velha.
Basta que, no dia seguinte, o coboclo amanheceu em cuecas, atado a um mastro, á guisa de judas em sabbado d'alleluia, e com o couro pintado de azul. Quanto ao moleque, nú em pelo, com uma crosta de vermelhão que o envolvia do cabello á sola dos pés, e com o appendice de um cabo de navio servindo-lhe de cauda, saltava no meio da rapaziada em figura de diabrete, e representava menos mal o seu papel de palhaço do inferno.
Era já dia claro, e ainda o motim percorria as ruas da cidade, esperando a hora da sessão, que a camara convocára para o quartel do governador. XXVII
ONDE SE VÊ A IMPORTANCIA JURIDICA DO MEDO NA
DECISÃO DOS CASOS MAIS INTRICADOS DA THEOLOGIA
A casa de residencia do governador, ou seu quartel, como diziam então pelo respeito ao elevado posto de capitão general, ainda estava por aquella epocha na rua da Cruz, que depois veiu a ser rua Direita, e ultimamente com o sestro em que deu a nossa Vereança passou a rua de 1.° de Março.
Essa mania de mudar os nomes ás ruas e pôl-as á moda, é nada menos que uma barbaria e degradação igual á que se perpetrava com os antigos monumentos e quadros empastando-os de arrebiques á moderna. Em um caso, profanação da arte; em outro, profanação da historia : dois relicarios do coração humano.
Nas mudanças successivas por que passa o O GARATUJA 187 nome de uma parte da grande cidade escreve o povo fluminense um capitulo da sua historia intima. Assim, folheai essa pagina de pedra e cal, que se chamava até o anno atrazado Largo do Paço.
Sua primeira designação, nos tempos primitivos, foi campo do Ferreiro da Polé. Subiu depois a Rocio quando as casas o cercaram. Carmo, attesta a edificação do convento d'essa ordem;
Terreiro do Governador, a residencia da primeira authoridade da capitania; Praça do Palacio, a elevação de cidade a capital de vice-reinado; e finalmente Paço, a côrte real que pouco tardou em trocar-se por imperial.
Entretanto que significa Pedro II escripto n'aquellas esquinas! Simples lisonja de cortesãos.
O augusto filho do fundador do imperio não tem particularidade alguma com essa praça, onde estão os paços que, se hoje o hospedam, foram de seu pai e de seu avô ; e triste d'aquelie a quem cinge uma corôa, se carecesse de uma esquina de rua para ir á posteridade!
O que dizemos do primeiro cidadão, applicase aos patriarchas, e aos outros medalhões da politica. Erijam-lhes estatuas de ouro, se quizerem; levantem-lhes monumentos de bronze ; 188 ALFARRABIOS
dediquem-lhes templos e altares; mas não se metta a camara a tralhona, usurpando essa prerogativa do povo soberano de crear os nomes e formar as tradições de sua cidade natal.
Se não mente a chronica, era no lugar onde está hoje a Caixa da Amortisação e Correio, que se levantava a residencia do governador, a qual foi destruida na invasão dos francezes em 1710.
Para ahi se dirigiram desde as 7 horas o Juiz e Officiaes da Camara, bem como as pessoas gradas e sabedoras pelo Senado convocadas;
iam todos solicitos de acudir com prompto remedio ao successo extraordinario que desde a vespera trazia em alvoroto a cidade.
Esperava-os o governador Thomé Corrêa de Alvarenga, não menos sofrego de pôr termo á agitação do povo. Durante a noite, sciente do que ia pela cidade, mandou ficar sua guarda assim como a gente do terço a postos e de promptidão para o que podesse acontecer; mas fez-se desentendido, e absteve-se da menor intervenção.
Empenhado em arranjar uma representação da Camara e povos de S. Sebastião pedindo a El-Rei para provel-o a elle Thomé Corrêa no effectivo governo das capitanias no sul, que O GARATUJA 189 estava servindo interinamente, tratava de agradar a todos e pois não lhe convinha tirar razões e ir ás mãos com o motim que era lá com a clerezia.
