Água de juventa (coleção revivendo, nº 7)
Obras de COELHO HETTO
Sertão.
A Bico de Penna.
Apua de Juventa Romanceiro.
Teatro VI(O Relicário, Os Raios X, O Diabo no corpo)
Theatro vol. II As Estações, Ao Luar, Ironia, A
Mulher, Fim de Raça).
Reatro V. (Quebranto, comédia em 3 actos, e o sainete Nuvem).
Theatro, Vol. V (dinheiro, Bonança e O Intruso)
Jardim das Oliveiras.
Esphmge Inverno em Flor.
Apólogos, contos para crlanMiragem.
Mysterios do Natal, contos para crianças.
O Morto.
Rei Negro.
Capilal Federal.
A Conquista.
Tormenta.
Tréva.
Banzo.
Turbilhão.
O meu dia.
As Sete Dores de Nossa Senhora.
Balladilhas Pastoral Vida Mundana. Patinho torto.
Ás quintas.
Scenas e perfis.
NO PRÊLO:
Feira livre.
Immorlalidae. O Paraíso.
Bazar.
Theatrolyrico.
A propriedade litteraria e arlistica está garantida em todos os países que adheriram á convenção de Berne — (Em Portugal pela lei de 1S de março de 1911 — No Brasil pela lei n.° 2677 de 17 de janeiro de 1913).
ARTES GRAFICAS — PORTO
AO MEU BOM AMIGO
OROZIMBO MAIA
OFEREÇO
COELHO NETTO
Rio — Maio de 1904 1 AGUA DE JUVENTA
I
A Leopoldo Amaral A Villa de Poços, concava e mais funda do que uma cratera, entre bordos de outeiros e montes, sob a doçura límpida d'um céu desannuviado e azul, com a sua paz de campo quasi entrado ao sertão, é um fervedouro d'aguas maravilhosas.
Remotamente, em dias de quasi extincta memoria, quando as terras interiores eram apenas desbravadas pelos aventureiros, que revolviam as areias micantes dos corregos, escavavam o solo, brocavam as rochas procurando avidamente diamante e ouro, os borbotões, que escachoavam, em repuxo, á flor da terra, só eram conhecidos dos animaes que desciam as encostas e vinham lamber os saes crystallizados nos barreiros ou enxurdavamse no lodo tepido, como se conhecessem a virtude d'aquelles 8 AGUA DE JUVENTA
jorros que golfavam em olheirões ferventes, fumegando.
Data de 15 de junho de 1786 a primeira noticia escripta d'essas aguas, accusando a descoberta e preconisando os benefícios nellas colhidos por numerosos enfermos, muitos d'elles leprosos. Desde então começou a romagem para o valle feliz.
Os primeiros que ali chegaram, em lentos carros de bois, colmados de esteiras, atupidos de mantimentos — uns entrevados, outros cobertos de ulcer.as, lázaros deformados, roxos, vultuosos, corroidos, — achando-se em tão deserta paragem, entre crespas florestas, num campo virgem que as codornas percorriam, esvoaçando, e as cascaveis cruzavam morosamente, transidas, armavam barracas de lona ou levantavam palhoças e, ligandose estreitamente numa solidariedade de reciproca defesa e consolo reciproco, passavam mezes em cura, arranchados em torno do aguaçal que alastrava.
De madrugada, em plena bruma, levantavam-se os enfermos — uns, apoiados a escravos, vagarosos, gemendo e seguiam, rompendo as nevoas que rolavam á flor da terra, em flocos ; outros, eram levados em braços.
Este, como um amortalhado que se recolhesse precipitadamente ao túmulo antes do esplendor da manhan, corria, embrulhado em comprido lençol, tintando ; esse, aos pulinhos, arrimado a muletas toscas, lá ia para o atascadeiro ; aquelle, com uma criança ao collo, animando-a carinhosamente, seguia, descalço, pela herva molhada ; e todos, á beira do paul vital, pendurando as roupas nos ramos das arvores, sem vexame, naturalmente, desciam ao ÁGUA DE JUVENTA 9 lodo, chafurdavam, banhavam as feridas, esfregavam as ulceras esborcinadas, raspavam as escaras da lepra, friccionavam as articulações ankylosadas e ficavam no atascal até que a luz aclarava, atoalhando d'ouro os lombos das collinas, o campo em flor e, de um a outro no marnel, eram felicitações por melhoras que se iam accentuando.
O sol irradiava, fugiam lentas, dissolvendo-se, as ultimas neblinas e, de todos os pontos, rompiam vozes d'animaes : mugidos dos bois de carro, que engordavam, soltos, afogados na herva ; balados de ovelhas, latidos dos cães, que farejavam rastos de caça.
Tiros estrondavam, com grandes ecos reboantes rolando pelas quebradas ; campeiros bradavam — e eram galopes desabridos de potros, montados em pêllo, algazarra de crianças, gritos assustados de mulheres, que bracejavam, acenando aos filhos, chamando-os, reprehendendo-os, com receio de que fossem cuspidos pelos animaes naquellas correrias loucas.
Ali mesmo, numa aberta do matto, perto da povoação agreste, eram as rezes abatidas e escorchadas. As bandounas, apodrecendo em acervos, attrahiam os tirubus, e, emquanto, acolhidas aos ranchos, á volta dos caldeirões fumegantes, as familias comiam, falando das terras longinquas que habitavam na orla branca do mar ou nos ricos convalles de mineração, os abutres disputavam o deventre das rezes, brigando, esvoaçando rasteiros ou fugindo aos cães, em vôo alto, com um tassalho de carniça pendente do bico.
Os mais favorecidos acudiam aos pobres, man-
10 ÁGUA DE JUVENTA
davam-lhes presentes — eram gordas postas de carne, gallinhas, cestinhos d'ovos, frutas, remedios e, quando partiam, faziam uma larga distribuição de generos, de roupas ; espalhavam esmolas em dinheiro, concorriam com avultados donativos para a construcção da igreja e, com as muletas debaixo do braço, subiam ao outeiro e lá as deixavam, fincadas entre pedras, attestando o milagre.
Á noite, em volta das fogueiras, as violas soavam languidas, trovas cruzavam-se e o solo estrupidava ao sapatear frenetico do samba, até á hora da reza. Era, então, o terço, cantado de tenda em tenda, ou, nas noites de luar, todos juntos, em circulo.
B na floresta as onças urravam olhando espantadas os fogareus vigilantes e o pântano milagroso começava a fumegar, velando-se de nevoa densa ; e affirmava-se supersticiosamente que, em certas noites aziagas, a horas altas, chammas subiam tremulas, em línguas lividas, desprendiam-se e ficavam pairando e ardendo no ar ;
depois empallideciam, minguavam e subitamente extinguiam-se.
Os mais tímidos, preferindo o soffrimento ephemero do corpo á eterna tortura d'alma, como attribuiam o calor d'aquellas aguas a virem ellas directamente do inferno, deixavam-se ficar nas choças repassando as contas dos rosarios e, como o clima benefico bastava, para lhes abrandar os males, sentindo-se alliviados, davam-se por attendidos pelo Senhor e regressavam aos lares contentes, espalhando lendas tragicas sobre demonios e pallidas apparições e ensinando pelos povoados humildes as sympathias e as rezas a cuja efficacia attribuiam o restabelecimento. AGUA DE JUVENTA 11 Com as noticias das curas milagrosas logo cresceu a ambição e com ella foram acudindo ao ermo logarejo os primeiros habitantes. Fincaram-se esteios solidos, atravessaram-se, cruzaram-se robustas vigas, as colunas foram escavacadas, o adobe foi espalhado era estendal, ao sol. Correram-se muros de taipa, abriram-se caminhos fáceis, bem alhanados, estenderam-se pontes sobre os ribeirões, roçou-se o matto e, pouco a pouco, foi surgindo o povoado que hoje alegra o lindo valle enfeitando a vertente da montanha, as fraldas das collmas, coroando os outeirinhos, dando ao antigo deserto, desfavorecido o tristonho, o aspecto gracioso de uma cidadezinha acolhedora, de paz e de saúde, onde tudo é puro, desde o ar que circula, fino e leve, cheirando a silvas, até á água que se despenha d'alto, por entre as hervas viçosas, branca e gelada.
Se a maioria das construcções é rustica — casas acaçapadas, chatas na planície ou trepando desgraciosamente pelos cerros pedregosos, por entre a verdura dos pomares ou no centro de jardins cuidados erguem-se airosos edifícios modernos, uns ao gosto suisso, com os seus telhados agudos cobertos de escamas de ardosia, com varandas entrelaçadas de ipoméas. Ao fundo, num liso planalto, dum verde vellutineo, avultam dois grandes prédios que, nas horas pallidas e suggestivas da tarde, quando começam a estender-se as sombras, isolados na distancia vaporosa do campo, lembram castellos solitarios com os seus torreões ameiados, guardando o burgo. 12 ÁGUA DE JUVENTA
Era em março. A estação começara alegre. A terra, ainda encharcada dos abundantes aguaceiros que, sem estiada, durante os ultimos dias nublados da semana anterior, haviam alagado os campos e jorrado, em grosso enxurro barrento, pelas vertentes dos montes cavando profundos sulcos, fundamente vincada nos lameiros, molle, espapada, cedia ao andar. Pela relva a água espirrava sob os pés como se se fosse pisando esponjosa plamira. Não raro luziam charcos.
Nos caminhos recalcados espelhavam poças e o ribeirão das Caldas, soberbo e escuro, carreando detritos, aves mortas, gravetos, rolava rumoroso.
Na baixada que se inclina para o ribeirão da Serra branqueavam, como borlas de neve, os pendões floridos do alça-peixe e, por toda a vasta e rasa extensão da planície, bailando á aragem fria, numa traquinice de borboletas, sacudiam-se as flores minosas da herva de S. João.
Andorinhas, em vôo rasteiro, pareciam afflorar a relva— vinham d'esfusiada, trissando, volviam aligeras ; alçavam o vôo, baixavam de novo, quasi raspando a terra com o peito branco.
Cavalleiros, montados á maneira derreada dos caipiras, atravessavam os caminhos ao trote lerdo dos animaes ossudos. Por vezes uma tropa rompia — o guia á frente, abrindo a marcha e logo a recova;
em fila sacolejando a carga e, na coda, silenciosos tropeiros, escarranchados em rocins, o olhar perdido, banzando, com o cabo do relho fincado na coxa.
Succediam-se os carros de bois tirados vagaro-
ÁGUA DE JUVENTA 13 samente por seis e oito juntas, chiando : uns vazios, com pequenitos de pó agarrados aos fueiros, outros carregados, rangendo, guinchando estridulamente.
Cavallos soltos pastavam e, cruzando o ar fino e picante da radiosa e serena manhan, urubus circulavam atravessando o campo, pousavam nos telhados e, d'azas abertas, immoveis, ficavam gosando o sol.
A villa parecia despertar d'um somno de inverno.
Um ar de festa dominical espalhava-se e sentia-se em tudo. As collinas áridas tinham uma cor mais viçosa nos capins esturricados, as pedras adustas do cerro das cruzes, encimado pela capellinha que uma cerca de ripas protegia, lampejavam e, fronteira, a montanha, aqui, ali copada em bosques, como restos d'um velo antigo, tosado, em parte, pelos homens, sangrando ao flanco a água de prata que se despenhava do alcantil, alta, monstruosa, parecia um molosso desconforme, deitado, com o focinho entre as patas, a olhar na direcção do occidente, guardando attento, immovel, silencioso, a villa dos milagres.
Grupos de banhistas animavam o immenso largo, raso e lodoso, cortado de valles, cavado em caldeirões traiçoeiros, que o Dr. Lino, medico das aguas, pensava em alindar com o auxilio patriotico do governo de Minas, transformando-o em parque, á inglesa, com extensas e aparadas relvas, arvores de sombra, pontes rústicas lançadas sobre os ribeirões, Mosques e, ao centro, o Casino : um palacio de architectura moderna, com salões de concerto, de 14 AGUA DE JUVENTA
baile, de jogo, restaurante, bibliotheca e um recinto severo, com mappas e ceroplastia, para conferencias scientificas.
Nas suas correspondências para os jornaes de S.
Paulo, sempre discorria, com argumentos fortes, sobre a necessidade do embellezamento da villa, cujas aguas reputava superiores ás das mais celebradas estações thermaes da Europa.
Quando os banhistas que, de manhan, gosavam o sol á porta do hotel da Empreza, o viam vir pelo largo, encapotado, cabisbaixo, no seu passinho miudo e sereno, alludindo ao seu perfil, que lembrava o do grande imperador, diziam, com malicia : «Ahi vem Napoleão estudando o seu campo de batalha ».
Ás sete horas já elle estava no consultório a examinar doentes, desnudando braços flacidos, magras espaduas, nadegas, sempre preconisando o tratamento pelas injecções hypodermicas, unico efficaz na syphilis.
— Olhe, meu amigo, dizia, apertando os olhi-nhos malicioso, com a seringa entre os dedos — o baptismo devia ser uma boa injecção de mercurio.
Para a mancha original sempre seria de mais effeito do que a agua das pias. Deixe lá falar.
E, estendendo o braço, mostrava os armarios atochados de livros, citava autores, capitulos celebres e emittia conceitos occultistas sobre o Homem e a sua misera condição.
— Nós estamos no planeta para o soffrimento, e só — os gosos são raros, não contam.
Falava de cabeça baixa, sorrindo mysteriosamente, e lá ia desinfectar a agulha, voltava á sala a chamar outro cliente, e desapparecia no gabinete. Um ÁGUA DE JUVENTA 15 gemido surdo accusava a agulhada, mas o doutor animava, heroico e consolador :
— Que é isto comparado ás grandes dores que o senhor tem soffrido ? Prompto. Vá. Está melhor.
E reapparecia, de mangas arregaçadas. Acenava a outro, sempre falando, explicando, dissertando. Era quasi um prazer aquella hora de consulta. Ás vezes detinha-se, contava uma anecdota, um caso clinico, rindo, e todos os enfermos riam com elle, tristemente.
Em certos dias apparecia mais cedo, trancava-se : era para os casos discretos — segredo profissional, o sacerdocio, affirmava arregalando os olhos. Finda a consulta, sabia á porta, a espiar, para dar escapula ao cliente quando não houvesse curiosos no passadiço, nem soassem passos nos corredores. E vultos esgueiravam-se ligeiramente, em jupons, em saias de seda, com mantilhas espessas, sumindo-se nos quartos.
O dr. Lino era a chronica de Poços — conhecia a historia da terra e dos homens. A terra : um encanto !
primeiro clima do mundo, aguas incomparaveis. Os homens . . . puuh ! arrasava-os : politiqueiros da peior especie, sem a mais breve noção dos direitos humanos e passiveis até ao servilismo.
— Carneiros, meu amigo; carneiros. Depois, emperrados na rotina : gostando do lodo em que vivem atolados, oppõem-se a todo o progresso.
Quando aqui se falou em esgottos houve um levante geral. Foi necessário requisitar força, e veiu um sargento com oito homens garantir o trabalho. E
frenetico : no dia da inauguração da luz electrica, meu amigo, houve quem se lembrasse de fazer sahir 16 AGUA DE JUVENTA
uma procissão de desaggravo. Politica e fanatismo.
A igreja é aquillo que vê : um antro. Nem ha sentimento religioso — os desgraçados não vão ali por Deus, vão pelo padre, um machacaz hespanhol, expulso das Philippinas, espécie de cura Santa Cruz, que vai para o altar com uma garrucha á cinta e prega aos berros, mostrando os pulsos guedelhudos e esmurrando o pulpito. Tudo perdido, meu amigo.
O que ha por ahi ó borra de Humanidade.
Finda a consulta, suspirando sobre a ignominia dos homens e a falta de tino dos governos, sahia a correr a clientela por aquelles valles fora, de casa em casa, falando a todos os caipiras, festejando todas as crianças, detendo-se em palestra á porta das lojas, risonho ou resmungando contra a immundicie e o relaxamento.
Nessa manhan, fechando o escriptorio, o dr.
Lino, de pé, á porta do hotel, lançando um largo olhar pelo campo, todo em sol, não poude calar uma exclamação : Que belleza ! e, murmurando contra os governos, que esqueciam aquella maravilha, seguiu, com o guarda-sol ao hombro, em direcção á igreja, cujo sino bimbalhava festivamente.
Bandos de senhoras sahiam dos hotéis, espalhavam-se em direcções diversas, cruzando-se com turmas alegres de rapazes, ranchos garrulos de crianças. Casaes vagarosos preferiam os caminhos desertos, e lá iam, muito juntos, sorrindo, discreteando, felizes na doçura acariciante d'aquelle ar, na alegria azul d'aquella manhan saudavel.
Solitarios desviavam-se para os trilhos mais ermos, evitando o bulicio, os encontros importunos.
Alguns, com as cabeças embrulhadas em lans, as mão senluvadas, AGUA DE JUVENTA 17 encapotados, e, por entre as cores alegres dos vestidos que as brisas enfunavam e das sombrinhas claras, abertas como grandes flores, appareciam os andrajos dos mendigos, que esmolavam choramigando.
Os passeios eram sempre os mesmos. No tempo secco inventavam-se pic-nics e eram festivas abaladas para a Cascata das Antas : as senhoras em carros enfeitados de folhagens, os rapazes em matungos frouxos ; eram ascensões á montanha, almoços na Cascatinha. No tempo das perdizes partiam caçadores a caminho da cidade de Caldas, com farneis e cães. Mas os giros communs não iam além do perimetro da villa.
Os que iam ao mercado, a pretexto de compras, chegando á immensa pocilga, desde o alpendre arrependiam-se, vendo os tassalhos de carne, as fressuras das rezes, as grandes mantas de toucinho, os jacas de queijos, as capoeiras d'aves, os taboleiros de doces, junto aos quaes velhas italianas a caipira das ganiam apregoando rapaduras e bolos.
Outros subiam ao Cerro das Cruzes, como em penitencia, por sobre as pedras soltas, que rolavam debaixo dos pés, a contar as muletas deixadas pelos que se haviam restabelecido naquellas aguas. Ás vezes, junto á biquinha que jorra no campo, reuniam-se curiosos. Os mais ousados bebiam, mas, arrevessando, provocavam a gargalhada dos companheiros, e a água salobra lá ficava com a sua virtude, escorrendo para o ribeirão violento. E, até á hora do almoço, nos dias luminosos, era a mesma alegria ao ar livre, a mesma festa ao sol.
Ao meio-dia começavam a funccionar as roletas.
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Os hoteis aquietavam-se, como em somno de sésta : as senhoras recolhiam-se aos quartos ou reuniam-se no salão, cavaqueando preguiçosamente ; algumas tocavam, cantavam romances tristes ou corriam monotonas escalas.
Os homens juntavam-se á volta do panno verde da roleta ou ao bilhar, ou mesmo no hotel, na sala chamada dos jornaes. Jogavam a manilha, o pocker, cercados pelos paralyticos, que se faziam conduzir em cadeirinhas rolantes para aquella distracção, e ali cochilavam, ás moscas, acordando, sobresaltados, ao estrugir d'um protesto contra a sorte teimosa, ou á gargalhada estrepitosa que celebrava uma anecdota picante. E o dia passava aborrecido, vazio, por entre cavos bocejos.
Á tarde, era o passeio á estação, á espera do trem, a vêr quem chegava ; depois o jantar no mesmo salão, a correspondencia distribuida por um empregado. As cartas eram abertas com ânsia, os jornaes farfalhavam e começavam os commentarios em altas vozes, de mesa para mesa, sobre os telegrammas, as noticias, certos artigos sensacionaes, ás vezes mortes.
Depois era o espectaculo maravilhoso do crepusculo, a riqueza do céu admiravel, broslado de ouro, com grandes viezes de sangue — as ultimas radiações flabellares do sol, os redentes da serra accentuando-se, cravando-se em negro no fundo pallido do horizonte ; as siluetas das arvores, como pintadas no violete assetinado do céu. E as primeiras estreitas luziam, cantavam os primeiros grillos e as ultimas cigarras.
Os grupos que atravessavam o campo, devagar, AGUA DE JUVENTA 19 em contemplativo silencio, eram negros como sombras errantes. O sino da igreja dobrava espaçadamente a Trindades, e instantanea, a luz electrica brilhava em todos os pontos e uma claridade, alva e meiga, estendia-se na terra, calada e triste.
Começavam, então, os divertimentos nos salões dos hoteis : danças, jogos de prendas, provérbios e, não raro, poesias recitadas com muita emphase, cançonetas, copias de revistas. Lembravam-se festas : bailes á fantasia, representação de comedias, um grande cotillon, e todos intimos, como se se conhecessem de muito, trocavam confidencias; e havia rizinhos pelos cantos, parabéns sussurrados, ditos maliciosos « que aquellas aguas eram de grande virtude para as moças solteiras», emquanto lá fora o luar nevava campos e montes e os ribeirões roncavam no silencio.
Ás vezes o doutor apparecia, á noite, para um dedo de prosa e o assumpto, ou era escolhido na sciencia e no occultismo, ou na inércia dos nossos homens, e os nomes de Charcot, Hallopeau, Babinsky, Burnouf, Fabre d'O1ivet, Eliphas Levy baralhavam-se com os dos cabalistas locaes, os espiritos ramerrameiros que procuravam acalcanhar cada vez mais aquella joia de Deus, e, ás dez horas, quando o caridoso clinico se despedia ficavam duas verdades na assistencia, fundamente cravadas nos espíritos, como alicerces na terra sobre a qual se edifica — que os antigos iniciados chegaram ao conhecimento de todos os mysterios superiores e que o Severino Lopes era uma zebra acabada. E dormia-se. 20 AGUA DE JUVENTA
Á hora do almoço, no vasto salão do hotel da Empreza, o assnmpto da palestra era o mesmo em todas as mesas : a chegada de um joven casal, na vespera.
Um luxo de principes : dois criados brancos —
um rapaz e uma moça — e seis malas bojudas, encapadas, além de maletas e bolsas. Muita empáfia, nem se dignaram olhar as pessoas que enchiam a estação ; muito fechados no orgulho —
ella, com um costume taitteur, luvas escuras ; elle, de flanella branca, chapéu de palha, bolsa a tiracollo.
Um dos emprezarios do hotel, o Fonseca, fora á estação recebê-los, muito zumbrido, risonho, offerecendo serviços, pedindo desculpa dos aposentos : Muita gente . . . um atropello.
Elle murmurava com indifferença, relanceando os olhos pela paizagem ; ella falava á criada, ao criado, baixinho, dando ordens.
Não appareceram ao jantar, não appareceram á noite e na sala, com a decepção, accendeu-se uma revolta : as senhoras murmurando contra os pedantes, os homens cochichando maliciosamente.
Um hospede do Globo, que os conhecia, foi logo cercado, assaltaram-no com perguntas e, ao chá, toda a gente sabia que eram casados de fresco, dois mezes, talvez . . . e riquissimos !
Elle vivera sempre na Europa, dissipando a mãos largas com mulheres e ao jogo. Ella, filha unica de um allemão, chefe d'uma grande casa importadora de ferragens e machinas, muito prendada, pianista de mão cheia e formosissima — uma das bellezas do Rio.
AGUA DE JUVENTA 21 Concordavam — que sim, era bonita, elegante, mas muito antipathica : um arzinho implicante. As luvas, sobretudo, tornaram-se a nota principal do escandalo, e os criados e aquelle mundo de malas .. .
Nem que aquillo fosse Petropolis.
Era viva a curiosidade na sala — ao mais leve rumor de passos suspendiam-se os talheres e toda a gente cravava os olhos na porta do corredor, á espera dos « pombinhos». Ás decepções succediamse risos, já se troçava, dizia-se alto, roncantemente :
«Ainda não !» Outros explicavam : «Estão calçando as luvas».
A mesa que lhes fora destinada, junto a uma janella, alvejava e tinha um vaso de flores frescas.
As senhoras indignavam-se com a demora, tomando-a como desconsideração, falta de cortezia.
«Se tinham muito dinheiro, comessem-no, ninguém o pedia. Por que não alugaram uma casa ! Era o que não faltava . . . Ali eram todos iguaes, pagavam o mesmo. Desaforo !» Os homens trocavam signaes, piscavam bregeiramente o olho, riam. Mas o criado appareceu, rigido, de preto, cerimonioso, com o cabello côr de mel, muito escorrido e luzente, e serio, sem levantar os olhos, poz-se a alisar a toalha da mesa, ainda esfregou com o guardanapo os talheres, os copos e ficou de pé, imperturbável, sisudo como uma sentinella.
De repente, na mesa fronteira ao corredor, occupada por uma familia nedia, uma moça muito tu-fada em cassas frouxas, com fitas que esvoaçavam o escorriam aos lados da cadeira, agitou-se, d'olhos arregalados, sacudindo no ar as mãos papudas, como se as houvesse queimado.
Toda a sala que dou 22 AGUA DE JUVENTA
em attitude de expectativa, e lentamente, alta e esbelta, muito branca, com os louros cabellos enrolados em torre, vestida simplesmente de fustão, a senhora appareceu, logo em seguida o marido, de flanella riscada, gravata solta, de seda clara, cinta de fustão sobre a camisa de baptiste. Inclinaram-se e toda a sala transfigurou-se com aquella deferencia ;
e logo appareceram sorrisos, desannuviaram-se as carrancas e a paz restabeleceu-se.
Os dois sentaram-se frente a frente, muito direitos, conversando baixinho, emquanto o criado ia e vinha a fazer o serviço da mesa. Ella examinou as rosas com interesse, inclinou-se para lhes sentir o aroma, depois, alteando o busto, lançou o olhar ao jardim abandonado, onde uma siryema corria, depois relanceou a sala com sobranceria. Elle, d'olhos baixos, pensativo, retorcia o bigode lustroso.
Eram ambos formosos e contrastavam — ella loura, d'uma pelle marmórea, olhos grandes, de longos cilios, azues e cheios d'uma luz de alegria ;
elle moreno, os cabellos negros, luzidios, os olhos immensos, mas tristes, d'uma tristeza de luto.
Começaram a servir-se em silencio e, se falavam, era como em segredo, os mesmos sorrisos pareciam velados.
Pouco a pouco, a sala foi-se esvaziando. Sabiam familias, a um de fundo, homens fumando, pautando os dentes até que os dois ficaram sós. Ella, então, voltou-se toda para olhar o salão, fez um momo e sorriu. Era triste, lugubre, apezar do sol que rebrilhava nos vidros e alastrava o soalho. Ao fundo, entre os immensos armarios envidraçados, em que AGUA DE JUVENTA 23 se perfilavam garrafas, o balcão. O criado, sempre teso, só deseruzava os braços para retirar os pratos. Ao fim do almoço elle accendeu um charuto e propoz uma volta.
Ella encolheu os hombros :
— Vêr o que — A villa, o que houver.
— Com este sol ?
— É que isto aqui dentro é melancolico . . . Depois, quem sabe ? ! pôde ser que encontremos alguma curiosidade. Ha sempre uma curiosidade nestas villotas.
— Pois vamos.
Levantaram-se e foram vagarosamente pelo corredor deserto, buscar os chapeus ao quarto.
Á porta de sahida, no vestibulo, alguns homens digeriam pacatamente, sentados em velhas cadeiras poidas. O largo parecia arder, ao sol. Elle deteve-se hesitante :
— Então, Elsa !
Fitaram-se um momento e foi ella quem desceu primeiro.
— Já agora ...
Sahiram. O nome ouvido não ficou no grupo, passou logo ás senhoras, que houve quem o levasse. Umas acharam-no bonito, a gordalhufa das fitas chirriou, rinchavelhou com as bochechas balofas a tremerem:
«Que aquillo não era nome de gente ..» e repetia-o, bufava-o, soprava-o por entre os dentes podres, rindo desbragadamente, a reluzir de suor. E o moço !
indagaram. O moço era Eduardo, isso já se sabia desde a vespera, pelo telegramma que elle passara de S. Paulo pedindo commodos. Cor- 24 AGUA DE JUVENTA
reram ás janellas para vê-los — lá iam elles claros, atravéz da luz que ardia, muito juntos, seguindo ao acaso.
— Andam em viagem de nupcias, disseram.
E alguém logo insinuou com perversidade :
— Homem, isto de vir a Caldas um mez depois do casamento ... Uhm !
Uma senhora magra e sardenta, investiu :
— Isso não ! Nem todos que vêm a Caldas soffrem de molestias do sangue. Eu, que aqui estou, posso dizer, com orgulho, que nunca tive uma espinha, com a graça de Deus.
Um magricella, promotor num vão de serras, em Minas, pilheriou num grupo onde se empertigava o «philosopho», assim alcunhado por um « cometa», sujeito abaçanado, envernizado, de pin-ce-nez, testa immensa, bigodes retorcidos, citando Augusto Comte a proposito de tudo, das estrellas do céu e do mau bife, sempre axiomatico, despejando regras com uma pronuncia muito explicada, grave, austero, mesmo quando se dignava sorrir. Aprumando a cabeça sentenciou superiormente : —É a prophylaxia do thalamo.
Ninguém entendeu, todos riram ; o promotor dobrou-se e a gordalhufa, que andava com elle aos boleus, rebentou a rir, com estrondo. E os dois lá iam longe, caminho do ribeirão da Serra, animando a adormecida paizagem. Mais um instante e desappareceram.
Em todo o resto do dia, ás mesas de jogo, nos salões dos hoteis, pelas lojas, não houve outro assumpto senão o «casal», uns que defendiam, outros que atacavam. Houve mesmo quem se AGUA DE JUVENTA 25 referisse com indignação aos criados — uns patifes !
Mas á tarde, depois do jantar, duas mocinhas mais ousadas, de braço e sorrindo, foram convidar assenhora para brincar, á noite. Ella accedeu, delicada, e as emissárias estenderam o convite a Eduardo : «O senhor também». Elle agradeceu gentilmente e, á noite, lá foram.
Não faltou ninguém. As mesas de jogo ficaram desertas, mesmo do Globo acudiu gente curiosa de vêr a «linda moça » porque, cessada a hostilidade, não houve quem não proclamasse a sua belleza e louvasse a sua simplicidade. O proprio «philosopho», com um volume de Comte debaixo do braço, lá appareceu prestigiando o «Mia, gato» e a «Barquinha» com a sua presença e commentando as sortes com palavras de bom quilate, ás vezes em latim, para a gorda, que ficava maravilhada. E o dr.
Altino, o promotor, mestre-sala obrigado, sahiu a propor os jogos.
Formou-se a roda e começou a lenga-lenga.
Eduardo não se quiz sentar, respondia de pé, sempre attento á mulher, em torno da qual havia um sussurro constante de admiração. Só a gorda, sempre a espoear em riso, « não a achava essas coisas » o irrequieta, rebolindo o corpo anafado, ia e vinha, aos cochiches, deixando um cheiro de herva secca por onde passava, com um tinir de pulseiras e um garrido d'asthma.
Foi ainda o dr. Altino, sempre inventivo, quem lembrou uma quadrilha, antes do chá e, do meio da sala, espichando-se nas pontas dos pés, com as mangas muito largas a escorrerem-lhe pelo braço, bra-
26 ÁGUA DE JUVENTA
dou : «Tirem pares !» e, antes que outro se adiantasse, curvou-se diante de Elsa offerecendo-lhe o braço secco.
A gorda amuou e, ás rabanadas, abalou, a tresandar, e uma senhora, muito instada, foi para o piano, em triumpho, e, ao signal da quadrilha, estrugiu uma salva de palmas.
Eduardo, encostado ao umbral da porta, fumando, acompanhava a evolução dos pares e estava assim distraindo quando o emprezario do hotel o chamou á parte para apresentar-lhe o dr.
Lino. O moço adiantou-se e estendeu a mão ao medico, que quasi desapparecia num immenso e pesado capote, desculpando-se de só chegar áquella hora por ter ido a um chamado, na vizinha cidade de Caldas — viagem infame, caminhos intransitaveis, nem um rancho. Andurriaes ! E dizer-se que isto podia ser melhor que Petropolis . . .
Eduardo afastou-se attrahindo o medico para o corredor ; convidou-o a entrar no seu quarto. A hora não era muito própria para consulta, mas tivesse paciência — estava ansioso por ouvir a sua opinião.
O doutor adiantou-se solicito :
— Estou inteiramente ás suas ordens. Além de ser do meu dever, o senhor vem recommendado por um dos homens que mais aprecio e respeito. E
sacudiu a cabeça : Um homem raro ! Homem para salvar o paiz.
Foram caminhando.
Entrando no quarto, Eduardo fez sahir a criada e trancou-se com o medico e, por todo o hotel, retumbava a voz esganiçada do bacharel, berrando marcas complicadas, ao som fanho de atropelladas ÁGUA DE JUVENTA 27 notas, que saltitavam assanhadas sob os dedos magros da pianista. Á hora do chá, não vendo o marido, Elsa perguntou por elle, sobresaltada, e ainda arfando de cançaço. « Sahira com o doutor », disseram, e as senhoras envolveram-na, foram-na levando para a sala de jantar. Passando pelo quarto não se conteve — bateu, chamou o marido. Elle entreabriu a porta, tranquillisou-a e trancou-se de novo.
O criado lá estava hirto, diante da mesa, á espera. Elsa sentou-se só e triste, com o olhar perdido, tomando o chá machinalmente, aos pequeninos goles.
De repente voltou-se, deu uma ordem, e o criado partiu apressado. Quando reappareceu, curvou-se, sussurrou um recado e ficou d'oihos na porta do corredor, como á espera d'alguem. Effectivamente, Eduardo entrou na sala com o medico e, apresentando-o, á mulher, offereceu-Ihe a cadeira que o criado aproximara, logo inclinando-se para receber uma ordem.
O doutor, sabendo que haviam percorrido uma boa parte da villa, pediu a opinião de Elsa. Elle sorriu, deu d'hombros, receiando comprometter-se.
— Um horror ! minha senhora. Peior que Nauplusa. Eu sou o primeiro a dizer. Peior que Nauplusa ! Isto seria um paraíso, disse, com as duas mãos abertas, adejando no ar, se o governo me attendesse. Vivo a gastar palavras. Não temos homens. Isto é um paiz sem almas. O criado serviu cerveja e o medico, entrando a fundo no seu assumpto, referiu-se ás águas, ao clima, ás florestas que cercavam aquella estancia admiravel, a tudo que a 28 AGUA DE JUVENTA
natureza prodiga offerecia, e atacou o povo : Gente sordida, cochinos, verdadeiros cochinos. Ha aqui, em terra d'aguas, muita gente que nunca lavou o rosto, garanto. Conheço-os a todos. Temos uns tantos banhos, gratis, a que nos obrigamos pelo contracto de arrendamento ; pois, minha senhora, nunca houve quem os pedisse. Se fossem de lodo, no charco, seriam disputados á faca, como eleições, mas, como são em banheiras, ninguém os quer.
Expôz o seu plano de embellezamento, e, falando, enchia o copo de cerveja, levantando a garrafa para fazer espuma, sorvia-a com delicia, e, de novo, referia episódios da vida calaceira d'aquella gente, sempre chafurdada em politiquice — os homens amorrinhando ao sol, as mulheres pela sacristia, babando maledicencias venenosas, intrigando. Povo salaz ! Ha gente boa, ha, mas . . . é uma minoria, e fraca, que succumbe sob a avalanche lorpa.
Eram onze horas. O hotel ficara em silencio. Um empregado cochilava ao balcão. O doutor levantouse apressado, a pedir desculpa da imprudencia —
não dera pelo tempo. E emprazou Eduardo, para as sete da manhan, no consultorio.
Seguiram juntos pelo corredor até á porta do quarto, onde a criada esperava pacientemente. O
doutor despediu-se ; os dois entraram. Elsa, depois de respirar, alliviada, sorriu ao marido que a contemplava.
— Não imaginas como me diverti na sala.. .
Riram. Ella passou ao quarto em que installára o toilette, onde a criada ia abrindo malas, tirando roupas claras, que estendia no respaldar das cadeiras, Eduardo abriu a janella e debruçou-se.
AGUA DE JUVENTA 29 A noite ia clara e fria, com uma lua enorme e reluzente no meio do céu. As lampadas eleetricas irradiavam na escuridão erma das ruas e dos campos e a voz das aguas, unica no silencio, rolava, profunda, como o resomnar da paizagem.
Fumando, com o olhar mergulhado na melancolia d'aquelle céu, relembrava, uma a uma, as palavras do medico, que não pudera dissimular o espanto ao ouvi-lo. Animára-o por fim . . . mas haveria sinceridade nas suas affirmativas! Um, em Petropolis, aconselhára-lhe o mar, o mar vivo de Copacabana, mar livre da costa, arrojando-se alteroso, estrondosamente, no areai. Outro, do Rio, impuzera um regimen de actividade no campo :
exercicios, passeios a cavallo, tonicos naturaes —
bom ar, bom leite, boa fruta, carne san, nada de livros, o cerebro em absoluto repouso, nenhuma preoecupação. Ainda outro suggerira a electricidade e aquelle, apoiado em opiniões de peso, citando grandes nomes, compromettia-se a curá-lo só com a hydrotherapia e exercicios normaes, gradativos. Só agua e passeios, água a jorros, duchas que despertassem a energia nervosa, e garantia o triumpho, com a certeza de um Deus que dispuzesse da vida e realisasse milagres só com o seu querer omnipotente.
Mas a que devia elle attribuir aquelle horrendo mal ? Chegava a suspeitar de sortilegios, philtros poderosos. Amantes . . . tivera tantas ! Um mez antes do casamento embarcara a ultima para a Europa, bem dotada e com uma palavra enganadora de esperança. E as outras? Molestia . . . Mas que molestia ? Sentia-se forte, bem disposto. Se pas-
30 AGUA DE JTJVENTA
sava as noites em claro era pela agonia d'aquella vida de ânsia, pelo horror d'aquella situação insupportavel que o humilhava e torturava a ambos.
Uma voz cantava ao longe e perdia-se aos poucos, distanciando-se, como se a levasse o vento, e o luar, á maneira de uma flor nocturna que se vai abrindo e trescalando, accendia-se mais, clareando os outeiros e fazendo realçar muros alvadios no fundo escuro e silencioso dos campos.
Era tarde : um relógio bateu as horas vagaroso.
Elsa, prornpta, mandou a criada avisá-lo. Elle fechou a janella.
A criada sahiu em surdos passos e um aroma suave espalhou-se no quarto, onde o leito alvejava, e Elsa, com a camisola branca levemente franzida á cinta por uma fita, as mangas de finas rendas, largas, fugindo, desnudando os roliços braços níveos quando ella os levantava, a golla com um breve decote em frocos de rendas, o cabello alto, o pescoço branco e liso como um fuste de columna, entrou vagarosamente, e, estendendo-lhe as mãos ambas, fitou-o com os seus grandes olhos azues, meigos, languidos, amortecidos d'amor.
Elle sentia-lhe as mãos que esfriavam, frerniam como arripiadas, sentia-lhe o hálito e o aroma que ella toda esparzia, via-lhe o collo arfante que levantava as rendas leves.
Ella murmurou, mimosa e languida :
— Estou com somno.
Elle, com os dedos crispados, torturava-a. Ella inclinou a cabeça sem uma queixa, submissa, vencida, apertando o lábio com os dentinhos, e elle, allucinado, beijou-a, beijou-a... Ella entregou-se-lhe, ÁGUA DE JUVENTA 31 pesando sobre o seu hombro numa abatida inercia, a sorrir.
Delicadamente, afastando-a, passou ao quarto contíguo. Entrou afogueado, tonto e, diante do espelho, livido, com os olhos chammejantes, as temporas latejando, ficou um momento parado, inerte, sem tomar folego.
A cama estralejou, uma sandália cahiu, depois outra ; houve um roçagar de cobertas puxadas, um fofo abater de corpo que se deita maciamente, depois um suspiro abafado. Elle ouvia, attento, d'olhos muito abertos, os braços cruzados.
De repente, sem conter-se, com as lagrimas correndo, deixou-se cahir em uma das malas, abafando os soluços a mãos ambas.
II
Eduardo, que passara toda a noite em claro, rondando desesperadamente o somno tranquillo de Elsa que, na morna penumbra do quarto, onde mal chegava um livor tremulo da lamparina, que velava no aposento contíguo, toda branca e immovel, alvejava como um pouco de luar na sombra, sahiu cedo, com impaciência de vêr o medico, de ouvi-lo, de experimentar o seu tratamento.
Uma claridade fusca de manhan de inverno entristecia os longos corredores desertos, por onde um vento frio enfiava. No salão de jantar iam e vinham criados em mangas de camisa.
Abriu a grande porta envídraçada e sahiu para o vestibulo, a olhar o campo ainda em brumas, sem sol. Um velho, roto e descalço, estendeu-lhe a mão magra, murmurando um pedido. «Logo. Não tinha».
34 AGUA DE JUVENTA
Aquella miséria irritou-o como um presagio funesto, e o velho, humilde, cobrindo a cabeça, dum amarello sujo, com o chapéu esburacado, cujas abas molles cahiam desbeiçadas, deixou-se ficar encostado á parede, encolhido, raspando a pedra do limiar com a ponta do cajado.
Eduardo ali esteve em verdadeiro abandono, sem sentir o tempo, sem dar pelo desannuviamento do céu, toldado de nuvens á sua chegada e então todo azul, liso e luminoso, com um brilho fino de esmalte. A
porta abria-se rinchando á passagem d'homens que vinham do banho e sahiam para o ar livre contentes, galrando e rindo, num bem-estar de saude ; amas com pequenitos alegres e barulhentos. E o velho a todos estendia a mão, com a mesma lamuria, com a mesma humildade, sem levantar os olhos, beijando devotamente as moedas que recebia, com um suspiro quando as guardava no bolso fundo do casacão remendado.
O medico tardava. Eram sete e um quarto e Eduardo, impaciente, nervoso, bateu com o pé e levantou-se de mãos nos bolsos, mascando irritadamente o charuto. Descia o primeiro degrau da escada, disposto a dar uma volta pelo campo, quando Alfredo, muito açodado, abriu, de chofre, a porta, correndo a preveni-lo : « Que o doutor estava á sua espera ...»
Eduardo voltou-se vivamente, com um affluxo de sangue para o coração e subiu, foi-se, corredor a fora, preoocupado.
O medico, sempre encapotado, passeava no passadiço que levava aos banheiros, esfregando aa mãos. Ao vê-lo, sorriu. Eduardo desculpou-se :
AGUA DE JUVENTA 35 « Estava sentado á porta. Não o vira entrar ».
— Passei pelos fundos, disse o dr. Lino, e, diante da porta do consultório, afastou-se, cedendo a passagem. A
chave rangeu.
Elsa, abrindo os olhos, relanceou o quarto e, não vendo o marido, chamou-o. A lamparina vas-uejava crepitando nos ultimos lampejos, e, pelas frinchas das janellas, entravam faixas de sol polviIhadas de ouro.
Soergueu o busto, passou os braços por baixo da cabeça e estirou-se de novo no concavo que o seu corpo cavara no leito tepido, e, d'olhos parados, muito abertos, ficou a pensar.
O sangue, aquecido e forte, refervia-lhe nas veias, a sua carne tinha crispações como a água d'um lago que as auras frisam, um torpor prostrava-a, embriagava-a deliciosamente. Sentia-se, por vezes, como lambida por uma chamma, depois era uma sensação macia de velludo correndo-lhe a flor da pelle, lenta, molle, sensual.
Cerrou as palpebras, com um arfar mais forte, que fazia ondular a coberta, relembrando os seus sonhos.
Elle . . . ! -Era aquolíe o homem que o seu coração reclamara, sentindo-o próprio para fazê-la feliz, amandoa com aquella ternura que ella imaginava existir no amor e, todavia, andavam como peregrinos, como malditos, perseguidos por um fado cruel, de lugarejo em lugarejo, fugindo á cidade, onde haviam, com tanto esmero, composto o ninho de amor que lá estava fechado, esquecido, com um velho criado a guardá-lo.
Viviam tão longe um do outro como no tempo 36 AGUA DE JUVENTA
em que, ainda noiva, compunha a ventura com aa promessas que d'eile colhia, as mudas promessas que as mãos juntas permutam e que os olhos languidos confirmam.
Desde a noite do casamento trazia no coração aquelle receio e na carne aquella inexplicavel adustão. Buscava-o e elle fugia-lhe. Seria verdade o que elle lhe dissera, com lagrimas, ou haveria entre os dois um voto sinistro, algum juramento terrivel ?
Que sabia ella do mundo ? Vivera sempre na mais recatada innocencia entre os pais, duas almas simples, e partira para a sonhada felicidade arrebatada nos braços d'aquelle que a desposára, deixando-se levar sem mesmo volver os olhos para o lar que abandonava. Tudo era mysterio para a sua alma, todas as suas interrogações afflictas ficavam sem resposta. O que elle lhe dissera, num tom de voz em que havia desespero e medo, podia ser verdade, mas . . . Uma noite encontrára-o chorando, na sombra d'uma janella, e, rompendo allucinadamente d'agonia, com o rosto molhado em lagrimas, a estremecer com os soluços, beijára-a muito para, instantes depois, afastar-se triste, arrancando os cabellos, rangendo os dentes.
Reabriu os olhos munidos e, mais vivo, o calor ardeu-lhe no corpo queimando-lhe o seio, incendiando-lhe as faces. Bateram de leve á porta —
era Eugenia. Elsa perguntou pelo marido.
— Alfredo disse-me que elle está com o doutor.
A senhora não vai ao banho ?
— Sim ; vou.
— Quer antes uma chicara de café ? AGUA DE JUVENTA 37 — Pois sim.
Eugenia entreabriu a janella do toiletie e houve um clarão. Elsa espreguiçou-se, ergueu-se lesta e toda a sua farta oabelíeira, desenrolando-se, despenhou-se pesadamente.
No toilette, emquanto lavava o rosto e escovava os dentes, ouvia Eugenia que, a abrir malas, ia fazendo a descripção minuciosa do que vira no estabelecimento bamear : Os compridos e estreitos corredores onde ficavam os cubiculos dos banheiros, os typos curiosos que encontrara pelo passadiço, na sala de espera — gente de outros hoteis : homens macilentos, lividos, alguns escondendo mazellas, com o pescoço muito atabafado, as mãos enfiadas nos bolsos dos capotes, calados, macambuzios. Mulheres com mantilhas pela cabeça, amarellas, enjoadas, tossindo.
Um entrevado, que fora em braços, sorrindo idiotamente, ficara encolhido num banco, entre um negro e uma velha, a olhar, com a boca aberta, o labio pendido, escorrendo baba. Um padre que lia, fungando alto, resmungando de instante a instante, furioso, impaciente, a espichar os olhos para o corredor central. Uma balburdia, um ir e vir constante de doentes e todos servindo-se das mesmas banheiras. Eugenia concluiu com um momo de nojo :
— Eu é que não me metto nesses banhos. Deus me livre ! Estou lá para apanhar alguma coisa.
Elsa sorriu e, curiosa, poz-se a interrogá-la sobre pessoas do hotel: Se as vira, se lhes notara alguma coisa. E a criada lá ia estendendo as suas informações, fazendo commentarios, aventurando suspeitas.
38 AGUA BE JUVENTA
Prompta, mirou-se ao espelho e decidiu-se a sahir. A criada tomou um casacão do agasalho e a toalha felpuda, e lá foram as duas pelo corredor. Os homens afastavam-se, cosiam-se com a parede, cumprimentando respeitosamente; senhoras passavam ligeiras, de cabeça baixa, muito forradas d'abafos, receiando as correntes de ar.
Na sala, o «philosopho», repimpado na cadeira de balanço, com a immensa testa a reluzir, os bigodes muito esticados, agudos como espinhos, lia um grande livro. Sentindo passos femininos, voltou o olhar hypocrita, soergueu-se, muito grave, curvouse, com o respeito que a escola impõe a todas as mulheres», depois refestelou-se, ainda retorceu as pontas dos bigodes e remergulhou os olhos no transcendente, com o espirito, mais faceto, a espairecer em carnes.
Quando Elsa chegou ao estabelecimento, o dr.
Altino, que conseguira um banheiro e conversava intimamente com o homem que o lavava a grandes vassouradas, fez questão de o ceder. Não tinha pressa. E, saracoteando, a rir, com o rosto contraindo para que não apparecessem os dentes podres, afastou-se triumphante, quando Elsa, vencida, agradeceu-lhe o obsequio. Rejubilou com aquelle acto de cavalheirismo «medieval», já deliciando-se com os parabéns que receberia quando o referisse na «roda », com alguns accrescimos —
um aperto de mão, um sorriso amavel.
Eugenia, que antipathisava com elle, conservouse sempre reservada, sisuda, muito direita, com o casacão e a toalha no braço, sem o olhar se-
ÁGUA DE JUVENTA 39 quer e, quando entrou, acompanhando Elsa ao banheiro, explodiu :
— Que homemzinho ridiculo ! E como encara a gente, sempre a torcer aquelles fiapos da cara.
A agua jorrava das torneiras e Elsa olhava-a distrahidamente, tão limpida, suave como um oleo fino.
Quando o criado appareceu, com o thermometro, para tomar a temperatura d'agua, ella perguntou pelo marido :
— Se o vira ?
— Sim senhora : está nas duchas.
— Ha muito tempo ?
— Não, senhora. Não ha dez minutos ainda.
Prompto o banho, Elsa despediu Eugenia, com ordem de ficar á porta, esperando-a. Despiu-se e, alva, no esplendor do seu corpo de linhas puras, reflectiu-se n'agua, como uma nympha, e deitou-se, deliciada, gosando a caricia tepida, esticando-se a todo o comprimento do banheiro de cimento es-»curo. A voluptuosa agua amollecia-a e, inerte, os braços cruzados sobre os seios rijos, cerrou os olhos, e ali jazia, longe da vida, num sonho suave, quando bateram á porta.
— Quem é ? perguntou, sobresaltada.
— Eu ! disse Eduardo alegremente. Demoras muito ?
— Não. Vou sahir.
— É tarde. Se queres dar urn passeio antes do almoço, avia-te.
— Vou já. É só o tempo de enxugar e vestir-me.
Sahiu d'agua, contente como se houvesse recebido uma boa nova, com um sorriso estampado no rosto lindo.
Enxugou-se ás pressas, vestiu-se e, entreabrindo a porta, chamou a criada, ansiosa por saber 40 AGUA DE JUVENTA
o resultado da consulta :« Que dissera o medico ? », sentindo, de novo, o calor que lhe abrasava o corpo, a mesma sensação deliciosa de um velludo que lhe fosse roçando a espinha.
Vestida, mirou-se ligeiramente ao espelho, enfiou o casacão de golla alta e foi-se apressada, sem mesmo olhar, attender ás pessoas que a saudavam.
A gorda, que grasnava num grupo, voltou o rosto e espirrou um rizinho quando a viu passar com um farfalho de rendas. Outras senhoras ficaram a admirá-la, achando-a linda. Gabavam-lhe os olhos, os cabellos, a côr da pelle fina, a graça do andar airoso.
Eduardo estava á porta do quarto, sorrindo.
Dando com os olhos nelle, sem preoccupar-se com os homens que passeavam no corredor, partiu a correr, como uma criança, e atirou-se-lhe nos braços. Entraram. Elle levou-a, muito chegada ao peito, para o sofázinho, e sentaram-se.
— Estás com as mãos geladas, disse ella, achegando-se muito ao marido, como a querer transmittir-lhe o calor que sentia.
E elle, radiante :
— Tentei, meu amor. Mas creio que o medico disse a verdade : É" a vida que volta.
— Que sentes ? perguntou ingenuamente.
Elle fitou nella iim olhar cheio de desejo, ficou a contemplá-la languidamente e, enlaçando-lhe a cabeça com o braço, attrahiu-lhe a boca e ficaram enlevados num beijo que os fazia estremecer e lhes tomava o halito. Ella, sem folego, arrancou-se ansiada, respirando largamente, cançadamente.
— Ah ! EIsa . . . Subito, em decidida resolução, ÁGUA DE JUVENTÁ 41 levantou-se afogueado : Queres vir? Está uma manhan lindissima ! Vamos por alli devagar.
_ Vou arranjar-me. Olha como tenho os cabellos.
— Acho-te mais linda assim.
— Queres que eu saia por ahi desgrenhada como uma louca ? É um momento.
Chamou Eugenia.
Eduardo, á janella, olhava, cheio de esperança, para aquelles verdes campos, para aquelles cerros, para toda aquella terra, mãi d'aquellas águas bemditas que o haviam de refazer para a vida e para o amor. Sentia-se outro. Alguma coisa revivera nelle sob a violencia d'aquellas rudes lambadas d'agua, A
alegria repontava-lhe no coração, como a herva florida, que, ao cahir das chuvas, rebenta em terreno longamente causticado pelo sol. E olhava, como a divisar os dias novos, de ventura, e, ouvindo a voz harmoniosa de Elsa, mais se alegrava, também por ella, pobrezinha ! que vivia torturada de amor, sopitando os estúos violentos da mocidade, calando, contendo a sua ânsia, resignada, passiva, para não augmentar-lhe a tortura.
—Vamos, Elsa. O sol começa a aquecer.
—Vamos.
Estava prompta e deslumbrante. Sahiram.
Na sala, o « philosopho» dissertava sobre questões de linguistica com um anafado negociante de couros e um fazendeiro italiano, que mancava, com uma ulcera no tornozello, quando o dr. Altino irrompeu, gabando o banho.
« Uma delicia! Divino ! Deixara-se ficar mettido n'agua, a gosar, mais de meia hora». E concluiu;
42 AGUA DE JUVENTA
« Ah ! os romanos ! os romanos ! grande povo . . .
As thermas de Tito, hein ! Já leste ?» O «
philosopho » acenou com geito grave : Que sim, tinha lido tudo. Os dois outros conservavam-se boquiabertos.
O negociante foi para a janella escarrar a sua gosma ; o da ulcera sentou-se, trincando o beiço, esticando a perna. Os outros remontaram sabiamente, mas o promotor, pesado de luxuria, veiu logo abaixo, ao lodaçal torpe da devassidão, communicou ao «philosopho » o incidente amavel —
accrescentando : « Que ella lhe estendera a mão —
que mão ! »— chupou, num sorvo, os cacos, com os olhos em alvo — e que sorrira. Depois, sempre lubrico, mudando de tom, perguntou, com mysterio :
«E tu, já reparaste na criada ? » O «philosopho »
franziu a testa immensa em sulcos de indignação.
«Pois olha — é bem bonita ! Um bocado magnifico.
Repara ». O outro encolheu os hombros, com desprezo. « É o que te digo. E eu, em materia de mulheres, sou mestre. Tenho visto o que ha de bom». Mas voltou á Elsa, imaginando-a no banheiro, núa, sob a transparencia d'agua. Hein !
Senhoras chegavam, e a gorda, dando com o promotor, ainda purpureo d'enthusiasmo erotico, perguntou-lhe, com ironia, se dormira bem, se tivera sonhos agradaveis. Elle sorriu e ia sussurrar uma phrase amavel, quando ella o repelliu com um muchocho, rabeando com as saias muito anchas e em pregas duras, de gomma.
O « philosopho » voltou ao espiritual, afundando na cadeira com o grande volume.
ÁGUA DE JUVENTA 43 Á hora do almoço, já intimos, os hospedes não se preoccuparam com o rígido Alfredo, e receberam o casal sorrindo.
Á noite appareceu na sala — descoberta do dr. Altino — um homem que deitava as cartas. Foi um sucesso.
Fechado num circulo curioso, a baralhar com mysterio, fazendo passes cabalisticos, dizia o futuro das senhoras, e todas, com os olhos abertos, cravados na mesa, esperavam as palavras do cartomante que combinava as figuras e, das relações das cartas, tirava conclusões oraculares, dizendo : «Muito ouro, um casamento feliz;
uma viagem ; moléstia curta ». Ás vezes empacava, embaraçado, e o silencio tornava-se maior, cheio d'angustia — eram sombras, difficuldades, interpretação complicada.
A victima empallidecia, mas impunha corajosamente:
— Que lesse, fosse franco. Sabia mesmo que havia de ser sempre infeliz.
Consolavam-na com palavras animadoras, e o homem, sem inspiração, suando em bagas, assegurava que não havia nada de mal, pelo contrario — lá estava a bôa carta, que conjurava todas as desgraças e, discorrendo, era como um ligeiro rio de ventura, que derivasse docemente, sem embaraços, por meandros suaves, deixando em todas as almas um pouco de felicidade. Elsa sorria, sem atrever-se a pedir o seu destino e foi a pianista, a bôa e magra D. Ursulina, quem falou por ella.
— Veja a sorte de D. Elsa, snr. Cruz.
O circulo apertou-se mais. O Cruz pigarreou, 44 ÁGUA DE JUVENTA
baralhando as cartas, com as duas centelhas nos oculos, lançou os macmhos na mesa e, descobrindo a primeira carta, declarou, risonho :
— Muita felicidade no amor.
— Pudera ! exclamou D. Ursulina, Também se ella não fosse feliz no amor não sei quem mais havia de sêr.
Vozes reclamaram silencio e o Cruz, inspirado, foi interpretando : Uma viagem, filhos ; dois filhos.
Houve rizinhos maliciosos. A gorda casquinou, derreando-se toda, com um despejo de banhas sobre uma mocinha raiva, picada de sardas, para sussurrar um segredo. Ouro, sempre ouro, muito ouro, augurou o Cruz, mas hesitou, gaguejou pousando na mesa uma carta que representava um esquife.
— Um caixão de defunto, não é ? perguntou Elsa e, sorrindo conformada, adiantou : Ê a morte.
O Cruz, atarantado, quiz corrigir, mas, diante da figura sinistra, titubeava :
— Não, aqui quer dizer — molestia grave...
molestia grave. Resolutamente virou outra carta —
era uma arvore de grosso tronco, muito esgalhada, toda verde. Cá está a saúde, disse triumphante com a carta entre os dedos, mostrando-a. Eu bem dizia .. .
E, continuando a cartear, teve um movimento subito de espanto, illuminou-se-lhe a phy-sionomia, e, com um formidável murro que fez tremer a mezinha, achatou uma carta, bradando : Avictoria ! Era um fundo céu azul com o sol irradiante. E concluiu : Um sortão ! Fora a doença, é uma sorte admiravel, soberba !
O «philosopho», sempre teso ao lado do dr, AGUA DE JUVENTA 45 Altino, contemplava, com indifferença, aquella superstição. Mas o promotor não se conteve — quiz também levantar uma ponta do véu mysterioso, desvendar alguma coisa na sombra do porvir e pediu a sua sorte. Foi hilariante. Logo um casamento, um rancho de filhos, trabalhos e a immobilidade —
acabaria entre as serras, vegetando obscuramente num triste canto do interior.
— Coitado do dr. Altino! lamentou D. Ursulina.
Outros lastimaram o destino ingrato. Mas o promotor protestou:
— Que não ! estava bem contente com a sua sorte, nem queria outra coisa. Tivesse elle saude ...
O Cruz offereceu-se para ler a sorte do «philosopho » ; elle recusou.
Era positivista. Não concorria, mesmo brincando, para alimentar a superstição.
— É só para passarmos o tempo, doutor, disseram.
Elle insistiu na recusa. Houve algazarra:
— Tem medo ! Tem medo !
— Medo ! eu Acho pueril. Quem lê, quem estuda, não pôde tomar a serio essas coisas.
O Cruz, muito grave, defendendo a sua sciencia mysteriosa, declarou : « Que o grande Napoleão Bonaparte consultava cartomantes ...»
— Ora, Napoleão Bonaparte . . .
— Sim, senhor, Napoleão Bonaparte, o grande.
Posso provar, está nos livros.
— Qual! Emfim, como passatempo, vá ;
passatempo para senhoras e crianças, mas para um espirito emancipado, que tem a sua disciplina philosophica, como eu ... 46 ÁGUA DE JUVENTA
Atirou um gesto desprezivel como se lançasse de si uma immundicie. Mas as senhoras teimaram, pediram ao Cruz que lesse.
— Então, doutor . . . Vamos vêr se o «
philosopho» deu d'hombros e o Cruz lançou as cartas. Logo á primeira estrondaram gargalhadas :
era um vergalho. O Cruz, carregando o sobrecenho, decifrou : Difficuldades, trabalhos. Vieram ratos —
e foi uma balburdia na assistência. Traições em negocios, interpretou o cartomante. Uma carta sellada . . . Ahn ! o segredo . . . Agora . . . Agora . . .
Curvaram-se todos, alguns puzeram-se de pé para vêr melhor : Veiu uma mulher. Estrugiram palmas.
O austero homem fora pilhado, lá estava a coisa e, por ultimo, uma raposa encurralada na toca, a olhar com desconfiança. O doutor dissimula, disse o Cruz.
— Deve ser isso, concordou, já azedo, o «
philosopho».
E, como a ultima carta annunciasse mudança de vida, logo as senhoras traduziram : Casamento. E, até á hora do chá o Cruz espalhou, a mãos largas, a fortuna, a alegria, a esperança feliz, abonançando as almas mais desesperadas. Mesmo a gorda rejubilou com a promessa do uma proxima carta que lhe havia de dar «summo contentamento », no dizer do augure.
Ao chá não se falou em outra coisa :
recapitularam-se, compararam-se as sortes, todos contentes porque, em verdade, ninguém ficara sem louvor e sem uma doce esperança. Só o dr. Altino, engrolando o pão entre as gengivas, esmoía aquelle presagio tremendo de uma vida raza, entre montes, sobre autos, com um tropel de filhos á volta da sua.
III
Uma rnanhan, ao voltarem da estação onde tinham ido assistir á partida do trem, Elsa suspirou nostalgica : «Que faziam ali ? Estava com tanta saudade do Rio, dos seus ...»
Eduardo conservou-se calado, taciturno e, até o hotel, não trocaram palavra.
Eugenia acabava de arrumar os quartos e alisava a cama sobre a qual o sol estendia uma faixa de ouro. O ar fino da serra entrava ás bafagens macias pelas janellas largas. Cigarras cantavam e bandos de pequeninas borboletas brancas revoavam como pétalas soltas que o vento levasse em remoinhos.
Eduardo accendeu um cigarro e, emquanto a mulher se revia ao espelho, recompondo os cabellos esvoaçantes, poz-se a mirar as unhas, limpando-as, polindo-as com um pequenino estylete de prata.
Quando a criada sahiu elle deu volta á chave, 50 ÁGUA DE JUVENTA
atirou fora o cigarro e, sentando-se em uma poltrona de vime, chamou a mulher. Ella voltou-se sorrindo, como arrependida, a pedir perdão, com os olhos meigos, do movimento de impaciencia que tivera.
— Ficaste sentido commigo !
— Não.
— Que queres . . . Isto está tão triste, Eduardo. O
melhor é não irmos mais á estação. Não imaginas como eu fico quando vejo partir o trem. Lembro-me de tudo : da nossa casa, de mamai, de papai.. .
Elle olhava-a, enternecido. Estendeu-lhe os braços, ella chegou-se, attrahida, e sentando-se-lhe ao collo, vergonhosa, com as faces abrasadas, quedou de olhos baixos.
— Aqui, nem sequer podemos estar á vontade, murmurou, a medo : sempre ha gente a chamar-me.
Já não supporto os taes divertimentos — irritamme. Vou, emfim, para que não digam que sou orgulhosa.
Elle ouviu-a, sem achar uma palavra para dizerlhe ; temia confessar a verdade, e ficaram largo tempo calados, á espera um do outro. Ella corava, empallidecia, as mãos gelavam -se -lhe. Elle, vazio, sem uma inspiração, procurava uma maneira delicada de narrar o seu soffrimento, na qual ella visse, com a flagrante, dolorosa verdade, a sua situação desesperada. Porque já não confiava nas aguas, aquellas águas que brotavam quentes das veias profundas da terra, como um sangue forte, que renovava as energias gastas, que transmittia vida, mocidade, reparava as desfeitas das molestias, revi-
AGUA DE JUVENTA 51 gorava, reanimava os debilitados. Quinze dias de tratamento, e nada : a mesma inercia cruel.
De repente, tomando-lhe delicadamente o rosto nas duas mãos, fitando-a bem nos olhos, perguntou com meiguice :
— Não tens pena de mim, Elsa ?
Ella corou subitamente e dos seus lindos olhos, sobre os quaes as palpebras cahiram, duas lagrimas desceram lentas. De novo calados, constrangidos, soffrendo, apertavam-se as mãos com ânsia, e foi elle, por fim, quem se resolveu a falar :
— Ouve, Elsa, tu és pura, bem sei, mas, para iniciar a innocencia, fez Deus o instincto. Ainda que a tua alma se não tenha insurgido contra mim, sinto que o teu corpo revolta-se.
Ella fez um movimento para protestar ; elle contevea.
— Deixa-me falar, não ha no que digo offensa, nem immoralidade, acredita. Sabes que te amo loucamente, vivo por ti só — e has de ter prova disso, affirmou com voz surda — mas sou um desgraçado.
Ella encarou-o. Por que ? não sei. Estraguei-me . . .
Os medicos dizem tanta coisa . . . Que tenho isto, aquillo. Falam de uma moléstia nervosa. O dr. Lino attribuo exclusivamente ao cerebro — acha que sou um «obcecado». Sei lá ! A verdade é que nada conseguem. Sou um homem perdido. Esgotei-me.
Fui um estroina, mais, talvez, do que isso — um devasso.
Emquanto vivi na Europa dissipei a mocidade sadia, com a mesma largueza e a mesma indifferen-ca com que gastava aos milhares de francos. Nunca fiz contas, nunca me preoccupei com molestias, 52 AGUA DE JUVENTA
o meu banqueiro e os meus vinte annos não me negavam recursos. Fui o verdadeiro prodigo. Não houve extravagancia que eu não fizesse, ás vezes, senão sempre, por ostentação, para dar que falar. Eu tinha orgulho do vicio.
A roda que eu freqüentava era a mais elegante, a mais exigente, e eu, para impor-me, excedia a todos em loucuras. Vivia em verdadeiro fervedouro, percorrendo desenfreadamente toda a escala das emoções, numa fadiga que me consumia e contra ?
qual só a vaidade reagia. Era o jogo, eram as ceias, as continuadas vigilias de amor, lances de audacia incrivel que me grangearam uma fama que, nesse tempo, me orgulhava e que, hoje, enche-me de vergonha.
Apontavam-me, em Paris, como um heroe de aventuras extraordinárias e eu era disputado pelas ephemeras com verdadeira furia. Não sei como chegou aos nobres salões armoriados a minha chronica. O caso é que as grandes damas assaltavam-ne com avidez, e fui o amante de não sei quantas hystericas, que se saciavam em mim com frenesi de possessas.
Vivi assim durante annos e quando deixei Paris, sentiu-se um grande vácuo e, ainda hoje, nas cartas que de lá recebo, os amigos referem-se á minha ausencia como a um desastre, lamentando a cidade, que perdeu o brilho e a graça.
No Brasil procurei refazer-me, mas como a fadiga só irrompe quando o corpo se entrega ao descanço — a tensão nervosa mantem-se emquanto dura a acção, mas afrouxa, lassa, flacida, logo que se enfraquece — todas as molestias incubadas ex-
ÁGUA DE JUVENTA 53 plodiram quando me apanharam abatido. Fui covardemente assaltado e soffri, durante um anno, quanto se pôde soffrer. Foi no fim da convalescença que tive a fortuna de encontrar-te em Friburgo e, desde logo, ameite, escravisei-me aos teus olhos, prendi-me á graça puríssima da tua mocidade e da tua meiguice. Foste tu que me revelaste a Mulher.
Que foi o nosso noivado ? Para mim foi a purificação. Amei-te — e emprego, pronuncio a palavra veneradamente. Amor, depois que te vi, é, para mim, um vocábulo sagrado. Amei-te e, para possuir-te pura, nunca profanei, com um beijo sequer, o nosso idyllio de noivos.
Dediquei-me inteiramente ao teu culto. Fiz mal, talvez.
Depois d'umapausa angustiosa, disse arrancadamente:
— O que se dá commigo só pode ser explicado por uma vingança . . . divina. Não penses que falo como poeta, não ! mas parece que Deus entende que a nossa alliança deve ser puramente espiritual, a incidencia de dois raios de luz, como a união dos adelphos nas primeiras eras christans.
O corpo vem da impureza ; a alma, essa nunca se deixou polluir. Mergulhei no pântano, mas sempre a tive suspensa, como os soldados que, atravessando as lagunas e os charcos, levam as armas levantadas acima da cabeça.
O que encontrei em mim, quande nos casamos, foi simplesmente o amor, e esse, Elsa, não t'o descrevo, porque não ha palavras tão puras e fortes que o possam exprimir. Amo-te !
Cingiu-lhe o busto com o braço, attrahindo-a e sussurrou: 54 ÁGUA DE JUVENTA
— Mas por que não havemos de ser um do outro ?
Por que ? Não é justo que assim sofframos, ou antes : que soffras.
Ella inundou-o do perdão com os olhos virtuosos.
— Não fales mais, pediu baixinho. Tenho ver gonha.
— De que ?
— Não sei.
— Mas eu preciso dizer-te tudo.
— Não.
— Não queres ouvir-me ?
— Sobre isso . . . não. Chorava. Levou o lenço aos olhos e inclinou a cabeça sobre o hombro de Eduardo.
Um momento os dois corpos tremeram sacudidos pela mesma emoção, e ella, rompendo o silencio torturado, exclamou surdamente : Tenho pena de ti!
— Tu ! porque ?
Elsa encolheu os hombros. Elle então, num furor, apertando-a com frenesi, disse-lhe aos arrancos :
— Pois é, meu amor . . . É por isso que aqui estou. Tens-me acompanhado a todos os lugares para onde me mandam os médicos. O mar negou-me a vida que lhe pedi, e a ti deu mais força ; as florestas nem me sentiram. íamos os dois, por entre as arvores, sorvendo o ar puro e forte, saturado de seiva, aquecendo-nos á luz viva do sol dos montes — tu ganhavas mais viçor, eu . . . Aqui é possivel...
Espero readquirir a minha mocidade. Queres ficar mais uns dias ? Já sabes tudo.
Mais nervoso, numa irritação, os dentes cerrados, rilhando, rugiu :
— Além do mais, eu tenho ciume de ti, Elsa, AGUA DE JUVENTA 55 dos teus pensamentos, porque sei que o desejo é mais forte que tudo. És mulher, és carne, és frágil. O noivado abriu-te uma porta sonhada. Entraste esperando o deslumbramento e enoontraste um cadáver, e é ao lado delle que vives, é junto do seu corpo frio que estendes o teu corpo ardente e, quando elle te Ibeija, é como um pesadello que te martyrisa com a illusão.
Ella quiz levantar-se, fugir ; tinha medo. Afastou-se procurando desvencilhar-se, mas o marido reteve-a. Os seus olhos ardiam como no furor de um delirio.
— Vamos sahir . . . implorou.
— Não ! Continuou em confidencia : O dr. Lino prometteu curar-me. Tenho confiança nelle, é um sábio.
Ah ! Elsa, se elle conseguir . . . Porque eu juro que, se perder a esperança de possuir-te, ma-to-me.
— Não digas isso !
— Mato -me ! affirmou. Deixo-te livre e, para que não recaia suspeita alguma sobre ti, tomarei todas as providencias.
— Estás dizendo tolices.
Levantou-se. Elle seguiu-a :
— Não, é a verdade. Não podemos insistir nesta vida. Afinal, eu não posso continuar a viver como vivo — dentro de uma hypocrisia, torturado e torturando.
Não é d'homem. Entregar-te a teus pais ?
Não ! não tenho coragem ; é uma vergonha. E a sociedade ! A sociedade não acreditará que és uma victima.
Pois não acabaste de dizer que tens confiança no medico ? 56 AGUA DE JUVENTÀ — Sim, tenho.
— Então ? Não digas tolices. Queres que eu fique ainda mais nervosa ? Matar-te ... E eu ?
— Sim, mas ...
Acalmando-se, sentiu-se vexado do que dissera e, sem animo de encarar a mulher, debruçou-se á janella, olhando o campo todo em sol.
Crianças corriam alegremente, aos gritinhos. Na casa contigua, onde havia uma roleta, uma harpa gemia. Elsa foi para o espelho recompor a toilette, e ageitava as mangas fofas da blusa de cassa da india, quando bateram discretamente á porta. Eduardo voltou-se impetuosamente, num sobresalto :
— Quem é ?
— Eu.. .
Era o doutor. Reconhecendo-lhe a voz, perguntou á mulher se podia recebê-lo :
— Sim. Estou prompta.
O medico entrou muito familiar, gabando o claro dia, a temperatura.
— Uma manhan suissa. Elsa offereceu-lhe uma cadeira. Sentou-se descerimoniosamente arrepanhando para os joelhos as abas do sobretudo grosso. Está um dia para passeio. É o que os senhores não têm lá no seu Eio, confessem. A
senhora é que deve estar com saudades, não ?
— Nem por isso, doutor.
— Isto podia ser uma delicia . . . não querem.
Foi á janella olhar o largo, as colunas cobertas de luz e logo os seus olhos viram surgir o grande parque do seu sonho, o casino, todas as maravilhas criadas pela sua imaginação e como se effectivamente as visse ali, solidas e ricas, atirou o braço ÁGUA DE JUVENTA 57 num gesto largo : Veja . . . Tudo isto aproveitado. Seria urna fortuna para o governo e um regalo para quem viesse ás águas. Porque não ha melhores, garantiu.
Voltou á cadeira e, enrolando um comprido cigarro de palha, perguntou a Eduardo : Então ! mais animado ? Elle sorriu tristemente. O seu marido é muito nervoso, minha senhora.
Eis» sorriu e, comprehendendo que a sua presença vexava os dois homens, pediu licença e sahiu.
Houve um festivo rumor de falas, rizinhos no corredor e passos que se foram perdendo na distancia.
Sós, o doutor deu vilta á chave, accendeu o cigarro e inclinou-se, com os supercilios franzidos, um dedo dogmaticamente fincado :
— Estou convencido, meu amigo, do que hontem lhe disse na palestra que tivemos. A sua molestia é principalmente mental. O senhor vive sob o imperio de uma impressão, que já se vai tornando idéa fixa e hoje todo o seu organismo resente-se do mau prestigio d'essa fatalidade. O seu caso não é freqüente, mas isto não quer dizer que seja excepcional. Meu amigo — o rachis é a grande columna do edifício humano do qual o cérebro é a cupula. Esse receio de contaminar sua senhora é já um desequilibrio. O seu espirito em vigilia permanente, sempre cheio de pavor, absorve toda a energia. O
tratamento a que o senhor se submetteu foi dos mais enérgicos, excessivo talvez. É verdade que esse mal tão temido, uma vez entrado, insinua-se para o sempre e não sahe, mas torna-se in-offensivo quando é attenuado. É preciso reagir contra a preoccupação, ser forte, oppor uma vontade rija a essa falsa, consciencia. 58 AGUA DE JUVENTA
— Qual, doutor . . . não tenho mais esperança.
— Não tem esperança !? Mas, pelo amor de Deus, o senhor não pôde ser um fraco, não tem o direito de o ser. Meu amigo, o cerebro é o centro de toda a vida physiologica e uma idéa má no cerebro é como um entrave na roda principal de uma engrenagem delicada. Quer um conselho ? passe algum tempo longe de sua senhora para que cesse essa excitação e verá que o mal desapparece.
O senhor está ansioso, tem uma vontade excessiva, um intenso desejo, o seu cerebro funcciona com violencia, mas toda a força despendida é desaproveitada, ou antes — torna-se contraproducente — é como a helice que, girando fora d'agua, faz maior numero de voltas sem aproveitar ao movimento, abalando o navio em trepidação brutal. Comprehende ?
Inhibição, sabe o senhor ? inhibição. Mas esperte, reaja, saiba querer. Não ha estimulante mais enérgico do que a vontade. Queira ! impoz com autoridade. Eduardo não poude deixar de sorrir.
Tomou a sua ducha ? andou ? Pois é assim. Vamos continuando com o tratamento e não se amofine.
Levantou-se, deu uma volta pelo quarto, e, parando diante de Eduardo, com o rosto todo franzido, os olhos muito apertados, perguntou : Diga-me, conhece um homemzinho que anda por ahi a pregar philosophia ?
Eduardo affirmou: Sim, conhecia de vista.
Achava-o ridiculo.
— Insupportavel, meu amigo. Simplesmente insupportavel. São ha em Teophrasto coisa igual. É um produto admirável do nosso tempo. Àgarrou-me AGTJA DE JUVENTA 59 hontem no escriptorio e despejou-me em cima da paciencia uma porção de aphorismos e de definições. Já viu ! ? Tem-se em conta de sábio e polyglotta e anda por ahi a trocar lingua com quanto italiano encontra.
Ridiculo!
Irritou-se, e, frenético, fechando os punhos : — Mas isso até compromette o paiz. Que idéa fará o estrangeiro do nosso progresso, do nosso criterio ? E não haver um homem de coragem que diga áquelle imbecil quatro palavras fortes ! É horrivel! Faz mal. Não imagina como me enfezam os pedantes e esse, meu amigo . . . Achou, então, um pobre diabo, um bacharelete desdentado, promotor não sei onde que o admira e, impando vaidade, balofo, arrota sciencia barata com uma empafia irritante.
Tudo lhe é pretexto para dissertar : as folhas seccas que cahem, os ventos que sopram, a verruga do coronel Mendonça . . . Um inferno ! Consultou o relogio : Bem, tenho ainda gente á espera. E mysterioso : Que tal o livro?
Tem lido ?
— Pois não.
— Interessante, hein ? Estão ali todos os grandes fundadores de religiões, desde Rama até Jesus.
— Diga-me, doutor, interrompeu Eduardo — e se eu voltasse á electricidade?
— Deixe-se d'isso. Qual electricidade ! Observe o que digo e deixe-se estar que a coisa ha de vir ; sorriu. Logo, porém, muito serio, pausadamente : Comprehendo a sua situação. Eealmente . . . Mas não se incommode : ha outras peores. O senhor tem a mocidade que ha de vencer. Não se trata de um mal incurável, se fosse, eu lhe diria com franqueza, acredite. Isso é um estado de inercia;
a reacção ha 60 ÁGUA DE JUVENTA
de vir. Encaminhava-se para a porta. Eduardo tomou o chapéu para acompanhá-lo. Vou vêr um dos politicões da terra. Ah ! elles guerreiam-me, não a mim, exclamou espalmando a mão no peito e, estendendo o braço, abrangeu toda a paizagem num gesto largo — ao progresso, a isto ! mas, assim que lhes entra o mal em casa, lá vão, afflictos, bater á minha porta. Âttendo porque, emfim, é a minha obrigação — exerço um ministério sagrado e comprehendo esta Humanidade, feita de lodo ou de coisa peior, como o Severino Lopes. Bem, com licença : vou por esses mattos apalpar o figado empedernido do meu excellente adversario.
Atravessou o largo, ao sol, dirigindo-se vagarosamente para o lado da cascatinha onde morava o enfermo. Eduardo, que ficara á porta, fumando, a olhar o céu liso, voltava-se para entrar, quando ouviu um triste, dolente gemer, e descobriu o velho, que, todas as manhans, ia ali esmolar. Deulhe uma moeda e entrou á procura de Elsa.
O piano zangarreava desabridamente e, na sala de leitura, discutia-se política, com furor. Um velho, magro e frenetico, « que se dava intimamente com todos os chefes da situação», republicano da propaganda, histórico desde os bancos collegiaes, defendia os actos do governo aos berros, com as mangas arregaçadas, rouco, tossindo e falando sinistramente em sangue.
O «philosopho »lá estava, a prumo, secundando o energumeno com o melaço da sua voz e a sua sciencia vasta. O promotor, medrosamente encravado num canto, ouvia, cocando o queixo que a barba enoarvoava. Sa sala, as senhoras gosavam AGUA DE JUVENTA 61 docemente o sol. A gorda, descobrindo Eduardo, logo se poz aos cochichos com uma outra, rindo. Elle passou tocando de leve na aba do chapéu e seguia, quando uma menina sahiu da sala, a correr, e chamou-o :
_ Está procurando sua senhora ? Sahiu com D. Ursulina e umas moças. Foram para o lado do mercado.
Elle sorriu, agradecido, acariciando a face da pequenita, e retrocedeu, indo ficar á porta, onde o velho, sempre triste, resmungava o seu soffrimento. Mas um grupo appareceu ao longe : Elsa á frente, com um ramo de flores, a sombrinha aberta reluzindo ao sol.
Para a tarde o céu enfarruscou-se, nimbado de nuvens escuras. Anoiteceu tristemente, com uma lua sinistra que apparecia e desapparecia e, para as onze horas, já com o silencio, desabou o aguaceiro com trovões atroadores, abalando as vidraças que trepidavam medonhamente.
Entraram dias densos e tristes, de chuva evento.
Apesar das invenções do promotor, sempre preoccupado com divertimentos, a propor jogos, brinquedos, todos se queixavam da insipidez melancolica. Bocejava-se e, pelas cadeiras, eram somnos quietos, molles cochilos ; a palestra cahia preguiçosa e a vida, refugindo das salas, concentrava-se nos quartos.
As goteiras batiam monótonas, sem descontinuar. As vezes, lufadas de vento frio atiravam com as portas, que estrondavam. Homens, amorrinha- 62 AGUA DE JUVENTA
dos de tedio, affrontavam o tempo agreste.
Curvados sob os guarda-chuvas, lançavam-se afoitamente pelo campo e, aos saltos, fazendo espirrar a lama, lá iam passar algumas horas á batota.
Senhor absoluto da sala, o «philosopho »
doutrinava em grupos que se formavam e que logo se desfaziam. O promotor não se fartava de gabar o amigo — um genio ! Dizia os seus conhecimentos profundos em todos os ramos do saber ; referia-se ás grandes obras que andava meditando : graves problemas sociaes ou miúdas questões philologicas, regras precisas, mathematicamente exactas, sobre a prosódia e uma memória solida e immensa, com gravuras, sobre os «sambaquis ». Aquillo era uma gloria nacional, sussurrava, apontando discretamente o amigo abarrotado e inedito.
As senhoras, apesar dos elogios do promotor, achavam o «philosopho » muito cheio de si, muito atrapalhado. A gorda, ás gargalhadas, citava-lhe as phrases campanudas e perguntava, com interesse, quem era uma Olotilde de que elle tanto falava! D.
Ursulina, muito simples, resumia, numa phrase chan, a sua impressão : «Parece meio pancada».
E Caldas, a villa santa e formosa, tão alegre, tão viva nos dias luminosos, murcha, silente, ennevoada, com lameiros por toda a parte, parecia uma tapera morta. Raro em raro, ao longe, um vulto, abrumado pela chuva fria, passava e perdia-se ; os proprios urubus haviam desertado o lugarejo : um ou outro apparecia á beira dos telhados, encolhido, encharcado, a olhar melancolicamente o horizonte, como a orientar-se para a luz saudosa.
Uma tarde, porém, o céu aqueceu-se, dourado e AGUA DE JUVENTA 63 sanguineo. À alegria renasceu. Bom tempo ! presagiaram todos e o «philosopho», hirto, á janella, ia apontando as nuvens, vivamente coloridas, que se estiravam, como cartazes, annunciando o sol, e dizia-lhes os nomes com garbo erudito.
A noite dançou-se. E as estrellas brilharam no céu limpido.
Foi justamente na primeira manhan de sol, á hora do almoço, quando Alfredo atravessou o salão com uma immensa bandeja carregada de pratos, que se deu pela ausencia dos noivos. Houve logo curiosidade.
«Estaria algum delles doente ? Mas, na véspera, á noite, tinham estado na sala, juntos, até tarde. Que haveria ? »
Algumas senhoras deram-se mais pressa em comer, mesmo rejeitaram pratos, abreviando o almoço. Os criados foram interrogados.
Como Alfredo reapparecesse, chamaram-no de uma das mesas para saber — quem estava doente ? O criado encolheu os hombros : «Talvez o patrão, com enxaqueca», e, discreto, casmurro, lá foi cumprir a ordem que trouxera.
Debalde rondaram o quarto. D. Ursulina bateu de leve, pediu noticias, offerecendo-se para o que fosse preciso. Eugenia entreabriu a porta, agradeceu e, de novo, a chave ringiu. Que haveria !
O promotor affirmou que ouvira gemidos á noite ;
quizera até levantar-se, julgando que houvesse alguma coisa séria ; mas tudo recahira em silencio. O «historico»
tambem ouvira qualquer coisa mas, como tinha por norma não se mettor com a vida dos outros, principalmente dos ricaços — pen- 64 AGUA DE JUVENTA
sam logo que a gente lhes vai lamber os pés, por causa do dinheiro — deixára-se ficar deitado.
As senhoras ardiam em curiosidade e, quando o dr. Lino appareceu, houve uma balburdia na sala —-
queriam todas vêr se elle ia para lá, e a gorda, ousada, espichando o pescoço, acompanhou-o com o olhar agudo, e toda agitada, sacudindo as mãos, annunciou :
— Entrou ! Entrou !
Effectivamente, o doutor fora chamado para vêr Elsa, que tivera uma crise durante a noite.
O quarto, em suave penumbra, recebia uma restea de luz pela frincha de uma janella estreaber-ta. Elsa, recostada nos travesseiros, muito branca, levemente pallida, acolheu o medico com o seu lindo e meigo sorriso, e foi Eduardo quem narrou o incidente. O
doutor, sempre alegre, achou aquillo «molestia de moça bonita». Ella sentia-se triste, disse Eduardo, chorava á tôa, tudo lhe aborrecia. E queixava-se do coração : ansia, palpitações . ..
— Isso é do tempo, minha senhora. Felizmente já temos ahi o nosso irmão sol, como lhe chamava S.
Francisco de Assis. Ah ! esses dias de chuva. .. Poz-se a passeiar esfregando as mãos, friorento. Agora foram quatro dias e o hotel está cheio. Imagine a senhora que, ás vezes, são semanas e semanas a fio, mezes ! agua que Deus manda e isto deserto. E eu aqui vivo . . . E
quer que lhe diga ? é quando passo melhor. Dias tranquillos, noites agradáveis — porque para mim é uma delicia adormecer ouvindo o bater da chuva no telhado. Metto-me em casa, bem agasalhado, a ler e as aguas que rolem por esses campos, os ribeirões que rujam. É a AGUA DE JUVENTA 65 riqueza da terra. Não vê como a verdura está d'uma côr mais viçosa e macia? Parece que tudo é novo ; o mesmo sol reluz com mais brilho. A senhora o que devia fazer era sahir, gosar lá fora a belleza do dia.
Emfim . . . Tomou-lhe o pulso branco e tenro. Vou sempre receitar um calmante. Tenho uma formula que parece invenção de frade, é um licor . . .
chuchurreou com delicia. Ha de vêr.
Elsa sorria, com a cabeça entre as rendas largas d'almofada, immovel sob os lençóes alvissimos, a colcha de seda atirada em ondas, disfarçando-lhe o relevo do corpo.
Terminada a receita, o medico tornou para junto do leito.
—Fala-se agora em um passeio á cascata das Antas. Porque não vão ? É uma maravilha. Eu mesmo que vivo aqui ha mais de vinte annos —
quando cheguei a esta villa a floresta vinha até aqui em baixo, os políticos arrasaram-na. Mas dizia ... Eu que vivo aqui ha mais de vinte annos, de quando em quando, metto-me num troly e vou almoçar nas pedras, olhando aquellas aguas soberbas que se despe-ftham, brancas, espumando como um rio de leite, duma altura prodigiosa, e, lá em baixo, perdem-se num fluir sereno, por entre os mattos.
Descrevia com doçura de voz, curvado, estendendo o braço, a collear com o dedo para desenhar os meandros graciosos da corrente. É uma das bellezas de Caldas.
— Se nos convidarem ... aventurou Elsa.
— Por que não !
Queres ir ? perguntou Eduardo carinhosamente.
— Vamos.
66 AGUA DE JUVENTA
— Não se hão de arrepender, garanto ! affir-mou o medico. Depois ... só o ar ! Os caminhos é que não são grande coisa, mas que se ha de fazer ?
Temos governo, municipalidade . . . é aturá-los !
Voltou-se abruptamente para Eduardo : Breve mente tenho uma surpreza magnifica para o amigo — e segredou : a installação de uma loja maçonica. Vai ser uma delicia. É verdade . . . Mas, porque não se levanta, minha senhora ? Olhe que os nossos caipiras costumam dizer que «a cama cozinha o sangue». Bem . . .
Tenho hoje um dia tremendo — um ror de casos de influenza. Sabe ? O typo, o tal do catechismo positivista — a proposito : chama-se Anastacio — procurou-me hontem, com muita reserva, para falar-me de uma coceira nas pernas, que elle attribue á vida sedentaria.
— E então ?
— Receitei mercúrio. Hoje cedo lá esteve. Dissertou sobre a lei dos três estados e queixou-se duma nascida maligna. Propuz-lhe o tratamento pelas injecções hypodermicas, e quer saber ? supporta a agulha com uma coragem digna : nem pisca, meu amigo. Um estoico ás direitas, lá isso é. Bem, até logo ; o cavaco foi longo.
Estendeu a mão a Elsa : Pois, minha senhora, sempre ás ordens. É só um recado e cá estou. Até logo. Isso não é nada.
Fechando a porta Eduardo poz-se a passear ao longo do quarto, os braços cruzados, cabisbaixo, pensando.
Elsa retorcia distrahidamente a renda larga da fronha.
Ouvia-se o surdo zumbir das moscas que enxameavam o aposento esvoaçando assanhadas, sentindo o sol. O rincho agudo, monotono, d'um carro AGUA DE JUVENTA 67 bois, vinha riscando o silencio — era á fainada da campestre que recomeçava depois d'aquelles negors dias d'aguaceiro.
_ Não te incommoda o sol ?
— Não.
— Posso, então, abrir, a janella ?
— Podes. Foi uma explosão. Elsa cerrou os olhos deslumrada. O céu, d'um azul forte e limpido, luzia ; o:
fino e fresco, soprando de leve, acariciante, trazia aromas silvestres d'aquellas serranias longas , a perspectiva da paizagem afundava-se, perdia-se em horizontes claros, orlados de faixas ondulantes que eram florestas.
A terra, fartamente abeberada, reçumandos sei-a, robusta, fecunda, gerava tranquillamente rebentando em renovos. A vida vegetal pullulava dos ermens. As hervas murchas, esturricadas, que chovilhavam á aragem das tardes seccas, reerguiam-se içosas, d'um verde alegre, com flores desabotoando as hastes flexiveis ; os arbustos, revestidos e folhas tenras, balançavam-se airosamente ao lento passar das brisas que pareciam trazer abe-las, tantas eram giro-girando pela campina e nos res, todo o arvoredo parecia renovado, mais ramalhudo e mais rico.
Na linha rasa das campinas distantes a herva havia um fino, macio velludo. Passarinhos cruzavam-se chilreando, cigarras faziam um concerto estribulo.
Toda a gente que veraneava parecia gosar com volupia o sol — eram grupos pelos caminhos, longe, dos cerros ; figurinhas que se moviam devagar nas 68 AGUA DE JUVENTA
asperezas ingremes das collinas pedregosas e acenavam alegremente para a planicie. Ás vezes um grito atroava.
Um sino começou a bater docemente. Eduardo deixou a janella e foi sentar-se á beira do leito, afagando de leve os cabellos de Elsa.
— Ainda sentes alguma coisa ?
— Não, estou boa. Nem sei que foi aquillo. Talvez humidade.
Elle contemplava-a, mudo, em extase. Não, não fora humidade, mas aquella excitação permanente, aquelle desejo sempre contrariado, aquella ansia sempre insatisfeita.
O seu espirito tinha o reforço da virtude, mas a sua carne jovem, cheia de seiva, era como aquella terra que reclamava a luz e enfeitava-se florindo ao primeiro afago tepido dos raios d'ouro. Pobrezinha !
lutava, continha-se subjugando violentamente a ardencia do sangue. Que supplicio ! E ali estavam os dois soffrendo a mesma tortura, ambos cheios de amor e de desejos e separados, desunidos por uma fatalidade cruel.
Pensava, fitando-a enlevadamente, e inclinou-se, com um beijo para a linda boca, que se entreabria, vermelha como uma flor desabotoando. Ella, porém, voltou o rosto, empallidecendo, e, medrosa, implorou quasi com lagrimas, humilde :
— Não, Eduardo . . . pelo bem que me queres. Elle pôz-se de pé, num impeto.
— Tens razão. Para quê ? !
E, lentamente, passou ao quarto de vestir. IV
Abril, o ceruleo mez, entrara friissimo, toldado de brumas. Começava a abalada. Os hoteis esvaziavam-se, como em precipitada, espavorida fuga. Todas as manhans partiam familias, e, na estação apinhada, junto ao comboio, era um tumultuoso alvoroço — adeuses, abraços, affirmações de amizade, compromissos de visitas.
Os homens iam e vinham, açodados, despachando a bagagem, escolhendo lugares nos wagons, embarcando crianças. As senhoras, em grupos de amigas, com saudade d'aquelles serenos lugares, tão lindos e amaveis na sua simplicidade agreste, falavam commovidas. Só, então, as outras notavam-lhes as cores, a boa disposição, as melhoras, e ellas, satisfeitas, suspiravam, lamentando não poder ficar mais tempo, mas a vida lá em baixo, a casa, o trabalho . . . 70 AGUA DE JUVENTA
O trem apitava e, em atarantada corrida, com os ultimos adeuses, precipitavam-se para os carros, ficavam á janella, e era uma algazarra, um agitado mover de braços que se estendiam.
Um silvo agudo vibrava, e, docemente, desusando, lá se movia o comboio, partia, sumia-se, deixando um vazio enorme, como se um pedaço da mesma terra se houvesse deslocado.
Á noite, no salão, eram despedidas, ás vezes com lagrimas, das que recalcavam esperanças, das que viam desfazer-se o sonho de amor. Os doentes falavam das suas chagas, já seccas ; alguns arregaçavam as calças, mostravam as pernas ; outros sacudiam os braços, livres dos rheumatismos, apalpavam as juntas sem os tophos arthriticos.
Um guarda-livros, que entrara magro e livido, curvado sobre duas bengalas, arrastando os pés enormes em frouxas chinelas de trança, na vespera da partida appareceu na sala, muito lépido, calçado e com uma rosa immensa na botoeira do jaquetão da flanella.
Foi um delirio, e como só havia homens, elle declarou lampeiro: «Que estava morto por apanharse no Eio para tirar o seu ventre de miseria », e, á luz minguada, emquanto um cometa agadanhava o piano, saltou para o meio da sala, a dançar, atirando as pernas. E as gargalhadas estrondavam.
No salão de jantar sentia-se ainda mais o vazio — tantas mesas abandonadas, toda uma ala deserta, porque os que ficavam iam-se aproximando, numa necessidade de união e para facilidade do serviço.
Dois criados haviam desapparecido. O ho-
ÁGUA DE JUVENTA 71 tel parecia mais vasto, mais sombrio e, á noite, era lugubre e reboava sinistramente ao mais leve ruido, como uma funda caverna.
Anoitecia cedo. A bruma subia, fluida e alva, espalhando-se nos campos em ramas algodoadas, enrolando-se no topo dos outeiros, e as estrellas, d'um brilho nitido, maiores, scintillavam no céu puro. Esfriava, frio de inverno.