Ao entrar a sessão, ouviu-se na rua grande alarido. Era a troça dos estudantes que voltava, trazendo no centro o Tabellião e á frente o moleque lambreado de vermelho, e montado em um cabrito. Atraz vinha uma sucia de meninos que seguravam a cauda do diabrete, como se fosse a amarra de uma ancora.
— Senhor Juiz e Officiaes em Camara, gritou o Ivo, aqui trazemos a vossas mercês, este eximio theologo para consultar sobre o caso intrincado. É grande sabedor de excommunhões, bruxarias e demonices.
Gargalhada estrondosa, seguida de formidavel apupada.
— Salta, capeta!
— Silencio, que o cabrito vae espirrar!
— Não é espirro. É um latinaço que lhe esguichou pelas ventas.
— Então o cabrum é doutor ?
— De borla e capello.
— Quiá!... Quiá!... Quiá!...
De vespera esperava-se que a sessão convo-
11. 190 ALFARRABIOS
cada pela Camara fosse das mais importantes de que havia noticia, já pela gravidade das circumstancias e já pelos grandes luzeiros da sciencia que tinham de dar seu voto.
N'essa conformidade se tinham preparado os theologos e juristas, recheando-se de latim, abarrotando-se de citações abstrusas, para desbancar os argumentos ex adverso. Dir-se-hiam os improvisadores do actual parlamento em vespera de um debate solemne.
Bom é saber-se que dos theologos, só os jesuitas propendiam para o Ouvidor, por espirito de opposição á mitra ; e dos juristas apenas o licenciado Figueiredo, por ser patrono do Tabellião, encostava-se ao parecer d'aquelles.
Os mais, ou pelo anexim popular de que lobo não come lobo ou pelo receio de jogar as cristas com a Igreja, eram todos pelo Prelado, e se dispunham a sustentar em Camara, com uma torrente de doutores, que a excommunhão fôra decretada conforme o direito e leis da Igreja e do Reino, não podendo suspender-se pela interposição do recurso, que só tinha o effeito devolutivo.
Durante a noite, porém, operou-se grande mudança no espirito dos sabios theologos e O GARATUJA 191 juristas; parece que o livro do povo ali, á rua, aberto em todas as paginas, ensinou-lhes mais em uma hora, do que haviam aprendido toda a vida em commentarios e tratados de praxistas.
Assim, logo cedo compareceram, não mais para arrazoados juridicos, senão para tomar uma deliberação, com que o povo se accomodasse. Do prurido de disputações, se algum ainda tinha resquicios, a vaia dos estudantes acabára de aplacal-o de todo.
Decidiram em Camara por unanimidade que a appellação interposta suspendia a excommunhão como entre outros doutores sustentavam Farinacio, Scacia, e o Senador Themudo; e pois continuava o Ouvidor no exercicio de sua jurisdicção, devendo aguardar-se a desisão superior, e representar-se a El-Rei sobre a necessidade de uma providencia que de futuro evitasse tão graves conflictos entre a authoridade ecclesiastica e a secular.
N'este sentido, diz o Dr. Balthasar da Silva Lisboa, escreveu-se ao prelado intimando que suspendesse a censura até determinação de Sua Magestade.
Assim terminou aquella refrega do povo flu-
192 ALFARRABIOS
minense, cujo ultimo acto foi conduzir em triumpho á sua casa o cabeça do motim.
O velho e pacato Sebastião Ferreira Freire ia um tanto amarrotado das bolandas em que andára, porém satisfeito a mais não poder com a desforra que tomára do Prelado e sua gente. MAIS UM EXEMPLO DA INGRATIDÃO D'AQUELLES A QUEM
A POPULARIDADE ELEVA AO PINACULO DA GLORIA
Tres dias depois dos acontecimentos referidos, terminado o jantar, espaciava o tabellião pela cerca, saboreando ainda a ovação que havia recebido, e pavoneando-se em sua importancia.
Ao passar junto de um arvoredo embastido, pareceu-lhe ouvir um sussurro de vozes, e espreitando por entre a folhagem descobriu sua filha Martha em requebros e galanteios com o Ivo.