Elsa levantava-se tarde, tiritando, e, com Eugenia a vesti-la, lamentava aquella desolação.
Não podia mais !
— A gente ao sol ainda sente mais frio, dizia a criada. E a senhora não imagina o que está chegando agora para o hotel. Hontem entrou um homem com a cara amarrada em pannos cheios de sangue. E o padre que anda num carrinho ? Ainda não o viu ? Foi um trabalho para o trazerem da estação até aqui. Não ouve, de noite, um barulho no corredor! É um coitadinho, todo entrevado, que anda por ahi de rasto, num bolo, como um sapo. Faz pena.
Era, effectivamente, a miséria que chegava de todos os lados, como infelizes que houvessem pacientemente esperado o final de um festim para lançarem-se famintamente aos restos. Alguns traziam apenas o dinheiro da passagem, ou viajavam com passes, contando com a caridade, como o velho padre, todo encarquilhado e tolhido, mettido num carro de rodas de madeira, que um velho negro arrastava vagarosamente.
Com um triste sorriso no rosto, comprido e cavado, sussurrava a sua historia infeliz, mostrando as mãos retorcidas e seccas como raizes, os joelhos 72 ÁGUA DE JUVENTA
que saltavam em dois bolos sob a batina surrada, e ainda o peito que reentrava, varado de dores. Davam-lhe esmolas e elle lá ia dizendo a um e a outro a sua desgraça, como a molestia o prostrára, forçando-o a deixar o serviço do Senhor, a sua parochia humilde, em Minas, sempre festiva e florida.
Ás vezes, á noite, em tom brando de reza, com o entrevadinho sentado junto ao carro, na sombra do corredor deserto, elle punha-se a contar vidas de santos, martyrios, milagres. Falava de Belém e dos magos, descrevia a Paixão, remontava ao céu num sonho suave de bemaventurança, e o entrevadinho, boquiaberto, fitando nelle os grandes olhos meigos, interrogava-o sobre Jesus, sobre Nossa Senhora, como haviam fugido para o Egypto, se a Virgem era bonita, como se chamava o rei negro que fora ao presepe. E o padre ia respondendo docemente.
O «philosopho», que ficara sem o seu grande amigo, o bacharel, já restituido á sua promotoria, nas serras, atulhava o salão com a sua prosapia. Uma vez, encontrando o velho sacerdote, que lia o breviario no fundo do seu carro tosco, interpellou-o sobre os mysterios do christianismo, combatendo, á luz da sciencia, toda a patacoada theologica.
O velhinho ouvia-o, calado, encolhido, com um sorriso de resignação, e elle confundia-o com os grandes nomes da philosophia. Explicava a criação, com Hseckel;
a descendencia do Homem, com Darwin ; reduzia tudo a leis physicas, acabando com Deus, com o mesmo desprezo com que atirava pela janela a ponta do cigarro.
D. Ursulina, muito religiosa e compadecida, não ÁGUA DE JUVENTA 73 poude conter-so uma manhan, o, «sahindo do serio »
como ella mesma declarou, investiu em defesa do humilde sacerdote:
— Que coisa também...! Ora o senhor, com o coitado do homem. Isso até não é bonito, perdoe que lhe diga. O senhor é um moço, elle é um pobre velho, carregado de cabellos brancos e doente. Tem a sua crença, como eu, como muita gente . . . Para que ha de estar o senhor, todo o santo dia, a amo-finá-lo com historias? Desculpe a minha franqueza, não se zangue commigo, mas isso é feio.
O «philosopho » olhava-a d'alto, superiormente, com o pincenez a brilhar :
— É um dever de todo o homem que estuda, que pensa, corrigir os erros, combater os prejuizos.
— Ora ! Que é que o senhor corrige ? O senhor pensa que alguém vai deixar a sua religião por sua causa ?
Quem crê, crê. Eu penso assim.
— Pois faz mal, minha senhora.
— Pois sim. O senhor veiu aqui para se tratar, ou para fazer propaganda? Se veiu para so tratar, faça como eu, que tomo os meus banhos e metto-me commigo. O
coitado do velho nem pode vir um bocadinho á sala distrahir-se.
É até uma falta de caridade.
— Bem, minha senhora. Se é por causa do padre .. .
tollitur questio. Com licença.
E sahiu muito teso.
Os dias vazios, silenciosos, pareciam infindveis e Eduardo sempre a esperar o milagre das aguas.
— Porque não vamos para o Rio ? Ha lá outros 74 AGUA DE JUVENTA
recursos, disse-lhe EIsa, uma noite, ao vê-lo macambusio, a metter os dedos pelos cabellos, desesperado.
Elle irritou-se.
— Qual! O melhor mesmo é acabar com isto.
Olha, se queres, telegrápho para que te venham buscar. Ella rompeu a chorar silenciosamente.
Eduardo arrependeu-se e, carinhoso, ameigando-a, implorou: Perdôa-me ... Eu não sei o que digo.
Estou nervoso, frenético. Que queres, Elsa ... eu vejo. Tu é porque não te preoccupas com isto, eu, não : informo-me de tudo, acompanho com interesse todos os doentes e o que tenho visto é verdadeiramente prodigioso. Pois então só eu é que não hei de aproveitar ? Porque ? Homens com os corpos abertos em ulceras, entrevados; aquelle hespanhol, com os olhos em pús, que nem apparecia á mesa ; o filho d'aquella tua amiga cujo corpo era um só darthro e tantos, tantos ! não sahiram curados? Então?
— Mas a tua molestia é outra, Eduardo.
— Se o doutor garante-me a cura... Elsa encolheu os hombros. Tens razão — isto está realmente triste, mas ... E se eu ficar bom ? Olha, já combinei um passeio para amanhan, ao alto do morro. Tem paciencia mais uns dias. Eu soffro muito mais do que tu. Se até domingo eu não melhorar, vamo-nos embora.
— Pois sim. Mais animada, explicou: Eu também estou convencida da virtude d'estas aguas, mas não para o teu mal.
— Pois está dito! decidiu resolutamente Eduar- AGUA BE JUVENTA 75 do. Se eu nao sentir melhora durante estes dias, partimos no domingo. E será o que Deus quizer.
Na manhan seguinte, com o hotel ainda quieto, Alfredo bateu á porta, dizendo — que os animàes estavam á espera. Elsa, com um preguiçoso bocejo, logo abafado nos travesseiros, levantou-se e, mollemente, chamando Eugenia, passou ao quarto contiguo, Eduardo, já prompto, foi para um canto, sentou-se em uma cadeira de lona e ficou inerte.
Passara a noite em claro, em perturbada insomnia, assaltado por idéas sinistras, sem poder tirar-se do circulo tremendo em que a razão o prendia. Não podia admittir aquella resignação da mulher, aquelle enérgico supportar d'um desejo que nelle era supplicio, e que ella aceitava docemente como um caso natural.
A sua alma virtuosa podia resistir ás seducções refugiando-se na religião, amparando-se nos austeros exemplos de -honestidade com que fora educada, mas a carne, a carne bruta, escrava do instincto, que traz o seu destino amoroso, essa havia de insurgir-se, de reclamar o que as nupcias lhe haviam promettido.
As freiras são também mulheres e vencem, mas vivem protegidas pelos conventos que são as fortalezas do Senhor. Defendem-nas solidos e fortes muros além dos quaes as vozes do mundo, os clamores ardegos da vida chegam em leve, apagado murmurio.
Pelos immensos e soturnos corredores os passos Que resoam são de mulheres puras, o aroma que 76 AGUA DE JUVENTA
trescala é das resinas mysticas, as vozes que se cruzam veladamente, como em segredo, não pronunciam senão palavras santas e de renuncia.
Uma porta que se abre deixa entrever ouros, alvuras de altares, cirios, lampadas de luzes tristes, vultos piedosos de martyres hirtos, immoveis nos seus nichos, ou é uma lufada sonora que remoinha e passa com um clamor de litania dentro da plangencia melancolica do orgão.
Nas cellas, d'alvas paredes nuas, tudo é algido e mudo. Os passarinhos, o próprio sol parecem fugir ao gradil ferrenho dos postigos e os aromas agrestes da terra fecunda passam em aura ligeira, como se um perpetuo exorcismo os repilla d'aquelles lugares de esterilidade.
Deitam-se nos seus grabatos como um cadaver rigido fica estirado no esquife. Os cilicios que lhes vincam os flancos cingem-nas como um cesto de pureza : atormentam-lhes a carne, constrangem-lhes os nervos, regelam-lhes o sangue e, emquanto não lhes pesa o somno nas palpebras, de joelhos ou prostradas nas lages frias, rezam, penitenciando-o até que, exhaustas, cahem pesadamente, adormecendo sob a hypnose do mysticismo.
Sonham. São incubes que as perseguem, que as fazem gosar o prazer ephemero e irreal, verdadeiras erupções de sensualismo. Logo despertam aterradas e, ainda tremulas, com os vincos dos dentes nos labios seccos, e, desvairadas, com orações fervorosas, longos jejuns e penitencias, expulsam de si o peccado e, flagellando-se, com o sangue a escorrer dos seios murchos, rasgando a carne ás unhadas, com lagrimas, quedam prostradas diante do ÁGUA DE JUVENTA 77 negro cruzeiro que as defende, abrindo, acima das suas cabeças, vazias de ideaes humanos, os largos e rijos braços misericordiosos.
Ah ! as freiras solitárias, maninhos como a terra morta do Golgotha em que só avultavam os postes de martyrio, essas podem resistir. Nunca ouviram as tremulas vozes supplices do desejo, nunca sentiram os effluvios passionaes. Mas ella, que fizera voto de amor diante do mesmo Deus que das outras recebe a promessa triste da eterna castidade ; ella, que fora abençoada para a fecundidade, como a terra santa e as gerações do Éden;
ella, que sahira da iniciação da puberdade para ser Mãi e gerar e entrara na câmara nupcial levando as humildes palavras maternaes que a rendiam passivamente ao esposo; ella, que encontrara o preparo de um ambiente voluptuoso ; que ficara a sós com um homem ; que se vira, pouco a pouco, desfolhada das suas vestes virginaes ;
que caminhara a tremer, fria e com o sangue estuante, para o leito ; que, encolhida, sentira estender-se a seu lado um corpo, o vira volver-se, aquecera-se ao seu calor, alvoroçára-se com os seus beijos e, entrelaçada, enlanguecera, suave e suave, até a inercia ; ella, que se entregara e que, durante dois mezes, noite por noite, esgotava-se em ardores inúteis . . . ella não poderia resistir ás solicitações da natureza, ao tormento desesperador, allucinante que a sua miséria lhe inflingia. Não ! era superior a toda a energia, a toda a virtude.
Os mesmos santos cediam nos desertos e os demonios devassos, os seres hybridos que rondavam os eremiterios, affectando formas delgadas e sen-
78 AGUA DE JUVENTA
suaes de mulheres formosíssimas, possuiam-nos e, depois que os rojavam nos desfallecimentos dos espasmos, sabiam silvando, batendo os caminhos com os cascos de bode e, rindo, desappareciam triumphantes entre os cardos e as urzes, zombando do arrependimento dos míseros, que ficavam clamando no limiar das cavernas conspurcadas.
Aquella crise que ella tivera não fora mais que uma revolta da carne flagiciada. Quem póde conter um rio assoberbado com a fragilidade de uma represa ? E que era a .virtude naquelle caso senão uma comporta opposta á violencia do instincto ?
Não, ella não podia ser uma excepção. A
fatalidade havia de vencer, forçosamente. O seu mal era uma estagnação. O mesmo medico já não escondia a desesperança, fugia á responsabilidade da cura com evasivas subtis, attribuindo a insistência d'aquelle « estado de inercia » á ausencia do soccorro moral. Porque elle não reagia, não procurava auxiliar o tratamento com o « querer ». E
aquella palavra que, uma vez, lhe sahira da boca inadvertidamente : « myelite » não seria a propria expressão da verdade ? Myelite . .. Sim, devia ser esse o seu mal, a medula ... a medula.
— Estou prompta, disse Elsa, reapparecendo.
Elle sahiu bruscamente d'aquelles cuidados e, vendo-a a sorrir, mais se lhe accentuou a certeza cruel do que conjecturava. «Em que pensará ella ?
Em quem ! Levantou-se .
— Vamos, então.
Tomou uma bolsa de couro da Russia, passou-a ÁGUA DE JUVENTA 79 a tiracollo, e iam sahindo distrahidamente, quando Alfredo appareceu com o café. Tomaram-no de pé, em silencio, e foram.
Iam sem interesse, como a um trabalho fatigante, julgando, cada qual, causar prazer ao outro.
Os cavallos, velhos sendeiros de aluguel, modorravam á porta. Ainda havia nevoeiro, flúores de neblina á flor dos campos. Mas o céu, d'um azul intenso e lucido, era todo esplendor. Fazia frio.
Montaram e, á voz do guia, um caboclo esguio, escarranchado numa bestinha, partiram atravéz do campo rociado que refulgia. Ellas fugiam com surdos ruflos d'azas ; gafanhotos voavam chirirando, e um cheiro forte, acre, de terra fecunda subia de todos os cantos, á luz que dourava as hervas rasas e o alto arvoredo.
Iam já defrontando as ultimas casas do largo quando o dr. Lino appareceu, muito atabafado, com a golla do capote levantada até as orelhas, seguindo as sinuosidades de uma vereda para evitar as humidas hervas.
—Bom dia !
—Bom dia, doutor.
—Então, que é isso ? Onde vão ?
—Vamos ao morro respirar um pouco, gosar a paizagem.
—A vista é linda, hão de gostar. E ha lá uma agua excellente, celebrisada por quantos a têm bebido. Sabes onde é a fonte, Firmino ?
—Sei sim, senhor.
— Pois é, leva os senhores até lá. Vale a pena.
E, voltando-se para o morro, mostrando-o com o guarda-chuva :
80 ÁGUA DE JUVENTA
— Aquillo já foi um dos passeios obrigados de Poços. Fazia-se a ascensão a pé, com matalotagem uma bandeira e foguetes. O que primeiro chegava era acclamado. Então chamavam a bandeira, sol tavam os rojões e lá a fonte, comer o lombo de porco. Pagodeira. Hoje, nem isso. O nosso povo está cada vez mais triste. Não sei que é, mas a verdade é que a melancolia está arrasando este paiz. Bem, não lhes quero tomar tempo. Lá vou para a minha Capharnaum, aos meus doentes. Para esta gente sou como um Christo. Entendem que posso fazer milagres. Ainda hoje appareceu-me lá em casa um pobre morphetico, pedindo-me que o curasse, porque tem familia. É isto. E, se eu não os fôr illudindo, adeus ! Não dirão que sou um me dico honesto, dirão que sou uma besta quadrada.
Até logo. Divirtam-se.
O ar picante excitava os anímaes, que se puzeram a trote. A villa, quieta, com as casas fechadas, parecia dormir ainda. Nos longes da terra, apesar do sol que aquecia, rastejavam nevoas barrando o horisonte.
Na ponte, sob a qual o ribeirão da Serra borbulhava, escachoando com estrondo, torcendo-se em volta augusta, galgando pedras em torno das quaes a espuma refervia, pobrezinhos esmolavam.
Um cego, de cócoras, com o chapéu de palha nos joelhos, cantarolava esganiçadamente rolando os olhos brancos ; os filhos, sentados em volta, jogavam pedrinhas. Adiante uma velhita murcha, encarquilhada, com a boca sumida, os olhinhos empannados de nevoa, os cabellos brancos fugindo em falripas esvoaçantes do lenço que lhe cingia a AGUA DE JUVENTA 81 cabeça, resmungava estendendo a mão mirrada e tremula. Em frente do mercado juntavam-se os tropeiros descarregando os ceirões, os jacas, arriando saccos.
Chegavam mulheres com taboleiros de verdura, cestos d'ovos, cabazes de frutas, pencas de frangos. Os açougueiros, com os facalhões gordurosos, espostejavam a carne, talhavam o toucinho.
Carros de lenha, recuas de mulas, atravancavam a estrada. Diante da porta de um armazém, um bando de caipiras : uns de pé, outros de cocoras encostados á parede, discutiam beberrioando pinga ou alisando, á faca, nas coxas, as grossas palhas de milho dos cigarros.
O guia, dando voltas por entre os carros, tocando os animaes que se afastavam, abria caminho e a gente simples voltava-se para vêr o casal airoso, Elsa principalmente, muito esbelta e flexivel na sua amazona escura, com um leve chapéu de palha sobre os cabellos louros.
A subida ia-se tornando aspera com os fundos os sinuosos sulcos cavados pelas enxurradas e os pedrouços que rolavam sob as patas dos animaes.
Nas ultimas casas, pobres, já o trabalho começara.
Mulheres estendiam roupa em cordas esticadas de tronco a tronco ou nos grammados scintillantes de orvalho. Sob uma vinha um homem trabalhava, cercado de bambus, cortando varetas para gaiolas. Crianças mias, com as pernas escalavra-das, outras em camisola, ainda estremunhadas, com pedaços de pão nas mãos sujas, corriam ás cercas floridas de rosas ou de madresilvas, trepavam ás arvores, sabiam á estrada, aos pinchos, gritando alvoroçadamente para que viessem vêr a 82 ÁGUA DE JUVENTA
moça a cavallo. E mulheres appareciarn ás portas, debruçavam-se nas eancellas olhando admiradas, segredando-se louvores, sorrindo extasiadas com a belleza de Elsa.
O guia deu de rédeas e a bestinha partiu a galope para a porteira, mas um pequeno já havia corrido a abri-la e todos passaram, agradecendo.
Começava a lombada do monte, com a vegetação soberba e o doce silencio das alturas. O
guia, sentindo-se, emfim, entre as arvores, poz-se a cantar, derreado e molle no lombilho, deixando-se embalar pelo animal.
O caminho, em voltas, muito batido, luzia entre as ribanceiras vermelhas. Viam-se largas pegadas, calcaduras e estravo de animaes que por ali haviam passado. A um e a outro lado o arvoredo era frondoso, dum verde novo e luzente e, com o mais leve mover dos ramos inclinados, o orvalho esparzia-se em chuva sonora. Elsa arripiava-se com as gotas frias, evitava o rorejo encolhendo-se toda e rindo. Eduardo animava-a e, adiante, a voz alegre do guia provocava a passarada que chilreava esvoaçando, perseguindo-se nas ramagens e pelos ares. Borboletas immensas, azues e brancas, lentas, pesadas atravessavam d'um para outro lado. Ás vezes as folhas seccas farfalhavam e lagartos fugiam ligeiros desapparecendo nos mattos.
De quando em quando, nas passagens mais encobertas, sob as densas copas, escurecia e esfriava, mas o sol lá estava adiante dourando a terra sanguinea, polvilhando de ouro as folhas molhadas.Vagarosamente, arquejando, com um monotono ringir dos arreios, os animaes seguiam pelas veredas AGUA DE JUVENTA 83 apertadas. Eduardo gabava a belleza sadia da paizagem, mostrava parasitas nos troncos, gravatas, lindas florinhas silvestres, corymbos enfestoando galhos seccos, insectos que reluziam á luz, arvores altas robustas, cujas raizes fortes saltavam á flor da terra em formidaveis e retorcidos vergões.
As vezes paravam á beira d'uma grota toda rendada de samambaias, olhavam calculando o fundo e o guia cantava enamoradamente como se o seu amor vivesse, á maneira das nymphas, em alguma d'aquellas arvores e o ouvisse.
O silencio de Elsa continuava obstinado. Seria de enlevo ou de tedio ? Subitamente as palavras pronunciadas pelo medico, no largo, com relação aos enfermos, saltaram no espirito de Eduardo.
«Entendem que posso fazer milagres ... E se eu não os fôr illudindo, adeus !» Elle não referira o caso do leproso senão para desenganá-lo com aquellas phrases. Já lhe havia notado o desanimo. Estava a entretê-lo, a embahi-lo com uma vaga esperança para ganhar tempo, certo da impossibilidade da cura.
Chegavam ao alto por uma azinhaga humida e sombria. O vento soprava livremente, rijo e frio, vergando os ramos. Bedouças de cipós oscillavam de arvore a arvore e os melros piavam nas frondes altas.
Já no planalto, os animaes lançaram-se a galope.
Formigueiros enormes levantavam espalhadamente entre as hervas os cocurutos calvos. Uma ou outra arvore isolada frondejava sussurrando ás rafadas do vento livre, nas moutas rasteiras de joás os frutos, muito amarellos, eram como immensas 84 ÁGUA DE JUVENTA
gemmas d'ovo e de todos os lados era o abysmo, o fundo perdido. Blles acharam-se como insulados no espaço, cercados pelo vacuo.
Foi Elsa que saudou a villa mostrando-a, em baixo, no fundo, com as suas ruas direitas, amarellas e lisas, que a distancia aihanava fazendo desapparecer os caldeirões, os vallog. O casario alvejava entre as verduras dos pomares copados, os ribeirões luziam, com a água quieta, como adormecida. Um carro de bois atravessava o largo vagarosamente e o rincho dos eixos, chegava, por vezes, á altura, mas logo o vento o levava. Lá estava a estação — os trilhos brilhavam ao sol. Lá estava o hotel...
— Olha, Eduardo. Aquella não é Eugenia ? ali, naquella janella ...
Eduardo, mais calmo com a alegria da mulher, graduou o binoculo e levou-o aos olhos relanceando todo o fundo da terra, a immensa cratera concava.
— Não, não é Eugenia. Parece aquella senhora que toca.
— D. Ursulina. Dá cá. Tomou o binoculo e confirmou : É, sim.
Gente miúda movia-se no largo, apparecia ás janellas. Bandos de pombos cortavam os ares e em cima, fechando todas as distancias, o azulado, rutilo céu não tinha a mais leve nodoa de nuvem. Longe eram outeiros e campos, uma ondulação cambiante começando no verde, passando ao violete, até o azul fundo dos relevos das serras. Para outro lado, perdidas na distancia, montanhas esboçavam-se em tons suaves, pareciam accumulos de nuvens no céu raso do horisonte e campos, varzeas ÁGUA DE JUVENTA 85 chatas, desertas, sem sombras d'arvores, sem um colmado, riscadas pelos caminhos. O guia chamou-os para o outro lado, mas Elsa, embebida, não se fartava de olhar.
—Onde nascem as aguas, Eduardo!
—Não sei. Parece que é na serra de Caldas.
O guia mostrou além amassa soberba da serrania.
—A serra é ali. Dizem que tem ouro.
—Ouro !
—Sim, senhor.
O sol, áquella hora, era o ouro da serra, forrava-a toda, cobria-a até a espalda e descia á planicie rica.
—Olha, Elsa : o estabelecimento dos Macacos, ali onde o sol bate. Vês ? A luz, dando em cheio na galeria envidraçada, fazia um rastro de fogo e, mais longe, outra chapa brilhante lampejava — era a casca tinha. Estás vendo ?
—Estou. E a gente como fica pequenina, observou risonha. Se viéssemos mais cedo podíamos ter visto a partida do trem. Vamos para o outro lado.
Tocaram os animaes.
A vista alargou-se por uma terra farta de cultura e floresta, com uma casa de fazenda muito branca, entre os terreiros, a destacar-se do fundo sombrio do arvoredo. Os cafezaes corriam alinhados, como grandes esponjas escuras. Aqui, além, esguios coqueiros subiam com as palmas esfiapadas em franjas, tremulando ao vento e os olhos dilatavamse como se voassem ao longo da extensa terra forte, que, sob a fecundação do sol, produzia em silencio, florindo, frutificando para o homem.
O guia estendeu o braço mostrando um brilho a aguas, ao longe — o rio. Elsa só via a verdura 86 ÁGUA DE JUVENTA
luxuriante, a grande, a estupenda geração vegetal que tudo avassalava e encobria e daquelles alga-res, daquelles fundos e alcantilados abysmos, de todo o circuito que se perdia em precipícios subia uma voz surda e perenne, um arquejo ininterrupto como se a terra, no esforço ingente de gerar, de conceber, gemesse para os altos céus com a mesma dôr alanceada com que as mãis humanas dão o seu fruto á vida.
— Vamos. O guia partiu. E agora : Para onde vamos?
— Vosmecê não quer vêr a fonte ?
— É muito longe ?
— Não, senhor. B um instantinho. Elsa receiava as cobras. Não tenha medo. Agora não é tempo.
Tocaram.
Não havia caminho — foram por um sapesal farfalhante. A herva alta chegava ao peito dos animaes, abrindo-se em sulcos, como as águas que uma quilha corta. Chegaram á beira d'um declive, e o guia, saltando da bestinha mansa, prendeu-a a uma arvore, dizendo :
— Agora é melhor vosmeeês apearem, o caminho não dá para os animaes.
Eduardo, agil,.poz-se logo a pé, e, estendendo os braços, tomou Elsa e depô-la em terra carinhosamente.
Nunca, ao contacto daquelle corpo juvenil, elle sentira a emoção violenta e de goso que experimentou naquello momento.
O guia prendeu os animaes e, tomando a frente, lá foi rompendo o matto, afastando ramos, e chegaram ás primeiras arvores dum pequenino bosque, cheio de perfume e luz. Era como o vestibulo AGUA DE JUVENTA 87 da floresta, que se estendia opulenta, dominando todo um flanco da montanha.
Caminhavam. O terreno tornava-se macio, corno se o forrasse um molle tapete, a luz era mais branda. Aos lados, em entrelaçados recantos, havia como um resto de sombra nocturna, estrellada de nimbes de sol.
Vozes mysteriosas sabiam dos meandros quietos.
Aqui, eram passarinhos lépidos saltando nos ramos, apanhando achegas ou mariscando na terra; abelhas douradas que erravam ; grandes bezouros negros que passavam d'esfuzio com um zumbido roufenho.
Os arbustos tinham fraquezas languidas, inclinandose, offerecendo mimosamente as suas flores cheias de mel. As arvores espreguiçavam-se em movimentos molles. O sol, descendo pelos escassilhos da folhagem, estendia nos caminhos um crivo luminoso e, nas faixas obliquas que passavam, envolvendo os troncos, fervilhava uma viva poeira de ouro.
O guia desceu uma rampa resvaladia e, de baixo, como homem habifciado á vida alpestre, para o qual a montanha não tinha surprezas, offereceu a mão aos excursionistas, animando-os. Era um pulo. Elsa receiava, e, sorrindo, ia, pé ante pé, procurando as anfractuosidades, um talude; mas Eduardo, agar-rando-se a um tronco, deu-lhe a mão e a foi descendo. O guia esperava-a em baixo, e ella, assim amparada, precipitouse, num passinho ligeiro, com gritinhos de susto.
Eduardo atirou-se num salto e achou-se junto della, risonho.
Já a voz calma das aguas murmurava no silen-
88 AGUA DE JUVENTA
cio. Tudo estava fechado pelas hervas, e elles tiveram de romper o matto para chegar a uma especie de gruta sombria, onde a agua fluia em límpidos filetes, remansando-se em transparente, pequenino lago. Varios regos, reticulando o sitio, levavam as águas em voltas para além. Um jorro casquinava despenhando-se em cascata, outros fios insinuavam-se sob as hervas, corriam sussurrando e as arvores, pendidas, com as ramagens derreadas, miravam-se n'agua. Elsa, de pedra em pedra, escolhendo as mais seccas, grandes lages orladas de limo, avançava para os nenuphares abertos no seio da cripta verde. Equilibrando-se, procurando o amparo dos cipos, sorria vendo-se toda refletida no espelho liquido.
— Que belleza, Eduardo!...
O cheiro acre das resinas, o almiscar capitoso da selva, circulava como um ambiente. Tudo era sombrio, as mesmas folhas, que se reproduziam n'agua, eram de um verde negro, como se a sombra as houvesse tisnado. Só os fetos e as tremulas, delicadas avencas conservavam o claro verde alegre.
Libellulas pairavam acima d'agua, mirando-se com faceirice e levemente, ligeiramente, molhavam as pontas das azas, logo fugindo. Cigarras chiavam em volta, por entre as folhas.
A poucos passos da fonte, em contraste com aquelle segredado e obscuro retiro, uma clareira abria-se ao sol, recebendo toda a luz no seu tapete de gramma. Ali era o centro da vida — passaros galreiavam, zumbiam insectos, voavam moscas azues. Aranhas negras, incrustadas d'ouro, mari-
AGUA DE JUVENTA 89 nhavam nos galhos, subiam, desciam pelos fios ou, no centro das teias, balançavam-se ao sol.
Elsa, com pena de deixar a fonte, curvou-se, com as mãos em concha, tomou uma mancheia d'agua e sorveu com delicia. Um raio de sol incendiava-lhe os cabellos finos da nuca e o seu perfume delicado, como a irradiação do seu corpo, vencia o cheio agreste das silvas.
Eduardo contemplava-a, extasiado, em enlevo, como se o poderoso effluvio daquella natureza agreste o fosse penetrando, infiltrando-se-lhe nas veias, como um amavio, excitando-o, compellindo-o ao amor. Os olhos amortecidos ficaram afogueados, as narinas afiavam e um vivo calor de renascimento, uma aurora que se accendia, animava-o. O guia, farto daquellas maravilhas tantas vezes vistas, descera uma rampa e, cantando, fôra-se á procura deparasitas. A sua voz perdia-se no fundo da terra.
Elsa ergueu-se, córada, respirando forte, com o collo cheio e, voltando-se, achou-se em frente de Eduardo, que sorria.
— Como estás linda, meu amor !
Ella quiz passar, elle abriu os braços, detendo-a.
— Espera, Eduardo.
—Não. Ella córou, sentindo o homem. Não, E
ficaram immoveis. De repente, num movimento rápido, Eduardo tomou-lhe a cabeça a mãos ambas e beijou-a na boca, sofregamente. Ella não reagiu, e os dois ficaram como esquecidos naquelle beijo, transmittindo-se as almas.
Subito, em sobresalto, repellindo-a desatinadamente, fitou-a, cravou-lhe os olhos no rosto e gritou-lhe o nome num delirio, como para chamá-la 90 ÁGUA DE JUVENTA
ao amor : Elsa ! Ella encarou-o tremula, e, ambos mudos, olhando-se, ficaram um momento como petrificados. Elle deixou-a, partiu a correr, chamando o guia aos brados. O
homem respondeu-lhe do fundo da gruta—estava enganchado numa arvore arrancando parasitas. Deixou-se escorregar e, em terra, precipitou-se, subindo o recosto agarrado ás raizes. Appareceu esbaforido, alagado em suor e, vendo Eduardo debruçado sobre o abysmo, perguntou, assustado .
— Aconteceu alguma coisa, patrão ?
— Não, nada. Eu queria que fosses lá em baixo buscar qualquer coisa para almoçarmos aqui. És capaz ?
— Vai ! Vosmecê querendo.
— Então, olha . . . Vai!
Abriu a bolsa, tirou uma nota e deu-lh'a.
— Qu'é que vosmecê quer ?
— Qualquer coisa, o que encontrares — peixe, lombo, fiambre, pão e vinho. O que encontrares.
— Vosmecê fica aqui mesmo?
— Aqui mesmo.
— Vou num pulo. É só o tempo de chegar os animaes para a sombra.
— Sim.
Eduardo tremia, falava aos arrancos, como se lhe faltasse o ar. O caipira partiu a correr e perdeu-se no matto. Elsa, que deixara a fonte e, na clareira, resplandecia numa aureola de sol, olhava, sem comprohender, aquelle capricho do marido e, quando o caipira enveredou pelos mattos, encarou Eduardo, com uma interrogação nos olhos claros. Elle travou-lhe das mãos friase, ajoelhan- AGUA DE JUVENTA 91 do-se ficou a contemplá-la, a adorá-la, enlevado. A voz do caipira perdia-se ao longe, o Eduardo, nervoso, febricitante, disse á mulher um segredo suave que a fez crar.
_ Que idéa, Eduardo ! Elle perseguia-a, sem deixar-lhe a mão. Isto é um lugar procurado. Que tolice !
— Que importa ! És minha! exclamou, e agarrou-a, cingíu-a, beijando-a, murmurando-lhe aos ouvidos, por entre beijos allucinados, uma só pa lavra, o seu nome: Elsa! Elsa!
Ella cedia, oppondo uma resistência molle, sempre assustada com os rumores confusos da natureza, a andar com os olhos medrosos dum para outro lado. Que importava ! Era a vida que exigia o seu tributo de amor.
Tudo ora silencio em torno, uma quietação enervada e languida.
— Elsa!
— Não ! Eduardo, disse em segredo, tremula, vencida. Olha . . . escuta . . .
— São os passarinhos. Não ha ninguém, Elsa adorada!
As bocas sellaram-só com um beijo.
O sol, mais alto, estendia, na alfombra da clareira, um lençol de ouro fino. Nunca leito algum nupcial teve tão precioso brocado.
As aguas aligeiravam-se abrandando as vozes em murmurio. Em torno, no bosque denso, tudo se concentrara em religioso silencio para que soasse isolado, solitario, dominador, o hymno suave do triumpho amoroso, todo em sons de beijos. E as folhas, uma a uma, cahindo docemente, eram como a saudação festival da natureza áquella victoria humana. 92 ÁGUA DE JUVENTA
Quando o caipira reappareceu com as provisões num cabaz, Elsa, estendida na gramma, a cabeça no collo de Eduardo, dormia tranquillamente, com um sorriso no rosto lindo, que era como o reflexo do sorriso com que a contemplava o esposo.
V
Apesar do frio intenso que, desde o crepusculo, despovoara a villa, concentrando toda a vida nos lares, o doutor appareceu á noite, muito agasalhado e, logo á entrada, a um homem que esfregava desesperadamente as mãos falando em geada, com desanimo, perguntou por Eduardo. O homem não sabia, sahira do quarto naquelle momento para agitar-se. Estava transido, tinha os pés gelados, nem os sentia. Irra !
—Está frio, hein ? Que tal o começo do inverno ?
—Nem na Russia ! e, baixando a voz em confidencia : Ó doutor, um cognaquezinho fará mal?
— Não, sendo pouco.
O homem agradeceu e abalou ás largas peruadas, encolhido na golla do casacão. Na sala não estava ninguém—as lampadas amortecidas davam uoia luz triste. No corredor, o carrinho do padre, 94 AGUA DE JUVENTA
com o entrovadinho ao lado a ouvir as historias santas, era só.
O doutor passou pelos infelizes, saudou-os, fa-landolhes também do frio, da geada que o céu limpido annunciava e foi-se, ter com o Fonseca, que o mandara chamar a pedido de Eduardo, « que partia na manhan seguinte».
O Fonseca lá estava no escriptorio revendo a escripta.
A sala de jantar immensa, com todo o fundo apagado, era lugubre. Em duas mesas apenas alvejavam toalhas.
—Boa noite. Então, que ha1?
O Fonseca escorregou do banco e informou:
— Que o snr. Eduardo pagara a conta. Já estava com a bagagem na estação.
— Assim de repente !
— É verdade : de repente. Chegaram do passeio ás duas horas, nem almoçaram e logo o criado me veiu pedir a conta até hoje e correu á lavadeira e, ás cinco, lá foram as malas a despacho.
— E foi elle que me mandou chamar?
— Foi.
— Bem . . . Manda lá dizer que estou aqui.
E, preoecupado, poz-se a passear cabisbaixo, em silencio, no estreito escriptorio atravancado de caixas.
Instantes depois Eduardo apparecia risonho. O medico adiantou-se ao seu encontro e foram para uma das mesas, pediram cerveja.
— Que é isso ? Então parte ámanhan ?
— É verdade . . . Ámanhan. E
fitavam-se sorrindo.
— Mas . . . que resolução foi essa ?
Eduardo encolheu os hombros. O medico não AGUA DE JUVENTA 95 se atrevia a lançar a pergunta e ambos, embaraçados, guardaram um silencio vexado. Por fim, Eduardo assegurou :
_É verdade, doutor. Eu já estava resolvido a acabar com isto . . . não era vida.
O medico, muito interessado, deu um puxão á cadeira, chegou-se mais e, com os cotovellos na mesa, perguntou vivamente:
— Então ? Houve alguma coisa ? Elle acenou com a cabeça. O medico exultou : Ora ainda bem ! Parabéns !
E. . .
— Não sei, doutor.
De novo o embaraço tolheu-os. O medico não se conteve :
— O caso era dos mais bellos. Não tivera igual na clinica . . . E então ?
— Foi a natureza, doutor. De repente, com mais desembaraço, explicou : Estávamos junto á fonte, a olhar a agua . . .
Calou-se de novo. O medico tinha os olhos cravados attentamente no seu rosto, elle tamborilava com uma faca.
— Eu não lhe dizia ? Foi a despreoccupação. O
senhor vivia aferrado ao terror, escravisado a uma idéa, consumindo em cuidados toda a sua energia cerebral e o cérebro, meu amigo ... O cerebro é o regulador da vida, é o registro. O medico estava triumphante. Encheu o copo de cerveja, esvaziou-o dum trago e continuou : O systema nervoso, meu amigo, não supporta a inércia durante muito tempo — reage e vence ou succumbe. O senhor não tem lesão alguma, era apenas um «impressionado», um captivo—a sua vontade fora eliminada. O meio 96 AGUA DE JUVENTA
em que se fixava logo ficava viciado, permitta-me a expressão, como impregnado de terrores. Tudo recordava a sua fraqueza, os menores objectos contribuíam para a desordem moral. Já viu um assombrado ? tremendo ao leve ruido, vendo espectros em todas as sombras, sentindo-se agarrar por mãos invisiveis, ouvindo vozes no escuro? . . .
Pois o senhor estava assim. Sahiu, distrahiu-se ao ar livre, entrou num sitio novo, olhou com olhos límpidos, desannuviados o que sempre via atravéz do medo e realisou-se o que eu esperava, o que fatalmente se havia de realisar. Ahi tem. E a agua contribuiu para isso, acredite. Foi ella que preparou a reacção, o bosque ou melhor : a fonte concluiu a obra. Ah! meu amigo, a natureza. Emfim . . . Doulhe parabéns sinceros. Apertaram-se effusivamente as mãos. Cheguei a receiar, palavra. O seu estado de irritada excitação podia leval-o a tudo. Não imagina como eu andava preoccupado. Realmente . . .
Emfim... Tout est bien qui finit bien. Agora é não ser ingrato, lembrar-se de nós, visitar-nos de vez em vez. Tem obrigação de querer bem a esta terra, o seu verdadeiro templo de amor porque... emfim... foi aqui.. .
Elle concordou :
— Sim, foi aqui. Hei de voltar. . . quando por mais não seja, por gratidão.
O medico arrematou sorrindo :
— Á nympha invisivel da fonte. Pois ahi tem .. .
Um caso admirável. Mnguem o ha de aceitar como verdadeiro. O senhor experimentou tudo . . .
— Tudo ! affirmou Eduardo.
— Foi bastante ficar um minuto entre as ar-
ÁGUA DE JUVENTA 97 vores, olhando a água correr para voltar . . . á vida, não é verdade? Capricho. E o homem é assim : uma maehina delicada que com qualquer coisa se desarranja. Ora, vão lá saber, por exemplo : por que um homem de bons costumes, provadamente honesto, commette, ás vezes, um crime infame! uma idéa no cerebro a empecer, a embaraçar o exercicio normal das cellulas. É o infinitamente pequeno, que os ha no mundo moral, peiores, talvez, do que os do mundo physico, destruindo a consciencia. É assim. O
senhor era o que é : um homem forte, de invejavel saude e estava para abi inutilisado. Por que ? porque tinha no cerebro uma idéa fixa, um grão de areia, um atomo de pó. Varreu-o, ou antes : os ares puros varreram-no e toda a maehina voltou a funccionar com a regularidade integral que a vida exige. Bis o que somos — escravos dos mínimos. E é para vêr, meu caro. Quando eu insisto com o governo dizem que sou impertinente, que exijo impossíveis. Está ahi a prova. Uma estância como esta não se pôde limitar ás fontes. Pontes não faltam por essas terras vastas de Minas, mas onde? em carrascaes, em lugares inaccessiveis, inhospitos onde, só com immensos sacrifícios, pôde o enfermo chegar e manter-se. O
tratamento thertral deve ser feito como entendiam os gregos que, ao lado das fontes, levantavam o templo a Asclepio, tratavam de conservar as florestas das visinhanças, alhanavam arenas para jogos, isto é :
auxiliavam a medicina com a suggestão e com as distracções. O deus era um recurso moral e as florestas corrigiam a tristeza, dissipavam os cuidados ao mesmo tempo que purificavam o ar, garantiam a agua, e 98 ÁGUA DE JUVENTA
os jogos levantavam os espíritos abatidos suspen-dendoos com o enthusiasmo provocado pela victoria de um athleta ou de um carro. Vão lá explicar o seu milagre.
Ura verdadeiro milagre, pois não.
— Sim, verdadeiro milagre.
— É isto. Pois não calcula a, minha satisfação, como medico e como amigo. E, se me dá licença . . . A noite está fria, e creio que ainda tenho um parto. É a vida, meu caro ; é a vida que por ahi pullula. Nós, medicos, andamos sempre a preparar esta terra de Deus, tão cheia de abrolhos. Somos os capinadores que a despimos das urzes, que são as moléstias, tornando-a san, para o amor, e, no tempo do fruto, lá o vamos colher. Hoje vou dormir contente com o seu caso, lá pelo nascimento, não, porque agora os frutos humanos já nascem bichados. É uma miseria . . . Emfim, é mais um casal que entra na communhão da Humanidade, e um casal intelligente e bello . . . bello sobretudo, porque a nossa raça degenera cada vez mais : estamos regressando ao mono. Levantouse, a mão estendida. Até ámanhan. Lá irei á estação despedir-me da senhora.
Quando Eduardo quiz abordar a questão do dinheiro:
consultas, chamados ... o medico repelliu, muito digno :
— Não falemos nisso. Eu nada fiz. O senhor deve tudo a esta terra maravilhosa, ás águas e á fonte, lá em cima. A mim, nada. Lembre-se da terra, pague-lhe com a saudade.
— Hei de lembrar-me, doutor.
— Pudera ! exclamou o medico a rir.
— Ah ! sim . . . ÁGUA DE JUVENTA 99 Seguiram juntos pelo corredor e Eduardo, apesar da opposição do medico, quiz acompanhá-lo á porta.
— Não, não venha ; está muito frio.
— Qual! Estou habituado á neve.
— Ah ! na Europa . . . Mas lá ha o conforto, que não se conhece neste relaxado paiz. O senhor chega da rua, a tiritar, e encontra um bom fogo, o punch, o leito aquecido e dorme sem receio dos ventos. Mas as nossas casas ?
verdadeiras gaiolas. Ainda não nos civilisamos, meu amigo. Só temos presumpção, nada mais. Olhe esse homemzinho da philosophia : muita moral, muito conceito, muita patacoada ; não tem um preparatorio e vive a encharcar-se de mercurio. Parofia! Somos assim — um povo de exterioridades -— por dentro, ainda os mesmos botocudos. Até amanham Foi-se. Eduardo ficou um momento á porta, acompanhando o vulto, que se perdia na sombra do largo, faiscante de vagalumes. De longe ainda o medico exclamou, numa lembrança : E a installação da loja maçonica ! ? Pois tem coragem de perder espectaculo tão rico ?
— Que fazer ?
— Ah ! É porque não conhece o pessoal. Vai ser uma delicia. Boa noite !
— Boa noite, doutor.
O céu limpo, bordado de estrellas, tinha um brilho sedoso. Em redor das lâmpadas havia uma teia de nevoa.
A villa dormia calada, só o ribeirão roncava entre as barrancas.
O hotel, sombrio e deserto, parecia abandonado de todo. Eecolhendo-se, Eduardo ouviu vozes na sala dos jornaes — era o «philosopho » que embas-
100 ÁGUA DE JUVENTA
bacava tun marchante goyano que vendera o seu gado e ali fora descançar uns dias. O pobre homem bocejava e o outro ia-lhe desvendando os altos arcanos da philosophia, e adiante, na sombra do corredor, o velho padre, entre o negro que cochilava e o aleijadinho attento, ia dizendo, do fundo do seu carro, com muito vagar e com muita doçura, a desgraça de Job.
— Boa noite. Só o negro não respondeu, cabeceando. Muito frio . . .
— É verdade, meu senhor. Estou aqui entretendo este pobrezinho com umas historias dos livros santos.
— Faz bem. Até ámanhan.
— Até ámanhan. Então, ó verdade que o senhor vai deixar-nos ?
— È verdade : parto ámanhan.
— Que pena ! E como isto vai ficar triste .. .
E ainda Eduardo poude ouvir a voz do sacerdote, dizendo : « Á hora da tarde, estando Job á porta da sua casa, viu chegar um moço ...» Entrou no quarto, onde a temperatura era tepida e ainda fluctuava um fino aroma de essencias. Elsa, com os cabellos soltos, toda arripiada, tiritava, sentada diante do lavatorio.
— Que frio ! Eugenia adiantou-se para fazer-lhe a trança. Depressa, Eugenia. Estou gelada. É então ámanhan ?
— Ámanhan !
— Bem cedo estou de pé. Quando a criada sahiu Elsa, ao voltar-se, deu com Eduardo parado diante do leito, a olhar — eram os lençoes do hotel que o forravam, sem o grande monogramma, em relevo, AGUA DE JUVENTA 101 que lhe dava tanta distincção e uma severidade heraldica, sem as colchas de seda, o fofo cobertor felpudo, as íronhas de rendas. Estás olhando ? Já mandei tudo. Por uma noite até tem graça.
— Sim, observou elle enlaçando-a pela cinta.
Mas olha que esta é verdadeiramente a nossa noite de nupcias.
Ella teve um movimento vivo, um mesmo gracioso.
— Por isso, não ... e sorrindo : E lá em cima ?
— Ah ! lá em cima ... tivemos sol!
Cedo, ainda escuro, estavam de pé. Eduardo quiz ir ás duchas, pela ultima vez. Elsa acompanhou-o, ficou em um dos banheiros. De volta, córados, vestiram-se á pressa, tomaram café na sala de jantar e foram para a janella, olhar o largo.
As nevoas rolavam densas, todo o fundo da paizagem era um fumo espesso, alvejando. Aqui, ali pelos rasgões, appareciam verdores d'arvores, pontas de telhados, ás vezes uma casa. As hervas luziam molhadas. Mas o sol rompia o nevoeiro, illuminava-o. Já nos cerros alastravam clarões d'ouro e o azul limpava-se a trechos.
As horas passavam vagarosas como se os prendessem á villa. Lá estava a montanha, com o seu dorso immenso coberto de nevoa branca como a lan das ovelhas lavadas.
Eduardo mostrou-a. Tinha sido ali, num canto verde, entre as arvores. Picaram a olhar, sorrindo.
— Se eu tivesse trazido a minha machina !...
— Para que ? 102 ÁGUA DE JUVENTA
— Ora ! para termos uma lembrança.
— Ha tantas photographias ahi.
— Sim, da villa . . . Mas eu queria a fonte.
Riram. Um silvo da locomotiva em manobra tirou-os do extase. Já se haviam despedido de todos.
Elsa, porém, quiz dizer adeus á D. ITrsulina, que estava adoentada, com o seu achaque, dar alguma coisa ao padre o ao aleijadinho e lá os foi vêr. A boa senhora recebeu-a gemendo, tolhida de dores, a amaldiçoar aquelle tempo.
— Não imagina as noites que tenho passado : são dores em todas as juntas, o peito parece que me vai rebentar. Ah ! estas águas são boas, são, para quem tem mocidade, mas para uma velha, como eu, cheia de ferrugem . . . Esticou o beiço, desanimada.
Emfim. . . Abraçaram-se. D. Ursulina offereceu a sua casa, em Lavrinhas, uma choupana. Elsa deu-lhe um cartão com o seu endereço, no Eio, e despediram-se:
Boa viagem ! Sejam muito felizes. Olhe, recommende-me a seu marido e dê muitas lembranças a Eugenia. Boa rapariga. E, baixando a voz : É verdade ! Ella não lhe disse nada ?
— Não. Sobre que ?
— Sobre o tal sabichão ?
— Não.
— Pois, sim senhora — contou-me ella :
Agarrou-a, minha filha ; agarrou-a, uma noite, no corredor e se ella não fosse quem é, uma rapariga forte, nem sei. Deu-lhe ! deu-lhe mesmo. Deu-lhe de verdade !
— Eugenia ! exclamou Elsa sem conter o riso.
— Sim, senhora. Um sonso, o tal sujeitinho. Eu é que nunca me enganei com aquella cara. Homem AGUA DE JUVENTA 103 sem religião . . . Olhe, eu não vou á estação porque estou como vê. Boa viagem, muitas felicidades e que encontre todos os seus bons.
O padre e o aleijadinho cobriram-na de bênçãos e de louvores. O Fonseca acompanhou-os.
Na estação eram poucos os curiosos — gente da terra, em mangas de camisa, pobres esmolando. O
doutor lá estava passeando na plataforma, com grossas luvas de lan, um chalé sobre o capote. EIsa, ao dar com elle, ficou atarantada, vivo rubor tingiulhe as faces. O medico adiantou-se respeitoso e um menino, com uma linda parasita, seguiu-o de perto.
— O homem do matto, minha senhora, só pode offerecer lembranças agrestes ; e tomando a parasita da mão do pequeno, apresentou-a a EIsa.
— Que belleza ! Muito obrigada, doutor.
— É bonita, é. Não sou muito entendido nessas coisas, mas um allemão que aqui esteve ficou deslumbrado. Ah ! só os estrangeiros dão valor ao que possuímos.
— Ficará na minha sala de jantar. Eduardo lembrou-se da grota em que vira Fir- mino enganchado na arvore coberta de parasitas e disse :
— Lá em cima ha lindas.
EIsa córou de novo.
— Lá em cima ! ? exclamou o medico . . . Em toda a parte. Na Europa isto é uma fortuna. Mas o chefe de trem annunciou a partida. Embarcaram.
Boa viagem !
—Obrigado, doutor.
—Felicidades . . . Minha senhora . . . 104 AGUA DE JUVENTA
O comboio moveu-se, foi indo.
Eduardo e Blsa, á janella do wagon, acenavam ao doutor que agitava o lenço. Á volta, perdendo-se a estação, a paizagem alargou-se deslumbrante ,—
campos, arvoredos, collinas, palhoças fumegando, alta, soberba, dominando as varzeas, a montanha carregando a floresta nos rijos e fecundos flancos e lá ao fundo, recatada como uma câmara nupcial, os dois adivinhavam a fonte e áquella hora os velhos troncos, os arbustos, as hervas, os nenuphares, os passarinhos, as abelhas, as parasitas, as águas, tudo que ali vivia commentava alegremente, ao calor do sol, aquelle idyllio da véspera, sob os pendidos ramos.
Eduardo, sorrindo, estendeu o braço na direcção da montanha e, como iam sós no wagon, mesmo á janella, em face da natureza esplendida, beijaram-se.
E o comboio, a toda a velocidade, rompia as nevoas da serra.
DESAPONTAMENTO
DESAPONTAMENTO
Em camisa, com o collete ajustado, cavando a cinta, Guiomar polvilhava o rosto toda inclinada para o espelho do psyché. O seu corpo, carnudo e bem feito, desenhava-se em linhas soberbas sob a cambraia fina, duma transparencia de tela humida.
O collo nú, muito branco, repulsado pelo collete, subia em duas ondas turgidas, inchando-lhe o peito.
O pescoço alto movia-se com uma graça languida, sem uma ruga, com brilhos, por vezes, a um toque de sol na fina pennugem loura que crescia para a nuca até a cabelleira fulva e cheia que ella retorcera e apertara em espiral.
As botas chegavam-lhe á meia perna, comprimindo a carne que saltava, rica e sadia, retesando a seda das meias e, entre a fimbria da camisa e as ligas, com fechos de prata, transluzia um pouco da coxa marmorea.
108 DESAPONTAMENTO
Com o alçar dos braços descobriam-se-lhe as axillas fundas, com uma felpuda filigrana encaracolada entre as fitas que se juntavam em laço sobre os hombros lisos. E, de toda ella, da frescura viçosa d'aquella carne exhalava-se um aroma penetrante que impregnava o aposento.
Gaudencio, em mangas de camisa, ia e vinha parando, por vezes, diante de um movei para examinar um bibélot ou retorcendo as guias do bigode, distraindo, ficava a olhar o espelho ou um chronao copiado de Cabanel.
Um relogio bateu vivamente. Guiomar suspirou e, voltando-se com pressa, passou ao quarto contiguo. Gaudencio parecia gosar o perfume que pairava no ar. Caminhou vagarosamente para o divan e, sentando-se, deixou-se ficar com o cigarro apagado entre os dedos, os olhos parados, perdido em seismas.
Ouvia os passos ligeiros da mulher, o farfalhar das sedas e foi quasi com espanto que a viu reapparecer prompta, com um costume justo de crépon e um chapéuzinho leve, de palha escura, com flores e gaze.
— Em que instante !...
— Que horas pensas que são? uma e tanto.
Inclinou-se de novo ao espelho do psyché, ajustando o chapéu sobre a massa opulenta dos cabellos e, abrindo uma gavetinha, tirou um broche, as pulseiras, as luvas e, depois que desceu o véu, calçando-as, voltou-se para o marido que a contemplava : Muito bem, estou prompta. E agora ?
— Agora ? ! Agora é o que combinamos :
Mandas o teu cartão — elle conhece-te, recebe-te logo DESAPONTAMENTO 109 e tu dizes-lhe a coisa sem rodeios, francamente :
—Que estou assim, sem emprego, vai para quatro mezes»; e pedes-lhe o lugar de guarda-livros ou outro qualquer, isso pouco importa. Elle sabe as minhas habilitações. O que quero é, arranjar-me. E
concluiu : Esteja eu de dentro ... o mais fica por minha conta.
— E se elle disser que agora não é possivel ? Se vier com desculpas e promessas, como os outros ?
— Ora ! Isso depende de ti, affirmou sorrindo.
— Depende de mim 1.! Depende de mim, não !
Eu não hei de dizer ao homem : Quero, porque quero !
— Tudo está em saber pedir. . .
— Parece-te. Picou, um momento, d'olhos baixos e disse depois: Eu achava melhor ir procurá-lo de manhan, á casa. Isto de ir ao banco, com tanta gente lá.
Fez um momo, contrariada.
— Que tem ?
— Tenho vergonha.
— Ora, vergonha . . . Elle não gosta que o procurem em casa. Parece que a mulher é muito ciumenta.
Guiomar fitou o marido com um ar d'escandalisada:
— Quem sabe se ella vai ter ciume de mim ? Ora!
— Não estou dizendo isso, filha.
—... Nem que elle viesse coberto de ouro !
concluiu e, resolvida, deu mais um olhar ao espelho e despediu-se : Até logo ! Afastando, porém, o leve reposteiro, affirmou: Eu vou sem confiança alguma.
Emfim...
110 DESAPONTAMENTO
Elle ouviu-lhe os passos e, quando a campainha bateu no portão, sentindo-se bem, á vontade, encolheu-se no divan para gosar aquella esperança.
A vida ia-se-lhe tornando insupportavel com a miseria que se aggravava. Tinha todas as joias de valor empenhadas, os recursos de expediente escasseavam e, da manhan á tarde, ás vezes até á noite, quando tinha visitas, eram fornecedores ao portão, teimosos, impertinentes, resmungando, falando alto, com ameaças. A conta do armazém crescia e os caixeiros, como se se julgassem senhores, entravam pela casa batendo rijamente os tamancos, atiravam a lenha no pateo, deixavam as compras sobre a mesa e sabiam assobiando, com desprezo, como se houvessem feito uma esmola.
Os criados riam, cochichavam pelos cantos. Elle evitava-os, fugia-lhes aos olhares sem energia, sempre receioso de ouvir uma palavra que o ferisse ou de ser abordado por algum mais exigente que reclamasse os atrazádos.
A sua vida era commentada nas vendas e nos açougues, entre a criadagem e o que maior desespero lhe causava era vêr a mulher, que fora criada com muito mimo, na abundancia, aperreada naquella miseria, a conter os desejos, refreando tantas ambições naturaes : passeios, theatros, visitas, saraus, uma joia, um vestido.
E lembrar-se elle do passado, do bom tempo da fortuna, quando as gavetas do contador regorgitavam de dinheiro, os armarios mal se podiam fechar com a quantidade de lençaria, o guarda-vestidos DESAPONTAMENTO 111 transbordava e em todos os moveis daquelle vestiario luziam joias finas : anneis, pulseiras, broches, brincos, collares que andavam, então, espalhados pelas casas de penhores, vencendo juros avultados, em vésperas de leilão. Um horror !
Os amigos, apesar das apparencias enganadoras, como que sentiam o desastre e, pouco a pouco, rareando as visitas, evitavam a casa que se tornava calada e triste, povoada de tédio nas longas horas monótonas das noites, d'antes tão ligeiras e alegres.
O relogio tiniu. Gaudencio accendeu o cigarro, tirou uma baforada e poz-se a seguir, em espirito, a mulher.
Ella já devia ir perto, com o seu andar ligeiro e gracioso, atravessando aquelle quarteirão de commercio, por entre a multidão azafamada dos corretores e dos aangões e mais gente que fervilha na ganância da bolsa, o mundo avido do dinheiro, o caudal ambicioso da fortuna.
Os bancos defrontavam-se recebendo, despejando gente — uns que entravam sobraçando pacotes de notas para o deposito, outros que sahiam, á pressa, com maços de contos de reis e, lá dentro, aos guichets, o farfalhar dos cheques, o estralejar das latas que se abriam mostrando pilhas de cedulas apertadas, placas numeradas, verdes d'azinhavre, que iam e vinham, recibos garatujados á pressa, o cheiro das notas, o apregoar de centenares de contos, o referver duma vida atordoadora no exterior e no interior daquelles immensos edificios obscuros onde, apesar do sol que luzia em todo o esplendor, as chammas das arandellas abriam-se como azas de ouro illuminando o fluir e o refluir da 112 DESAPONTAMENTO
riqueza. Ella já devia ir pela escada do banco, timida, despertando a attenção daquella gente, para ella estranha, que se voltava, com curiosidade sensual, sentindo-lhe o perfume, analysando-lhe as linhas adoraveis do corpo, commentando-a, interrogando-se sobre ella :« Quem seria? Que andaria a fazer por ali?» E a maledicencia entraria logo com a sua perversidade, pondo uma infamia naquelle desespero, amargando ainda mais aquella angustia.
E ella ? Não se deixaria vencer pela seducção do ouro ? ella, tão resignada, não enfraqueceria ao dar com aquella fortuna, vendo aquelle incessante passar e repassar- do dinheiro dum homem para outro até perder-se no bojo dos cofres escancarados, torres de sonho, castellos inaccessiveis de ventura ?
Um pensamento atravessou-lhe o espirito como a ligeira sombra que deixa no clarão do sol a passagem aligera dum corvo. O Navarro tinha fama de ousado, citavam-se-lhe as amantes : damas da alta sociedade que viviam das sobras das suas arrojadas operações de bolsa, ostentando cynicamente os lucros do despudor, cocottes que dissipavam á larga. Até na pobreza elle entrava com a sua lubricidade, cevando a deshonra de donzellas com mancheias d'oiro, a titulo de protecção e amparo até o dia em que os pais, affeitos ao bem estar que lhes proporcionara a fortuna infame, temendo uma volta repentina aos duros tempos da fome e do desaga-salho, relaxassem a guarda do corpo virgem para que o rico homem, preso á carne pura e nova da infamada, continuasse a regalar com a sua generosidade a casa, outrora virtuosa, indemnisando a DESAPONTAMENTO 113 irmocencia perdida com a fartura e com o descanso ató o dia fatal da saciedade e do abandono.
Conhecia bem o JSavarro desde os tempos do Auxüiador, grande escriptorio de penhor agricola que absorvera, em hypothecas avaras, o melhor das terras cafeeiras da zona do Sul do Estado.;
Lembrava-se das suas palestras á hora do café, palestras livres nas quaes eram lançados, sem o menor escrupulo, nomes de senhoras conhecidas em promiscuidade aviltante com alcunhas de cocottes e de bailarimas. E ainda lhe soavam as gargalhadas estrondosas e bajuladoras com que os da roda recebiam e applaudiam os alardes devassos do banqueiro, que se repoltreava, muito ancho, orgulhoso da sua libidinagem, dando minucias indecorosas dos seus amores, referindo-se, com ironia cruel, aos maridos ultrajados.
Levantou-se e, passeando pelo aposento, sentia como um remorso de haver mandado a mulher áquella casa. E se elle a cubiçasse? Guiomar tinha todos os attractivos. Era alta, branca, esbelta ; a sua voz, grave e lenta, era carinhosa e macia, o seu olhar tinha uma doçura meiga, a sua boca, pequena e carnuda, muito vermelha e humida, era como uma flor que se entreabria em sorrisos e o seu corpo indiscreto mostrava-se, atravéz das roupas, como se insistisse em dar-se aos olhos ; por mais cuidado que houvesse em encobri-lo sempre resaltava, quando ella se sentava impunha-se, mostrava-se, offerecia-se.
Bateram de leve á porta. Era uma criada a annunciar-lhe — que despachara um homem, dizendo que elle não estava. «Sim !» E o silencio recahiu.
114 DESAPONTAMENTO
Tornou á mulher. Estaria ella em presença do Navarro ? Sim, devia estar, devia estar no acanhado gabinete do banqueiro, separado da sala por um biombo, apenas fechado por uma cortina que o velava ás vistas dos empregados. Conhecia-o bem, lá estivera varias vezes. Havia a escrevaninha, um cofre, uma pequena mesa, cadeiras e o divan de couro. Aquelle divan ! . . .
Numa ânsia, com uma grande oppressão que lhe pesava no peito, passou ao dormitório e, diante do leito contido pelo cortinado, deteve-se, olhando vagamente : Ali estavam, em desordem, as roupas caseiras de Guiomar, os seus trajos honestos. No chão, sobre o tapete, a sua camisa jazia em rolo.
Tomou-a e, apertando-a entre as mãos, cheirou-a com volúpia, como se fosse um ramo branco de flores e o aroma, alma da carne, trescalou allucinante.
Teve vexame de si mesmo. Que loucura ! Mas o pensamento atormentava-o e a idéa dum crime passional recrescia diante d'aquellas roupas abandonadas. Parecia-lhe que a mulher havia partido núa, que errava pela cidade como uma borboleta que houvesse deixado o casulo e gosasse livremente o sol e o ar, vagando de flor em. flor. O
sangue accendia-se-lho naquelle silencio da casa, toda cheia d'um mysterio denunciador. E as horas?
O tempo parecia-lhe também haver entrado em cumplicidade, demorando-se para dar ensejo e vagar á pratica nefanda.
Que faria ella lá em baixo até áquella hora! Para a conversa bastavam-lhe alguns minutos— sim ou não. Que ficara ella fazendo no escriptorio d'aquelle homem ? E se a vissem! Se algum conhe-
DESAPONTAMENTO 115 cido desse com ella ali, a sós com o banqueiro? Na sala de jantar tiniam, louças. Era, de certo, a criada que arranjava a mesa. Entreabriu a porta e olhou : Á mesa alvejava a toalha e, ao centro, num cachepót de Delft, uma latanea muito verde espalmava-se.
Lançando rapidamente os olhos ao relogio viu que eram 4 horas. Franziu o sobr'olho e, nervoso, retorcendo os bigodes, voltou ao vestiario, atiran-dose, de novo, ao divan com ódio surdo á mulher, convencido de que ella se deixara enlevar pelas attracções da riqueza deslumbradora.
E o Navarro, o canalha ! Como havia de sorrir quando o visse e como havia de celebrar com mordacidade aquella aventura facil, levada a effeito no seu próprio escriptorio, emquanto ao lado, apenas separados por um tabique, os empregados, curvados sobre os grandes livros, sommavam parcellas e, mais adianto, o thesoureiro pagava e recebia, assignando cadernetas, inutilisando cheques com a mesma indifferença com que mordicava o charuto.
Não, não havia que duvidar. Viu no cabide um casaco de seda, vestiu-o ás pressas, mas logo, retomado de desanimo, num descorçoamento, sentiu uma commoçao violenta. A garganta como que so lhe ia apertando em angustia, sentia lagrimas nos olhos e, de pé, deslembrado de tudo, apenas com aquella visão do ciume, voltando-se, de vez em vez, para olhar as roupas da mulher, deu pela primeira lagrima que lhe rolara ao longo da face, entranhando-se-lhe no bigode.
Reagiu envergonhado da fraqueza e, a passos largos e vagarosos, penteando os cabellos com os 116 DESAPONTAMENTO
dedos muito abertos, tornou ao vestiario, sem coragem de deixar aquelles aposentos intimos, com medo; dos criados, certo de que todos leriam na sua physionomia o segredo torturante daquillo que então lhe parecia um commercio infame, um lenocinio torpe, o mais abjecto dos traficos imaginaveis. Pobre Guiomari Mas a campainha tiniu. Voltou-se sobresaltado e, olhando desvairadamente em torno, viu um jornal, tomou-o, atirou-se com elle ao divan, abriu-o e esperou.
Ao ruido dos passos de Guiomar sentiu que todo o sangue lhe affluia ao rosto. Não fosse ella perceber que chorara. O reposteiro afastou-se e ella appareceu linda, com as cores avivadas por aquelle exercicio ao ar e ao sol e, vendo-o na mesma attitude em que o havia deixado, pasmou:
— Ó homem, ainda estás assim ?!...
— Estava lendo.
Olharam-se mudos e ella, levantando o véu, disse com um movimento sacudido do busto airoso:
— Pois, meu amigo ... nada !
— Como!?
— É o que te digo . .. Que agora não é possivel, tem até empregados demais. Que lamenta não te poder servir e por ahi além ...
E ia descalçando as luvas que resistiam como se sentissem deixar a pelle fina, macia e cheirosa daquellas mãozinhas brancas. E elle olhava sem uma palavra, espantado, surprendido, como se lhe parecesse impossivel que o Navarro negasse alguma coisa áquella linda mulher que ali estava DESAPONTAMENTO 117 mais bella e mais seductora que nunca. E, com uma ponta de despeito, levantando-se mollemente, resmungou com odio, por entre os dentes cerrados:
—Idiotas !
REVENDO O PASSADO
REVENDO O PASSADO
E aqui estamos nós, á margem do rio, á sombra das arvores, que tantas vezes nos viram chegar, com as nevoas de junho ou com os luares de outubro, guiando os passos timidos dalguma rapariga, ainda inexperiente, que se encolhia, toda transida de medo, assustada com o rumor do vento nas arvores ou com uma folha morta que cahia roçando-lhe a nuca.
Entravamos no hotel, sempre cheio de besouros, e, aos berros, atirando bengaladas ás mesas, atroando o silencio da casa immensa e lugubre e acordando o criado, que dormia á sombra do balcão, pediamos vinho e ovos, que outras coisas não chegavam a estes confins da cidade. Como vai longe esse tempo e como está tudo mudado. Nós envelhecemos e mirramos, a cidade rejuvenece e, dilata-se.
122 REVENDO O PASSADO
E ainda falamos, com orgulho fatuo, da nossa superioridade sobre as coisas. Eu preferia a longevidade material da pedra e do ferro, da arvore e do pantano, á eternidade espiritual que nos promet-tem. Olha esta arvore — parece nova : tão viva, tão verde, cheia de botões, prestes a florir, já era uma reliquia citada quando aqui vinhamos. E o rio lá rola eterno nas suas aguas, sempre soberbo e cantando, e nós começamos a envelhecer, vergando, com a cabeça cheia de cabellos brancos e rugas nas faces. Bom tempo !
Viviamos discutindo o futuro, que tão differente nos sahiu dos planos que esboçavamos. Tu, sempre com visões poeticas, abarrotado de romantismo, querias possuir um castello de nome sonoro, reunir mesnadas e dominar, do alto da torre, o burgo humilde.
Falavas dos homens d'armas espalhados pelos adarves, com lanças e buzinas, de uma sentinella vigiando a ponte, de roldas e sobre roldas caminhando lentamente a espiar, por entre as ameias, o campo e o rio. E nas salas immensas, abobada-das, com pannos e armas pelas paredes fortes, ao jorrar dos vinhos e ao som das musicas dos menestreis, desorevias trebelhos alegres de histriões e de moças, ao calor das chammas de carvalhos inteiros, arrancados com as raizes, que ardiam no fogão collossal, com um fúlgurar de incendio que accen-dia esbraseadamente os vidraes, dando razão ás lendas medrosas dos vilões —« que eras o proprio demonio e o teu castello uma das entradas do inferno». Lembras-te?
Americo sorriu, levando á boca o seu copo de REVENDO O PASSADO 123 whisky e soda. Estavam á beira do Tietê, numa clareira da Floresta, abancados a uma mesa rustica, estalando sob os pés as folhas seccas.
A tarde cahia afogueada e silente.
A pouca distancia o automóvel esperava guardado pelo chauffeur.
— Nem te lembras mais desses sonhos. Até tentaste com elles um poema.
— Não, lembro-me, ás vezes. Mas os sonhos são como as andorinhas : querem calor, sol de mocidade. Chegam, procuram o ninho tepido e, só encontrando frieza e cuidados, batem azas e desapparecem — vão buscar espíritos mais árdegos, almas mais novas. Deve haver, por ahi, algum rapaz com as minhas idéas, as idéas d'esse tempo, porque os sonhos não morrem — passam de um a outro, a gente vai-os deixando ficar na vida e, como nada se perde na natureza, a fantasia não deve constituir excepção.
Eu acredito que algum burguez, dos que aqui encontravamos nas noites quentes, refrescando a cabeça atormentada pelos cálculos ambiciosos e pela caspa irritante, tivesse recebido a aura de ideal que eu espalhava quando descrevia os meus projectos cerebrinos e, levando-a, como o insecto leva o pollen de uma flor á outra, a houvesse inconscientemente transmittido, num beijo, a alguma mulher gerando um poeta.
Anda por ahi um mocinho que escreve sobre torneios e castellos. É possivel que seja meu filho, em parte, filho espiritual apenas, porque o seu verdadeiro pai deve ser um dos taes homens que vinham interromper os nossos devaneios nocturnos 124 REVENDO O PASSADO
com o estrepitar dos dados, com os quaes jogavam a cerveja que bebiam a grandes sorvos avidos e com estrondos d'arrotos. Não creio que os sonhos pereçam — o seu numero é limitado como o das especies botanicas — o que há é que se desenvolvem mais em certos espiritos do que em outros, na medida da maior ou menor potencia intellectual, da maior ou menor cultura.
— Tens razão : nós somos simples reproductores. Depois de molhar os labios Albino continuou : Agora podias, se quizesses, realisar a phantasia desse bom tempo. Não digo que te mudasses para as margens do Eheno, tens aqui o Tietê. Mandavas edificar um castello á beira d'agua e restauravas, com brilho, a vida medieval em pleno século xx. Até eu era capaz de deixar o meu boulevard e atravessar os mares para vir ás tuas caçadas com gerifaltos ou ao som de trompas e com cães e ás tuas festas de inverno com trovadores e damas.
— Não, meu caro : falta ao Tietê a tradição. Eu só comprehendo este rio com as monções, com bandeirantes armados, com indios captivos e capivaras dormindo entre as hervas altas das margens.
Cada região tem o seu caracter proprio, a sua lenda e a sua historia : por mais que nella trabalhe a civilisação não consegue tirar o fundo essencial da sua natureza, nem despojá-la d'aquellas louçainhas de poesia com que a ornaram os homens das primeiras eras. A Allemanha é e ha de ser Sempre, para a imaginação, aquella forte e agreste Germania do Libellus aureus, de Tacito. O Egypto, apesar de todos os calafetos e envernizamentos com que os ingleses o remoçam e adaptam ao seculo, REVEND O PASSADO 125 não deixará jamais de ser o veneravel paiz pharaonico, paiz do mysterio e da Morte. Jerusalém ha de ser perpetuamente a triste cidade malsinada na prophecia. O Rheno não deixará jamais de ser o rio sentimental das bailadas. Assim, os que, d'aqui a quinhentos annos, vierem gosar as manhans ou as tardes á beira deste rio, contido, então, por muros de granito lavrado, cintado de-pontes, com barcos de recreio cruzando-o abaixo e acima, com um pouco de poesia n'alma, hão de ainda ouvir, no perenne murmurio da corrente, o echo das cantigas dos exploradores ousados e a triste lamentação dos Índios prisioneiros, cruzando-se, pairando sobolas aguas. As primeiras impressões subsistem eternamente. Demais, este rio é violento, caprichoso, insubmisso : de tempos a tempos cresce assoberbado, transborda, derrama-se pelos campos e . . . seria um incommodo ter de apparelhar falúas para mandar ao mercado á carne e á fruta. Não tenho suzerania, mas não estou triste com o meu destino — se não é dos mais bellos é, pelo menos, tranquillo.
E, francamente te digo : não nasci para a agitação e para a aventura e hoje, se Deus me desse a escolher uma vida, entre estas duas — governar homens e conduzir batalhas ou ficar inerte, cravado na terra como uma arvore, eu preferiria ser um cedro ou um pinheiro para viver socegado, com as minhas raizes bem entranhadas no solo e as minhas ramagens bem abertas ao sol, bailando ás brisas e acolhendo passarinhos. O que eu sou, meu amigo, é um grande preguiçoso.
— E eu outro !
Bocejaram.
126 REVENDO O PASSADO
Na frescura da tarde passava um leve aroma de campos floridos. O chauffeur, sentado á sombra duma arvore, com o queixo nos joelhos, olhava melancolicamente, seguindo o vôo rasteiro das andorinhas. Albino rompeu o silencio :
—Ainda existe a nossa casa da rua dos Bambus?
— Não. Eu a vi cahir. Os muros, que eram de taipa rigida, resistiram longamente á picareta. Hoje há lá um palacio.
— E as raparigas do nosso tempo ? Nunca mais as viste ? a Lucilia, a Engracinha, a Eugenia, com a mania dos versos . . .
— A proposito : Sabes que foste injusto com a Engracinha ?
— Como injusto ?
— Já te não lembras da scena tremenda que fizeste quando, uma vez, a encontraste em conversa com o Louro? . . .
— Sim ...
— Ella disse-te que estava defendendo a Tuca, aquella rapariguinha loura, que vivia com o Mendonça e que acabou tysica, cuja morte deu ao Fonseca pretexto para quebrar quatorze versos que foram cahir, com mais dureza do que a terra, sobre o caixão da pobrezinha . . .
— Sim.
— Pois a Engracinha dizia a verdade, mas tu, com os teus furiosos ciumes . . .
— Não, não foi por ciúme . . . Francamente —
eu já não supportava aquella mulher. Dois annos !
era quasi um casamento. Foi um pretexto.
— Pois se te lembras, quando a despediste, ella REVENDO O PASSADO 127 disse-te que estava gravida e jurou sobre o ventre já crescido que o filho era teu.
— Ah ! jurou. Todas juram.
— Pois, meu amigo, não jurou falso. A filha é tua.
— A filha ! Pois então eu tenho uma filha em 8.
Paulo ! Estás brincando.
— Falo serio.
— E porque affirmas que é minha filha ? Quem sabe lá !
— Por que 1 Porque é o teu retrato.
— Pobrezinha ! Então deve ser hedionda.
— Nao, por isso não : Minha afilhada parece-se extraordinariamente comtigo e eu não admitto que haja criança mais bella. A outra é encantadora ! Os olhos, então, são teus : grandes, claros, languidos . . .
— E achas que tenho nos olhos todos esses encantos?
— Hoje não, já os tiveste. A Euíalia morria por elles.
— Que Eulalia ?
— Homem, parece que o Lethes corre agora no leito do Sena. Tu esqueces facilmente. Aquella da Tabatinguera.
— Uma, sardenta ? . . .
— Não, homem de Deus ! uma morena, que cantava romances.
— Filha de um mestre d'obras !
— Isso !
— Sim, lembro-me agora. Bello collo de rapariga !
Mas vamos á pequena, que o caso me está interessando deveras. 128 REVENDO O PASSADO
— Encontrei-a, uma vez, com a mãi — já moça e lindissima. A Engracinha apresentou-m'a. Pois, meu amigo, foi como se me houvesses apparecido numa visão rapida. Eu via, atravéz d'aquella belleza, todos os teus traços, cobertos, com mais cuidado, por uma carne mais tenra, colorida com mais finura e ameigados por um arzinho de ingenuidade que lhe augmentava o encanto. Havia naquella criança alguma coisa de ti — a tua assignatura lá estava. Engracinha, percebendo a minha pertur bação, disse suspirando :
« Eu só queria que elle a visse agora, elle que fez tão máu juizo de mim, que foi tão ingrato commigo. O senhor não imagina como me tenho sacrificado por esta filha. Emfim . . . Espero em Deus vê-la ainda feliz ...» Estendeu-me a mão e lá foi.
Pobre Engracinha ! Era uma ruina : magra, a cabeça toda branca e aquelles lindos olhos, que fecundaram tanta poesia, annuviados, sumidos no fundo de duas covas. A desgraçada dera tudo á filha. A pequena chama-se Dyonisia.
— Alta ?
— Alta e esbelta como uma palmeira ; a pelle fina e rosada, uns cabellos admiráveis. Mas os olhos... os olhos ! . . .
— Tu reparaste !. . . notou Albino, com malicia.
— Para convencer-me da tua injustiça.
Houve um silencio. Por fim Albino perguntou, garatujando na terra com a bengala :
— E sabes onde está morando a Engracinha ?
— A Engracinha ? ! A Engracinha morreu, — Morreu ? ! E ella ? REVENDO O PASSADO 129 — Vive em Santos, com um commissario.
— Vive, dizes ...
— Sim, vive.
— Não casou ! e atirou a mão num gesto de abandono...
— Que havia ella de fazer ? pobre, sem um parente e, demais a mais, lindissima !
Albino ficou um momento d'olhos perdidos.
— Dyonisia ... murmurou. Quem lhe teria dado este nome ?
— O padrinho, com certeza. Eu não fui. Ella costuma apparecer por aqui, tenho-a visto nos theatros, sempre com o commissario que a vigia com ferocidade. É dum ciume !... A mim mesmo tem elle desfeiteado.
— É que sentiu o perigo.
— Não, olho-a sem intenção. Ê formosa, mas, sinceramente, o que em Dyonisia me seduz é .. .
como direi ? é .. . o passado que ella me recorda.
Vendo-a, lembro-me de ti, da Engracinha, da Lucilia, do Mendonça, do Cláudio, com as suas idéas sobre a «redempção da mulher », das nossas noites de litteratice e troça, dos nossos passeios a este bosque : tu com a Engracinha, eu com a Paula —
que está casada e gorda e tem dois filhos formidaveis. O marido é dono de uma olaria em S.
Bernardo.
— Pois eu daria alguma coisa para vêr a pequena. A mãi era bonita, tinha um corpo admiravel.
— E ella, então ? E uma esculptura. Mas . .. acho melhor que a não vejas.
— Porque?
130 REVENDO O PASSADO
— Porque . . . francamente — e sorrindo : ficarás com pena de ser o pai.
— Oh!
— Pois sim, pois sim. Mas vamos que já são cinco e tanto e as nossas mulheres esperam-nos.
Levantaram-se. O chauffeur correu a accionar o motor do automovel que começou a trepidar, aos trancos.
Os dois subiram para o banco da frente.
Américo calçou as grossas luvas e manobrou para a volta avançando, recuando, até que poz o vehiculo no caminho ; regulou a marcha e foram sahindo maciamente por entre as arvores cheias de cigarras.
— Está uma tarde linda.
— Admiravel!
E, na estrada, com um arranco, o automovel partiu a grande velocidade Á NEVOA Á NEVOA
No fundo céu annuviado pela garoa a lua sem brilho corria como a fugir. Fazia frio ; um vento agreste soprava transindo. Os lampiões irradiavam na bruma semelhando, á distancia, immensas aranhas d'ouro, adormecidas nas suas teias rutilas e o silencio só era perturbado por um fino correr d'agua nalgum vallo, entre as hervas. Os dois amigos, muito encolhidos nos pesados capotes, esperavam pacientemente o bonde, resguardados pela ramagem frondosa duma mangueira. Era tarde. Nem uma casa aberta.
Nos jardins os cães, soltos para a vigia, iam e vinham ligeiros, com o focinho de rasto, farejando ás sombras ou arremettiam ferozes, pondo-se de pé d'encontro aos portões, aos arrancos, ladrando furiosamente á passagem dalguem. Apitos trilavam de quando em quando.
134 Á NEVOA
Luciano esfregava as mãos regeladas, resmungando indignado contra a demora do bonde. Paulo, resignado, assobiava baixinho um trecho de opera.
Alargou-se subitamente pela rua deserta um pallido clarão — os dois olharam para a altura. O nevoeiro rasgára-se em uma aberta e a lua brilhava logo, porém, foi amortecendo a claridade como se a terra a sugasse e, de novo, espalhou-se a velada tristeza. Luciano fincou a bengala no tronco rugoso da mangueira e, firmando o hombro ao castão, disse de repente :
— E a Sylvia ?
— Estava justamente pensando nella.
— Está divina ! Eis abi uma que lucrou com o casamento.
— Não, não é isso : é que a viste em casa, movendose livremente, desembaraçadamente no seu meio. Na rua é ainda a mesma achamboada, a mesma caipira que nos fazia sorrir com o seu acanhamento e com o inseparável lencinho de rendas. Lembras-te do lencinho !
— Se me lembro ! E aquelle famoso chapéu que parecia um telhado coberto de pombas ?
— Era um casal, não exageres. —É que não o viste depois.
— Vieram filhos .?
— Se vieram !
Eiram alto. Luciano voltou-se inopinadamente para a tréva da rua silenciosa. Parecera-lhe haver ouvido o tilintar de um bonde. Eevoltou-se :
— Como diabo pôde um homem vir habitar um bairro como este ! Parece que o Lourenço quer evi-
Á NEVOA 135 tar os amigos. Estamos aqui ha mais de meia hora e nem signal de bonde.
— Meia hora, não digo : ha uns cinco minutos. Que queres ? foi ella que o exilou neste silencio para ter um pouco de roça e poder criar á vontade, coisa que lá em baixo os fiscaes não permittem. Já aqui dormi uma noite.
Ah ! meu amigo, acordei em plena bucolica : vaecas mugindo, ovelhas balando, aves de toda a casta acudindo ao milho e ella, admiravel de rusticidade, bella, meu amigo, verdadeiramente bella : de branco, cabellos soltos, ainda humidos do banho, brilhando como as frescas ramagens molhadas de orvalho, alegre entre os animaes que a cercavam. Um puro Ruysdaêl. Lourenço olhava extasiado e sorria, o nosso Lourenço. Sahiu-nos um Melibêu esse que, durante tanto tempo, illudiu-nos com os seus ares magnificos de Petronio. E é isso, a divina Sylvia : uma mulher de interior.
Em casa, vestida simplesmente, á vontade, como ella diz, com os maravilhosos cabellos apanhados, um argolão de ouro no punho, os sapatinhos brancos, o avental e a sua graça esperta e solicita de caseira, é realmente encantadora e eu comprehendo que um homem se apaixone por ella, não um homem como eu, que vivo das exterioridades artificiosas, mas um homem como o Lourenço, que degenerou em penate. Expõe-na, porém, ao sol das ruas ou á luz forte de um salão e has de vêr como todo o encanto desapparece e a divina criatura fica reduzida a um trambolho, a ansiar suffocada e a corar pudibunda. As sedas deformam-na e o collete, que é o molde da elegancia, tira-lhe a flexibilidade, achata-a, torna-a hedionda. 136 A NEVOA
Sylvia é a mulher ideal para os que vivem a bradar contra os vicios do tempo, que são as delicias da civilisação. Essa é a esposa, a mãi, a matrona que fazia o orgulho honesto de Eoma. Mas eu sou dos que preferem á fecunda Cybele, de entranhas possantes, a Venus esteril que atravessa a vida irradiando belleza e graça. Da mulher quero o sorriso limpido, quero os movimentos airosos, a palavra bem soante, o olhar luminoso e o perfume de flor que a fecundidade transforma em cheiro de fruta. O pomar é mais útil, mas o jardim é mais bello.
A ineffavel bondade dessa divina Lararia encanta quando não ha, para contrastar com ella, o caminhar esbelto e senhoril de uma mulher de raça, um geito de abrir e fechar o leque, um certo franzir e abotoar de labios, um dizer com o olhar o que não ficaria bem pronunciado pelos lábios, um esquivarse que não é mais que uma promessa, um nada com o aspecto de um mundo : a sciencia de estar, de sorrir, de trazer uma flor, de traçar uma mantilha, de entregar os hombros mis ao manto ao sahir do baile, de encetar uma palestra e até de contrariar uma intenção sem a brutalidade do amúo, mas com a protelação de um sorriso.
Eu entendo que a mulher devia estudar longamente, com exames, a arte de ser « feminina », como o homem estuda os differentes ramos da sciencia para embellezar o mundo, facilitar o convivio e suavisar a vida, dando ao seu semelhante todos os gosos e quasi o poder de um deus. Não sou dos que exigem da mulher a collaboração directa na acção social — o seu fim é compensar. O homem é uma A NEVOA 137 utilidade como a Sciencia ; a Mulher deve ser apenas Belleza, como a Arte. O que eu exigiria delia seria uma educação completa que a habilitasse a ser simplesmente . . . mulher.
— Alguma coisa como doutura... em encantos.
— Sim. A civilisação antiga, se assim posso dizer, sem offensa ao Progresso, exigia da mulher o mesmo ou pouco menos do que exigia do homem.
Ella disputava na arena, celebrava nos templos, discorria nos pórticos e até arrojava dardos, como essa formosa virago que pelejou ao lado dos troyanos. Educava-se, emfim, criando aptidões para o meio e para o tempo em que vivia e hoje, que vêmos nós ? nem força nem belleza, nem agilidade nem graça, caricaturas de tudo : a bicycleta, que é, talvez, a redução do plaustro, a petéca que é o aviltamento do disco.
Ha uma coisa chamada «decência » que obriga a mulher ás mais absurdas contrafacções : se ri, porque é alegre, acham que não tem compostura ; se conversa sem o acanhamento, que é a expressão externa da virtude, não em murmúrio, mas fazendo vibrar o crystal da voz, pondo, aqui e ali, uma centelha de espirito, o fulgor de um commentario imprevisto, é pretenciosa ; se veste com propriedade e elegância, é futil; se se inclina, com especial sympathia, a um amigo da casa, é deshonesta. De sorte que, para a sociedade banal que tanto escrupulisa, a verdadeira, a perfeita e unica mulher é a que gera sem descontinuar, com outonos certos como os da terra.
Accendeu um charuto e continuou no mesmo tom preguiçoso 138 A NEVOA
— Sei que ha mulheres, como essa divina Sylvia, que nasceram para o lar e que, fora do lar, longe do fogo de Hestia, são verdadeiras monstruosidades, não me refiro a taes excepções, que vêm directamente do tempo dos gynecêus — essas, se as deixassemos no esplendor da vida mundana, fica riam atordoadas como uma criança que se perdesse na multidão. Falo das outras, das muitas que por ahi ha acalcanhadas pelas convenções absurdas e pelos maridos tyrannos.
Fazem-me pena, com franqueza : lembram-me as lindas garças que nasceram nas campinas verdes, entre flores e luz, á beira dos lagos límpidos onde banhavam as pennas claras e que se vêm, de repente, encerradas em prisões d'arame, com uma celha d'agua lodosa que lhes vai dando á plumagem nitida uma côr amarellada e suja.
— Nem todos pensam como tu.
— Fingem não pensar, por hypocrisia egoista.
Todos os seres, todas as coisas, aspiram á Luz, que é a manifestação da belleza radiante. Eu não admitto, não comprehendo, que um homem prefira a uma mulher como a Olga, uma simpleza como a filha daquelle teu amigo de Saquarema, que é a ultima palavra no genero «natureza ». Vê-se bem que daquelles flancos fecundos ha de rebentar uma fartura de Humanidade. Será uma estupenda machina de procriar, mas nunca uma mulher. A
gloria de ser mãi não vale a gloria suprema e ideal de ser bella. Entre uma exposição de aboboras e outra de camelias não hesito — vou direito á segunda.
— E a moralidade ?
— Que moralidade? a virtude, o exclusivismo Á NEVOA 139 conjugal ? Meu amigo, não entremos nesse assumpto melindroso. Começo por negar a moralidade convencional. Se é o acto que é immoral então combatamos o casamento por obsceno : se não é o acto e sim a preferencia, nesse caso o culpado é o marido que não soube impôr-se, que se deixou vencer por um concorrente. E acreditas na perfeita virtude, que é a absoluta pureza d'alma? essa desapparece com o primeiro namoro, ás vezes com a primeira boneca. Aceitemos o. mundo com as suas imperfeições admiraveis. A mulher é mais alguma coisa do que a carne que gera, a Demeter fecunda :
ella é a alegria do olhar, a seducção do espirito, o encanto mais delicado da vida. Se visses a divina Sylvia como eu a vi nessa noite estupidamente tranquilla que passei naquella casa : á mosa, á luz do gaz protegida por alparluzes de porcellana, calculando o tempo da sahida das ninhadas, emquanto o Lourenço lia, com muito interesse, uma revista financeira . ..
— E tu?
— Eu ? contemplava a lua e ouvia a voz monotona dos sapos que lá andavam pela horta.
Francamente : Chama-se a isso viver ? A mulher é um ornamento vivo para ser admirado e gosado.
Lembro-me sempre de uma visita que fiz a certo banqueiro, grande colleccionador de bronzes e de porcellanas. Passei uma hora deliciosa na sua sala, onde ha verdadeiros primores, e estava justamente contemplando a estatueta de um Buddha, de porcelana dourada e decorada a esmaltes, quando a senhora appareceu. Imagina um elephante no Parthenon entre os deuses, ao lado da Minerva de Phi- 140 A NEVOA
dias. O próprio cavalheiro comprehendeu o disparate e, com habilidade, fez sahir a criatura incongruente a pretexto, talvez, de dar uma vista d'olhos á mesa e aos vinhos. Agora imagina o effeito que produziria entre aquellas magnificencias, que valem duas centenas de contos, uma linda e graciosa mulher como a esplendida, a decorativa Lúcia !
Um pequenino foco appareceu ao longe, sumindo, por vezes, e, ao tinir da campainha, os dois, que ainda hesitavam, adiantaram-se vagarosamente. Luciano, de cabeça baixa, riscando a terra com a bengala, exclamou, de repente :
— É verdade : garantiram-me que vai casar.
— Quem ? Lúcia ? !
— Sim, e — o que é verdadeiramente extraordinario : — por amor.
— Por amor ! Uhm .. . não creio. Lúcia é uma mulher saturada de civilisação : aos dez annos marcava cotillons em Petropolis, aos doze inaugurou as suas quintas-feiras. Conheço-a desse tempo. É uma super-femina, meu amigo, e o amor é um ins-tincto rudimentar : só os simples amam. O
que nós outros, por euphemismo pudico, chamamos amor, é alguma coisa como um esporte elegante —
simples jogo de prazer, uma partida marcada a beijos, que termina num delirio rapido, sem resultado effec-tivo para a Humanidade. Amar é imaginar o real e nós . . . realisamos o imaginario.
Os lenhos aryanos, de cujo attrito saltava a centelha sagrada, são e hão de ser, por todo o sempre, o symbolo d'alliança amorosa transmittindo o lume que perpetua o esplendor da vida. Nós, os civilisados, queremos uma luz mais bella, mais prompta e mais fatigan- A NEVOA 141 te, e buscamos a electricidade. A lampada de Edison está para o fogo dos aryas como a nossa paixão está para o verdadeiro amor. Posso lá acreditar que Lúcia. . . Quem é o noivo ?
— O Paiva.
Paulo ficou um momento pensativo, por fim disse vagarosamente : — É um bello homem ... é. . . e forte. Em-fim ...
A existência d'alma feminina só se demonstra por. . . absurdos. É até capaz de dar uma excellente mãi de família.
—Da especie da Sylvia.
— Ou peior.
Como o bonde vinha perto aproximaram-se da linha e Luciano sussurrou :
— Deixa lá, homem ... Apesar de todos os progressos o coração conserva-se irreductivelmente fiel aos primeiros principios.
— Não é o coração, enganas-te.
Mas o bonde passava e os dois, rindo, tomaramno d'assalto.
CONFIDENCIA
CONFIDENCIA
Deixando-se cahir mollemente na ottomana, Alice, enclavinhando os dedos, que estalaram, derreou o busto salientando rijamente o collo, a contorcer-se com a graça preguiçosa e languida duma cobra. Como esticasse as pernas os pequeninos pés escaparam para o pellego fulvo, saliindo d'entre as rendas da saia, calçados em borzeguins de camurça, finos, esguios como dois focinhos de galgos. Num movimento arrebatado atirou para traz os braços emmoldurando com elles a cabeça e, franzindo os olhos, trincando o labio, ficou a balouçar os pés como alheia a tudo, seguindo um sonho.
A camara, conservada em meia luz, com os Stores de bambu e as cortinas corridas, recendia ainda ao aroma do ultimo pivete queimado no defumador japones. Só um raio do sol, descendo d'alto, em frecha, brilhava naquella penumbra elegante e 146 CONFIDENCIA
voluptuosa, fazendo reluzir a coxa de bronze duma esbelta Diana, que parecia formar o salto para precipitarse da columna, em seguimento da caça.
De pé, junto ao piano aberto, Leonor folheava machinalmente um poema de Saint-Saêns. Fora, no jardim, ao sol, irritante, arripiadamente o jardineiro afiava o alfange e era esse o unico ruido que, áquella hora, amoílentada e quente, atravessava o silencio adormecido do bairro fidalgo.
Alice atroou a câmara com um bocejo cavo e logo desatou a rir vendo o ar espantado, quasi reprehensivo, da amiga que se voltara.
— Desculpa-me. Estou com tanta preguiça !
E dobrou-se mais, deitou-se quasi, muito lan-guida, d'olhos no tecto.
— Se estás com somno, dize sem cerimonia.
— Eu! somno? é coisa que não tenho. Estou molle, é sempre assim. Ás vezes metto-me aqui e fico horas e horas estendida no divan a olhar o tec-to, os quadros, imaginando coisas . . . É tão bom imaginar, não achas?
— Por que não sahes ?
Encolheu os hombros e, como fosse escorregando, firmou-se em uma das mãos.
— Queres que te diga? preguiça. Vestir-me, tomar o bonde, ir por ahi fora até á cidade com esse calor . . . Fez um momo. Se eu pudesse fazer tudo isso sem sentir garanto-te que ninguém me encontrava em casa. Se eu te disser que estou com um vestido em prova ha mais de quinze dias e não me sinto com animo de ir á costureira . . . Fui sempre assim, desde menina. O meu maior prazer era ficar estendida em uma cadeira ou na rede sonhando, fa-
CONFIDENCIA 147 zendo castellos. Eu, é porque sou preguiçosa, senão havias de vêr os lindos romances que eu faria. As idéas que tenho ! O que imagino! O que invento! Ás vezes chego a desconfiar de mim, tenho medo de acabar louca, palavra ! Desatou a rir, um riso infantil, alegre, vibrante, e de repente, erguendo-se, poz-se diante da amiga fitando-a com um olhar que reluzia, malicioso e vivo.