O rapaz instava por aquella beijoca, a tanto tempo pedida e desde então negaceada pela sonsa da menina, que bem desejos tinha de a receber, mas faltava-lhe o animo de consentir.
Coisas de namorados.
XXV I II 194 ALFARRABIOS
Cançado já de instancias, queixumes e arrufos, que tudo havia debalde empregado, usou o Ivo de esperteza. Disfarçando para apanhar Martha desprevenida, enlaçou-a de repente pela cintura, e prendendo-lhe os braços, conchegou-lhe o talhe ao peito, para colher os labios vermelhos, que em vão tentavam fugir.
Já o beijo abria as azas arrulando sobre a mimosa boquinha, quando se interpoz, como uma cabeça de medusa, o ruivo chinó do tabellião.
— Alto lá!... gritou o Sebastião Ferreira.
Confusos e tremulos, os dois namorados encolhiam-se como se esperassem esconder-se dentro em si ao sobr'olho crespo do pai irritado. Contemplou-os o Sebastião alguns instantes a gosar do seu enleio, e travando a cada um do braço, levou-os de roldão ao cartorio.
Ainda lá estava o escrevente juramentado, aproveitando a ultima restea de dia.
— Lavre-me uma escriptura de esponsaes, visto ser eu suspeito, e competir-lhe a substituição. Sem detença.
— Prompto! respondeu o escrevente com o livro aberto.
— Entre partes, 1 o Outorgante Martha Sebas-
O GARATUJA 195 tiana Ferreira Freire, por um lado, e pelo outro Ivo... Ivo... Ivo de que? perguntou ao engeitado attonito.
— Ivo das Ervas...
— Escreveu ?
— Das Ervas, disse o escrevente repetindo a deixa.
O tabellião deu tempo a fazer o cabeçalho da escriptura. Martha, morria-se de susto e vergonha, não atinando com o que vinha a ser aquella ceremonia. Tão peco não era o rapaz, que estremecia, mas de commoção e jubilo.
— E pela 1a Outorgante foi dito que de sua mui livre e espontanea vontade, sem á menor coacção, e com o 2o Outorgante na fórma do Sagrado Concilio Tridentino, levando-lhe em dote o direito de successão d'este officio de tabellião e a quinta parte no que render o contado, em vida do actual serventuario, pai d'ella ortorgante. Mas declara que é isto sob a condição de nunca mais trabalhar o dito 2° Outorgante como artifice de pincel, ou cousa que se pareça, deixando para todo o sempre o baixo mister da pintura, e occupando-se tão somente do serviço do cartorio, o que ha de firmar sob juramento, e não o 196 ALFARRABIOS
cumprindo, ficarão de nenhum effeito estes esponsaes.
— Mas... ia recalcitrando o Ivo.
— Se quizer é assim. Pintor é casta que me não entra cá na familia. Martha ha de casar-se com um escrevente, para que eu tenha successor.
O Ivo coçou a orelha.
— Mas podia Vossa Mercê esperar pelo neto, què lhe havemos de dar.
— Arranje-se vossê lá com elle ; eu cá preciso segurar-me, que já estou maduro.
Tinha o Ivo amor a seus pinceis e sonhava com a gloria ; mas os olhos pretos de Martha volviam para elle com um tão mavioso requebro.
— Decida! tornou o tabellião.
— Acceito.
— E pelo 2o Outorgante foi dito que da sua parte acceitava e promettia sob juramento, et ceiem, et cetera. Menina, chama tua mãi para assignar.
Em quanto o escrevente punha o fecho da escriptura, o Sebastião Ferreira fez o Ivo jurar sobre um missal a condição a que ficava sujeito para obter a mão de Martha.
Concluida a cerimonia, voltou-se o tabeltião para os dois noivos : O GARATUJA 197 — Agora podem-se beijar, na conformidade da lei.
Mas esse beijo ob veniam paternam, e como sancção do contracto esponsalicio era desenxabido e não tinha o sainete d'aquelle que o velho tão desastradamente perturbára. O Ivo pousou ao de leve os labios na fronte rubescente de Martha, promettendo-se mais tarde, n'aquella mesma noite talvez, roubar á boca faceira de sua amada, outro beijo mais saboroso.