Passou-lhe um dos braços em volta do pescoço e, reclinando a cabeça sobre o seu hombro, disse-lhe : Olha, vou contar-te o meu segredo, é engraçado. Queres ouvilo? fala. A outra sorriu baixando o olhar sobre o rosto moreno, mirando enternecidamente os grandes olhos que a contemplavam com enlevo de amor. Queres ouvir?
— Sim ; quero.
— B promettes guardá-lo ?
— É assim serio?
Ella sacudiu-se encolhendo os hombros o arruinou :
— Vamos tomar cerveja gelada í Está tão quente .. .
— Não.
—-Champagne . . .?
— Nada. Basta-me o teu segredo.
— Estás ardendo em curiosidade, hein! Imaginas um pequenino romance . . . Fez-lhe uma caricia no rosto e logo, deixando-a, espichou-se na ottomana, cruzou as pernas com ar estroina e disse: Tu sabes que o Zico foi meu namorado?
— Não sabia.
— Pois foi. Amamo-nos muito — elle era preparatoriano e eu uma menina de vestido curto. Bom 148 CONFIDENCIA
tempo ! Elle deve ter ainda cartas minhas. Que cartas ! Quanto eu daria hoje para vê-las. Apartamonos— eu fui com mamai para a Europa, elle ficou aqui. Matriculou-se na Escola, apaixonou-se pela Elvira, deu em sportman: a remar, a jogar o crichet, a fazer armas. Esqueceu-me, emfim. Quando nos tornamos a vêr eu era noiva e elle um rapaz sisudo, de grandes bigodes, muito cheio de sciencia e robusto como um hercules. Falamo-nos sem emoção — elle deu-me senhora, eu correspondi com um ãr.
Mas não pude conter-me e uma só das minhas gargalhadas destruiu todo o formalismo cerimonioso que me parecia ridiculo entre parentes.
Zico, nos primeiros tempos do meu casamento, mostrou-se retraindo: tratava-me com reserva, parecia evitar-me e era um trabalho para arrancarlhe uma palavra. De repente começou a fazer-me a corte abertamente, escandalosamente, mas com muita gentileza e um chie captivante. É por elle que eu sei o tempo das flores : as primeiras orchideas, as primeiras violetas são sempre as que elle me offerece.
Pensei, a principio, em demonstrar-lhe que não me agradavam nem eonvinham taes presentes e muito menos os formidáveis apertos de mão com que correspondia aos meus, mas . . . para que zangar-me ? Demais não imaginas como elle é ornamental—á mesa, no salão; e inventivo, gracioso e alegre como nenhum outro. Passa-se com elle uma noite encantadora e se é admirável interpretando Chopin ou Mendelssohn é incomparavel tocando uma valsa. Um perfeito homem. Precisas vê-lo, Leonor.
CONFIDENCIA 149 Um dia — não sei como foi — distrahi-me e, irreflectidamente, correspondi ao seu aperto de mão.
Então, abrindo muito os olhos grandes num tom de voz estranho, disse : Queria que visses a cara que elle fez, minha filha. Ficou atordoado e, durante toda a noite, andou pela casa como urn homem que houvesse bebido. E nós é que somos nervosas, commentoii a rir. Oonfesso-te que fiquei arrependida e jurei nunca mais repetir a brincadeira, mas, no dia seguinte, nem eu mesma sei como foi. Elle sorriu, levou a minha mão aos labios . . . Senti todo o sangue subir-me ao rosto. Fiquei irritada, frenetica, com vontade de chorar, de gritar, de romper com elle. Mas tudo passou. Ao deitar-me pensei no caso e ri e agora estou tão habituada, que não ligo a menor importância aos taes apertos de mão: aceito- os, retribuo-os naturalmente. Ás vezes, porém, sabe Deus como me custa a conter um grito.
— E elle?
— Elle ? Sei lá! Riu-se e ficou um momento em silencio, d'olhos no lustre que brilhava prismaticamente á luz viva do raio do sol obliquo.
Achas que faço mal? perguntou por fim.
— Não sei; isso é comtigo. Se não tens intenção...
— Como não tenho ?
— Ah! tens ?
— Certamente. Eu faço isso para distrahir-me.
— E isso ... distrahe-te?
— Sim, distrahe-me. Baixou a cabeça e ficou um momento a repassar maciamente a mão pelo damasco da ottomana; depois, em voz resentida, 150 CONFIDENCIA
um tanto tremula, continuou : Distrahe-me e eu preciso bem de distracções; preciso de alguma coisa que me preoccupe, ou melhor : que me perturbe.
Vivo muito só, muito triste e muito desilludida.
— Como?
— Como ?! Olharam-se longamente e Alice sorriu com tristeza. Não se contendo mais exclamou com uma voz commovida : Como ?! Pois meu marido ...
— Que tem?
— Não viste então! É aquillo sempre, invariavelmente: o mesmo homem delicado, duma distincção que me vexa, que me humilha, com mil cuidados que me revoltam. Não tem uma franqueza, não se permitte uma liberdade : sou para elle uma criança, uma ... não sei que. Ás vezes até... hesitou um momento, pallida ; mas affirmou: é mesmo.
Dando, porém, com os olhos de Leonor que ardiam de curiosidade, externou o seu pensamento : ... fico com vergonha . . . lembro-me de meu pai. Eu vejo os outros maridos, não são assim. Afinal todos nós criamos um typo ideal de esposo, não é ?
— Mas teu marido ó um bello homem ; moço, nobre...
— É ... é ... mas tem educação de mais.
Leonor rompeu a rir da phrase ingênua e, curvando-se, assim poude vêr os lindos olhos de Alice marejados :
— Então querias que elle fosse um grosseirão, um aspero! ...
— Não, isso não. Mas... eu imaginava outra coisa. Teve um arfar que lhe encheu o collo farto CONFIDENCIA 151 e, endireitando-se, com um brilho de fogo nos grandes olhos muito abertos, asseverou : Podes acreditar no que te vou dizer : Meu marido não pensa um só minuto em mim ; eu sei. Por mais que eu faça, recebe-me sempre com o mesmo beijo frio, com as mesmas palavras estudadas, com o mesmo sorriso paternal. É imperturbavel, duma regularidade de automato.
Se imagino uma toillete elle gaba-a com as mesmas palavras com que elogia o polme de ervilhas ou o molho do peixe. Chegou-se mais á amiga : Tu sabes que eu tinha fama no collegio de ser bem feita ? ... riram-se. Pois uma noite, depois do Lyrico, entrei para o quarto com a criada para despir-me. Elle pretextou não sei que para ir ao escriptorio. Despi-me, deitei-me, despedi a criada, mas a camisa era nova e affligia-me. Saltei da cama, fui ao armario, escolhi outra e estava núa, de pé, em plena luz, entre espelhos, quando ouvi passos e, logo em seguida, a voz de meu marido como num arripio:
« Oh ! desculpe . . . » e encostou a porta para evitar, com certeza, o ar e ... o meu vexame. Depois, de fora, paternal como sempre, aconselhou : «Não se exponha assim, Alice ; olhe que a noite está fria.
Cuidado ». Ah ! Leonor, não sei como não chorei de raiva.
Rubra, então, transfigurada, com os olhos em fogo, declarou nervosa, evocadoramente :
— Não imaginas, quando Zico me aperta a mão, o prazer que sinto em olhar os dedos fundamente vincados em roxo pelos anneis.
Tomou uma larga respiração e, agitando allucinadamente a cabeça, os braços rijos, estendido sao 152 CONFIDENCIA
longo do corpo, as mãos contrahidas, os olhos quasi, fechados, as narinas sofregamente abertas, as palpebras palpitando em frêmitos, ficou algum tempo mordendo os labios até deixar fugir por entre os cerrados dentinhos brancos arrancadamente, regosadamente :
— Não imaginas, Leonor . . . é duma brutalidade! — e molle, inerte, flacida, abateu sobre a ottomana cançada e vencida, com a cabeça para traz, arquejando, estremecendo e sorrindo, como nos paroxysmos dum sonho voluptuoso.
ACÉDIA ACEDIA
O uivo de um cão, voz única e melancolica no silencio, abalou-o, tirando-o violentamente do abatimento em que cahira. A sala, d'alvas paredes frias, caiadas de fresco, com uma velha mesa ao centro e algumas cadeiras toscas, forradas de palha de milho, em trança, estava alumiada por uma candeia suspensa a um portal. A luz tremia fazendo dançar tremulamente as sombras alongadas. Em frente, estendia-se o corredor muito negro onde grandes ratos chiavam ás correrias, rebuscando migalhas.
O seu quarto ficava á esquerda, pobre e ermo como uma cella : a cama, a mezinha de cabeceira, um sofá cuja palha escura e flacida afundava concava, e uma estante de pinho onde se amontoavam desordenadamente livros e jornaes. Na parede, acima do leito, uma cruz negrejava.
156 ACEDIA
Devia ser noite alta e elle ainda ali estava com uma vela a arder, os cotovellos fincados na mesa, a cabeça pendida sobre as mãos, diante da Biblia aberta. Era moço e robusto — largos hombros, pescoço forte, muito sangue a rosar-lhe as faces escanhoadas.
Desde que chegara áquelle miseravel lugarejo, entre montes, com uma população mesquinha de sertanejos, ruas estreitas, desertas, entre fendidos muros de taipa, com o matto a crescer, desimpedido e viçoso, e um grande rancho á beira da estrada onde pernoitavam os que vinham em lentas jornadas do mais fundo sertão comboiando gados, sacudira d'alma toda a alegria, tornando-se taciturno e tristonho.
Encerrado na cazinha que alugara, a dois passos da igreja, no largo que um corrego barrento atravessava e onde, dia e noite, animaes soltos pastavam, porcos fossavam o lodo grunhindo de goso e urubus ennegreciam esvoaçando em abaladas á aproximação de alguém ou fugindo aos saltinhos desconfiados, alheiou-se do mundo, pensando apenas em Deus e no sagrado ministério a que se votara.
Um velho negro fazia-lhe todo o serviço domestico — varria a casa, espanava os livros, arranjava-lhe a comida, enchia, com agua da cacimba, a grande talha que refrescava á sombra d'uma latada de maracujás.
Ninguém o procurava ; mesmo na igreja, depois da missa, raras eram as mulheres que ousavam ir beijar-lhe a mão, á sacristia. As velhas tinham-no como uma criança que não infundia respeito, «um c'roinha », diziam com desprezo : as raparigas con-
ACEDIA 157 tinham-se retrahidas de pudor por vêrem-no tão moço e, comparando-o com o finado vigario, que mal podia levantar a hostia nas mãos tremulas, ainda mais se encolhiam. Os homens davam d'hombros, com indifferença, quando o viam passar lentamente, de cabeça baixa, muito cozido com as paredes de taipa como se receiasse os grandes bois que levantavam para elle os mansos olhos melancolicos.
O velho negro era interrogado nas lojas, nos ranchos, sobre a vida recatada do moço padre.
Certas senhoras mais curiosas, mostrando-se penalisadas d'aquelle « encerro », chamavam o negro, seduziam-no com presentes, forçavam-no a sentar-se :
Queriam saber : «quem lavava para elle, quem o visitava, se recebia cartas, como vivia ? » E o negro, sorrindo, encolhia os hombros, cocando a carapinha e ia dizendo — « que a roupa quem lavava era sá Emerenciana ; elle mesmo levava a suja e trazia a limpa ; lá não ia ninguém. De tempos a tempos seu Mrmiano levava cartas, mas, quasi sempre, eram só jornaes e seu vigario, quando estava em casa, era sempre com o livro na mão ou escrevendo. Ás vezes, de noite, elle acordava e via luz na sala — era seu vigario estudando ».
Effectivamente, o livro era o companheiro unico do padre, que nem mesmo com o famulo conversava, fazia muito quando correspondia á sua saudação humilde. O sacristão, revoltado com a frieza do vigario, que não dava attenção ás suas tagarelices e maledicencias, vingava-se espalhando, com desprezo : « Que nem latim sabia, que engrolava tudo, era uma vergonha. Aquillo o que tinha era ronha. Haviam de vêr o santinho ! »
158 ACEDIA
Depois do jantar, já noitinha, estava o vigário muito embebido na leitura, sem mesmo dar pelo negro que ia e vinha guardando a louça, quando bradaram fora com atroantes pancadas na porta. Levantou a cabeça e, como batessem de novo, com desusada violência, fez signal ao negro para que fosse vêr quem era e, recostando-se, de braços cruzados, ficou á espera, entediado :
«De certo alguém que morria por aquelles alcantis desertos ou no fundo dalguma grota, sem uma luz ao menos». E logo se poz de pé, sacudiu a batina como a preparar-se para a santa missão. Mas o negro reappareceu com um pesado maço de jornaes e duas cartas, dizendo «
que uma tinha recibo ».
Havia uma registrada. Tomou da penna, tremulo, garatujou o nome e, apalpando o envellope, sentiu-o cheio ; rasgou-o e, abrindo a larga folha de papel, cahiram de dentro, sobre a mesa escura, embrulhados num retalhinho de filo, dois alvos botões de flores de laranjeira, unidos pela mesma haste. Tomou-os entre os dedos, mirou-os, cheirou-os e, sem comprehender aquelle presente estranho, chegou-se mais á vela que ardia e, curvando-se, poz-se a lêr a carta. Era da mãi.
As letras tremulas, dum grande talhe incerto, enchiam as quatro paginas. Queixas. Que elle bem podia tirar meia hora para escrever umas linhas, dizendo como ia, que tal era a parocbia, como fora recebido pela gente. Depois noticias : da terra, a sua terra, dos conhecidos —
mudanças, nascimentos, baptisados, mortes, casamentos.
Entre os casa -
ACEDIA 159 mentos o da Bosaura, do Bambual. E uma descripção minuciosa da festa e da noiva, que estava muito linda !
Ella lembrára-se delle e mandava-lhe aquelles botões e aquelle pedacinho de véu para que nas suas orações pedisse por ella a Deus, que a fizesse feliz.
Tremiam-lhe as mãos, os olhos ficaram-lhe como duas brasas.
Releu a parte que se referia ao casamento. O
noivo era o Fabregas, conhecia-o : um gordo, negociante de ferragens, estabelecido perto do mercado. Passou á outra carta : felicitações de um amigo do seminário. Ia desatar o maço de jornaes quando os seus olhos foram attrahidos pelos pequeninos botões de flores de laranjeira vincados pelos dentinhos da Bosaura. Sentou-se e, tomandoos nos dedos, ficou a contemplá-los e o seu espirito voou longe, muito longe, vencendo o tempo e o espaço.
Ah ! a linda e alegre cidade em que nascera, com os relevos suaves das collinas verdes, onde cazinhas de colonias alvejavam brilhando ao sol entre cafesaes escuros ; com as suas ruas largas, compridas e direitas, de predios novos e palacetes com jardins grammados e aléas sinuosas, cobertas de cascalho, alegres com o fresco ruido d'agua dos repuxos ; com a grande igreja de duas torres, a cadeia entre paineiras altas, o mercado sempre farto, regorgitando de verdura e de frutas ; a estação, de tijolos vermelhos, onde, á hora azafamada dos trens, era uma alegria, um movimento como de festa —
um ir e vir de trolys e carrocinhas, um affluir de gente, os jornaes que chegavam, colonos que desembarcavam em turmas — os homens corados, ro-
160 ACEDIA
bustos, com arcas ás costas, cachimbos fumegando entre as barbas ruivas ; as mulheres com os filhos pela mão, trouxas á cabeça :— umas muito louras, dum fulvo quente, outras morenas, queimadas, as saias enrodilhadas nas cintas grossas, deixando vêr os rijos sapatos d'homem muito largos, desbocados nas canellas finas. E
algaraviavarn sentadas nas trouxas, nas arcas, pelas barrancas, dilatando a vista curiosa pela cidade que alvejava entre pomares e bambuaes, procurando no horizonte azul as grandes culturas ricas.
Ás vezes, quando chegava da capital o coronel Meira, lá ia a banda de musica recebê-lo e era um estralejar de foguetes durante todo o dia. Á noite, baile na casa da Câmara. O povo juntava-se no largo e, em torno dos taboleiros de doces, rapazes e raparigas, aproveitando a musica, dançavam ás chufas, ás gargalhadas.
E no tempo das feiras ! Tres dias grandes de feriado e pagode. Lá ia elle, desde cedo, correr as tendas, admirar os objectos expostos, ouvir os pregões, as cantigas dos violeiros ou acompanhar a sorte dos jogadores em torno das roletas e dos «jaburus ».
No meio da praça os cavallinhos de pau giravam ao som de um realejo. O cosmorama numa barraca toda embandeirada — á porta, de pé num banco, a bradar, rouco, um homem annunciava prodígios — o que engulia espadas, o que comia fogo e uma moça que se deitava e dormia entre dois tigres de Africa.
Ceguinhos esmolavam cantando, outros tocavam sanfonas. Elle ia duma á outra barraca, parava, a ACEDIA 161 olhar, a ouvir. Ás vezes chegava até á cortina — lá dentro riam, uma voz fanhosa resmungava, guinchava, estralavam palmas, era depois um alarido até que uma sineta soava repetidas vezes e o povo sahia apertadamente, ainda sorrindo, commentando os prodigios, maravilhado.
De repente um vozeirão atroava — era a criançada que desembocava no largo acompanhando o palhaço negro, vestido de vermelho, com uma carapuça de baeta, guisalhando um pandeiro, de pé no lombo dum cavallo lerdo, que percorria a cidade, annunciando a funcção da noite.
E lá ia elle também, a correr, juntar-se á garotada e, até o palhaço recolher ao circo, seguia-o fazendo coro :«A mulata é bonita ? »« É sim sinhô ? » « É macota no sarilho ? » « É sim sinhô ? . . . »
E o collegio, no caminho de «Monte Alegre », perto da ribeira, com o seu grande recreio todo ensombrado de bambus e o pomar cercado de espinheiros. O João Meirelles, o Passos, o velho Diocle-cio a esmoer latim e a fungar pitadas, sempre com o baralho de cartas no bolso da rabona sebosa ; o Mendonça, cheio de conhecimentos, contrariando irritadamente a opinião de todos, a esputar injurias sobre a cidade « uma tapera onde o lodo das ruas só era comparavel á podridão das almas», a escrever para o «Baluarte» formidaveis artigos sobre pronomes e gallicismos, nos quaes sempre collea-vam perfidamente allusões azedas ao Torquato collector e ao nariz monstruoso do Simeão da botica. Lá andavam os cândidos botões entre os dedos do moço padre. Vinham de Eosaura. E Rosaura?
Amores de infancia . .. E teriam sido amores ?
162 ACEDIA
Ella, mais nova do que elle, tres annos, era quasi uma moça — já se lhe ia sentindo o collo em dois botões que atesavam o corpinho, o vestido desceralhe até o cano da botina e a mãi, quando a levava á igreja, tinha-a sempre perto, resmungando, repuxando-a se ella se punha a olhar para a porta da sacristia onde se juntavam os rapazes.
Fora pelo S. João, em «Monte Alegre». Frio agreste de junho, bruma de não se vêr o caminho.
Elle lá estava e ella . . . ultima noite de vida, primeira noite de amor ! Depois nunca mais : o seminario, a tonsura, a primeira missa e aquelle degredo, ainda assim por empenho. Brincavam.
Como o frio crescia só as crianças ousavam chegar á varanda para olhar a fogueira crepitante. Elle debruçou-se á grade e sentiu-a tão loura, cheirando a flores, com os cabellos soltos dourando-lhe as espaduas como um manto de santa.
O frio fez com que se aproximassem. As crianças saltavam no terreiro, aos gritos e elles, mudos, apertadinhos, sem animo de voltar o rosto, olhavam. De repente, tiritando, ella disse como em segredo : « Que frio . .. !» e, retirando uma das mãos debaixo do capotinho : « Olha aqui»; entregou-lh'a.
Elle sentiu-a morna e conservou-a para aquecê-la, talvez ; apertou-a. Ella estremeceu, fez menção de querer deixá-lo. Elle, então, pediu-lhe que ficasse e olharam-se. Uma grande chamma subiu da fogueira avermelhando a varanda. Uma lufada de ar quente acariciou-os e os dois, córados, gosando aquelle bafejo afagante, não se moveram. Por fim ella murmurou d'olhos baixos : « Você vai ser padre, Américo ...» Elle negou, pediu um juramen-
ACEDIA 163 to : Se ella promettesse elle não se ordenaria. Ella insistiu sorrindo : «Se é sua mãi que quer . . .»
— Você promettendo ...
— Eu, por mim, prometto.
— Jura por Deus !
— Juro !
As mãos apertaram-se vivamente, Mas uma das crianças, rolando perto da fogueira, rompeu a chorar e os velhos acudiram chamando todos para dentro.
Viram-se ainda depois, renovaram os juramentos, mas elle teve de partir e lá foi. E ali estava, padre e ella nos braços de outro, do Fabregas, lá longe, entre os palmares verdes da sua cidade. Ali estavam apenas os botões com as marcas fundas dos seus dentinhos. E elle havia de pedir a Deus que a fizesse feliz ? Se ainda, com o prestigio do coronel Meira, pudesse ser transferido para a sua cidade, a sua linda cidade . . . Rosaura !
Ficou em extase, a esmagar os botões nupciaes sem sentir, vendo a linda menina agasalhada no capotinho cinzento, a tremer de frio, a offerecer-lhe a mão. Era um delirio. Arrancou-se d'ali frenetico, entrou no quarto, mas levantando a vela, deu com a cruz negra abrindo os braços na parede núa. ;
Era aquella a sua amada, única, verdadeira e eterna ! A outra lá estava, longe, para o sempre perdida, para o sempre ! De novo fitou a cruz e pareceu-lhe que ella tremia, crescendo, pareceu-lhe que se agitava como se quizesse desprender-se da parede.
Picou livido, a olhar, e a sua sombra immensa tremia ao longo do soalho, e na parede ao lado da 164 ACEDIA
cruz sinistra. Tomou, ao acaso, um livro na estante e fugiu para a sala assombrado. Examinou-o á luz :
era a Biblia.
Sentou-se e, apoiando a fronte na mão, poz-se a folhear lentamente. Deteve-se com um suspiro e seus olhos entraram como por uma floresta de encanto :
Osculetur me osculo oris sui : guia meliora sunt ubera tua vino . . .
Os versiculos animavam-se e elle via a moça, não morena como a do Cantico, mas loura como a do seu idyllio unico, á luz dum grande fogo que ardia, estender-lhe os braços, chegar a boca á sua boca, envolvê-lo na luz macia dos seus cabellos finos, tremula de amor, de timidez e de . . .
Um calor subiu-lhe do coração, todo elle arripiou-se nervosamente e o perfume de Rosaura encheu todo o ambiente triste :
Quam pulchra es, amiea mea, guam pulehra es !
Oculi tui columbarum absgue eo, guod intrinsecus lalet. Gapilli tui sicut greges caprarum guae ascenderunt de monte Galaad.
O uivo de um cão, voz unica e melancolica no silencio, abalou-o, tirando-o violentamente do abatimento em que cahira.
PRIMEIRO A OBRIGAÇÃO
PRIMEIRO A OBRIGAÇÃO . ..
—E que tal é elle, Clotilde?
— Madame ainda não o viu? Elle costuma vir aqui, aos domingos. Não é por ser meu noivo, mas é um bello rapaz: alto, espigado, moreno, com os cabellos muito negros, em cachos. Depois — muito sério, trabalhador.
Os patrões adoram-no. È" o empregado de confiança da casa.
— É do commercio ?
— É cabelleireiro.
— Cabelleireiro ? ! assim bonito ... E tu não tens ciume ?
— Não, madame, Eugenio é um timido. Oh !
conheço-o bem : criamo-nos juntos. É incapaz de ousar isto. Demais .. . ama-me até á loucura.
— E tu ?
— Oh ! eu . . . Se não o amasse ... sei lá ! Madame não imagina as propostas vantajosas que me 168 PRIMEIRO A OBRIGAÇAO
têm sido feitas. Eu era ainda menina e já recebia presentes. Eu é porque entendo que não ha dinheiro que valha a honra de uma rapariga. Isto é um preconceito caduco, já de todo esquecido, mas . . . que quer ?
crearam-me com taes idéas e eu respeito-as como respeito a religião. Meu pai era d'uma severidade !. .. Serei uma simploria . . . deu d'hombros com indifferença. Ha quem diga que vivo a dar ponta-pés na fortuna, pois sim. Mas ninguém rirá das minhas flores de laranjeira nem do meu pobre Eugenio, quando elle fôr meu marido. Posso andar com a cabeça levantada. Suspirou : Mas o que eu tenho lutado ! Em casa do barão, por exemplo . . . (isto eu digo á madame) não imagina o que soffri! Eram os dois : pai e filho. A um rumor correu á janella e debruçou-se : é o carro. ..
—O coupé ?
—Sim, madame.
— Mas vamos . ..
— Ah ! não me deixavam em paz com offertas de dinheiro — contos de réis ! — e joias, vestidos de seda.
O barão quiz até montar casa para mim.
— Que? Aquelle velho ! ! . . .
— Velho ? ! Se madame soubesse o que elle me propunha !
Luciana desatou a rir, um riso alegre, crystallino, cheio de mocidade. E ria diante do espelho compondo os finos cabellos que esvoaçavam, quando o marido appareceu, muito grave, limpando os oculos.
— Estás muito alegre, Luciana.
— Historias de Clotilde. Tem sempre um caso novo para contar quando me vem vestir. PRIMEIRO A OBRIGAÇÃO 169 Clotilde, d'olhos baixos, ia e vinha arranjando o toilette, pondo em ordem o psyché, recolhendo grampos, alfinetes, fitas, ferros de frisar, todos os pequeninos apetrechos de aformoseamento que se confundiam nos marmores dos moveis.
— Olha, Luciana, dize á tua mãi que eu pretendia ir comtigo, mas infelizmente, tenho de responder amanhan ao discurso do Barros sobre o caso do arrendamento e preciso tomar umas notas. Além disso estou indisposto, mau estomago, uma pontinha de enxaqueca. Aquelles camarões não me fizeram bem.
— Não, não foram os camarões. É que não descanças, Luiz : Mal acabas de almoçar é logo para o trabalho. Nem sei mesmo como ainda não tiveste uma coisa seria.
— É preciso, filha.
— Nem tanto. E fitando-o carinhosamente : Mas tu podias vir, também não é só a política. Mamãi fica tão contente quando appareces.
— Sim, mas hoje não é possível. Não é vontade que me falta, mas primeiro a obrigação, bem sabes.
— E jantar, ao menos : não podes ? Lá janta-se ás sete horas.
— Póde ser. Se eu concluir o trabalho . . . Todavia não me comprometto. Vê se queres alguma coisa.
— Não. Ia sahindo quando a mulher o chamou com meiguice : Olha, Luiz, faze um esforço : Vai jantar, ao menos ; mesmo para eu não vir por ahi sozinha, á noite.
Prometto sahir logo que queiras. Vais ?
— Pois sim, accedeu depois de pensar. 170 PRIMEIRO A OBRIGAÇÃO
— Palavra ?
— Vou.
— Olha lá ! Nao nos sentamos á mesa sem chegares.
— Pois sim.
E foi-se vagarosamente, pensativamente, coçando a nuca. De novo sós, Luciana, já prompta, deu um olhar ao espelho e, tomando as luvas, muito direita, voltou a sorrir, pensando no barão.
— E que lhe disseste, Clotilde ?
— A quem, madame ?
— Ao barão.
— Ah ! foi uma campanha ! Tive de ameaçá-lo com a baroneza. Ainda assim o homem continuou a perseguir-me : elle e o filho. O filho é doente, como a senhora sabe : tem uma molestia d'olhos, anda sempre com umas lagrimas muito compridas pela cara e madame não imagina como era ridiculo aquelle chorão, muito magro, mal se agüentando nas pernas bambas, a limpar os olhos amarellos e a pedir-me beijos, pelos cantos. Um dia zanguei-me deveras e perguntei-lhe se não sabia que eu era donzella ! Pois soubesse. Elle ficou a olhar-me espantado e, a chorar com a moléstia e a tremer como se estivesse com sezões, perguntou-me : « Se eu queria casar com elle». Luciana explodiu a rir diante do espelho.
—E tu !
— Ora, madame . . . pois eu sou alguma tola ?
Para livrar-me de taes importunos deixei a casa, bem contrariada, poTque a baroneza é uma excellente senhora, coitada ! PRIMEIRO A OBRIGAÇÃO 171 — E aqui ? perguntou Luciana, com malicia . . .
o nosso doutor . . . Fala com franqueza.
Clotilde fez uma cara de espanto e, entre seria e risonha, murmurou :
— Nossa Senhora ! Madame quer saber ? Eu até tenho medo de olhar para elle. Trata a gente tão de resto.
— Pois sim, vai-te fiando, disse a rir. Desceu o veu, tomou a carteira, fez ainda uma volta como á procura de alguma coisa e decidiu-se. Bem. Olha :
Se a costureira vier não te esqueças do meu recado.
Os figurinos estão na minha escrivaninha, em cima ;
as rendas no chiffonier.
— Sim, madame.
Luciana atravessou a galeria, d'uma luz doce, velada pelos stores de linho e bateu á porta do gabinete, onde o marido trabalhava :
— Até logo, Luiz. Não faltes, sim ?
— Sim.
— Até logo.
— Até logo.
Desceu a escada vagarosamente. Clotilde, de cima, acompanhava-a com o olhar, sorrindo. Ella voltou-se :
— Adeus. E vê lá a costureira.
— Vá descançada, madame.
Os passos de Luciana soaram no vestibulo de marmore. Clotilde, encostada ao balaustre da escada sob a claraboia de vidros polychromicos, com uma luz azul descendo-lhe da cabeça aos hombros, como nra fino manto diaphano, olhava um fresco mural, mordendo preoccupadamente o labio. O rapido rodar do carro tirou-a d'aquella preoccupação enlevada ;
172 PRIMEIRO A OBRIGAÇÃO
deu d'hombros, numacresolução e, vagarosamente, depois de lançar um olhar á porta do gabinete, voltou a camara e pôz-se a arranjar as gavetas, a pendurar as roupas, a esticar os tapetes engelhados. Ás vezes detinha-se e ficava a pensar, immovel, de olhos perdidos, mas logo sorria despreoccupada e contente.
A câmara recendia á verbena. Parou diante do espelho, a mirar-se. Tomou o pente de tartaruga loura e alisou os cabellos dourados, perfumou as mãos, as faces, o pescoço. Viu-se, reviu-se, ao psyché, de frente, correndo a mão pelo avental; de flanco, tufando as rendas dos hombros e sorria, satisfeita com as suas cores de saúde, com o brilho humido dos seus olhos verdes.
Foi á janella, empurrou as persianas e debruçouse. A rua estava deserta, ao sol. Lá muito em baixo, lampejando, o coupé diminuia, desapparecendo.
Então, arqueando jos braços, com os dedos enclavinhados, dobrou-se num langor, espreguiçando-se voluptuosamente e sorrindo com todos os dentinhos claros á flor dos labios sanguineos.
Mas um estalido fê-la voltar a cabeça com um susto de gazella arisca : O doutor estava em pé, á porta, e contemplava-a risonho. Ella baixou os olhos e elle, adiantando um passo, empurrou a porta e ia fecha-la á chave quando ella o reteve com um gesto.
Correu á janella e, de novo, lançou um olhar á rua e ali teria ficado se elle, ansioso, não se resolvesse a abraçá-la pela cinta, attrahindo-a. Ella murmurou :
— Mas ... o senhor não tem medo ?
— Medo de que ! Deu volta ao ferrolho da PRIMEIRO A OBRIGAÇÃO 173 janella e adiantava-se, quando Clotilde, com um «ah !» abafado, correu ao psyché e, tomando uma velha moldura de prata com o retrato de Luciana, em trajo de caça, de pé, risonha, destacando-se de um fundo sombrio de folhagens, escondeu-o, á pressa, em uma das gavetas e como o doutor, com uma voz surda e tremula, lhe perguntasse—«que era?» ella, fitando-o e sentindo-lhe o hálito quente, murmurou sorrindo-:
— É a patroa, coitada !
O FUTURO O FUTURO
Quando ella entrou no gabinete, onde o pai a esperava, pautando os dentes, a olhar o jardim —
todo de branco, com chinelas novas de marroquim, o ventre a estalar o collete muito liso, ornado com uma grossa corrente de ouro antigo, do Porto —
sentiu no coração um aperto presago. Deteve-se junto á secretária de mogno, muito arrumada e lustrosa, sobre a qual reluzia um tinteiro de prata, que era uma carreta tirada por um jumento, carregada com duas pipas de crystal.
Numa corbelha de porcellana abriam-se rosas vermelhas entre crotons e malvas. O armArio solemne, com altos livros negros forrados de panno, empertigava-se em uma das faces da saleta forrada de azul e, em frente, num consolo, sob uma redoma de vidro, brilhava um relógio de bronze dourado, com os ponteiros desgarrados e immoveis como 178 O FUTURO
dois braços abandonados na inErcia de somno calmo.
Diplomas, encaixilhados em negro, inclinavam-se nas paredes attestando as virtudes, os prestimos e a previdEncia do dono da casa.
Ella ficou um momento á espera ; vendo, porém, que o pai não a sentia, falou :
— Papai mandou chamar-me ?
Elle voltou-se ligeiro, como sobre um eixo, com um sorriso na face gorda, os óculos no meio do nariz, olhando por cima das lentes.
— Sim, mandei. Preciso conversar comtigo.
Lançou-lhe um olhar ao corpo airoso. Puzeste o vestido novo, hein? Está bem feito. Poste tu mesma, não ? Senta-te. Sorriu de novo, irrequieto, contente e, puxando uma cadeira para junto da secretria, offereceu-a com um gesto: Senta-te. E espapaçou-se na poltrona sobre um couro macio. Ora muito bem ! exclamou, mas como se lhe faltassem as palavras, ficou a tamborilar com a espatula de osso, com o sorriso sempre a brincar-lhe no rosto anafado. Por fim, disse com uma voz muito lenta, muito cheia, como se viesse carregada de sabedo ria : Mandei chamar-te, Luiza, para conversarmos sobre ... Levantou-se, foi encostar a porta que abria sobre o corredor para que não sahisse d'ali o segredo da confidencia e, tornando á poltrona, continuou : ... para conversarmos sobre o teu futuro.
Uma onda de sangue subiu ás faces da menina e, nervosamente, puzeram-se-lhe os dedos a amarfanhar do vestido.
— Minha filha, a minha saude não anda bôa :
estas pontadas no coração ... franziu o rosto em O FUTURO 179 caramunha de desanimo, abanando com a cabeça descorçoadamente. Além da moléstia, cá está a velhice :
começo a sentir-me fraco para lutar, não sou o mesmo homem. Isto está como uma casa velha, a cahir aos pedaços. Se fôssemos ricos, outro gallo nos cantaria, mas que temos nós ? estes cacos e duas casitas que nem dão para os concertos e para os impostos. E é só. Por emquanto ainda aqui estou para furar e tua mãi, coitada ! vai economisando o que pôde e vivemos. Mas se eu fechar os olhos duma hora para outra, que ha de ser de vocês, duas mulheres, sem conhecimento do mundo? Isso é que me tira o somno e ainda me põe mais doente. Suspirou abatido, passando a mão pela testa alta e lisa. O que ha é o seguinte, ouve lá:
Tu és uma criança, bem sei e, por nossa vontade, nunca nos sahirias daqui, mas o mundo tem as suas leis.
Has de casar, mais hoje, mais amanhan e, assim como assim, se has de ir parar ás mãos dum homem indigno de ti, que te maltrate, que te não eomprehenda, o melhor é irmos pensando nisso emquanto é tempo . ..
— Em casamento, papai ?
— Sim, pois então? Olhou-a risonho.
— Mas eu não penso em casar-me.
— Pois sim, minha sonsa. Morde aqui, se és capaz ...
e estendeu-lhe o dedo minimo. Achas-me com cara de tolo ? Então eu não tenho olhos ? Picou sorrindo ; depois accentuou com gravidade : Isso é bom como passatempo, Luiza, mas não serve, não serve. Eu nunca te quiz falar porque, em-fim, entendo que toda a moça deve gosar um bocado e o namoro é um bom divertimento, deixem 180 O FUTURO
lá ; riu fazendo-lhe festas no rosto. Esperar o bonde em que elle passa, trocar olhares, atirar uma flor .. .
Ah ! pensas que não conheço essas coisas ?
Conheço-as muito bem, também fui rapaz, tive o meu tempo. Tornou-se sério. Mas nós agora não tratamos de brinquedos, já te divertiste bastante.
Ella ,não achava uma palavra para oppôr ás declarações do pai: calada, num vexame que a opprimia, continuava a amarfanhar o vestido.
— Anda cá : Que te parece o Travassos ?
Ella levantou a cabeça impetuosamente e, no mesmo instante, como se o nomeado houvesse surgido do chão, ante os seus olhos muito abertos, viu um homemzinho magro, moreno, sardento, o nariz achatado, de ventas muito abertas como dois tun-neis numa collina, a falar arquejando, numa canceira de asthmatico. Não se conteve :
— Seu Travassos !
— Sim, sussurrou o pai.
— Pois um homem que está tysico !. ..
— Tysico, tysico . . . Tysicos estão os que falam.
Conheço-o ha mais de vinte annos sempre assim.
Tem uma saude de ferro. Quem me dera a mim a saúde que elle tem.
— Ora, papai...
— Ora, porque! Que tem'elle!
— Pois papai quer mesmo que eu me case com seu Travassos ! exclamou em voz chorosa.
— Então ? Não é por elle : é por ti, sabes ? É por ti. O Travassos é o marido que te convém : bom homem, homem serio, rico. Ella encolheu os hombros. Não te agrada ! Preferias, sem duvida, um O FUTURO 181 desses franganotes que andam a alisar-me a calçada, não?
— Eu não prefiro ninguém.
— Não preferes . . . bem sei. Olha a tua amiga Euridyce :
casou com um dos taes e lá está a comer o pão que o diabo amassou, chorando lagrimas de sangue, a lamentar a sua má cabeça. Foi atraz das bonitezas, dos bigodes encalamistrados e é o que se vê. Pois, minha filha, eu não tenho dezoito annos, como tu ; sereias não me seduzem. A
vida é isto. Poesias não enchem barriga nem agasalham.
Quando os filhos vierem, não ha de ser com as bonitas palavras nem com os bigodes torcidos que lhes nas de dar de comer e o que vestir : ha de ser com isto, e pôz-se a esfregar os dedos todo inclinado para a filha. Com isto, estás ouvindo ? O que vocês vêm no casamento é a festa, o tal amor . . . Historias ! Tudo passa, o que fica é a verdade positiva, o real. Os rapazes casam por enthusiasmo, mas o enthusiasmo é fogo de palha : arde, faz chamma e morre depressa. E como o sangue lhes ferve na guelra, cessada a impressão, lá vão elles atraz de outra e temos os amúos, as ciumadas, as brigas, a desgraça, emfim. E com um homem como o Travassos, que constitue familia para ter um lar repousado, a vida será de paz ininterrompida. Nada te faltará. És moça, bonita, bem educada, só não terás delle o que não quizeres, isso digo-t'o eu : só o que não quizeres !
garantiu. Olha, minha filha, não ha nada peior do que desejar sem esperança de possuir. A mocidade e a belleza passam e a velhice sem pão é triste. Antes a morte.
Tu conheces o Travassos de vista apenas, lida 12 182 O FUTURO
com elle e has de vêr a pérola que está ali. Ella resmungou sorrindo. Que dizes t perguntou elle risonho ; ella continuou a sorrir. Vai falando, vai...
Olha, só no anno passado elle tirou da casa oitenta contos liquidos e neste anno ha de ir a mais, se Deus quizer. Que melhor ? E os predios que elle tem por ahi, e as apolices, a fazendola em Mendes . . .
Então? Pergunta agora a um desses bonifrates que te cercam quanto têm no bolso. Nem um nickel para o bonde. Conheço-os !
Tu não és mais moça que a Therezinha e ella não vai casar com o Guedes e não está tão satisfeita?
Porque? Porque o Guedes é um homem como convém a uma moça de juizo. Olha, só o enxoval que elle mandou vir de Paris ficou em mais de dez contos de reis e eu não deixarei que faças má figura ao lado da Therezinha. Isso fica por minha conta, descança. O Travassos pôde mandar buscar do bom e do melhor e manda, tenho certeza. É caprichoso e mesmo tem muito mais do que o outro. Inclinou-se e, confidencialmente, disse : Pensas então que elle está mandando levantar aquelle chalet na rua dos Voluntarios á tôa ? Ella fitou no pai os olhos brilhantes. Ora ! has de vêr. Eu só te digo que nasceste em bôa hora, sob uma bôa estrella. O
homem não fala em outra coisa. Paixão de velho é o diabo ! riu.
Ella não poude contrariar o sorriso.
— Depois tu não vives sempre a dizer que o teu sonho é vêr a Europa ? Então ? . . . Está em tuas mãos. Deixa lá os rapazes, isso é bom como passatempo, repito, mas só ... só ! Se tivessemos fortuna nem eu te falaria nisso : podias casar com quem O FUTURO 183 quizesses, mas ... deu d'hombros, esticou o beiço. É preciso, minha filha. E sussurrou : o doente não procura o que lhe sabe, vai ao que lhe faz bem. Mais tarde verás que me preoccupei com a tua felicidade e darás graças a Deus por não te haveres sacrificado a fantasias.
Depois, minha filha, casada com um moço, serias sempre a opprimida, a humilhada, o mesmo eiume faria com que padecesses em silencio para que elle, a pretexto de aborrecimento, não evitasse a tua companhia procurando distracções fora do lar. Com um homem como o Travassos, que já não é criança, serás a senhora, imporás a tua vontade, trá-lo-ás preso, submettido aos teus caprichos porque, para garantir o teu amor, sempre receioso de perdê-lo, elle fará tudo quanto quizeres, até fechará os olhos a muita coisa.
É isto, Luiza. Eo mundo todos os passos devem ser cuidadosamente estudados como os lances de um jogo, um pequeno descuido, um movimento menos pensado podem prejudicar a partida. Tens na mão todas as peças principais: a belleza, a mocidade, a educação ; podes ir certa da victoria, porque o teu adversário dispõe apenas duma pedra valente, as outras já estão em teu poder, só te falta a fortuna.
Garanto-te o cheque mate se me deres o «sim».
Ella ouvira tudo atravéz dum sonho : vendo-se naquella casa rica, com a fortuna a servi-la, mais solicita do que um gênio dos contos maravilhosos, sentindo sob os pés a maciez dos tapetes, arrepanhando sedas pesadas de reposteiros lavrados, roçando em moveis preciosos, aspirando aromas finos, 184 O FUTURO
olhando o lampejo prismático dos crystaes, o brilho das baixellas, repousando em molles divans ou no seu leito, alvejando sob o cortinado, no fundo da carôara luxuosa, toda recamada de ouro como uma capella.
A seu lado, porém, a apertar-lhe a cinta, a dobrar-lhe a cabeça, procurando, com ânsia, a sua boca humida e quente, via Ramiro, o seu adorado Ramiro, louro, lindo, tão leve no vôo delicioso das valsas durante as quaes tantas vezes ella jurara ser delle, delle só e sempre, sentindo-lhe o hálito morno e o aroma do seu corpo airoso e flexivel.
— Então, que dizes? perguntou o pai vendo-a distrahida, d'olhos extasiados. Ella sorriu fitando-lhe o rosto gordo, onde os olhos esbugalhados pareciam rir, faiscando. Sim, hein? Ella encolheu os hombros baixando a cabeça. Elle, então, toman-do-lhe uma das mãos, afagou-a e, levantando-se, triumphante e alliviado, desabafou : Isso, filha ; isso. Não desprezes a fortuna que te procura. E, como ella se puzesse de pé, apertou-a nos braços, beijou-a na fronte. Agora vai e que Deus te faça feliz. Olha . . . Tomou uma das rosas vermelhas, deu-lh'a, dizendo : Isto é para que faças o mesmo commigo quando eu fôr á tua casa, entendes?
— A minha casa será sua, papai.
— Obrigado, minha filha. Deus te faça feliz.
E acompanhou-a com os olhos enternecidos até que ella desappareceu no corredor escuro. Voltou-se, então, contente, esfregando as mãos. Foi até á janella, olhou — era quasi noite.
Picou ali a contemplar o céu que se ia abotoando em luzes, a pensar naquelle homemzinho achan-
O FUTURO 185 do que tossia com angustia, cavernosamente, as vezes cuspilhando sangue, sempre a agitar frascos, engulir capsulas, numa dieta rigorosa, peregrinando pelas serras onde borbulham fontes, bebendo tudo a goles sofregos, para manter aquella vida Liril que se ia consumindo como a luz numa lambada sem oleo.
E ella, moça, robusta, ardente . . .
Encolheu os hombros e, fechando vagarosamente a janella, disse como se falasse á noite:
— Ora! tenha ella dinheiro, o mais . . .
E sahiu da saleta apressadamente, como se fugisse á visão dum remorso.
HORTENSIA
HORTENSIA
O sol começava a luzir nas folhas humidas, polvilhando d'ouro o azul dos montes quando Soeiro atravessou o jardim areado, relvado de novo, com flores moças, daquella noite, ainda entre-fechadas e timidas. A
sala de jantar tinha todas as portas abertas á aragem da manhan. Os canários cantavam estridulamente nas gaiolas douradas, que os-cillavam entre as ramas entrelaçadas das ipoméas e dos jasmineiros do terraço.
O Luiz, com o seu comprido avental branco sem a mais leve nodoa, espanava, com serenidade, os pratos preciosos que ornavam as paredes côr de malva e o jardineiro, o robusto e atarracado Mendo, ia e vinha descalço, abarcando as tinas de panda-nos e de lataneas, dispondo-as, com symetria, entre os moveis, para dar á sala a frescura e o verdor agradavel dura horto.
190 HORTENSIA
Ao vêrem-no, os criados detiveram-se, perfilando-se com uma saudação murmurada.
Soeiro parou, olhando vagamente a sua sala, os seus moveis esculpidos, sobrecarregados de crystaes e pratas que rebrilhavam por traz dos limpidos vidros esmerilhados, as suas velhas faianças preciosas como se tudo visse, examinasse, avaliasse com o interesse de um comprador, não como dono que conhecia a historia de cada um daquelles objectos adquiridos em lentas pesquizas, por bom preço, nos leilões ou nas casas dos revendedores.
Como os criados voltassem ao serviço, indeciso, bocejando, pousou o chapéu e a bengala sobre a mesa e caminhou até o terraço, cujo ladrilho, vermelho e branco, conservava ainda a humidade da lavagem e ali quedou, a olhar o liquido pennacho do repuxo que sussurrava, pulverisando o ar com uma nevoa translucida.
Sentia-se amollecido, atordoado daquella noite de tanto esplendor e ruido que lhe adensara mais no espirito as duvidas que tinha sobre aquella admiravel mulher, cuja posse vinha docemente, vagarosamente, saboreando em sonhos, como se se quizesse dirigir para a felicidade, passo a passo, por um caminho discreto de sombra e silencio, afastando ramos finos, até o momento de a surprender já sua, toda sua, a sorrir, linda e languida, ainda coroada de flores, com o véu ainda a abrumar-lhe o rosto.
Nem ella mesma sabia daquelle amor — nunca lh'o demonstrara, sempre reservado, á distancia, deixando-a livre com os seus instinctos para poder analysá-la, espreitá-la, estudar-lhe a alma, com HORTENSIA 191 vagar e astucia, decifrar o enigma daquelle eterno sorriso.
Tirou do bolso o camet, abriu-o e, na calligraphia feia e trêmula que o enchia, logo notou as letras desiguaes, traçadas vagarosamente por aquel-les dedos afilados e mais brancos e macios que as pétalas dos lirios, compondo desgraciosamente o gracioso nome de Hortensia.