O casamento dos noivos effectuou-se um anno depois. Já compenetrado da realidade da vida, o Ivo esquecêra os seus pinceis, para tornar-se um escrevente de cartorio, ao gosto do futuro sogro, a quem devia succeder. Viveu feliz; e se alguma vez lhe perpassavam pela mente os sonhos de gloria, que haviam embalado sua juventude era nuvem passageira.
A leal cidade de S. Sebastião perdêra um artista, o primeiro talvez que nasceu em seu seio;
mas nem se apercebeu d'isso, como não se apercebe ainda hoje dos talentos que a sua indifferença vae mirrando, e cahem por ahi esmagados sob a pata do charlatanismo insolente.
FIM DO TOMO 1.° INDICE
CAVACO V
I. — Tres antigos luzeiros escapos á poeira dos tempos 1 II. — A mais afiada lingua entre as famosas que então havia naleal cidade de S. Sebastião 12 III. — Um typo que já não se encontra hoje em dia 18 IV. — Porque o Sebastião Freire não fechava mais os olhos para fazer o signal publico 24 V. — Como se ageitava um engeitado n'aquelle seculo pudico 30 VI. — Desacato que commetteu o Ivo contra as reverendissimas ventas da companhia 37 VII. — O caipora que foi causa de toda a embrulhada da excommunhão .......... 44 200 INDICE
VIII. — Sumiço que levou um cupido armado em guerra e estampado em pergaminho 50 IX. — Prova-se a boa razão que teve Camões para entrelaçar a mythologia com o catholicismo 58 X. — Do alvoroço que produziu um grillo na noite da novena 65 XI. — No fim de contas ei-lo o rato dentro do queijo 72 XII. — Do primeiro traslado que o Ivo tirou no cartorio 79 XIII. — Uma edição antiga do prelado moderno 89 XIV. — Onde se mostra que se os povos servem de instrumento, tambem os reis servem ás vezes de pretextos...... 97 XV. — Utilidade que um namorado póde tirar dos rivaes e dos pintos................. 103 XVI. — Perigo de metter uma franga no poleiro quando não se tem costume de lidar com a criação 111 XVII. — Prognostico tirado por um tabellião da ascensão ou gravitação do nariz de seu escrevente 118 XXVIII. — Da pesca famosa que fez o Ivo nos bagres que lhe perseguiam a piabinha 124 INDICE 201 XIX. — Mostra-se a verdade dos dois anexins « que o bocado não é para quem o fez; » e que « paga o justo pelo peccador » 131 XX. — Um beca do seculo XVII que não chega aos calcanhares dos modernos Themudos 138 XXI. — Como se arranjava outr'ora um motim para desfastio do bom povo fluminense, em vez das insipidas luminarias que lhe dão agora................ 145 XXII. — Uma ceremonia que já não se vê hoje em dia apezar de ainda haver procissões e mascaradas de igreja..... 151 XXIII. — Onde se vê trabalhar a governança antiga e se reconhece que n'esse mecanismo havia de mais um cylindro chamado povo, que hoje não existe 160 XXIV. — Processo pelo qual o Ivo inventou o que hoje se chama o homem da situação 166 XXV. — Um dos casos em que a authoridade obtempera promptamente á vontade do povo e tira a sardinha com a mão do gato 173 XXVI. — Ainda uma vez se prova que o povo é em todos os tempos a mesma 202 INDICE
creança travêssa, a quem se engambella com um doce ou um boneco.... 180 XXVII. — Onde se vê a importancia juridica do medo na decisão dos casos mais intricados da theologia 186 XXVIII. — Mais um exemplo da ingratidão d'aquelles a quem a popularidade eleva ao pinaculo 193 Paris. — Typ. GARNIER IRMÃOS, 6, rua des Saints-Péres. 452.9.95.
RIO DE JANEIRO
H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR
71, RUA DO OUVIDOR, 71
E
6, RUA DOS SAINTS-PÈRES, 6
PARIS