Encostou-se á balaustrada, sempre a olhar as letras daquelle nome adorado de mulher e de flor.
Esteve a fitá-las como se as quizesse interpretar, uma a uma, ou nellas descobrir alguma coisa, um leve, fugidio vestigio da mão delgada que as traçara.
Voltou-se, porém, e, de novo, relanceou a sua gala onde tudo resplandecia e o silencio só era interrompido pelo trillar dos canários ou, nos dias quentes, á hora mais incendida, por alguma abelha voluvel que esvoaçava, pousando um minuto nalgum florão, logo sahindo a zumbir, para o seu doce trabalho.
Caminhou para a mesa, tomou o chapéu e a bengala e, vagarosamente, vergado, seguindo pelo esparto do corredor, chegou aos seus aposentos, a cuja porta o impassivel François, muito grave, esperava immovel como uma sentinella.
Entrou e, emquanto o criado, sem rumor e sem falas, o ia despindo, descalçando, offerecendo-lhe o role de chambre, as fofas sandalias de felpos de linho, revia-se ao espelho desconsoladamente, achando-se pallido, com olheiras, a pelle lustrosa como repassada em oleos, desfigurado, abatido por aquella noite de agitação e excessos.
192 HORTENSIA
François murmurou uma pergunta sobre o banho: «Se o queria morno ou frio?»
— Frio, disse, estirando-se no canapé de couro diante do leito antigo, de pau santo, largo e raso, com retorcidas columnas ennastradas de crespas folhagens, toldado pelo docel de damasco côr de morango, com arrepanhadas pregas que se engelhavam, pesadas, aos lados da cabeceira alta, onde a almofada alvejava, destacando-se da colcha dum verde d'agua, como uma duna á beira de uma praia.
Quieto, deixando errar o espirito, lá tornou á mulher admirável, á divina Hortensia, toda carnal, recendendo a amor, exhalando volúpia, se sorria, se falava, se caminhava. Mesmo na immobilidade, quando apenas se lhe notava a ondulação do collo arfante, branco e cheio, os olhos prendiam-se nella com o extase sôfrego de um goso material.
Dava-lhe a impressão alvoroçante de uma deusa lasciva que exigia sacrifícios impuros, como a Mylitta asiatica.
Nos salões, nas ruas via-a sempre seguida de um cortejo de admiradores que a acclamavam triumphalmente, enaltecendo-lhe a belleza e o espirito, sorvendo o ar que o seu aroma perfumava, procurando vêr a ponta delicada do seu pequenino pé travesso que ariscamente apparecia, como espiando, a medo, por entre as rendas da fimbria da saia farfalhante, lambendo-lhe as curvas fortes com olhares lubricos, estremecendo se ella voltava para os seus rostos a luz azul das suas pupillas magicas, se lhes sorria com todo o sangue á beira dos labios humidos.
Não, não era aquella a mulher que lhe convinha.
HORTENSIA 193 Tinha-a como um sonho, não a aceitava na realidade.
Servia para logradouro da imaginação. Que o seu espirito a gosasse, mas para a calma da vida, achava-a perturbadora e incommoda com a sua formosura, com a sua vaidade, com o seu estouva-mento.
Sabia-se forte, havia de querer dominar, impondo-se pela belleza, ameaçando sempre com a sua carne jovem e appetecida, fazendo menção de desnudar-se para offerecer-se em represalias crueis. Não ! Toda a sua vida remansada de homem methodico seria revolvida, ficaria toldada como água de um lago sereno e limpido que, subitamente, uma convulsão agita e turva, fazendo subir á tona toda a vasa rebalsada.
Adorava-a, repellindo-a por julgá-la incompativel com a sua norma de viver, com os seus planos egoisticos de felicidade. Com ella vêr-se-ia sempre cercado de receios, o silencio e a ordem desappareceriam daquella casa, onde eram tão doces os dias e as noites tão repousadas e sua alma, que nenhum cuidado visitava, encher-se-ia de cuidados, talvez de coleras ciumentas.
Nunca mais poderia receber com franqueza os amigos predilectos, porque todos, ignorando o seu amor, á mesa do jantar ou nos cavacos nocturnos, emquanto o Nunes, sempre a recordar scherzos e sonatas, fazia soar o piano, falavam com exaltados elogios e commentarios picantes, desnudando e apontando os encantos daquella virgem magnifica, amadurecida precocemente, que ardia por amar e pelo amor. As palavras desprendiam-se-lhe dos labios voluptuosamente como se viessem em 194 HORTENSIÁ beijos, o seu olhar parava e adormecia no rosto dos interlocutores com a fixidez de duas estrellas que brilham.
Soeiro imaginava-a ali, caminhando airosamente pelas salas e pelos corredores, onde a noite jamais encontrara uma mulher. Imaginava-a naquelle placido aconchego onde encerrava, com egoismo e serenidade, a vida sem sobresaltos e via tudo mudado: o rumor em vez do silencio, a desconfiança em vez da tranquillidade espiritual que todos lhe invejavam.
Não, não era a mulher que lhe convinha. Ia preterir toda a felicidade pela incerteza dum sonho, por uma fantasia, um capricho inconfessável, quasi obsceno.
E conservaria a esposa a encantadora plastica e a graça insinuante da donzella ? O que elle via era a amazona astuciosamente armada para a luta, compondo ciladas hábeis para conquistar um marido. Depois da victoria, despidas as armas que tanto luziam, seria ella a mesma? Não, por certo.
Havia belleza, não negava, mas havia também artificios que desappareceriam na manhan seguinte á noite do casamento e o encanto de Melusina havia de mostrar-se fatalmente como se mostrou a Raymundo, na torre alta do castello do Poitou, quando, curioso de vêr a mulher na nudez e na verdade, espiou pela frincha e deu com a retorcida serpente que, ao senti-lo, silvou e partiu pelos ares nocturnos, desapparecendo para nunca mais.
Nao, não . . . ! Elle bem sentia a serpente sob a illusão da Belleza. Demais, era um corpo cobiçado, profanado por todos os olhares, gosado pela ima-
HORTENSIA 195 gunação de quantos o viam. Era a amante ideal de todo aquelle mundo futil que a cortejava, sopran-do-lne para a vaidade o incenso dos louvores.
Elle mesmo não a amava, desejava-a — não ia para ella levado por uma sympathia, mas attrahido por uma sensação.
Taes amores são como os confeitos que, sob um doce revestimento, que logo se dilue, encerram a amendoa amarga e, não raro, venenosa.
Occorreram-lhe, então, as palavras perversas do Lino, sempre dicaz, e a sua singular e anecdotica analogia.
« Para elle, Hortensia não era mais que um apperitivo fino. Contou que certo sybarita pobre tinha sempre á mesa uma lasca de presunto e illudia-se com o aroma de sorte que, mastigando o pão sêcco e a carne insipida, tinha a sensação delicada de estar saboreando febras do fiambre que os olhos contemplavam com resignada gula e o olfacto ia chupando, aos sorvos, para temperar, na imaginação, o almoço e o jantar mesquinhos. Aquillo era uma mulher para a idéa, um «modelo» para o espirito —
guardava-se-lhe na memória a belleza e, com ella, podia a gente sentar-se á mesa mais parca, porque teria o doce engano de estar saboreando aquelle manjar delicado». E
riu maliciosamente, arripiando os bigodes atrevidos.
Subitamente Soeiro estremeceu. Pareceu-lhe ter ouvido a voz macia e preguiçosa da moça repetindo-lhe, num tom de queixume, as palavras que lhe dissera naquella tarde tristonha, doentia, em que a vira na varanda, toda de branco e pallida, com os cabellos muito louros atados numa grossa trança, 196 HORTENSIA
que lhe escorregava pelo collo alto, como uma torrente de lava chammejante que rolasse por uma collina : « Eu bem sei que me julgam vaidosa e até mais do que isso . . . mas . . . que culpa tenho eu de ser assim ? »
Ser assim . . . Com tal plirase ella referia-se á belleza, á graça, a todo o encanto da sua pessoa divina, a toda a seducção do seu corpo, a toda a doçura enervante da sua voz, traduzindo em musica os pensamentos ligeiros da sua cabecinha estroina.
Ser assim . . .
E se ella fosse honesta, pura, formosa, mas sem culpa ! ? Sim, se fosse innocente, apesar daquellas apparencias languidas ? A porta abriu-se de leve e Prançoís appareceu com o jupon no braço.
— Já vou, disse Soeiro.
O criado esgueirou-se e elle, espreguiçando-se, estrincando os dedos, deixou escapar um sincero :
«Coitada !» E, de novo, voltou aos seus pensamentos :
— Quem sabe se não está ali uma victima da propria belleza ? Eu mesmo que razões tenho para julgá-la impura ? Até hoje, apesar de todos os meus cuidados, só consegui descobrir nella a criança, uma alma infantil que brinca sem comprehender a puberdade em que entrou. Pobrezinha !
Decididamente a mulher precisa da malicia para affectar innocencia: a ingenuidade é prejudicial porque é franca — é como uma nudez : encantadora para os que nella vêm a innocencia, mas desfaçatez obscena para os que a tomam por descaramento insólito. E é o que ella é, a pobre Hortensia HORTENSIA 197 — uma ingenua, uma victima dos pais que a lançaram nos salões sem os cuidados e os conselhos prévios, de sorte que, a todo o momento, é preciso que uma mão amiga a esteja arredando do perigo como se afasta uma criança do tumulto onde fica errando deslumbrada e a rir, sem imaginar que a morte a rodeia e attrahe com o mesmo deslumbramento que a fascina e atordoa.
Pobre Hortensia !
Encolheu os hombros e, mollemente, fatigado, seguiu nas surdas sandálias pelo corredor sombrio, caminho do banheiro e, pela peimeira vez, achou triste o silencio daquella casa tão rica, tão atulhadae tão deserta.
LINGUA PORTUGUESA
A LINGUA PORTUGUESA
Tu que andas a explorar a selva veneravel doa rimances, mais batida que muita estrada de caravanas, onde não ha florinha — e já não falo d'arvores — por mais occulta que nasça, que não tenha um nome rebarbativo, composto em latim erudito ou em grego clássico por algum Linnett d'oculos e gorro, e uma doce e mimosa alcunha com a qual o povo, sempre poético, singelamente a appellida, has de achar encanto nesta aventura que eu comparo, pela sua originalidade, a uma delicada bomna de silvedo, pequenina e ephemera, dessas que desabrocham com o nascer da lua e morrem ao primeiro luzir do sol.
Ouve-me e terás, a um tempo, assumpto para um dos teus contos — se ainda os escreves — e a explicação que, ha dias, me pediste, no Laemmert, quando lá me aohaste a procurar grammaticas selectas portuguesas.
202 A LÍNGUA POETTJGTJESA
Perguntaste se eu queria enriquecer o meu cabedal linguistico e eu respondi, com mysterio que tratava de coisa mais seria e mais util. Effectivamente, tratava. Para o meu gasto basta-me o que aprendi nesse tempo, menos sábio e mais fecundo, das pequenas grammaticas de nomes fáceis e de regras simples. Leio e entendo o meu Bernardim e o meu Garção, ando, com vagar e segurança, pelas agruras floridas dos principes da chronica, redijo um bilhete intelligivel para saber das minhas lavouras, ao sul, e do meu gado nas terras centraes onde tenho pastores como um patriarcha biblico e ainda sirvo ao meu amor que só me pede, com sobriedade rara, flores de rhetorica, em vernaculo.
Dirás que estou abundante e diffuso. É o calor, meu amigo ; o calor dilata os corpos e o espirito. O meu espirito poreja facundia e este champagne gelado torname chrisologo. Confesso-te que estou languido, languido e falador como um gaulês ; disse mollemente, espreguiçando-se.
Que horas são ! três ; tenho tempo. Ás cinco devo estar ajoelhado aos pés de Mylady, explicando-lhe o participio. Mas vamos ao caso. Pelo brilho de teus olhos vejo que ardes em curiosidade. Se achares a aventura banal não me deixes chegar ao fim. Eu acho-a divina !
Mas é bem possivel que neste velho mundo, onde é tão velho o amor, outra mulher tenha precedido a minha irlandesa, entregando-se, toda languida, a algum homem só com ouvir-lhe a musica da voz ; é possivel. Aos ouvidos delicados das divinas athenienses devia causar estranhesa a rude e aspera linguagem dum scytha ou o rouco bramir dum thracio e, como a mulher foi A LÍNGUA PORTUGUESA 203 sempre o espelho da incoherencia, não duvido que, antes de Betsey, alguma branca e formosa filha de Athena se houvesse despido e, toda. núa e toda tremula se desse á bruta sensualidade dum daquelles gigantes pedindo, já embriagada de amor, que atroasse os ares com o seu dialecto ríspido e mais trovejante que a colera de Zeus.
Esta é a verdade, meu amigo : A mulher é capaz de tudo e eu não creio que haja um capricho inedito. Emfim —
ouve e fala.
Eefrescou os lábios na taça, enrolou uma cigarrilha e continuou, com molle preguiça, encolhendo-se no chambre de seda sobre o divan de couro pardo.
Conhecemo-nos a bordo, na tolda do Clyde, logo ao deixarmos Lisboa, em outubro. Ella e Mymph, a cadellinha, eu e Djinn, o meu pointer. Em ingles trocamos as nossas impressões sobre a cidade de Ulysses, a florida Lisboa e sobre a belleza do Tejo e entrei, com o meu vago saber, a falar de historia, dizendo-lhe coisas memoráveis dos briosos tempos da grandeza e do heroísmo daquella terra e daquella gente : as guerras, as navegações ousadas em barineis ligeiros, grandes como chalupas, que iam descobrir terras ; os avanços no mar virgem, os transmontos de cabos procellosos, a gloria divina da poesia e o triumpho terreal do descobrimento das praias verdes e largas do nosso Brasil.
Ella ouvia-me sorrindo, as duas mãos no collo, toda embebida nas minhas palavras como se tivesse apenas cinco annos e eu lhe estivesse a contar fabulas.
Descíamos com uma aragem fresca e tocada de aromas, perdiamos a vista da terra. Lá ficavam os 204 A LÍNGUA PORTUGUESA
moinhos e as torres, lá se afundava em bruma a veneranda cidade e ella a insistir em pormenores, curiosa, avida de saber, interessada na historia e com os olhos tão azues e tão grandes que eu, ás vezes, ficava-me a olhar para elles com a certeza de que contemplava o céu por duas vigias. E assim permanecemos duas ou três horas e só nos apartamos quando ella sentiu que era tempo de ir fazer a sua toilette para o jantar.
Do pouco que me disse fiquei sabendo que era da Irlanda, terra da harpa e dos santos, casada ; que ia para o Eosario, na Argentina, onde o marido cria carneiros e cavallos e outras coisas mais. Ah ! meu amigo, que encanto de voz ! A harpa gemente da pátria de santa Brigida perpetua os seus sons na boca das irlandesas. Queria que a ouvisses, não a falar ligeiramente e sem interesse, mas murmurando, na intimidade do amor, pondo o vocábulo no hálito, deixando-o ir lento e subtil como um fumo que se sopra e que, ao de leve, sobe e some-se desfeito. Assim é que é ouvi-la !
Depois do jantar, junto á amurada, falava eu a um gordo minhoto, que vinha ao Brasil collocar o geu azeite e o seu vinho, quando dei por ella e tão viva, tão irrequieta, tão nervosa, olhando-me tão fixamente e com uma tal ansia a soerguer-lhe o collo, que receei pela sua vida — adiantei-me e ella, firme, rígida, a encarar-me com um brilho mais quente nos olhos, perguntou-me :
— Que lingua é essa que o senhor falla !
— Portuguesa, mylady ; a mesma em que, ha pouco, ouvimos tão lindos cantos entoados por estivadores. A LÍNGUA PORTUGUESA 205 E ella, pallida de emoção, erguendo os mãos brancas como uma santa em supplica, suspirou :
— Ó, a bella lingua !
— Em português ?
— Não, homem de Deus — em ingles. Eu vou traduzindo para não dar á nossa palestra o caracter duma dissertação enxertada de textos. E logo, toda agitada, pediu-me que lhe falasse portugues, muito e sempre, que lhe dissesse tudo em portugues, tudo ! Buscamos as nossas cadeiras e, á luz das estrellas, eu tudo lhe disse em português e ella» (ó sagacidade da mulher !) tudo comprehendia com uma tão lúcida intelligencia que os mais subtis idiotismos da nossa lingua, tão rica em idiotismos e em idiotices grammaticaes, principalmente agora que tão mal a escrevem os que põem tanto empenho em reformá-la, enchendo-a de complicadas raizes como um bocal de boticário, eram logo divinalmente adivinhados, interpretados, traduzidos com tanta graça que eu, maravilhado, relanceando em torno um olhar ligeiro e vendo que estávamos sós, ajoelhei-me e, beijando-lhe as mãos, offereci-me para iniciá-la nos segredos da lingua encantadora. Nessa mesma noite, ali mesmo, ao som do mar, enveredamos pelo substantivo. E
até o Rio só falei portugues com ella para deliciá-la.
Ao entrarmos a barra, com o coração partido, reunia coragem para dizer-lhe a ultima e uma das mais tristes palavras da nossa lingua, que é Deus !» certo de que ella seguia, com virtuosa Pressa, para o aprisco conjugai, no Rosario, quando a vi apparecer linda e mais airosa que nunca, num esguio traje de flanella, com a cadellinha, recla- 206 A LÍNGUA PORTUGUESA
mando as malas e um garrulo kakotoes que comprara em Dakar, a um negro. E disse-me, muito sEria, abrindo a sua carteirinha de notas :
— Fico uns dias aqui, uma semana, talvez, para vêr a terra, que parece bella, e concluirmos o substantivo.
Foi tão grande a minha surpreza que, em vez de atirar-me, ali mesmo, de joelhos, agradecido e alegre, beijando-lhe as mãos, fiquei immovel e mudo, como fincado nas taboas do navio, com um tremor nos labios, os olhos humidos e o coração numa furia, aos esbarros ao peito.
Desembarcamos juntos e subimos para a Tijuca e, num hotel dos mais agasalhados no bosque, com águas vivas brincando em torno, quedamos todo um mez estudando a grammatica e as selectas. Todavia, sem esquecer os nobres deveres de esposa, escrevia, por todos os paquetes, minuciosas cartas ao marido falando, com sincero enthusiasmo, da natureza do Brasil — a nossa incomparavel natureza ! — e louvando a rica, sonora e doce lingua portuguesa, mais doce ainda em boca brasileira. E, lendo-me as suas cartas graves, sem as explosões dengosas que transbordam da nossa flacida correspondencia de latinos bastardos, empallidecia e córava e toda tremia se os nossos olhos se fitavam num encontro fugitivo e languido. Por fim, ao cabo de um mez, reclamada pelo marido, que telegraphava diariamente, partiu. Levei-a ao Nile e, a bordo, na cabine, com lagrimas e beijos, recapitulamos algumas regras com a pressa assustada de um crime.
Em uma lancha acompanhei o paquete até a A LÍNGUA PORTUGUESA 207 barra que nos devia separar e, ainda algum tempo, vi o lencinho de Betsey palpitando entre a cordoalha negra do transatlantico como uma borboleta captiva que se debatesse numa teia.
Voltei triste e recolhi a esta casa, que me pareceu mais fúnebre do que um jazigo, buscando esquecer esse sonho, delicioso e curto, certo de que nunca mais, oh !
nunca mais ! volveria á ventura e á utilidade daquellas horas de bem applicado amor. No sabbado, porém, com todo aquelle frio, chegou-me pelo correio este bilhetinho.
Voltou-se e, duma concha de madreperola, pousada sobre uma tripode de bronze, tirou um pequenino cartão e leu :
« Senhor, aqui estou no mesmo hotel, na Tijuca ;
espero-o. Não posso comprehender o participio. —
Betsey ».
Poz-se de pé num salto agil.
— Diabo ! e eu que apenas desci para escolher Champagne e Eheno na minha adéga e aqui estou a tagarelar. É que me sinto fatigado, meu velho, fatigadissimo . . . ! E ajuntou, com malicioso sorriso : É ardua, em verdade, a vida de professor.
E lá foi para o quarto, lento e derreado, com o robe de chambre aberto e escorrido como as azas bambas dum escaravelho enorme.
— E o marido, homem?
— Ignoras que estamos no tempo da tosquia ? Está a apurar lan.
— E tu aqui. . .
— Eu . . . Beappareceu em mangas de camisa e, abrindo os braços nos umbraes da porta, perguntou :
Mas, dize : conheces fantasia mais original ? 208 A LÍNGUA PORTUGUESA
Uma mulher que se impressiona por um idioma ?
— Fazes bem em dizer idioma.
— Por que ? Ah ! não, refutou logo depois, sizudo : Estás enganado — é seria.
E, a vestir-se, pôz-se a cantar, com musica improvisada, desenvolvendo a sua bella voz de barytono, os versos do grande e purissimo Ferreira :
Floresça, fale, cante, ouça-se e viva A portuguesa lingua e já onde fôr Contente vá de si soberba e altiva ... UMA AVENTURA
UMA AVENTURA
Thomaz d'Alvite, o guapo Thomaz, com a perna estendida, enrolada em pannos, estava, havia dois dias, naquella tolhida attitude, entre livros e charutos, lendo, fumando, cochilando e amaldiçoando as mulheres. Sim, as mulheres, porque todas as suas desgraças na vida, mais serena e afortunada do que a de Polycrates, vinham do feminino e era a inabalável certeza de que jamais conciliaria essas duas volubilidades — a Mulher e a Ventura, que o mantinha arredio ao casamento, inflexivel no seu programma de continuar a viagem pelo mundo sem a companhia de uma esposa, só com o José e o Camillo, o alegre, o abbacial Camillo, alumno de certa cozinha conventual onde recendia, espalhando por toda a província bahiana a sua appetitosa fama, o genio de um gordo benedictino, grande inventor de molhos.
212 UMA AVENTURA
Thomaz passava os dias no gabinete, que era a peça mais celebrada desse encantador retiro do Cosme Velho, Foi ahi que me recebeu, estirado numa cadeira de complicadas molas, fazendo festas ao seu lindo angorá branco que o cercava, corcoveado e guloso, farejando uma caixa de hostias de baunilha.
— Aqui me tens, meu amigo ; e, com um gesto desolado, mostrou-me a perna espichada. — Mas como foi isso, Thomaz ?
— Como havia de ser ... Encolheu os hombros e, repassando maciamente a mão pelo dorso fel-pudo do bichano, suspirou : A mulher, meu amigo ;
sempre a mulher ! Eu estava justamente a conversar com este felicissimo animal, que não conhece as terríveis solicitações da carne e por isso engorda, como vês. Falava das gatas apresentando-lhe os innumeros inconvenientes a que se expõe um gato integro quando chega a lua do amor, e elle concorda absolutamente commigo — acha que a tranquilli-dade é tudo e não lastima o prejuízo mesquinho porque a compensação é grande.
Mas vamos á verdade : Que ha lá por fora, á grande luz» Que tal é a malabarista que estreou no Casino? Bom corpo» Boa cara? Queres fumar!
Experimenta um destes havanos, são ainda do tempo da paz. E fala-me da vida, conta-me tudo, tira-me desta ansiedade.
— Mas não tens os jornaes, homem ?
— Ora, os jornaes ... Os jornaes são como essas essencias distilladas em laboratórios : nada têm da flor e eu amo a vida verdadeira na agitação, no tumulto. Quero o perfume na propria petala e não ás UMA AVENTURA 213 gotas escorrendo dum vidro suspeito onde só entram composições chimicamente impuras. Pois eu vou lá julgar a vida pelo que dizem os jornaes?
Estou lendo a Hécuba, de Euripedes. Já leste?
Passou-me o volume e eu, sem abri-lo, descançandoo nos joelhos, falei-lhe da hedionda malabarista servi-lhe os mais frescos boatos, annunciei-lhe o reapparecimento da Edméa, que chegara do Prata, mais córada e mais viva e com um grande cão vermelho com açamo e colleira de prata. Disse-lhe o que sabia sobre o frustrado duello do Menezes com o Pamphilo, fiz, emfim, o retrospecto elegante daquelles dois dias e o pobre Thomaz ouvia com ânsia, mordicando o charuto, como se eu lhe falasse de coisas muito graves, das quaes dependessem a honra e a vida do paiz. Quando terminei elle suspirou desesperado, eriçando os cabellos com os longos dedos hirtos :
— E eu aqui! aqui inerte entre velhos quadres e velhos livros, tresandando a panacéas e ouvindo a voz da minha incomparavel vizinha, que anda agora em delírio romantico, ganindo lamentosa-mente a Adelaide. Abriu muito os olhos e affirmou, voltando-se para um canto, mostrando-me uma linda mesa de laça : Olha, tenho ali um revolver — se isto durar mais seis dias, suicido-me.
— Mas afinal, como foi ! Fugias á furia de algum Othelo ? Poste surprendido . . . ?
Qual ! a aventura — se o caso é digno de tal nome—é simplesmente cômica. (Eu tenho um breve contra as tragedias, preferia não tê-lo, porque gosto as emoções violentas, chego a procurá-las, mas fogem-me). Eis o caso, julga-o. 214 UMA AVENTURA
Na manhan de sabbado, que foi admiravel, lembraste ! tinha eu um almoço no Metrppole com o dinamarques, para tratarmos daquelle negocio dos quadros. Saiu ao jardim para colher uma rosa, emquanto esperava o bonde, mas não sei que me deu, foi talvez o sol, o esplendido sol que brilhava e aquecia maciamente, o culpado de tudo. O caso foi que me senti impellido para a rua com um desejo, novo nos meus hábitos preguiçosos, de descer a pé, vagarosamente, olhando os jardins ainda frescos, as casas mal abertas, surprendendo as damas do meu bairro no gracioso desalinho matinal e as vivas crianças rindo com as cabecinhas loiras aniehadas nas rendas das capelinas.
(Esse amor ás crianças preoecupa-me seriamente — é a voz imperativa da natureza, é a impulsão do instineto e eu ando a fugir ás companhias femininas com receio dalgum disparate). Mas vamos ao caso. Parti a pé, num lento e curioso andar, bis-bilhotando : aqui uma varanda onde canarios cantavam, ali uma sala entrevista em penumbra, além outra de cortinas cruzadas ; adiante o fundo dum quintal — o gallinheiro, o tanque, criados, animaes ... De mulheres nada : ou dormiam ainda ou já se preparavam para a illusão, compondo a belleza e reparando a velhice.
Ia eu assim nessa espionagem malévola quando vi escriptos na casa do Andrade, conheces ? Aquella de tijolos vermelhos, no fundo de um jardim sombrio que tem o ar recolhido e discreto dum parque fidalgo, onde ha uma figura do inverno, de mármore ennegrecido, com grandes barbas e cabellos derramados sobre um capote que a envolve toda. UMA AVENTURA 215 Gosto daquella residencia — tem aspecto e é silenciosa como me convém : longe da rua e com aquellas lindas arvores que lhe dão tanta sombra e a enchem de um aroma silvestre que dá a illusão de florestas em torno. E o interior . . . um encanto! tectos apainelados, frescos do Bernardelli, do Brocos, uma decoração soberba do Zepherino. Tive curiosidade de rever aquelle recinto onde tanto gosei no tempo do commendador, principalmente quando elle lá não estava.
Tinha ainda uma hora, podia passá-la com as minhas reminiscencias. Eetrocedi e fui á venda pedir as chaves.
Deu-m'as o taverneiro, eram oito — uma immensa e pesada e as restantes pequena nas, fendidas, chaves para o bolso do collete, chaves que pareciam berloques.
Uma dellas—qual seria?—trouxera eu muito tempo, dera-m'a, com um beijo, aquella adorável Placidia que lá anda a visitar os lugares santos com o marido e o Mendonça, que se fez palmeiro por amor. A bordo, quando se despediu de mim, galhardamente e sem ciúme, porque o marido e elle são os dois unicos homens que ignoram que eu fui da intimidade da graciosa penitente, sussurrou-me ao ouvido, com vaidade e preoccupação de espirito «Que ia levar a sua cruz ao Calvario»; e foi.
Escreveu-me de Jaffa, ella escreveu-me de Jerusalém, espero carta do commendador, talvez do Santo sepulchro.
Mas vamos ao caso.
Sim, vamos. Com as chaves encaminhei-me Pressadamente para a linda casa. Abri o portão, ravessei o jardim, onde a herva começa a crês- 216 UMA AVENTURA
cer, ameaçando aquelles extraordinarios caladios que eram o maior cuidado de Placidia. Junto ás grandes arvores havia um velludo de limo e tortulhos pullulavam. Lezardos fugiam ariscos, mettendo-se pelos mattos e, ao fundo, no pateo, sob a verdura florida do caramanchão de ipoméas, rolas mariscavam.
Subi á varanda, abri a porta que dá para a saleta de espera e, para arejar a casa, que tresandava á humidade, escancarei todas as janellas.
O sol entrou. Mas que tristeza, meu amigo, quando me puz a olhar aquellas paredes manchadas, com o papel despegado, esvoaçando aos farrapos, o grande lustre sem pingentes, com os globos quebrados e negros de poeira !
Ah ! no tempo delia ! como tudo aquillo brilhava, como cheirava bem aquella sala muito confortável, muito aconchegada, muito macia ao andar com os seus tapetes felpudos, com os seus moveis de estylo, com os seus mármores alvejando nudezas de nymphas, com os quadros que eram como janellas d'ouro abrindo sobre campos, sobre lagos, sobre interiores ou simplesmente com uma cabeça risonha ou severa como a espiar curiosamente a vida.
Eu olhava, parado no meio da sala, quando ouvi passos no corredor. Voltei-me e dei com uma senhora de preto que se encaminhava para mim com certa timidez e desconfiança. « Vem vêr a casa, pensei. Achou o portão aberto, entrou. É natural».
Tirei respeitosamente o chapéu e afastei-me.
Ella parou, visivelmente vexada, a olhar-me.
Apesar do véu, que lhe encobria espessamente o UMA AVENTURA 217 rosto, pude vêr-lhe as feições um pouco «ultrajadas pelo tempo ».
Devia ter sido bella . . . quando eu andava ás voltas com o grego no meu ultimo anno de humanidades. Os olhos grandes, pestanudos, conservavam um resto de brilho, o corpo era ainda airoso, sentia-se, porém, que se aprumava a custo como mantido por um collete inflexivel que, se não era de aço, era ainda mais forte porque era de vaidade. Entreabriram-se-lhe os labios num sorriso, pretexto para mostrar-me os dentes magnificos ... Eu — o maldito habito, que queres ? — olhei-a também e também sorri. Ella, então, adiantou-se e, baixando os olhos, com uma voz tremula de donzella que, pela primeira vez, confessasse o seu amor, falou-me :
— Peço-lhe que me desculpe por me haver feito esperar tanto : não vi bem os numeros das casas e fui parar nas Aguas Ferreas ; voltei a pé.
Fiquei verdadeiramente atordoado, a olhar aquella mulher que eu via pela primeira vez, numa casa vazia e que me falava em tom de amor, toda pudibunda, a torcer a borla do guarda-chuva. Senti um grande calor no rosto e as pernas tremiam-me, tremiam-me como se eu estivesse com sezões. Quiz dizer alguma coisa, desculpar-me : Que ella estava enganada, mas não me sahia uma palavra da boca que se ia reseccando como se a queimasse uma grande febre. Foi ella ainda que falou. « A sua carta chegou-me ás mãos hontem á noite ...»
-Positivamente tratava-se de um caso de amor, mas o que me intrigava era que ella me confundisse com o seu mysterioso amante, que devia parecer-se estranhamente commigo para que o engano du-
218 UMA AVENTURA
rasse tanto tempo numa sala clara, cheia do sol das onze horas. Eu conjecturava quando lhe ouvi, de novo, a voz bem timbrada e afagante:
— O senhor é casado ?
— Não, minha senhora.
Passavam bondes, eu receiava que da rua me vissem com uma mulher naquella casa vazia.
Felizmente lá estavam as arvores, as boas arvores, defendendo-me da curiosidade perversa.
— Sim, porque . . . com franqueza ... eu teria remorso se soubesse que um pai de família deixava de cumprir os seus deveres por minha causa. E não tem ligações ? .
— Vivo só.
— É formado ?
— Sim, senhora.
— Medico ? perguntou, inclinando graciosamente a cabeça, com uma faceirice de passaro.
— Não, minha senhora : Sou formado em direito, mas não exerço.
— Ah ! suspirou, ajuntando : Os medicos sahem sempre á noite e eu . . . sou um pouco ciumenta.
E, expondo o pé bem calçado e fino, poz-se a espetar a biqueira com a ponta do guarda-chuva. De repente, relanceando os olhos pela sala, disse:
— Mas nós não podemos conversar á vontade aqui. Venha á minha casa, moro só, ou, se prefere...
Adiantei-me então e, tremulamente — porque eu estava commovido, eu ! procurei explicar-me :
— Perdoe-me, minha senhora, mas v. ex.a esta enganada, eu não sou quem julga.
Ella franziu o sobr'olho, fitando-me :
UMA AVENTURA 219 —Como ? !
—Entrei nesta casa como entraria em outra qualquer. Com simples intenção de escolher uma residencia.
Depois de um silencio, ella mterrogou-me em voz surda :
—Então não foi o senhor que me escreveu para o Jornal, em resposta a um annuncio, marcando um encontro para hoje, ás onze horas, aqui !
— Não, minha senhora.
Ella encolheu ligeiramente os hombros, mordeu os labios e ficou a bater com o guarda-chuva no soalho que reluzia. Eu esperava uma solução e ella deu-m'a, prompta e decisiva, inclinando-se cerimoniosamente diante de mim com um : « Então queira desculpar-me, cavalheiro». E solemne, muito aprumada, sahiu fazendo resoar a sala deserta com o forte bater dos seus altos tacões.
Acompanhei-a com um olhar até que a vi desapparecer além das arvores, sempre erecta, sem o menor indicio de indignação ou de amúo, com uma sobranceria distincta. Piquei ainda um instante pensando e rindo daquella scena original até que me lembrei do almoço.
Fechei, então, todas as janellas, fechei a porta e descia vagarosamente a escada de pedra, quando avistei um homemzinho bojudo, purpureo, de largo chapéu de Manilha, que vinha esbaforidamente por entre as arvores, seguido dum pequenote em mangas de camisa. Dando por mim, o homemzinho parou junto a um banco e, disfarçadamente, pôz-se a enrugar o suor da fronte, abanando-se com o chapeu pequeno, que era da venda, falou-me em 220 UMA AVENTURA
nome do patrão — « Que eu podia deixar as chaves com aquelle senhor ».
Caminhei para elle com curiosidade e entregueilhe a penca de chaves. Eesmungou um agradecimento e lá se foi muito afogueado, deixando patadas fundas na terra molle. Um suino !
Não me contive comprehendendo que era aquelle mostrengo o autor da carta e, lembrando-me da mulher, ainda airosa, mais airosa na lembrança do que na realidade, tive um movimento de repugnancia .. . por ella e, como esse movimento foi feito justamente quando eu me achava sobre o verde tapete de limo, á sombra de uma das velhas arvores, torci um pé não sei como e aqui me tens. Foi o pequenote que me foi buscar o tilbury que me trouxe á casa. Mandei um recado ao dinamarques e aqui estou, ha dois dias. É comico, pois não é ?
— É novo, Thomaz. E o homem ?
— Sei lá. Agora o mais interessante em tudo isso é que eu não me perdôo o desfecho do caso. Foi indigno de um homem.
— É de uma mulher.
— E se eu annunciasse, que dizes ?
— Para que?
— Para que ? ! Para provar-lhe que não sou quem ella pensa. Não admitto que uma mulher fique a fazer de mim juizo tão humilhante. Mas eu sempre queria que visses o homemzinho da aventura. Ora, quem sabe lá ! É bem possivel que tenha sido mais gentil do que eu fui, com franqueza.
— Realmente, Thomaz . . .
— E o peior é que não penso em outra coisa.
Estou aqui, estou a vê-la muito aprumada, espe-
UMA AVENTURA 221 tando a biqueira da botina com a ponta do guardachuva. Calou-se um instante, depois, como para desculpar-se, disse : Sabes ! o que me desorientou em tudo aquillo foi a falta de mobilia. Uma casa vazia, cheia de pó. Que havia eu de fazer ?
TRECHO DE CARTA
TRECHO DE CARTA
Não ha grande homem para o seu criado particular, e eu accrescento, com segurança : nem para a mulher. A
superioridade dos predestinados é uma pura illusão que se esvai mais depressa do que um leve fumo que o vento esgarça e espalha no ar.
O homem é o mesmo, poeta ou pastrano — o que delle fica, quando a nossa fragilidade cede, é a bruteza animal. O sêr divino que imagináramos rebaixa-se á materialidade vil.
Os próprios deuses olympicos, quando desciam do Ether, trazidos por uma forte necessidade de amor, e buscavam as mulheres da terra, deixavam no Zodiaco a superessencia e, só ardor, e só mallicia, estendiam os braços robustos por entre a folhagem retendo nymphas ou perseguindo lascivamente as moças de Ceres, que ceifavam. 226 TEECHO BE CARTA
Quem os visse não os tomaria pelos numes que accumulavam as nuvens tempestuosas e disparavam os raios fulminantes ou, em plaustros, tirados por fulvos leões, realisavam prodígios com um leve mover do thyrso a que logo respondia o som airoso dos córos sagrados.
Tu estás em crise de «intellectualismo », acredita. Se é verdade que amas, com a alma apenas, a esse lindo Arnaldo, poeta e musico, — que tão bem me pareceu com a sua candida reserva de maneiras e a sua doce voz de um timbre quasi feminino, ainda puro, sem hypocrisia — (creio que foi o teu marido quem o introduziu no nosso mundo, que tanto estraga as almas com suas exigencias de elegância e galanteria) — que tão suavemente diz os seus versos e com tão puro estylo interpreta Chopin e Schumann, deixa-te estar nesse amor contemplativo. Gosa-o de longe, com o espirito apenas.
Faze com elle o que se faz com uma flor rara a que se aspira o aroma, mas sem tocá-la para que se não fane.
Lembras-te que me disseste que um dia bebeste extracto de jasmins ? Foi o perfume que te tentou. Que sentiste ? gosto d'alcool, nada mais.
A minha frenética Heloísa deu-me, ha dias, um grande e forte exemplo, que talvez te aproveite na situação em que estás. íamos as duas pelo jardim — ella á frente, eu mais retardada, lendo uma carta em que o Alfredo se desculpava de não poder vir no proximo sabbado. De repente, uma viva exclamação da pequena tirou-me a attenção da leitura. Heloísa, muito vermelha, com os dedinhos esticados, mostrava-me qualquer coisa que os manchava. TRECHO DE CARTA 227 É uma violeta, disse. Não imaginas como cheirava.
Colhi-a e, pensando que, se a espremesse, faria exhalarse mais intensamente o aroma, esmagaria e - já não cheira. Por que ?»
«Mataste-a, minha filha e a alma, que era o perfume, lá se foi para onde vão as almas. Foi tudo quanto pude dizer á criança ».
O ideal é como o aroma da violeta — para que dure é necessário que a gente deixe a flor intacta e tu minha amiga, queres justamente fazer o que fez Heloisa.
Continua a admirar o teu artista se o queres amar sempre, com esse amor que sublimas porque, no dia em que cederes, todo o sonho se desvanecerá e ficarás apenas com o homem . . . que não differe do teu jardineiro, como Heloisa ficou com os dedinhos maculados pela borra escura do que fora uma violeta.
Uma de minhas amigas de infancia, romantica como tu, senão mais, apaixonou-se também, allucinadamente, por um poeta lyrico, autor de um livro sentimental que muitas lagrimas nos fazia correr dos olhos quando, juntas, o liamos á sombra das velhas mangueiras.
Casada com um official de marinha, dos mais distinctos da nossa armada e que fora verdadeiramente amado pela infeliz, achou-se só quando o mando sahiu para um cruzeiro de mezes, com uma turma de aspirantes, e veiolhe, de novo, a paixão dos versos tristes até que, um dia, — e foi em minha casa (sempre as malfadadas recepções!) que se realisou o sonho daquella cabecinha louca : o caso aproximou-a do poeta. Como já havia o pre-moral— ou immoral — em poucos instantes 228 TRECHO DE CARTA
o grande lyrico avassalou o coração da minha pobre amiga e .. .
A misera — disse-me ella mesma — dias antes da desejada entrevista soffreu horrivelmente com a idéa de parecer indigna aos olhos daquelle homem admiravel, cujo nome todos os jornaes exaltavam em louvores magnificos. Construirá a residência do seu idolo com os próprios versos da «Saudade», a incomparavel Elegia em que vem descripto o celebre retiro : um canto de mysterioso silencio, recatado em densa folhagem florida, com as finas aguas de uma ribeira murmurando em torno e aves pacificas e familiares cantando e tecendo ninhos por entre os ramos das arvores copadas. Via-o na penumbra pensativa do seu gabinete de trabalho, com a mesa, como um altar, carregada de flores, compondo versos eternos com a mesma facilidade natural com que um deus criaria mundos resplandecentes.
Como havia de falar, de corresponder, com a sua linguagem chan e balba, aos soberbos alexandrinos sonoros, mostrar o seu corpo áquelles olhos acostumados a contemplar os astros, beijar aquella boca que dizia tão perfeitas palavras ?
Foi a tremer, como se caminhasse para o supplicio, mais vergonhosa da sua ignorância do que do crime que ia commetter, que se dirigiu para o « silvestre retiro ».
Ah ! o «silvestre retiro . . . !»
Entrou pallida, as mãos frias, tremendo e, quando o grande homem a recebeu com um beijo de satyro, fazendo-a sentar-se na mesma cadeira em que costumava ficar horas e horas compondo estrophes immortaes, ella mal teve tempo de olharas paredes TRECHO DE CARTA 229 nuas os moveis de uma vulgaridade pauperrima, o fino artista, o poeta subtil portou-se com verdadeira brutalidade. Ao deixar aquella casa banal, desarranjada e obscura, onde só vira desmantelo e pó a misera trazia o coração torturado e, por que não dizê-lo ? verdadeiro asco.
Dirás que o poeta era um sensual. Não, filha :
era simplesmente um homem.
Se amas em Arnaldo o homem, procede como entenderes — não me quero dar ares de moralista, porque tenho que tal papel é sempre ridiculo ; mas se amas em Arnaldo o «espiritual», a «alma» como disseste, evita o encontro para que não despertes na realidade mesquinha. Lembra-te do caso de Heloísa.
A materia é, em todos, a mesma.
Vais commetter um duplo crime : o de adulterio e o de iconoclastia — contra a honra e contra o ideal. Evita-os, se tens força.
Ainda outro exemplo : (faço a minha morali-dade á maneira de Montaigne). Em certo cantinho do interior do meu Estado alguém, a quem o caso interessava, annunciou, com alvoroço, que descobrira, no fundo de uma lapa, uma figura de pedra que chorava — e logo se disse que era uma santa. Tão depressa espalhou-se a noticia como se moveu a miseria enferma de todos aquelles recantos sertanejos. Carros com entrevados e cegos, liteiras, redes com febrentos e immensos hydropicos arquejantes cardiacos ansiados, bandos de leprosos, caravanas hediondas de tysicos e pelas estradas e caminhos de Valle e monte, dia e noite, era um tumultuar de gente como nas retiradas tristes dos tempos de secca.
230 TRECHO DE CARTA
Em torno da lapa arranchava-se o povaréu gemente e todos, correndo á imagem, ajoelhados as mãos estendidas, recebiam uma gota de lagrima com que reaccendiam os olhos, saravam as ulceras destravavam as paralysias, apagavam as febres reabriam a fala e os milagres eram apregoados ao som de cânticos e tantas e tão generosas foram as esmolas que, em dois annos, houve dinheiro para levantar-se uma capella.
Certa noite, porém, um homem que viera de longe, com grande angustia, sem paciência para esperar a manhan, foi direito á lapa implorando, baixinho, a misericordia da santa.
O povoado dormia sob o céu estrellado, fogos alumiavam lividamente as barracas.
Entrando no santuário agreste, como só no fundo, junto do altar, resplandeciam lâmpadas e cirios, o penitente, protegido pela sombra, ajoelhou-se e rezava quando viu um homem apparecer por entre as pedras da abobada, retirar a cabeça da imagem para ajustar-lhe um tubo á nuca e logo a água entrou a escorrer em fios dos grandes olhos da figura.
O penitente, que surpreendera a fraude infame, em vez de calar-se, sahiu a contar o que vira e, na luz primeira da manhan, seguiram todos, em amontoada balburdia, para a furna, examinaram a imagem para cuja cabeça esfiava um filete d'agua canalisada e logo rompeu o tumulto, aos brados de ameaça contra o mystificador.
Mas um grande velho tremulo, com as barbas esvoaçando ao vento, levantou-se no carro em que jazia e, d'olhos erguidos, agitando os magros e compridos braços, falou: TRECHO BE CARTA 231 « Por que havia esse homem de ir á lapa em hora impropria? Nós todos que aqui estamos, uns já curados, outros melhorando, sem falar dos sãos que voltaram ás suas terras, devemos o beneficio á santa da pedra. Uns, que não andavam, já vão sós por seus pés ; outros que não falavam louvam a bemdita imagem ; eu mesmo começava a rever o céu e a terra e, ai! de mim, reentro na escuridão, perdida a esperança de olhar o meu campo e os ne-tinhos que por elle correm e que eu não conheço.
Maldito seja o que viu e falou ! Maldito seja o perverso !
Não era a santa nem eram as suas lagrimas que nos curavam, era então a mesma fé que elle matou. Maldito seja o que viu e falou !»
E todos que ouviram as palavras lamentosas do velho levantaram vozes de maldição. E queres saber sobre quem recahiu a furia dos infelizes ? sobre o denunciante que matara a illusão.
Cuidado com o teu amor ! Que elle não seja como o penitente. São te aproximes do sonho — a realidade sempre desillude. As lagrimas da santa curavam como impressionam os versos do teu Arnaldo não chegues perto, porém — darás com a desilusão, Não queiras perder a fé que, no teu caso, é o ideal. E
adeus.
Não te recommendo que destruas esta carta pois que é de teu interesse que della não fique uma virgula. 232 TRECHO DE CARTA
O final da curiosa carta perdeu-se ... o mesmo destino tiveram, com certeza, os conselhos da marona (o estylo é . . . a mulher) que tão adocicada e perfumadamente a compoz.
EPITHALAMIO
EPITHALAMIO
Abriu os olhos e logo todo o seu dia da vespera, atordoado e novo, encheu-lhe o cerebro como uma grande e forte levada a que se houvesse corrido a comporta e se arrojasse violentamente, espraiando-se desimpedida e solta. Devassou a camara larga e rica, com um mobiliario fino que rebrilhava aos toques do sol, em filetes e em nimbos, faiscando nos espelhos, dourando os rebordos das grandes peças de imbuia que ainda cheiravam a colla e a vernizes.
O soalho era todo um tapete com grandes flores abertas e retorcidas ramas graciosas. A um canto, um terno de damasco côr de morango : o divan, pequenino e baixo como um throno nupcial e duas poltronas largas, amplas, fofas, onde o corpo afundava em um ninho agasalhado e macio.
As cortinas de rendas afiavam de leve como em 236 EPITHALAMIO
respiração e, por todos os cantos, appareciam flores e fitas em laços. Um grande ramo de cravos brancos com canutilhos trêmulos recendia mira vaso de Sèvres ; outros jaziam abandonados ao mármore raiado do lavatorio, na almofada do psyché, fanados, morrendo naquelle ambiente morno.
O cortinado, que encerrava o leito, estava todo entrelaçado de fitas e de torsaes de flores de laranjeira. O rumor da rua chegava surdamente, abafado, como se toda a vida corresse vagarosa, silenciosa, para não interromper aquelle primeiro somno nupcial.
Elle pensava. A seu lado, no mesmo leito forrado de seda, um corpo jazia encolhido e immovel. Voltou-se e o seu olhar deteve-se naquelle vulto de mulher, cujos cabellos douravam a almofada — fartos, dum brilho quente, tão finos que o seu hálito arripiava-os. Olhando, via o relevar e o abaixar macio daquelle corpo que respirava dormindo.
Era ella, a desejada Eulina, a sua sonhada noiva.
Ella ali estava, aquella que elle tantas vezes desejara nas suas noites solitárias, evocando-lhe o perfil, toda a sua graça viva de virgem quando, recolhendo á casa vagarosamente, ainda a ouvir, como um echo, o leve murmúrio das suas mimosas recriminações ciumentas, sentindo ainda o aroma que lhe transmittira no apertado adeus a sua pequenina mão, com uma flor que ella tirara do collo para offerecer-lhe.
Deitado, insomne, com que ânsia contava elle os dias que o separavam daquelle divino momento em que, sós, elle e ella, na casa que ia sendo vagarosamente, caprichosamente preparada, longe de EPITHALAMIO 237 todo o bulicio, num recanto novo de bairro, quasi isolada como para maior segredo e liberdade, pudesse sentir o sabor daquella boca vermelha. Tinha-a ali, sua, toda sua e para o sempre !
Afinal, toda aquella ânsia desfizera-se na desillusão.
Que era o sonho ? uma mulher. Todos os seus pensamentos, todos os seus extases, todo o seu longo e ardente desejar ali estavam naquelle desengano material e commum.
Voltou rapidamente a cabeça e ficou um instante a olhar o corpo encolhido e immovel. Que havia nelle de superior aos outros corpos, tantos ! cujo calor, cujo aroma elle havia sentido e aborrecido com tedio ? Eram as mesmas as curvas, era a mesma a alvura da carne, era o mesmo o brilho fulvo dos cabellos, era o mesmo o lento alongar de membros, era o mesmo o estremecer das carnes, o mesmo o negar, o mesmo o ceder. Vêr uma era vêr todas.
O que nellas differia era apenas a exterioridade falsa, a apparencia enganadora, a originalidade da seducção :
nesta o arranco brutal, naquella a languidez, um cerrar d'olhos mimoso, um carminar de faces, um sorrir meigo e pudico, por fim um abandono passivo de escrava humilde. Em outra sempre um tremer, um esquivar-se, um pedir choroso e risonho ; ainda em outra a inercia da terra que se deixa lavrar insensivelmente ; na virgem o medo, o terror innocente do desconhecido . . . Que mais que aquillo, aquillo só, falsas expressões externas duma mesma banalidade ephemera.
O que torna a vida aprazível é justamente a variedade que dá a illusâo do novo e como poderia 238 EPITHALAMIO
elle viver eternamente jungido áquella mulher já lhe parecia um encargo, um tropeço na vida que elle sempre levara facil e contente, variada e a rir » Como poderia ella descobrir encantos diarios que lhe dessem o imprevisto indispensável á manutenção do desejo ?
O amor é um puro instincto no bruto ; no homem o amor é uma esthesia. B elle havia de viver até quando ? repetindo aquella mesma scena, como o enfermo que não pode ir além da dieta e, no regimen em que vive, mais deseja os acepipes que cheiram, as finas iguarias dos banquetes, os pratos artisticamente combinados dos jantares finos. Elle então, que fora sempre um caprichoso, que, nos hotéis, exigindo flores á mesa, levava a reler os menus com vagar, num antegosto lento e saboreado e compunha receitas de saladas, buscando ingredientes como um poeta rebuscaria rimas para um poema. Teria elle forças para manter perpetuamente o juramento que lhe fizera, se já se sentia attrahido pelo passado que procurava reivindicá-lo ? Todas as lindas criaturas que apertara nos braços nas suas noites delirantes — umas louras, outras morenas, passando e fugindo como sonhos que se não deixassem sentir muito tempo para não criar o enfaro, revoavam em nevoa nas suas reminiscencias, falavam-lhe com a voz subtil que se ouve a sonhar, desfaziam-se, recompunham-se, riam, torvelinhavam como as visões indecisas e fluidas do somno que se esvahem a um leve voltar no leito e raramente tornam, amedrontadas, talvez.
E era toda a sua vida que se havia de modificar por imposição dos deveres do cavalheirismo e da vida.
EPITHALAMIO 239 Ainda na vespera, áquella hora, já o seu criado lhe havia servido o café e elle, com todas as janellas abertas, recebendo o sol do azul e o ar puro dos carapos que por além se estendiam, verdes e deleitosos, com casebres de palha e gados como uma tella, só, agasalhado no robe de chambre, o charuto a arder desfiando uma fina espiral de fumo,lia os jornaes, informando-se do mundo, conhecendo toda a historia da vespera, desde os combates no Tien-Tsin, á margem do Pei-ho, nas raias do Rio amarello, até o assalto a um poleiro, a dois Zassos do seu jardim, numa chacara cujas arvores lhe entaipavam um trecho de paizagem.
Toda essa liberdade feliz ali estava, sentia-a subjugada por aquelle corpo immovel, era a sua propria alma que jazia captiva, para o sempre, irremissivelmente.
Ella acordara e, d'olhos abertos, grandes e lindos olhos azues, meigos como os d'uma criança, com medo de que elle desse pelo seu despertar, conservava-se quieta, immovel, batendo as palpebras, pensando. Era aquillo ! . . .
Ella não ignorava de todo o mysterio nupcial — a sua propria carne lh'o fora desvendando aos poucos em suaves iniciações de sonho, adivinhara ainda alguma coisa, mas nunca pensara que fosse tão rispida a verdade, tão cruel e brutal como um crime. Era aquillo o amor !
Toda a sua delicada esperança reduzira-se a um desacato, a um como assalto selvagem, no qual os 240 EPITHALAMIO
mesmos beijos eram como punhadas que a maguavam doridamente na boca e nos olhos.
Sentia-se molle, quebrantada como se sahisse d'uma luta violenta. Tremiam-lhe os labios seccos um frio passava-lhe ao longo da espinha arripiadamente, a espaços. Tinha as pernas dormentes, pensava em estendê-las, tirando-as d'aquella posição contrafeita.
Mas elle ali estava, elle, o cruel, o mau, sentia-o perto, espreitando-a e escondia-se quietamente em fingido somno, refugiava-se naquella humildade apavorada.
Com que medo ella o vira caminhar no quarto onde apenes ficara uma lamparina sob a campana azul, vigiando como a lâmpada perenne das capellas!
Com que medo ella o sentira no leito, agasalhandose delicadamente como se lhe não fosse permittido ainda aproximar-se, temendo alguma surpreza : a repulsa, a ameaça, um grito que alarmasse toda a casa.
Com que medo ella ouvira o seu appêllo tremulo e logo sentira a sua mão gelada que a buscava, seguindolhe os contornos do corpo virgem.
Oh ! a vergonha d'aquelle instante, o assombro, a agonia e, ao mesmo tempo, o ferver do desejo naquelle momento tremendo !. . .
Que haveria no amor além d'aquella inenarravel tortura ?
Por que não se deixara ella ficar na pureza com os seus idyllios immaculados e incruentos do sonho? Um instante, como se a alma a houvesse abandonado, ficou como vazia, sem vida espiritual, alheia a tudo, d'olhos muito abertoa, parados, com uma EPITHALAMIO 241 nuvem a empanná-los. Um suspiro que lhe subiu do peito reanimou-a pelo terror — conteve-o. Pouco Pouco, porém, como se um calor a fosse envolvendo o corpo se lhe foi aquecendo, o coração poz-se a bater com força, vagos frêmitos esfusiavam-lhe á flor da carne.
Elle ! sim, elle ali estava e era d'ella, só d'ella, para a eternidade ! Outra não o teria, jamais ! E, como o pensamento febril criasse instantameos delirios, mergulhou ansiosamente o olhar na moci-dade d'aquelle homem que lhe pertencia e ficou como a debater-se em sombras, querendo descobrir as outras, as que elle amara, as que elle beijara, as que elle maguara com aquella irrefreável violência, subjugando, martyrisando e ameigando. Teria elle jurado a alguma outra o que lhe havia jurado a ella ? não !
Uma suave sensação de afago passou-lhe pelas faces finas, aflorou-lhe a nuca e ella lembrou-se do contacto do rosto amado e por todo o seu corpo foi então uma deliciosa caricia, um como bater de sol. Abriram-se-lhe os labios humidos, os olhos pararam extasiados e, esquecida do soffrimento, ia-se insen-sivelmente, irresistivelmente entregando ao sonho.
Devagar, como uma cobra que se desentorpece, desenroscando-se ao sol, foi esticando as pernas, repuxou a colcha e logo sentiu que elle se movia também, vagaroso.
Estremeceu sorrindo e sorria quando ouviu a voz que a chamava com doçura, interrogando-a sobre a noite.
Conservou-se calada, sem querer render-se ao carmho voluptuoso que a attrahia, mas á insistancia 242 EPITHALAMIO
da voz, teve de responder: Que dormira bem. E
elle? Não teve resposta, mas sentiu o braço que se lhe insinuava sob o corpo, colhendo-o, buscando-o.
Voltou-se languida, olharam-se e ella viu-lhe os olhos amortecidos e elle viu-lhe os olhos envergonhados.
Ao vê-lo sahir, animou-se a deixar o leito, sacudindo as cobertas, linhos alvos e seda rosea e, afundando os pés mis na felpa espessa do pellego, ficou a mirar-se ao espelho, toda branca na sua camisola de noiva, os cabellos rebrilhando ao sol que entrava pelos vidros acanellados de uma janella.
As suas sandálias ali estavam, juntas como dois vehiculos mimosos que a deviam conduzir. No respaldo de uma cadeira antiga, incrustada a marfim, dobrava-se o penteador de surah.
Hesitava, braços cruzados, encolhida como se estivesse á beira d'uma agua muito fria, temendo affrontá-la, buscando coragem para o mergulho.
Eesolveu-se, por fim, e, ligeira, numa corridinha infantil, foi dar volta á chave, isolando-se. Elle lá estava, no banho.
Só, então, certa de que ninguém a veria, adiantou-se airosa e, pondo-se diante do espelho, que a reflectia da cabeça aos pés, procurou vêr se no rosto alguma coisa annunciava a sua transfiguração.
A boca parecia mais vermelha, talvez da pressão dos beijos ; os olhos pareciam maiores, talvez do espanto ; o collo parecia mais alto, mais cheio; talvez da angustia. E lá fora esperavam-na com maliciosa curiosidade, commentavam, com certeza, a sua de-
EPITHÁLAMIO 243 mora. Que horas seriam ? A pendula de bronze lá estava sobre o pequenino chiffunier de páu rosa.
Dez horas.
Juntou as mãos num espanto :
—Deus do céu ! Tão tarde ! Estavam todos de pé . . .
Como havia de ser ? ! Picou a pensar, sorrindo e todos os seus dentinhos, em claros renques, brilharam no espelho.
Como havia de ser 1 Sentiu um arripio e, acolhendo-se junto ao leito, no pellego, ficou a imaginar os disfarces de que se serviria para mentir á verdade, para illudir a curiosidade que a esperava. Deu d'hombros com indifferença... Não era a primeira ! e, calçando as sandalias, sentiu a maciez e o aconchego do almofadado e, já esquecida de tudo, viveu um momento para aquelle goso, arregaçando, com faceirice, a camisola para admirar os pézinhos brancos naquelle estojo de seda e ouro.
Sahiu, então, travessamente pela camara a olhar, a examinar os objectos, a admirar aquelles arranjos que ella mesma dirigira, revendo tudo, com o pensamento nelle.
Estaria elle satisfeito ? elle, tão exigente, que vivia a falar sempre em Arte com um conhecimento raro.
Estaria satisfeito? Lembrou-se, então, dos quadros, dos bronzes, dos mármores, dos estofos, das armas que elle trouxera.
O gabinete era ali ao lado. Lá estava a porta defendida apenas por um reposteiro. Elle deixara as janellas abertas, ella sentia o sol a illuminar todo aquelle admirável interior. Abandonou as sandalias, pés nús, timida, caminhou vagarosamente com o coração sobresaltado. Colhendo o reposteiro, 244 EPITHALAMIO
afastou-o e poz-se a olhar, deslumbrada e orgulhosa.
O sol enchia o aposento de uma luz geral e alegre que fazia realçar todo aquelle conjunto rebuscado de damascos e metaes, marmores e madeiras todas escuras e severas, o ouro das molduras e os livros muito ordenados, todos com as lombadas vermelhas, com ferros simples, nas altas estantes negras.
A mesa solida sobre pés retorcidos, com pregaria e entalhes, as cadeiras de couro taxeado, o es-paldar aprumado e alto, obrigando a attitudes graves, um grande sofá, veneravel reliquia tradicional dos seus que elle aceitara do sogro com muitos louvores ao trabalho e ao gosto respeitoso da familia, que vinha trazendo do passado, atravéz das gerações, aquelle movei reforçado e solemne.
Ali, em pequena, ella brincara com as amigas :
baptisados de bonecas, comédias infantis da vida que apenas sentia. As suas companheiras, que o destino espalhara, umas conservavam-se ainda solteiras, outras, casadas, já tinham filhos. Umas viviam longe, em fazendas ; Emilia na Europa, Cândida . .. nem lhe falavam d'ella. Vagamente lhe haviam chegado os rumores d'um escândalo : que deixara o marido, que andava perdida. Lá estava o velho amigo que as acolhera crianças, lá estava como remoçado na companhia d'aquelles alegres quadros, d'aquellas luzentes armas que fulguravam em panoplia na parede, d'aquelles bronzes, d'aquelles marmores.
De repente, num angulo, uma maneha muito clara chamou-lhe a attenção : apertou os olhos, e EPITHALAMIO 245 para vêr melhor, adiantou-se, inclinou o busto, atreveu um passo no gabinete, por fim, resolutamente, atravessou-o em pontas de pés e lá foi vêr de perto e pozse a rir ao dar com um menino, um rechonchudo menino nu, os cabellinhos encaracolados, rindo, rindo contente, com um ninho nas mãozinhas gordas como a mostrá-lo e ella, diante d'aqnelle riso da pedra, esqueceu tudo e enlevada, enternecida, ficou sorrindo, não da graça ingênua da figura, mas da belleza, da innocencia, da travessnra da criança, que parecia vir de um sonho, accentuan-do-se pouco a pouco linda, meiga e viva como se viva fosse.
Em torno, o sol da manhan rebrilhava e aquecia e ella sorria ao marmore da sombra. VIUVAS VIUVAS
—Sinto que elle ainda não se foi de todo, Herminia: a morte não é uma destruição, é um lento acabar, um lento sumir. Vai-se o cadaver, mas... O corpo que morre é como um frasco de fina essência que se quebra deixando a casa, por muito, impregnada de aroma, até que o tempo o vai desvanecendo, e fica somente a saudade, que é a memoria do coração.
Á hora em que elle costumava chegar, encaminho-me instinctivamente para o gabinete, colo o rosto á persiana e fico á espera.
Se ouço passos, volto-me, com o coração transido, certa de que o vou vêr sorrindo, a estender-me os braços, como dantes. Nada, illusão. Torno ao meu posto e toda a melancolia do crepúsculo condensa-se em minh'alma, enche-me de tristeza e fico a chorar, a chorar chamando-o baixinho, com uma voz soluçante e cheia de beijos. 250 VIUVAS
Se abro um movel, sempre encontro alguma coisa que m'o recorda : uma carta, uma nota a lapis, ás vezes cigarros. Em um dos seus casacos achei um lenço ainda perfumado. Emquanto durou o perfume vivi com elle. Ás vezes acordo, a horas altas, sentindo-me afagada. Sento-me no leito, fria toda gelada, a tremer, e passo o resto da noite em claro a pensar nelle, com saudade e com medo.
Os moveis estalam, o soalho estremece, os crystaes resoam, nevoas empannam os espelhos ;
por vezes a chamma da lamparina inclina-se como a um sopro . . . É elle que anda em torno de mim, a espreitar-me ciumento.
Uma noite alarmei a casa com os meus gritos, porque o vi distinctamente : de pé, no meio do quarto, pallido, immovel, os olhos fitos em mim. Eu quizera esquecê-lo, mas não é possivel, porque elle faz-se lembrar a toda a hora. O corpo, esse nós sabemos que jaz sob a terra, mas a alma . . . ?
— E tu acreditas na alma !
— Sim, acredito.
— És muito nova. Tu o que sentes é a falta do companheiro de dois annos felizes. Ainda não te habituaste á viuvez.
Dá-se comtigo um caso identico ao que sempre refere o coronel Juvencio. Sabes que elle foi gravemente ferido na revolta : esteve entre a vida e a morte e, para salvá-lo, foi necessario que um cirurgião lhe amputasse a perna direita. Deixando o leito — disse-m'o elle mesmo — sentia dores na perna que perdera: eram alfinetadas, dormencias e, até hoje, volta e meia, carrega o sobr'olho, trinca o beiço, mastiga uma praga, porque um terrivel VIUVAS 251 fio que elle tinha no pé direito — que Deus haja ! __
lá lhe finca uma ferroada que o faz ir ás nuvens. Tu estás assim.
Ha uma grande e inquebrantavel solidariedade entre os membros do corpo e a saudade physica, feita de sensações, é, sem duvida, muito mais violenta do que a saudade sentimental que a Poesia apregoa dando-lhe por sede o coração.
Tu o que sentes é a falta do marido que te acariciava.
Não creias em almas. Se me disseres que a alma reside nos lábios e manifesta-se em beijos, bandeio-me com o espiritualismo ; de outro modo, não : fico a intransigente, a inconversivel materialista que sou.
— Não acreditas, então, no amor desinteressado, feito apenas de sentimento ?
— Não. Todo amor é ínteresseiro : o homem ama a terra pelo que ella lhe dá e não pelo que ella é. É o seu trabalho, o seu esforço, o lucro que elle ama. Cada flor que nasce lembra-lhe um minuto de fadiga — é o seu amor que desabotôa, são as suas penas que frutificam. O
amor de mãi que é, na apparencia, o mais desinteressado, é um puro egoísmo, inconsciente, dirão, não sei—
egoismo sempre. Não é o filho, o adventicio, que ella acaricia e defende, é a sua própria natureza, a dilatação do seu «eu » que ella garante. O ramo novo que rebenta na arvore é arvore. O filho é a recordação viva de um goso.
— E de um soffrimento.
Não se ama por amor, ama-se por fatalidade. O
amor é uma funcção physiologica que o espirito reveste de um sentimentalismo puramente decora-
252 VIUVAS
tivo. Os nossos avós, nas cavernas, gosavam e devoravam. Nos inventamos o amor e o comer. No fundo somos ainda os mesmos troglodytas brutaes : sem o flirt, sem os menus delicados, encon. tramos o mesmo espasmo e a mesma posta de carne sangrenta.
— Tens idéas extravagantes.
— Verdadeiras, minha amiga. Vejo claro e falo sem rebuço. Em sociedade, para não ir de encontro ao convencíonalismo, componho conceitos subtis cheios de moralidade ; mas, aqui, entre nós, digo o que penso e como penso.
A mim succedeu o mesmo — conheço bem esse estado em que te achas e soffri muito, garanto-te. O que dízes da morte é verdadeiro, Ha effectivãmente duas mortes — a primeira a do corpo, que é rápida ; a segunda a da alma, — quero dizer : a do habito, que é lenta : é como o findar de um dia.
Vai-se o sol, desce no horizonte, mas o céu fica, ainda algum tempo, ilSuminado, fulgem nuvens de fogo, pouco a pouco, porém, o violete vai invadindo o oceaso e esbate-se em côr de pérola, esmaece e a sombra desenrola-se por fim.
Tu estás no peior momento que ó o. do começo do crepúsculo. É o instante dorido das evocações quando o coração recapitula o dia que passou.
É triste, não nego, mas, que seria de nós se as horas não fossem aladas ? Virá a noite que tudo escurece e dormirás, não sem sonhos, mas com a con-soladora certeza de rever o sol da nova madrugada.
És viuva d'hontem. Eu já duas vezes fui ao cemiterio levar coroas de saudades e accender cirios a mortos.
Começa agora a tua noite, eu já sinto VIUVAS 253 frescor, já entrevejo a claridade da manhan que espero.
As minhas cores são menos carregadas do aue as tuas, os meus olhos já se não abrumam com o véu funéreo e preparo-me para gosar o sol, o alegre sol da vida.
Ha muitas que não esperam o luzir da manhan. Para não tremerem de medo, isoladas na triste noite da viuvez, buscam uma lâmpada discreta qué, em casos taes, é o amante. Não tomes as minhas palavras como conselho, acho, porém, que te não deves entregar á melancolia, que é devastadora.
És nova e formosa, sem filhos e com fortuna ; que mais queres ! Cumpre a tua pena suavemente, mostra-te á sociedade viuva, bem enlutada, bem commovida, mas vai tratando de escolher o partido que te convém. Não creias que se possa viver de saudade. As viuvas da india conservam-se fieis porque se suicidam, só por isso.
Ha alguma coisa mais forte do que o sentimento, acredita : é a vida que nos corre nas veias, que vibra em todos os nossos nervos, que freme em relâmpagos sensuaes á flor da carne. Eeagir ! lutar ? tolice. O destino material da Espécie é um único, não queiramos corrigir a obra divina. Se nos perdemos pelo amor a culpa é d'Aquelle que nos fez amorosas.
Estás no periodo triste, atravessa-o e, ao longo da travessia, vai recordando o que gosaste durante a vida do Alberto. E não repitas mais as palavras imprudentes que sahem da tua superexcitação. A mim podes dize-las, porque eu as tomo como as devo tomar ; outras, porém, que te invejam , rirão, 254 VIUVAS
mais tarde, da tua leviandade, accusando-te de hypocrisia.
Ha mulheres que têm prazer em ser mártyres Ha muitas, algumas conheço eu : são como freiras que fazem voto de castidade, mas, se queres que te diga : não troco as minhas noites pelas de taes «virtudes » e affirmo-te que, por mais que faça, eu que passo por estroina e não sei que mais, nunca farei tanto com os amantes que me attribuem como essas solitárias fazem com os seus pensamentos. Ser casta não é fugir ao amor, é saber amar. Vem passar uns dias commigo para conversarmos sobre os nossos maridos . . . que o meu também, refirome ao segundo, que conheceste, era um bello homem, lembras-te ?
E, passando a mão pela cinta de Augusta, Herminia attrahiu-a docemente obrigando-a a sentar-se-lhe ao collo. Ambas suspiraram e, d'olhos perdidos, ficaram um momento caladas, na penumbra carmesi do boudoir silencioso, olhando vagamente, extasiadamente, a rever o passado . . . talvez a forçar as sombras do futuro. SONHOS
SONHOS
Ao entrar, com uma assustada vivacidade, commovida e agitada das emoções daquellas horas tão curtas, sentindo ainda uns arripios de goso phosphorejarem-lhe á flor da pelle, fogosamente passeada por aquelles labios adorados que iam deixando, onde tocavam, um fervor de beijos, beijos que pareciam ter ficado, vivos e quentes, escaldando-lhe a carne, foi logo para os seus aposentos, fechan-do-se, com receio de que a esperta criada appare-cesse e, com a longa pratica que tinha de mulheres, despindo-a, descobrisse nas snas brancas espáduas e no seu collo turgido, onde os pequeninos seios, abotoados em bico roseo, conservavam ainda a resistência virginal, algum vestigio daquelle boca allucinada que andara como a querer arrancar-lhe a vida, sorvendo-a, sugando-a pelos poros.
Mesmo no ajustar do collete, no abotoar do cor-
258 SONHOS
pinho devia haver enganos denunciadores porque elle, a rir, desageitado e tremulo, puzera uma tão estouvada pressa, que tudo devia estar em desordem facil de ser constatada por quem era tão habil e cuidadosa no vestir e ainda a vestira naqueha manhan, observando, com intenção, talvez, todos os geitos, as minimas dobras e arrepanhos da cambraia e da seda para certificar-se, ao despi-la, da sua virtude ou sorrir maliciosamente do seu primeiro peccado.
Vendo-se ao espelho alto achõu-se mais bella, com cores mais vivas nas faces, um brilho mais scintillante nos olhos e ficou a rir, recordando peripecias d'aquella manhan tão cheia de surprezas para a sua alma ingênua e de gosos tão novos para a sua carne honesta : assaltos lascivos que a faziam rir, contorcida, rebolcando-se no largo leito, a debater-se numa afflicção deliciosa, fugindo áquellas mãos nervosas e áquelles beijos loucos.
Começou a despir-se ligeira, com a pressa saltitante e trefega d'um passarinho que se espanneja e sacode n'agua, batendo tremulamente as azas, arru-fando as pennas. Em camisa, espesinhando a roupa, correu para a cama, atirou-se de costas e, estirada, as pernas cruzadas, ainda com as botinas que lhe comprimiam a carne roliça que transparecia nas meias abertas, os braços em curva na almofada, como um reverbéro á cabeça muito loura, ficou a scismar, arrependida d'aquelle crime ingrato e ansiosa pelo dia do futuro encontro e dos novos delirios.
Mas as horas corriam — resolveu, então, chamar a criada. Abriu a porta, tocou a campainha e, SONHOS 259 quando Dolores appareceu, toda assustada, estranhando que ella se houvesse despido só, pretextou uma vertigem —« subha as escadas a correr, com a vista turva, tonta ; nem mesmo se lembrara de a chamar, fora arrancando tudo ». E
mostrou a roupa em amontoado abandono pelo chão, nos tapetes, atirada a esmo na ansia do soffrimento. Descançára, estava melhor ; ficára-lhe apenas um atordoamento.
A criada, sem dizer palavra, foi recolhendo as peças do vestuário e ella, da cama, olhava, ainda receiosa de que alguma coisa d'elle houvesse ficado para denunciá-la — o seu perfume, talvez, que ella bem o sentia nas mãos, na boca, como um sabor, e subindo-lhe de todo o corpo, em effluvios.
Que differença entre elle e o marido ! Um claro, esbelto, com tão lindos olhos, dum verde transparente, os cabellos muito louros, as mãos brancas e finas ; o outro pesado e gordo, com banhas flacidas, moreno, a pelle aspera e viscosa, uma voz molle passando-lhe atravéz das barbas negras como uma agua grossa e lodosa que rola vergando as hervas dum pantanal, sempre com o sarrido d'asthma e a tosse.
Quando desceu para jantar, depois duma ablução ligeira, perfumada a feno, de branco, os lindoa cabellos em bandos, á antiga, com uma penca de angelicas no seio, o marido, que discutia finanças, no terraço, entre dois amigos bojudos, recebendo-a risonho, com ar de triumpho, mirando-a toda, a gosá-la, e ella com a sua compostura recolhida e modesta de educanda, inclinou-se, offerecendo-lhe a fronte por onde a grossa barba roçou, áspera e dura.
260 SONHOS
Os amigos, que eram da intimidade, gabaram-lhe o esplendor de saude affirmando que aquelles ares puros da serra e aquellas aguas que brotavam das pedras, entre folhas, pelos verdes cantos dos bosques haviam de lhe ser mais úteis do que todas as drogas que ella andara a ingerir na cidade. Aquiílo sim é que era viver. Quando tivera ella lá em baixo aquella encantadora gurpreza de receber visitas de borboletas na sua propria camara?
disso só alli na serra. Ella sorria.
Á mesa a conversa encaminhou-se para as festas que se preparavam: o cottillon do Club, a garden-party do ministro russo e o baile na legação japonesa, do qual já se diziam maravilhas — que a senhora do ministro, a elegante madame Nádura traria os trajos tradiccionaes do seu paiz e um dos amigos rosnou: que ouvira falar em certos vinhos preciosos, duma ilha celebre do grande imperio, que alcançavam grandes preços, mesmo em Tokio.
A palestra aquecia-se. Romperam as indiscrições dos fins de jantar : casos da vida elegante, cochichos maliciosos. Um dos amigos, medico, a proposito da influencia irresistível que certo secretario de legação, homem feio e grosseiro, enercia sobre algumas senhoras da alta roda, falou do dominio imperativo da vontade de uns tantos privilegiados sobre criaturas frágeis.
«Ha homens tão poderosos que, com um simples olhar, seriam capazes de arrastar ao crime a propria Penelope».
O commendador protestou escandalisado, o medico, então, para o convencer, referiu um caso de sua clinica : SONHOS 261 Certa dama que, depois de haver sido, por elle, tomada pelo hypnotismo, ficara de tal modo escada á sua vontade, que elle, ao sahir, sempre citava com medo de que ella o fosse acompanhado».
Riram Foi então um longo citar de casos e de nomes:
Madamme F. ; a menina L. ; a mulher de fulano ; a flha de sicrano; esta que, durante as crises, cantava com uma voz admirável e recitava Musset;
Ella que ficava dias a dormir, em immobilidade de morte ; outra que prophetisava; uma, somnambula, que errava pela casa, á noite, sem esbarrar em um movel, d'olhos abertos, mas cegos. Foi então que o commendador, um tanto excitado, lançando um olhar malicioso á mulher, disse :
— Eu também posso contar alguma coisa ; e, com intenção, explicou: Conheço certa senhora que ao sonhar, é a coisa mais engraçada deste mundo.
— Quem é? perguntaram os dois. O
commendador fitou a mulher que descascava tranqüilamente uma pêra.
— Ora! Quem ha de ser!?
Todos voltaram-se para Dulce.
— Fala-se de mim?
— De quem ha de ser?
— Não sei porque . . . tornou com risonha indifferença.
— Ah! não sabes... ? Sei eu. E fitando-a, com os cotovellos na mesa, o calice do Porto entre os dedos: E se eu disser ?! não te zangas ?
— Zangar-me ? Eu ... ! encolheu os hombros.
Não me zango assim.
262 SONHOS
— Pois então lá vai. Virou o vinho dum trago e dirigiu-se aos amigos : sejam testemunhas de que eu vou falar com o consentimento delia . . . sem isso eu não seria capaz de quebrar o sello do segredo.
— Eu não tenho segredos.
— Ah! para mim não os tem, nem os teria, mesmo que quizesse, garantiu com um vozeirão e certeza. Pois ahi vai o caso.
Os dois amigos sorriam attentos, no antegosto daquella confidencia. O commendador, voltando-se todo na cadeira, encarou de frente a mulher:
—Então decididamente não danças mais com o Braulio? e desatou a rir com estrondo. Ella olhava-o impassivel. Vamos lá, responde. E não danças mais com o Braulio?
— Porque me faz esta pergunta ?
— Por que ? porque tu mesma juraste á tua amiga Clotilde que nunca mais dançavas com tal sujeito, e olha que o caso é para felicitações.
— Pois não ! concordaram os dois.
— Eu ouvi tudo, minha amiga. E nota que não andei a escutar pelas portas : estava tranquillamente deitado, quasi a dormir, quando começaste a resmungar e depois a tagarellar, que foi um gosto. E
pensas que só sei que o Braulio foi posto á margem por insupportavel ? sei muitas cousas mais, sei toda a tua vida, dia por dia, hora por hora. Ella empallideceu e o marido repetiu : Sei tudo! E, afagando-a, ajuntou : Tenho em ti mesma um espião que me conta tudo. Basta que durmas para que eu saiba o que fizeste durante o dia : onde andaste, com quem conversaste, até as continhas que foste deixando ahi por essas lojas. SONHOS 263 D'olhos muito abertos, livida, Dulce fitava o marido triumphante. Um dos amigos, sentindo o peso do silencio, murmurou:
— É curioso, pois não ... É muito curioso !
— E é isso todas as noites, não falha. Eu já lhe acho graça e estou tão acostumado, que não durmo Sem a habitual exposição que me faz a senhora minha mulher.
— De sorte que, disse o medico, é como se ella lhe fizesse todas as noites a leitura do seu diário.
— Exactamente.
Dulce mantinha-se calada, brincando com um raminho de violetas, sentindo o coração crescer-lhe no peito, tremendo, sem animo de levantar os olhos para o marido, que ria.
Depois do cognac passaram ao terraço que o luar prateava. Emquanto os homens falavam ferindo ligeiramente assumptos vários, ella, debruçada á grade, olhando o jardim, pensava nas palavras terríveis do marido. « Sim, tudo quanto elle dissera era verdade.
Aquillo com o Braulio . . . ella só falara á Clotilde . . .
portanto elle soubera por ella mesma, que lh'o dissera na inconsciencia do somno. Assim, antes de amanhecer, elle ouviria da sua própria boca a narração minuciosa de todos os episódios infames daquelle dia : a sua ida ao cottage, a entrevista com o amante, os beijos que trocaram, tudo quanto, no delirio dum primeiro encontro, haviam praticado. E elle? Oh! conhecia-lhe a furia ciumenta . . . ! Como havia de ser? Como havia ella de dormir a seu lado ? Não! passaria a noite em claro, uma, duas, três, sempre, se preciso fosse; deixar-se-ia morrer esgotada pelas vigilias, prefe-
264 SONHOS
rivel á morte violenta e dolorosa a punhal ou a tiro porque tinha certeza de que elle á mataria ».
Tremia e, apesar do frio da noite, estava ali ao relento tão insensível como aquellas figuras de marmore, nuas, que branqueavam na quietação do luar entre as moutas escuras. Siibito, porém, numa necessidade de ficar só, de pensar, pretextando uma dôrzinha de cabeça, pediu licença e retirou-se. Subiu para os seus aposentos seguida de Dolo-res, deu toda a luz ao gaz, despiu-se e, com um leve penteador de surah, recostou-se derreadamente na espreguiçadeira, com um romance. ? Quando se achou só não poude conter o pranto e, a soluçar, toda fria e arripiada de medo, olhava para o leito alvo como se fosse um altar de immolação.
«Que horror! meu Deus. Que horror! E é verdade que eu falo á noite, já mamai me dizia e Lucia ria de mim.
Elle não mentiu. Em solteira eu contava tudo. E esse homem é capaz de matar-me!» Foi á janella, abriu-a sobre a noite luminosa e quieta vendo, ao longe, como uma paizagem a carvão, o bosque negro sobre o fundo alvacento do luar. « Se fugisse ?! mas como ? para onde ? só se fosse para o cottage, mas era tão longe, ao fim de um caminho tão deserto e áquella hora Bruno estava no Club. Deus do céu ! que ia ser delia, tão só, com aquelle homem que vivia a espreitá-la, que tinha sempre uma observação a fazer, á volta dos bailes, por isto ou por aquillo — uma conversa mais longa, duas valsas com o mesmo cavalheiro... Que ia ser della?»
Um cheiro suave de jasmins embalsamava o ar SONHOS 265 de longe, em suave surdina, vinham sons de instrumentos, tão leves como aquelle aroma disperso na noite — era a orchestra do Club.
«O que é preciso ó que eu não durma. Passarei a noite aqui na cadeira, lendo e amanhan . . . Amanhan desço com elle, a pretexto de vêr mamai e... abro-me com ella, digo-lhe tudo, peço-lhe que me salve. Mas que loucura ! Onde tinha eu a cabeça ? E é só á noite que sonho e falo. É só á noite . . . Por que ? de dia, não.»
Levantou os olhos para o céu ; uma coruja atravessou os ares chirriando, o coração bateu-lhe com mais força e celeridade em presagio de morte.
Bomperam vozes no jardim:
«Até amanhan. Adeus! Eespeitos ! . . .» Eram os amigos que partiam. Sentiu todo o sangue fugir-lhe, as pernas dobravam-se-lhe, de novo lhe subiram lagrimas aos olhos. Agarrou a cabeça a mãos ambas apertando-a com frenesi e, por entre os dentes cerrados, numa voz surda, poz-se a dizer:
«Mas, meu Deus ! eu estava louca ! eu estava louca».
Conteve-se, de repente, ouvindo o pigarro do marido ;
correu para a cadeira, com o romance e estirou-se a lêr.
Elle entrou vagaroso e vendo-a, muito sisuda, deteve-se á porta, perguntando :
— Estás zangada? Ella teve uma inspiração instantanea e conservou-se immovel, d'olhos no livro, seria. Elle adiantou-se, insistindo : Estás zangada?
— Ah ! não, hei de estar muito satisfeita ... se lhe parece. E encarou-o com severidade : Pois o senhor acha decente o que fez ? humilhar-me em 266 SONHOS
presença daquelles homens, como me humilhou»
Amanhan toda a cidade saberá que eu conto em sonhos, tudo quanto faço e que o senhor, curioso de detalhes, querendo informar-se da minha vida porque, certamente, desconfia de mim, vela até tarde, como um tyranno, para ouvir o que digo ... e todos rirão de nós, mais do senhor que de mim.
Algum delles já lhe fez confidencias escancarando a sua alvoca para a devassa ridícula a que o senhor sujeitou a nossa intimidade? Não ! é que preza, talvez, mais a sua casa e respeita, como deve, a sua família.
Elle passeiava cabisbaixo, alisando a barba negra e dura.
— Eu sei que falo quando durmo, sei: já em solteira era assim, muitas vezes mamai levantava-se para acordar-me: sonhava com as minhas leituras, com as minhas palestras, com os meus brinquedos e nunca mamai andou a repetir as palavras que eu pronunciava na irresponsabilidade do somno. O
senhor não : escolheu-me para assumpto ridiculo da palestra, sujeitou-me ás gargalhadas dos seus amigos e ao riso dos criados. Fez muito bem. Eu, francamente, sempre pensei que o respeito que se deve a uma senhora não consistia apenas em não injuriá-la e em lhe não bater . . . estava enganada. O
homem pode fazê-la córar tanto que o sangue lhe rebente das faces . . .
E desatou a chorar.
Elle ajoelhou-se arrependido, tomou-lhe as mãos e, beijando-as, beijando-lhe os cabellos, poz-se a pedir perdão, confessando que fora uma tolice,«um pouco mais de vinho ...»
SONHOS 267 __ Sim, sim . . . mas, que diabo ! não fora com intencão de offendê-la . . . até lhe pedira licença.
Bem percebera que ella se havia retirado maguada.
Ouizera acompanhá-la, mas . . . com aquelles homens lá em baixo. Eram águas passadas. E
levantou-a, apertando-a nos braços, raspando-lhe o rosto fino e molhado de lágrimas com a barba negra e dura. Deita-te, anda ! e não se fala mais nisso. Foi uma tolice, foi, confesso. Põe-te á vontade e nada de choros. Sentes alguma coisa? dóe-te a cabeça ?
Não . . . melhor. Tu o que estás é nervosa.
—Ah ! não hei de estar . . . Nem eu sei mesmo como não tive aqui um ataque. E, despindo o penteador : Quem é que liga importância a sonhos ?
só um homem como o senhor.
—E quem te disse que eu ligo importância a sonhos? Não ligo tal, falei por falar. Tolices. Mas deita-te. Diminuiu o gaz. Queres que apague?
Fechou-o e, á luz branda e rosea da lamparina, dirigiu-se para a cama onde a mulher já se havia agasalhado, e pensava :
« Que faria elle se a ouvisse ? Não, o melhor mesmo era conservar-se acordada. Dormiria durante o dia ».
Quando o sentiu no leito, ouvindo o sarrido d'asthma, estremeceu. Um brilho fino e acerado do biseau do espelho deu-lhe a fria impressão duma lamina mortal ! Encolheu-se com um grande medo, combatendo o somno. Sentiu que o braço do marido se lhe ia insinuando sob as costas, soergueu-se de leve.
Despertou sacudida e, sentando-se, estremunha-
268 SONHOS
da, deu com o marido a mirá-la e logo, com terror comprehendeu que sonhara e que tudo dissera.
Passando então as mãos pelos olhos, como a limpálos duma visão, exclamou :
— Que horror ! Que horror de sonho ! É isto !
quando estou nervosa. E, voltando-se para elle :
Eu falei ? Que disse eu ?
Elle cocava vagarosamente o peito largo e respondeu :
— Tolices . . . Tolices . . . Mas dorme, descança.
Instantes depois, no silencio, aconselhou : O que tu deves é deixar essas leituras de romances franceses.
E ella, comprehendendo a allusão, acolhendo-se ao seu peito, fazendo-se pequenina junto d'elle murmurou :
— Eu, ás vezes, sonho cada extravagancia . .. E
tu ainda dizes que eu conto a minha vida.
— Pois sim, pois sim . . . Não se fala mais nisso.
E dorme que estás nervosa.
E, meigamente, a offegar com a asthma, poz-se a amimar-lhe a cabecinha loira.
CORAM
CORAM
Digo-te, e com a certeza firme de um convicto, que o homem, rastreando, desde o Paraiso, o coração feminino só tem conseguido rebalsar-se numa cerrada floresta de enganos — a caça vai-lhe fugindo sempre, deixando, para desorientá-lo, um almiscar nas trilhas enviezadas que formam o labyrintho intrincado da dissimulação. Mais depressa o bronco pastor da serra surprende, na poeira rutilante das nebulosas, um novo astro do que o psychologo, de mais aguda sagacidade, penetra a intenção de um olhar ou de um sorriso de mulher. Os gregos, que eram subtis, representavam a Esphinge sob a figura de um monstro hybrido, cujo corpo era o de um leão alado com o busto de uma virgem de seios turgidos, como para significar que só uma cabeça de mulher podia conceber o astucioso enygma cuja interpretação, sendo uma victo-
272 CORAM
ria, foi o inicio do tormento do desventurado Edipo.
O que me contas da tua heroina é um caso banal sem relevo e mais commum que a vaidade.
A minha vida jamais teve enredos complicados porque, desde moço, por egoísmo, fugindo, como sempre fugi, aos lances violentos que perturbam a alma e compromettem o eommodo conforto, mantive-me nos limites estreitos duma existencia pacata, quieta e igual, pautando, com methodo, as minhas despesas e os meus ardores. Nunca fui prodigo nem homem de imaginação : amigos poucos, compromissos, nenhum.
Nunca me surprendi, ao recolher dum passeio, ao voltar duma festa, com uma dessas impressões perturbadoras que descerebrisam, reduzindo o homem mais equilibrado ao passivo joguete dos caprichos duma mulher. Sou um refractario, ou melhor : reajo, ainda que a besta, de que fala De Maistre, sempre que lhe chega o appetite, brame, forçando-me a levá-la ao pasto. Ê natural. O que, porém, ella não consegue é escravisar-me ao seu instincto.
Apesar da minha natureza impassivel, fui o heroe involuntário de uma aventura, junto á qual o teu romance é um episodio frivolo. Foi isso no fim da guerra, ainda o paiz celebrava a sua victoria difficil — era eu bem moço : vinte e quatro para vinte e cinco annos.
Nesse tempo o meu maior prazer, senão o unico, era caçar — sahir na fresca da manhan, com as nevoas ainda soltas, rolando, fluindo ao rés da terra molhada, num rijo cavallo, entre cães, a surprender, na beira das lagoas ou nos mattos, a paca es-
CORAM 273 quiva, o caititu atrevido, a jaguatirica ou correr no campo o veado arisco, mais ligeiro que o vento que assobiava aos meus ouvidos.
Um dos meus tios, caçador celebrado, hospedava-me, todos os annos, durante dois mezes,. na sua fazenda que era como um paraiso com as suas grandes águas, os seus densos bosques onde a caça era tão abundante que o cão menos destro, solto, ao acaso, nas trilhas, logo farejava um rastro e partia acuando o porco ou afuroando o tatu.
Uma delicia !
Caçando nossas terras ricas foi que apanhei a febre que me devia levar pelo mundo, em convalescença longa, desde o tepido clima de Lisboa até ás ríspidas neves de S.
Petersburgo, durante dois annos bem gosados, os unicos em que verdadeiramente vivi.
De volta d'essa viagem, antes de recolher-me á Bemfica, decidi passar um mez no Eio, mas como o verão ia rigoroso e febrento, refugiei-me em um hotel da Tijuca, um pequenino hotel, isolado num valle, entre colunas sempre verdes, dirigido por uma senhora suissa que tinha a religião da montanha e da cythara Ali, installado com uns poucos de livros, resolvi ficar á espera de que a alfândega, sempre morosa, me entregasse os objectos que eu fora arrecadando pelo mundo, para dar á minha agreste residência de lavrador um pouco de conforto e d'arte. No hotel encontrei, entre os poucos hospedes — eramos quinze, ao todo — um casal que logo me impressionou.
Ambos novos — o marido, robusto homem de trinta e dois a trinta e quatro annos, se tanto, alto, 274 CORAM
bem feito, louro e corado como um saxonio, com uma barba fina e doirada, tão fina que toda tremia á aragem, tão d'oiro que rebrilhava ao sol. A mulher — morena, cabellos negros, boca pequena e voluntariosa, tinha pouco mais da altura requerida pelo poeta. Os seus olhos, de negrar scintillante, eram d'uma vivacidade d'aves e um geito leve, moroso e languido de passar maciamente a mão pelos cabellos, dava-lhe uma garridice dengosa que seduzia.
Airosa, o seu andar era todo um meneio e, como se ella mesma achasse encanto e graça na sua pessoa senhoril, sorria sempre, com a boca entreaberta como quem tem ansia d'ar e respira aos haustos, com todo o peito.
Só no terceiro dia da minha residência no hotel foi que, uma tarde, conversando com um suisso, vim a saber que o homem era cego. O meu informante pouco adiantou — disse apenas que o desventurado era rico, formado e que cegara repentinamente, um anno depois do casamento, que não devia datar de muito, a julgar pela viçosa mocidade da senhora.
As nossas relações começaram como começam todas as relações, rapidas e ephemeras, a bordo e nos hoteis — um cumprimento, uma palavra vaga sobre o calor do dia ou sobre a belleza da noite, um pouco de política e d'Arte, depois as confidencias ligeiras, lances inesperados, desses episódios que todos temos e que são como curiosidades, ingênuas relíquias queridas ou bugigangas comicas de aventuras alegres do tempo da mocidade, verdadeiros bibelots da vida.
CORAM 275 Depois de jantar sahiamos para a varanda, alguns alongavam o passeio até um bosque vizinho, onde brotava uma fonte, e era um encanto a volta lenta, com o frio, pelo silencio dos caminhos toldados de folhagens que peneiravam o luar.
A noite reuniamo-nos no salão. O salão ! uma pequenina sala burguesa, com uma mobilia disparatada, da qual sobresahia, como mais antigo e mais commodo, um largo sofá de couro com pregaria. Junto á janella jazia um piano Excelsior, com algumas teclas sem marfim, como dentes cariados.
O cego, taciturno, grande amador de musica, ouvindo-me, uma vez, tomou-me para seu David.
Mal cerrava a tarde, fazia-se conduzir á sala e, afundando em uma das ottomanas, immovel, d'olhos baixos, como se tivesse vergonha de mostrar aquel-las pupillas inúteis, ficava a ouvir-me, enlevado, e, se eu demorava na varanda, em palestra com o suis-so ou com um taciturno americano, que lamentava o abandono d'uma terra tão rica como a nossa, boa para americanos, impacientava-se, reclamava a minha presença e eu deixava-me arrastar e lá ia para o piano, sacrificar Beethoven e Chopin, até á hora do chá.
A senhora, sempre grave, apesar da physionomia risonha, citava autores, lembrava composições elegíacas e, uma vez, muito timida, sentou-se commigo ao piano para repassar uma peça a quatro mãos, do seu repertorio triste.
Durante o dia raros, rarissimos eram os nossos encontros — ou eu descia á cidade correndo á alfandega, ao correspondente afim de apressar as remessas para a fazenda ou deixava-me ficar no meu 276 CORAM
quarto, que por duas janellas altas, empannadas de cassa, respirava o ar puro da montanha, quandc não sabia, em vagorosos passeios solitários, a explorar os recantos deliciosos d'aquelle sereno retiro onde sempre havia que vêr e gosar.
Uma tarde, ao jantar, notei que a mesa do casal conservava-se deserta. Á noite não se fez musica porque, não apparecendo o meu amador, esqueci-me em palestra, na varanda, com o suisso e Madame, relembrando pontos pittorescos da Helvecia, monumentos, mesmo episódios da historia viril da pequena republica e a vida bucólica das suas montanhas. Na manhan seguinte, ao almoço, a mesma ausencia.
Eesolvi, então, informar-me, e á criada que me servia, uma gorda e açodada alleman sardenta e d'oculos, perguntei se o cego já havia descido. «Nao, a senhora estava incommodada : ia a comida ao quarto».
Entendi que era dever de cortezia — levando em conta a nossa quasi intimidade — interessar-me pela saúde da senhora e, depois do lunch, que para nim consistia em um bom copo de leite, lá fui ter aos aposentos do cego, isolados em uma das alas do hotel, entre arvores, á beira d'um vallo pedregoso e todo forrado de fetos, em cujo fundo rolavam, escachoavam aguas fragorosas. Bati. Foi a senhora quem me appareceu — de branco, os cabel-los soltos e mais negros ainda em contraste com a cambraia e as rendas do penteador.
Dando commigo, estremeceu e recuou como assustada, voltando ligeiramente a cabeça para o fundo da sala ; depois fitou-me muda, com os olhos CORAM 277 muito abertos. Achei-a pallida e, apesar da pressa com que levou o lenço ao rosto, pareceu-me vêr-lhe na faee uma roxa ecchimose.
Correndo o olhar pela sala descobri, ao fundo, repoltreado numa cadeira de vime, junto á janella, o marido: a cabeça descahida ao peito, as mãos abandonadas nas pernas, como se dormisse. Sombras de ramos brincavam na janella, e uma camaxirra, familiarisada com o seu hospede inoffensivo, saltava alegre no peitoril, toda arrufada e chirriando.
Eu ia falar quando a senhora, inclinando o busto, com o dedo nos lábios, que se fizeram dum vermelho de purpura, me impoz silencio, e, chegando-se muito a mim, tremula, com uma voz que tremia, segredou-me:
— Preciso falar-lhe . . .
Depois de olhar, de novo, o marido que dormia, acenou-me — que eu sahisse.
Eecuei. Ella ficou no limiar da porta, olhando-me, muda e pallida, com um tremor que lhe cris-pava a fina pelle do rosto, como a aragem frisa em fremitos a lisa superficie de um lago. De repente, rompeu a chorar — as lagrimas saltavam-lhe dos grandes olhos com violência, como essas primeiras gotas grossas que precedem os aguaceiros de verão.
Sem atinar com o motivo d'aquelle pranto, atordoado e vendo-lhe a negra mancha na face e os olhos denegridos, eu fazia conjecturas vagas, quando ella, com uma voz que silvava, tomando-me a mão e levando-a á própria face, impondo-a, calcando-a, como para me fazer sentir o seu opprobrio, palpar o seu soffrimento, disse, aos surdos arrancos : 278 CORAM
— Póde-se ser mais infeliz ? Póde-se soffrer mais ? E isto é o que apparece. Tenho assim todo o corpo. E porque ? Que fiz eu? diga ! O senhor deve saber, visto que é ao senhor que elle accusa, por que — explicou com um sorriso cruel que lhe des cobriu todos os dentes brancos — o senhor é o meu amante !
Vacillei como em vertigem, com os olhos subitamente escurecidos. Quiz protestar, ella impoz-me silencio e continuou :
— Nunca trocamos uma palavra longe d'elle, nunca! não é verdade ! Ninguém o respeitaria mais do que eu o tenho respeitado, ninguém ! ex clamou vibrando, e não tenho um momento de paz, um curto instante de liberdade. Elle quer sentir-me sempre a seus pés, como um cão, e as des confianças injustas tornam-no grosseiro e vil. Ha sempre pretexto para uma injuria, para uma brutalidade e ante-hontem — nem sei como não ou viram meus gritos — ao voltarmos do salão, só porque toquei com o senhor, não imagina o que d'elle soffri. Atirou-me ao chão e, com os joelhos sobre o meu peito, maltratou-me, feriu-me, injuriou-me «que eu andava a offerecer-me ao senhor, que lhe dava entrevistas, que ia ao seu quarto . . .»
Uma serie de infames calumnias.
Tentei desculpar o homem, mas não me sahiu da boca uma palavra, tão grande era a minha surpresa por vêr-me assim compromettido em uma scena de tão desagradaveis consequencias. Vencendo a minha perturbação pude, emfim, balbuciar:
— Mas, então, é por minha causa que v. ex.a soffre? CORAM 279 — Sim, é ! respondeu fitando-me duramente com os seus negros olhos que ardiam.
— Pois d'hoje em diante, minha senhora, o marido de v. ex.a não terá motivos para suspeitas injustas.
— Que vai fazer?
— O que devo : retirar-me.
— Não ! Não senhor ! Não quero ! exclamou imperativamente, travando-me da mão com furor de louca. Não quero . . . ! Será peior. Elle dirá que lhe falei, que combinamos, e fundará as suas duvidas na certeza.
Não ! fique ! Quero que fique !
Olhou-me com um rictus estranho. Os labios tremiam-lhe, as narinas afflavam e o seu collo ondulava crebro, como se seguisse as apressadas palpitações do coração ansiado. Subito, de arranque, attrahiu-me, arrastou-me com força d'homem, aquella criatura fragil e meiga que eu comparara, na doçura e na piedade, á Antigone. Achei-me peito a peito com ella, na sala.
O cego lá continuava immovel, dormindo. Quiz reagir, tentei uma delicada repulsa. Ella fez-me signal para que me não movesse e eu sentia-me dominado —
era uma fascinação que aquella mulher exercia sobre mim ou era o assombro de tão insólita scena que me tolhia e avassalava.
Vagarosamente, com um cuidado de ladra, chegou á porta e deu uma silenciosa volta á chave e, tomando-me de novo a mão, justamente como, ás vezes, nos estreitos caminhos do bosque, eu a encontrava guiando o marido, foi-me levando, pé ante pé, um dedo nos labios, sorrindo e com a face 280 CORAM
tão radiante que parecia illuminada por um clarão de magia.
Eu sentia um grande medo covarde e retive-me repelli-a. Ella lançou-me os braços ao pescoço e, apertando-me, num desvario, beijando-me, segredou-me numa voz que gemia e escaldava :
— Pois o senhor não é o meu amante? Não é !
Elle não disse ?
Insensivelmente, quasi levado por aquelles braços frageis, achei-me no quarto do casal. Ella, com uma furia que lhe abrasava o rosto transfigurado, abriu, de par em par, as portas, e o leito alvejou. O cego lá estava, immovel. O que se passou então, meu amigo, é inenarrável. Eu tinha vinte e quatro annos e todo o vigor de uma saude refeita . . .
O cego levantou a cabeça, voltou-a ansioso, inclinoua, á escuta. ífós acompanhávamos todos os seus movimentos — eu tremendo, ella sorrindo cruelmente, victoriosa. Elle chamou-a e a mulher, aquella tão meiga e tão pura mulher, dentre os meus braços e torturando-me, sem accusar na voz a mais leve emoção, respondeu.
— Onde estás !
— Estou deitada, lendo.
E o desgraçado, satisfeito com a resposta, recahiu na scisma, pendendo a cabeça sobre o peito.
A verdade, meu amigo, é que aquella mulher, duma audacia incrivel, falava com os olhos. Eu lia-lhe nas pupillas todas as affrontas do odio, todo o referver d'uma represalia infamante e era horrível ! affirmo-te, era horrivel!
Houve um momento em que o cego moveu-se na cadeira como para levantar-se. Eu quiz fugir, CORAM 281 ella travou-me os braços, cerrou-me todo o corpo numa constricção sensual, prendeu a minha boca na sua, allucinada, sem mesmo sentir que a sua ansia explodia em altos arquejos stertorosos.
Por fim, exhausta ou satisfeita, acalmada do odio, deixou-me e toda ella respirava saciedade, não de bacchante lubrica, mas de vingativa erynnia e, compondo-se ao espelho, com uma physionomia feroz, sorria contente para a sua imagem, felicitando-se, louvando-se, applaudindo o seu estupendo desforço. Voltou-se e, já sem pudor, desnudando-se, mostrou-me, aqui, ali, no lindo corpo, os vestígios da mão ciumenta do marido, como vincos de tenazes candentes. Eu olhava em silencio.
De novo, enlaçando-me com os braços, collou a boca ao meu ouvido e sussurrou :
— Não me julgue uma devassa, não sou, mas a injustiça revolta, a calumnia insistente desvaira.
E agora ha de ser sempre assim, aqui e lá, sempre, sempre ! e diante d'elle. Isto é melhor que a morte...
concluiu arrancadamente sacudindo a ca beça como para envolver-se toda no negror dos cabellos.
Passamos á sala e, caminhando em pontas de pés, ella abriu a porta com o mesmo cuidado com que a havia fechado, espiou o corredor e, vendo-o deserto, acenou-me — que sahisse.
Ia eu atravessando a sala quando o cego, sentindo os meus passos, levantou impetuosamente a cabeça e chamou sobresaltado :
— Carmelita !
Não podes imaginar a calma com que a mulher respondeu, apertando, entre as suas, a minha mão 282 CORAM
que tremia. O infeliz ficou um momento hesitante por fim perguntou :
— Que horas são ?
— Tres e meia.
Eu, que aproveitara o curto dialogo para atravessar a sala, já estava ncs corredor quando ouvi a voz da senhora.
Voltei -me. Ella olhava-me serenamente, com aquelle doce e virtuoso olhar que eu tanto admirava e, com a mesma inflexão melancolica com que, uma vez, me falara da desventura do marido, disse-me :
— Peço-lhe que não faça mau juizo de mim.
Sou uma desgraçada, digna de lastima.
E duas lagrimas rolaram-lhe pelas faces. Despedi-me.
A casa parecia deserta — só havia o rumor longínquo das aguas. Eecolhi ao meu quarto, fiz as malas e, na diligencia dessa mesma tarde, desci, fugi com remorso e horror.
Houve um silencio interrompido pelo amigo que perguntou, escolhendo tranquillamente um charuto na caixa :
— E depois ?
— Nunca mais !
O outro accendeu o charuto e, depois duma volta lenta pelo gabinete, disse :
— Queres a minha opinião ? Se, em teu lugar, houvesse ido o suisso . . . Era moço ?
— Sim, era.
— Teria sido elle o heróe da aventura. Tu não foste o amante dessa mulher, foste apenas « o homem », um homem desejado. Não ha, no teu caso, o mais leve vestigio de amor. CORAM 283 — Queres dizer que ha odio, que fui apenas um instrumento de vingança ?
— Também não. Foste apenas um homem nesseçario e opportuno. A vingança foi invocada para justificar o incidente - se é que havia motivo para vingança.
— Não acreditas, então?
— No caso ! porque não, se m'o contas. Não acredito na mulher.
O PROTECTOR
O PROTECTOR
Encostada á janella, olhando atravéz dos vidros, ouvia o taralhar monótono de uma machina de costura, ali ao lado, além da parede enxameada de chromos : Alguma pobre mulher que adiantava a tarefa, talvez com fome.
Era, de certo, a magra, uma que costumava apparecer á porta do quarto, ao lado, quando ella subia, sempre desgrenhada, macilenta, com uns olhos negros muito grandes, pisados, o peito fundo como se a tysica o fosse cavando e dobrando. Devia ser ella . . . Pobre mulher !
E todo aquelle immenso pardieiro era habitado por gente assim : homens amarellos, maltrapilhos, quasi todos em mangas de camisa, arrastando chinelas molles pelas escadas lobregas, tresandando á maresia, a suor e á bebida.
Mais de uma vez, ella arrevessára ao passar por 288 O PROTECTOR
alguns que a olhavam com indifferença, soprando para o seu lado um halito nidoroso. Crianças magras com camisas curtas, os ventres enormes, pandeados e duros, os gambitos nus e finos como espeques, os cabellos espalhados pelo rosto immundo, roendo côdeas, aos saltos pelos corredores empastados de lodo e uma velhinha encarquilhada, com um chalé negro pela cabeça, que descia vagarosamente, gemendo, muito agarrada ao corrimão, parando, a espaços, para arquejar.
Pois elle não achara outra casa mais aceiada para recebê-la ? Ás vezes estremecia pensando na possibilidade de um incêndio. Que seria delia se tal acontecesse, naquelle velho prédio, quasi tão velho como a cidade, com a madeira a esfarelar-se de podre, rangendo ao andar de uma criança, como se todo o peso lhe fosse insupportavel ? E se algum daquelles homens, tão mal encarados, fosse um assassino? Se a policia, procurando-o, varejasse a casa e levasse todos os moradores, ella inclusive, no mesmo rol, atravéz das ruas, aos olhos da multidão ?
Mais duma vez murmurara esses receios ao commendador. Elle sorria, cruzando as pernas, tomava-a ao collo, fazia-lhe festa com os grossos dedos sempre munidos, uns «brinquedos» imbecis que a irritavam — apertando-lhe os labios, o nariz, fazendo-lhe cocegas na nuca e dizia-lhe :
«Que se deixasse de tolices. Conhecia aquella gente : pobre, mas séria. Eram pescadores, operarios; descançasse. Ali podiam ficar á vontade, estavam longe do mundo, ninguém os conhecia».
Sempre, porém, que galgava, ás pressas, os gas-
O PROTECTOR 289 tos degraus, atravéz do fartum azedo daquella casa sordida e lugubre, ouvindo os ganidos dos petizes, os cantares guaiados das mulheres, o rouco pigarrear dos homens, todo o rumor confuso daquella colméa sombria, aeudiam-lhe as mesmas idéas, os mesmos receios assaltavam-na e era a tremer que ella mettia a chave na fechadura, abrindo a porta e recuando, contendo a respiração ao bafio de mofo que vinha do aposento dos seus amores.
Ella ali estava encostada á janella, olhando, com o rosto collado ao vidro, aquelles fundos que subiam para a montanha : velhos telhados cobertos de manchas, com herva nos beiraes ; pateos, negros como alfujas, onde luziam poças d'agua, janellas abrindo sobre interiores escuros, onde parecia reinar uma noite eterna ; mulheres com as saias enroladas nos quadris, as grossas pernas nuas, arrastando os tamancos nas lages das áreas, em torno de tinas acoguladas de roupa e um velho tanoeiro rodando quintos, a bater aduellas com uma pressa de ansiedade. Numa corda branquejavam camisas engommadas, saias escorridas, lenços que trapejavam como flammulas.
Para o alto era o casario trepando, monte acima, em atropello tumultuoso de rebanho assustado: predios esguios, casótas acaçapadas, uma ruina com as vigas apparecendo como um negro esqueleto, paredes nuas subindo do muradal, fundos fuliginosos da antiga cozinha. Ao lado, um sobrado amarello com as paredes avelludadas de limo, laivos d'humidade e fendas sinuosas que coriscavam d'alto a baixo em ameaça de desabamento.
E o céu quente, dum azul forte, curvava-se 290 O PROTECTOR
maravilhoso sobre aquella miseria triste. Pobre gente !
Parecia-lhe impossivel que se pudesse viver assim como em um porão.
Então, com egoismo satisfeito, comparava a existencia abafada e miserrima d'aquella vermina humana, que fervilhava resignadamente no lodo, com a sua vida farta e mimosa, com requintes de luxo, derivando desembaraçada, risonha e facil no seu chalet á beira mar, com todo o sol a entrar-lhe pelas janellas, com a brisa pura a refrescar-lhe os aposentos, portas abrindo sobre ladrilhos de pa-teos, sobre verdes grammados e canteiros floridos e, numa elevação, a que o commendador dava o nome pomposo de « outeiro », a «choça» de velhos troncos, com cipoaes trançados, por onde subiam enredadas trepadeiras e o jasmineiro abria as suas cheirosas flores.
Era ali que ella gosava a doçura das tardes mornas, quando as cigarras cantavam nas amendoeiras, emquanto o marido, de branco, seguido do jardineiro, ia ordenando arranjos, detorando galhos seccos, quebrando velhas ramas, arrancando folhas murchas e a agua saltante e alegre do repuxo cantava, refrescando o ar.
Um craveiro da india, com as suas flores d'um amarello muito vivo, lembrava um candelabro de bronze acceso em muitas luzes e o flamboyant, que se encostava ao terraço, todo em flor, parecia copado de coral com abelhas que esvoaçavam em torno.
Um sino dobrou vagarosamente. Levantou os olhos e só então viu na montanha uma bandeira a O PROTECTOR 291 debater-se com o vento rijo que soprava do mar.
Um cheiro de cozinha subia enjoativo. Em baixo, num daquelles cacifros profundos, poz-se uma voz a gritar e latidos de cão romperam furiosos. Houve fragoroso rolar de taboas como uma ruinaria que desabasse e logo depois ganidos e pragas, berros obscenos e immundos.
Ella não parecia ouvir, seguindo uma idéa que, por vezes, nas horas mais calmas, lhe pousava no espirito com a impertinencia teimosa de uma mosca.
Encolheu os hombros e, d'olhos muito abertos, parados, fitos na montanha atravancada, ficou como esquecida, vendo, por vezes, ao alto, a desfraldada bandeira que espadanava desabridamente.
Pensava no marido com o mesmo remorso que sentiria uma ladra que fosse, aos poucos, desviando em furtos, os bens de um amigo.
Era um bello homem, novo e forte, e amava-a.
Sim, amava-a com insaciável ardor, bem differente da sofrega e abrutalhada lascívia do amante. Fran ziu o sobr'olho, poz-se a remorder o labio. Mas quem era o culpado senão elle ? Elle mesmo que levara o commendador quando ainda moravam em S. Christovão, impondo-o como um amigo excellente, um protector leal e desinteressado a quem devia obséquios inestimaveis?
Ella nunca o vira antes daquelle dia funesto e quando o marido o apresentou, pouco depois da sua volta da Europa, achou-o ridiculo, com a lisa e reluzenta calva que elle afagava com volúpia, passando, repassando por ella, da fronte á nuca, a mão curta e gorda, sardenta e felpuda.
Que lhe dissera o marido para conter-lhe o riso ?
292 O PROTECTOR
Pedira-lhe que o tratasse bem, com amizade. E a sós, no leito, ainda insistira com interesse ganancioso : que o fosse aturando, era uma relação que convinlia — homem rico, sem família, muito conceituado na sociedade e franco.
Descreveu-lhe o palacete que elle habitava, poz-lhe diante dos olhos toda a sua fortuna em prédios, em apolices, em acções de bancos e ainda a parte que tinha como commanditario em uma grande casa importadora.
Vivia com dois criados e uma velha caseira.
Lembrava-se de elle lhe haver vagamente falado em uma parenta, uma sobrinha que murchava no fundo de uma aldeia do Minho, que era tudo quanto restava da sua gente. Lamentou não terem um filho, elle seria o padrinho. Não foi elle mesmo que pediu ao commendador o obséquio de ir vendo se encontrava uma casa em Botafogo, porque estava enf arado d'aquelle bairro industrial, onde a poeira suffocava e o fumo das fabricas mantinha sempre os ares toldados e não lhe cedera o commendador um dos seus prédios — o chalet — sorrindo com superioridade ás suai objecções : « que não tinha dinheiro para um palácio como aquelle, que pedia luxo e trato », accommodando-se logo, enconchado no servilismo, ás respostas do homem :
« Que se deixasse de historias, fosse para a casa que elle não lhe mandaria os meirinhos á porta. Quando ao mais havia de arranjar-se».
E não vira elle os olhares lubrícos que o homem lhe lançara como a dizer que tudo quanto fazia era por ella, por ella só ? Não fora elle proprio que, a bem dizer, preparara a queda, entregando a casa O PROTECTOR 293 ao velho quando teve de seguir para Minas em commissão do ministerio ?
Não lhe pedira insistentemente que a visitasse todos os dias, supprindo-a em toda e qualquer necessidade, acompanhando-a, distrahindo-a para que a pobrezinha não se aborrecesse na solidão?
Sim, sim fora elle o culpado . . . por ingenuidade ?
sorriu ironicamente, respondendo ao pensamento com um aceno negativo da cabeça. Não, não era possivel que elle aceitasse como provas de verdadeira, pura e desinteressada amizade aquelles presentes valiosos —
joias, vestidos, assignaturas do Lyrico e até offertas de dinheiro que elle fazia ostentosamente entregando-lhe, a rir, a gorda carteira para que se servisse á vontade.
Não, elle não era tolo : sabia, sabia tudo, mas não lhe convinha romper, porque a vida assim corria-lhe suave e dourada. Mesmo o commendador ia assumindo na casa uns ares autoritarios e superiores. Á mesa, então, era até grosseiro : falava de tudo — da carne, do vinho, da cozinheira, promet-tendo novos fornecimentos, a repellir os copos, oppondo-se a que ella bebesse aquella zurrapa.
Lembrava uma coisa, outra.
No jardim mandava mudar plantas, aparar a gramma mais rente, modificava o plano dos canteiros e o marido, que o acompanhava humildemente, ia concordando, applaudindo, chegando, muitas vezes, a curvar-se ao lado do jardineiro para apressar a execução das suas ordens e quando elle Ia estava o marido tinha para ella outros cuidados mais mimosos, certo respeito como se ella fosse, em verdade, um bem do commendador, como a 294 O PROTECTOR
casa e os moveis que ornavam o salão principal.
Não, elle sabia tudo, talvez, até, não ignorasse que era ali que elles se encontravam. Fora elle mesmo que lhe preparara a queda, estava convencida. A trahida era ella.
E um fluxo de sangue subiu-lhe ao rosto, os olhos marejaram-se-lhe de lagrimas. Elle escolheraa para aquelle fim e, quem sabe, talvez de accordo com o commendador que a vira em algum baile, ainda virgem, cheia de graça, com o esplendor da mocidade e appetecera a sua carne, o seu sorriso, o seu perfume, o seu amor. Miseravel!! E havia de viver com elle ? O melhor era abandoná-lo duma vez.
Deixou a janella e poz-se a passear pelo aposento com impaciencia. Ao lado, a machina de costura taralhava com fúria. Lá estava uma que vivia honradamente, escondendo a virtude como ella escondia a infamia. Ficou a ouvir. O soalho tremia ás trepidações da machina. Um berro soturno reboou longamente. Algum paquete que sahia.
Faltava-lhe o ar, sentia-se como suffocada entre aquellas paredes. E aquelle homem que não vinha !
Consultou o relógio : duas horas. Ah ! sim, era a hora da Bolsa. Mordeu-a o despeito, sentindo-se preterida pelo interesse. O idiota lá estava a multiplicar a fortuna sem lembrar-se delia. Era aquillo o seu inimigo : o dinheiro. Por elle o marido entregava-a cynicamente, sem o menor escrupulo ;
por elle o amante esquecia-a, deixava-a ficar naquelle hediondo pardieiro com a resignação de quem espera uma esmola.
Deixou-se cahir em uma cadeira, cruzou as per-
O PROTECTOR 295 nas e ficou a pensar. Um sorriso afflorou-lhe os labios á lembrança de certo rapaz que viajara a seu lado, no bonde. Louro, elegante, distincto.
Num momento, a uma volta mais forte, sentira o contacto ligeiro do seu joelho. Afastara-se com timidez e, olhando-o, vira-lhe a face fina, os bigodes frisados e os olhos azues, muito meigos, duma languidez que amollecia como se delles sahisse um fluido de amor.
Alteou-se-lhe vagarosamente o collo e um suspiro leve passou-lhe entre os labios cerrados.
Mas na porta houve um como raspar. Poz-se de pé sobresaltada. A porta abriu-se e o commendador appareceu muito vermelho, suado, com o eollete branco cheio de dobras. Bufou, deixando a cartola sobre uma cadeira : « Que calor !» Ella concordou : « Que estava horrivel! » Elle poz-se a limpar a calva molhada.
Era meão d'altura, gordo, o ventre pando, um papo molle que se lhe acaçapava sobre o collarinho, transbordando e tremendo ; bigodes grisalhos e os olhos pequeninos entre palpebras empapuçadas.
Ella adiantou-se, tirando as luvas.
— Então, que ha de novo ? Uff ! sacudiu os braços e, curvando-se, atafulhou o lenço por dentro do collarinho, a enxugar-se. Decididamente não se pôde viver nesta terra com o calor. Olhem p'ra isto ! e abriu o lenço encharcado. Não ha que vêr :
Vou passar o verão em Petropolis.
Ella sussurrou surpresa :
— Em Petropolis ? !
— Então ? Posso lá com isto ! ! Não como, não durmo. Poz-se a sacudir as abas do casaco, pas-
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seando. De repente, voltando-se : Porque não te pões á vontade ?
Passivamente, humildemente, ella foi desafivelando o cinto, desabotoou o corpinho. Elle tirou o casaco, o collete e, em mangas de camisa, poz-se a bater no ventre mostrando as largas manchas de suor :
— Olhem p'ra isto ! Estou alagado. Desceu a cortina de chita. A luz tornou-se mais intima, mais doce. Pois é isto, não posso mais. Vou tomar casa lá em cima, nem que seja só para dormir. Ella levantou o olhar e fitou-o.
Que estás olhando ?
— Eu ?
Elle adiantou-se e, enlaçando-a com o braço gordo e humido, attrahia-a.
— Pensas, talvez, que te vou deixar ? Descança, vais também. Hoje mesmo falo a teu marido. Vamos todos.
Ella desprendeu-se-lhe do braço :
— A meu marido ? !
— Então ? Doido por isso anda elle . . . e riu.
Ella encarou-o e, com os labios tremulos, forçando um sorriso, perguntou :
— Então elle sabe ? O commendador encolheu os hombros. Ella insistiu : Mas sabe ? elle sabe !
— Ora essa ! Que pergunta ! Sei lá se sabe . . . e desatou a rir. Que temos nós com isso ! Se sabe, melhor para elle.
Ella ficou de pé, immovel, olhando o amante, que ia abrindo o cortinado encardido. As lagrimas formaram-selhe nos olhos e, silenciosamente, desciam-lhe pelas faces quando o commendador, que se sentara pesadamente á borda da cama, chamou-a: O PROTECTOR 297 — Então ? Ella caminhou devagar, d'olhos baixos. Vendo-a chorar, elle estendeu-lhe os braços, puxou-a, fê-la sentar-se-lhe no joelho e, carinhoso, interrogou-a : Que é isso ! Que tens ? Porque estás chorando ?
Ella, então, levantando a cabeça, de olhos apertados como para espremer as lagrimas, exclamou :
— Ah ! não, não hei de chorar . . . Então o senhor pensa que não tenho vergonha ! Com que cara hei de eu hoje apparecer a meu marido, diga?
O commendador, d'olhos arregalados, fitou-a com espanto e ella, ainda chorosa, diante daquelle homem que a olhava com expressão tão comica, contendo uma gargalhada que se denunciava por estremecimentos do rosto balofo e pelo brilho malicioso das pupillas, desatou a rir e, curvando-se, mergulhou o rosto no peito amplo e suado do amigo, cujo ventre molle poz-se a tremer, sacudido por um riso surdo, até que duas gargalhadas explodiram . . .
E, no aposento contiguo, a machína taralhava furiosamente.
OS PAIS OS PAIS
— Manda-o entrar, disse o barão ao criado que lhe annunciava o ferreiro.
O gabinete, que abria para o terraço, recebendo, por duas largas portas, o ar puro e a luz viva do parque, era de gosto severo, com a sua mobilia mas-siça de jacarandá esculpido : immensos armários atulhados de livros, cadeiras d'alto espaldar, com a pregaria a luzir nos rebordos de couro lavrado, quadros serios nas paredes sombrias e dois bustos, em bronze, de pensativos philosophos, sobre columnas negras.
O barão, com o charuto ao canto da boca, revolvia distrahidamente uns papeis, acamados na secretaria, sob um pesado bloco de crystal, quando um homemzinho appareeeu á porta, muito acanhado, a machucar o chapéu d'encontro ao peito. Moreno, a pelle gretada e côr de ferrugem, conterás-
302 OS PAIS
tava com os cabellos hispidos, muito rentes, d'um amarello queimado, como se o fogo da forja, diante da qual passava os dias a malhar, desde as cinco da manhan até as ultimas luzes da tarde, lh'os houvesse tostado. As mãos rugosas, possantes, eram quasi negras.
Vestia aceiadamente : calças e casaco de brim riscado, camisa de chita, e o pescoço, com o relevo das cordoveias turgidas e roxas, estava esganado pelo collarinho, que uma gravata esfiapada arrochava como um baraço.
— Entre, disse o barão.
O homem adiantou-se, curvado como ao peso dum fardo, sem levantar os olhos. O titular puxou a porta, fechou-a á chave e, caminhando serenamente para a secretaria, offereceu uma cadeira :
— Sente-se.
O ferreiro hesitou um instante, mas a um gesto imperativo do barão, sentou-se, com os joelhos muito juntos, sempre a esmagar o chapéu.
— Então, meu caro snr. Bento, que se faz ?
O homemzinho torceu-se na cadeira e, sorrindo, com a cara tisnada cheia de rugas, deu d'hombros.
Houve um silencio entre os dois. O barão folheava os papeis, o ferreiro virava e revirava o chapéu nas mãos.
Fora, no terraço, os canários cantavam, e um fresco murmurio d'agua tremia no silencio.
— Ora, vamos lá ao nosso caso, snr. Bento, disse o barão, consultando o relógio. São dez horas, e eu tenho de estar cedo na cidade. Está então resolvido!
O ferreiro poz-se a sacudir a cabeça, com um rizinho velhaco.
OS PAIS 303 — Eh . . . v. s.a sabe . .. Cá por mim, eu já disse o que é. A gente não tem tempo para andar com justiças. Assim como assim, o mal está feito. Ha de ser o que Deus quizer. Foi um mau passo, foi; mas agora . . . Que se lhe ha de fazer ? Era a unica esperança da gente . . . Não temos outra filha, e, v.
s.a sabe : ella, casada, com um bom marido, sempre era um auxilio.
— E quem lhe diz que não ha de casar ?
— Uhm . . . Essas coisas sabem-se, por mais que se escondam. Não é lá pela mulher em si, que isso não lhe tira a virtude, cá no meu parecer, mas a honra, v. s.a sabe, é, como quem diz — o rotulo.
Sem isso . . . é custoso. Esticou o beiço meneando com a cabeça desoladamente. Eu, por mim, não fazia grande questão, mas a mulher ... V. s.a sabe :
Um homem não é só e, em casa, quem governa é a mulher. Ella é quem põe e dispõe.
A filha atirou-se-lhe nos braços a chorar, contoulhe a desgraça, e ella, que tem genio, fez um escarceu dos demonios : Quiz ir logo á justiça, aos jornaes, até falou em cá vir fazer um escandalo.
Custei a contê-la, e disse-lhe : Olha lá, não te ponhas ahi a berrar. Para que hão de os outros saber? Havemos de arranjar tudo pela melhor.
O snr. barão é um homem de bem. Eu vou ter com elle e falando é que a gente se entende. V. s a.
recebeu-me aqui assim, disse-me a coisa ao certo.
Que a verdade é que v. s.a tem tanta culpa nisso como eu. E cá estou para a combinação, sem barulho, porque eu só quero o que é justo.
A pequena é bonita, isso é ... e o moço ... que diabo ! ... Eu também fui rapaz. A gente foge-lhe, 304 OS PAIS
mas o diabo parece que se mette no meio. Eu por mim . . .
O barão interrompeu-o : — Mas, vamos lá saber, snr. Bento : que resolveu sua senhora ?
— Ella ... A dizer verdade, está na mesma. Diz que a pequena é menor e coisas, fala de leis que ou viu nomear e então acha que v. s.a devia dar um poucochinho mais, que a pequena, coitadita !. . .
A gente com dinheiro na mão pode arranjar qual quer coisa, nem é preciso dizer o que houve, está bem visto. Mas o dinheiro, v. s.a sabe.
— E então ? Não lhe chegam os cinco contos ?
— Ella é que teima. Eu cá por mim, não tornava a maçar v. s.a Estou aqui porque, emfim, sou o homem da casa. Ella tem sua razão, isso tem. A
gente com dinheiro vê uma coisa, vê outra, faz sempre um negocio melhor.
Eu não quero um vintém para mim, estou velho, mas para a casa e para o bocado ainda o braço ha de dar. O
que vier será para ella. Quando era perfeita, emfim . . .
sempre havia esperança, que ha por lá rapazes que a querem, isso ha. Mas, v. s. a sabe : são todos os mesmos, rezam pela mesma cartilha : rondam, rondam, mas se a mulher não está como Deus a fez, atiram-na pr'ahí á tôa e vão-se! Ella tem a carinha, que é bonita, isso é. Mas v. s.a sabe — é costume, ó lei do mundo. A
mulher para casar quer-se pura, como um fato novo.
— Sim, sim . . . Mas resolvamos, snr. Bento. O
senhor tem a sua officina, eu tenho o meu escriptorio, não podemos estar aqui a gastar palavras. Eu offereço um pequeno dote á sua filha, não lhe estou OS PAIS 305 propondo um negocio. Sua senhora insiste na ameaça da denuncia, pois denuncie. Os juizes hão de fazer justiça a quem a merecer.
Todas as provas são contra a Maria. Estão ahi os criados promptos a jurar que era ella quem provocava meu filho. Ora diga-me : Que ia ella fazer todas as noites lá em baixo, aos aposentos do rapaz ? Elle tem o seu criado e a unica rapariga que entrava na sua sala de estudo, no seu dormitório, era a Maria. Para que ? Demais, quem poderá affir-mar que ella era ainda pura quando o senhor a trouxe ?
O ferreiro poz-se de pé e affirmou com segurança, estendendo a mão num gesto de juramento : —Lá isso, não ! tenha v. s.a paciencia.
Quanto a isso garanto. —Ora ! o senhor ...
—Ella não dava um passo fora de casa sem uma pessoa de confiança. V. s.a pôde tomar informações.
— Pois sim. Mas isso não vem ao caso.
— Não, mas a verdade deve-se dizer. Que ella veiu para aqui pura, isso ...
Depois dum silencio, o barão continuou seccamente :
— Pois é isto, meu caro snr. Bento.
Mantenho o que disse e nem mais um vintém. Se quer o dinheiro, elle aqui está. Abriu uma das gavetas da secretária e tirou um pacote, desembrulhou-o mostrando as notas. Se não quer . . . encolheu os hombros com indifferença e, lentamente, poz-se a refazer o maço, prendendo-o com um elastico.
Estou 306 OS PAIS
pelo que quizer. Se prefere a justiça, vamos á justiça. Sua mulher que denuncie o crime, o meu advogado fará o que fôr conveniente e, no fim, veremos quem tem razão. O rapaz está longe. O
ferreiro murmurou humildemente:
—É, eu sei. A pequena leu num jornal que elle embarcou para a Europa. E chorou, a coitada.
—Já vê o senhor.
—Mas eu já disse a v. s.a que, por mim, isto já estava acabado. Assim como assim, não ha remédio mesmo. A questão é a mulher. Eu se repetisse a v.
s.a o que ella me diz . . . Sei lá ! Ás vezes até parece maluca, palavra de honra ! Não sei quem foi que lhe metteu na cabeça uma historia de casamento que é, desde a manhãzinha até á noite, a mesma cantilena :
Que eu vá á policia, aos jornaes e conte tudo como se deu, porque, lá diz ella, um homem que perde uma moça é obrigado, por lei, a casar com ella.
—Tolice ! resmungou desdenhosamente o barão sorrindo.
—Pois é o que eu digo. Porque eu sou pelo que é justo, isso sou. Não tenho estudos, mas sei vêr as coisas. Um moço como é o filho de v. s.a, de boa casa, rico, quasi a formar-se, não ó para casar com uma pobrezinha, filha de um ferreiro, que mal sabe assignar o nome. Isso não! Eu sou pelo que é justo.
Mas a mulher, v. s.a sabe, ellas quando teimam . . . é p r'ali! E ninguém as tira do propósito. A coitada é mãi.
—E é por ser mãi qiie augmenta o preço? — É o que ella diz. Eu por mim já ando enfarado. Garanto a v. s.a que não é por meu gosto que OS PAIS 307 vivo mettido nisto. Sou um homem de trabalho e quem me tira os meus ferros tira-me tudo.
O barão ia e vinha lentamente, mordicando o bigode grisalho. De repente, parando diante do ferreiro, disse :
— Homem, acabemos com isto. Dou mais duzentos mil reis, serve? O ferreiro, de cabeça baixa, retorcia as abas do chapéu; Tenho que fazer! não posso estar aqui a perder tempo.
— Pois, vá lá! exclamou o Bento atirando o braço num gesto prodigo. Vá lá ! Estamos aqui os dois a perder tempo e palavras. A mulher ha de cançar. E que fale. O que é justo é justo.
— Sabe escrever ? perguntou vivamente o barão.
—Eu, a dizer verdade, faço pr'ahi uns garranchos, mas entendem-se. Sei pr'o gasto.
E bambaleava-se. O barão estendeu um caderno de almasso sobre a pasta, tomou uma caneta, molhou a penna e entregou-a ao ferreiro.
O homem deixou o chapéu na cadeira, sentou-se á secretaria e, muito curvado, foi garatujando, letra a letra, o que o barão lhe ditava :
« Recebi do snr. barão de Souzella a quantia de cinco contos e duzentos mil reis ...»
O barão hesitou um momento, a remorder o bigode, preoccupado. Por fim, resoluto, proseguiu:
«... pelos serviços particulares prestados ao seu filho por minha filha Maria ».
Quando o ferreiro, com o rosto a luzir de suor, concluiu a phrase, respirou desabafadamente, como alliviado. O barão tomou uma estampilha e, collando-a, impoz: 308 OS PAIS
— Date e assigne.
Concluido o penoso trabalho o ferreiro afastou-se da secretaria estaforifo. O barão passou os olhos pelo papel e, tirando a carteira do bolso, puxou uma nota de duzentos mil reis que reuniu ao pacote :
— Aqui tem, disse. É bom contar.
— Ora ! perdoe v. s.a . . . escusou-se o Bento.
— Não, senhor ; conte.
O homem, então, cedendo, desembrulhou vagarosamente o pacote, abriu as notas e, salivando o grosso dedo encoscorado e encardido, foi contando devagar, com verdadeiro goso, os olhos muito brilhantes e fitos nas grandes cédulas novas que estra-lejavam. Sorriu ao barão, agradecido e guardando o maço, tomou o chapéu e inclinou-se com humildade estendendo timidamente a mão aspera.
Mas o barão, antes de abrir-lhe a porta, falou com muita gravidade :
— Meu caro snr. Bento, o papel que ali fica é um documento, entende o senhor?
O ferreiro aprumou-se formalisado:
— Ora essa ! Perdoe v. s.a, mas eu sou um homem honrado. O que está feito, está feito. Nem precisava o papel, bastava a minha palavra.
— Pois é isso.
— Então, muito obrigado a v. s.a E ás ordens.
Desculpe v. s.a a maçada. Eu se cá vim foi porque a mulher . . . v. s.a sabe . . .
— Perfeitamente. Adeus !
E aos recuanços, ás zumbaias, o ferreiro sumiu-se no corredor.
O barão respirou desafogadamente e, de pé no OS PAIS 309 meio do gabinete, ficou um momento a peniar, carrancudo. Subitamente, ao explodir d'uma idéa, tirou o lenço do bolso e sacudiu a pasta que reluzia sobre a secretaria, depois caminhou vagarosamente para o terraço.
O sol rebrilhava na folhagem, já as rosas pendiam languidas. Debruçou-se á balaustrada e olhava os fundos macissos de verdura quando, á sombra da grande araucária, descobriu o ferreiro que, a sorrir, recontava vagarosamente as notas levando, de instante a instante, o grosso dedo á boca.
MISANTHROPIA
MISANTHROPIA
— Vais para a Pensão Central ou para a Oremerie Buisson?
— Nem para a Central, nem para a Buisson. Installeime na Barra da Tijuca.
— Onde?
— Na Barra da Tijuca. Vou descançar.
— Na Barra da Tijuca ? !
— É como te digo. Petropolis, despois que lá passei um verão, aterra-me. Ainda hoje, quando, por necessidade, tenho de lá ir, sinto o mesmo estarrecimento que me acovardava em dia de exame, no meu tempo de polytechnico. Porque Petropolis, meu velho, não é mais do que uma banca de exames de mundanismo, essa disciplina social em que são eruditos os futeis. Fazes, cá em baixo, durante o anno, o teu curso de trajo no Rabello ou no Valle, de galanteio e maneiras languidas no Alvear, de 314 MISANTHROPIA
tango e «flirt» nos salões, de abordagens audacio-
.sas nos cinemas, de paladar no Jockey-Club, de nomenclatura «sportiva » nos «grounds » e nas praias, de litteratura nos almanaehs, de «blague » em certas pensões ou em rodas de jornalistas, de todas essas banalidades, emfim, que constituem o «trivium » e o « quadrivium », ou digamos : os preparatorios para o « accessit» ao curso superior ou «fashion», e, no fim do anno, sobes a prestar os teus exames em Petropolis. Lá encontras as bancas organisadas e, desde a estação, que é como a secretaria onde a gente se inscreve, até as ultimas casotas dos limites da cidade florida, tudo são passos terriveis.
Os Petronios lá estão annotando as tuas maneiras, os teus habitos : procurando, pelo corte do teu fato e pelo padrão das tuas casimiras, atinar com o teu alfaiate, pelo aroma da tua loção descobrir o teu perfumista, pelo polimento das tuas unhas adivinhar a tua manicura, pelas tuas olheiras, mais ou menos vincadas, penetrar o mysterio dos teus amores, e etc, etc.
Se levas malas atochadas, automóvel e credito largo, é como se levasses empenhos incontrastaveis e podes ir seguro de obter boas notas no «footing », nas missas elegantes obrigadas a communhão, nas festas de caridade, nas conferências, nas «garden parties », no «tennis », nas corridas, nos bailes das embaixadas e nos cinemas ; se não, entras irrevogavelmente para o rol dos cábulas, quero dizer: dos que se fingem do «set» e que não têm onde cahir mortos, como certos typos que passam a vida MISANTHROPIA 3í5 freqüentando escolas, dizendo-se acadêmicos, sem terem sequer, exame de portugues.
Os exames em Petropolis são rigorosissimos. As congregações resolvem nos salões ou ao ar livre, nos theatros, nos cinemas, nas igrejas, nos hoteis :
onde quer que se reunam . . . e é um horror ! Podem levantar as mãos para o céu os que de lá vêm apenas com a bomba, como o Dulcidio, que se recusava obstinadamente a assignar subscripções. Outros ha, porém, verdadeiramente infelizes, como o Juvencio de Castro, que, obtendo notas distinetas com o seu arzinho piegas de Apollo de «biscuit» e os «costumes » que trouxe de Londres, foi premiado com uma futilidade loura ou oxygenada, avaliada em oitenta contos, um pouco de piano, tango, duas poesias em francês e ataques hystericos quando a contrariam.
Erasmo dizia taes palavras com serenidade, como se falasse da belleza da tarde límpida ou de um livro novo, de leitura doce e facil.
— Estás navalhante, homem de Deus. Que é isso?
— É a verdade. Falo-te assim porque tenho grande zelo do nosso povo. Quizera a nossa gente mais simples, mais natural, e vejo-a lançada no artificialismo que deforma, sacrificando-se ás apparencias, abrindo mão de um patrimonio de virtudes para affectar nobreza e distincção, coisas que só o tempo traz, como a patina, e, lentamente, aperfeiçoa e requinta.
Conheci uma senhora que herdou preciosissimas joias de uma parenta, que fora dama do Paço. Eram reliquias de joalheria, dignas de uma vitrina de 316 MISANTHROPIA
museu. Pois a criatura, para andar na moda, trocou a valiosa herança, de ouro de bom quilate e pedras de primeira agua, por pechisbeques da camelote alleman, que, além de ridiculas, deixam sempre nas mãos um vago cheiro de azinhavre. Petropolis é assim.
Demais eu não aspiro ás glorias de «smart», nem sou pretendente ao titulo de bacharel em roupas. Estudo para saber e não para alardear conhecimentos, assim como me visto para mim e não para Mademoiselle ou para o reporter. Sou assim.
Vou para a Barra da Tijuca. Tenho lá um «cottage »
entre velhas arvores e águas cantantes. Na encosta, ao fundo, a floresta ; em frente, o oceano livre. E silencio, meu amigo, silencio apenas interrompido pela voz das vagas, pelo sussurro dos ramos, pelo canto dos passarinhos e das cigarras.
O silencio é, para a alma, o que é a noite para a natureza : um prestigio criador. Eis ? É natural. Vens do ruido e, assim como quem chega da claridade não vê passo no escuro, o que sahe do tumulto não percebe a poesia do silencio. Parsifal entendia a linguagem dos pássaros, porque vivera sempre no bosque, a ouvi-los. O
mundo, com a sua hypocrisia, enfara-me ; só acho encanto no natural. Volto á natureza pela mão de Rousseau. Vou refugiar-me no agasalho verde do arvoredo, avisinhar-me das pontes, acolher-me no seio de Pan. Deixo Petropolis aos que apreciam illusões. Eu amo a Verdade.
— Misanthropia . . .
— Não, não é misanthropia: é hygiene. Sinto necessidade de repouso e busco-o onde elle existe.
Quando me dá na telha divertir-me, vou aos thea-
MISANTHROPIA 317 tros, aos cinemas, aos salões, a todos os espectaculos, emfim ; mas, em se tratando de deseançar, metto-me em casa, visto o pijama, estendo-me na ottomana, estiro as pernas e, accendendo um cigarro, deixo-me ficar na preguiça languida e solto a alma pelo sonho. É o que vou fazer.
— E os olhos ? Não te pedem, de vez em quando, um pouco de feminino ?
— Sim, de vez em quando ; e eu não lhes nego.
Desde, porém, que os sinto saciados, volto-os para outra visão. Se te puzessem diante da propria Venus de Milo, não a de marmore, mas (imaginemos que isto fosse possivel) a própria divina Venus, terias o deslumbramento que tiveram os deuses, mas não ficarias eternamente ankylosado no espanto e, pela volubilidade propria do nosso instincto, dei-xarias a deusa por uma mulher da Terra, princeza ou guardadora de cabras, que te desse outra impressão. Lembra-te de Ulysses bocejando de tedio em Ogygia e evitando Calypso com saudade de Penelope e ... da morte.
Estou verdadeiramente enfarado de tudo, de tudo !
Preciso recolher-me á simplicidade. Vou conversar com os carvoeiros da Barra da Tijuca.
Levo alguns livros, poucos e escolhidos, e, por companheiro, o velho Antônio, que me falará do passado e me dispensará de vir á cidade renovar as provisões.
Passarei tres mezes no silencio e regressarei repousado de corpo e d'alma, sem dyspepsia, porque comerei carne san, ovos, legumes e frutos frescos, beberei leite mungido por mim, como manda Hesiodo, e água da fonte, ainda viva, no con-cavo das mãos, e não ouvirei escandalos cochichados 318 MISANTHROPIA
por traz dos leques, nem terei de intervir em casos complicados de amores galantes. É isto.
Quando tiveres saudade de mim, deixa um recado aqui no charuteiro, onde o Antônio passará ás quintas-feiras para recolher a minha correspondência, e terás condução na «Vendinha», não automovel, já se vê, uma « charrette », que eu mesmo guiarei, levando o animal a passo, para que possas docemente gosar o que não conheces : o panorama da terra magestosa e florida e a maravilha do oceano, pai do silencio, meu visinho e amigo.
— Muito bem. Inteirado, disse Adrasto, a rir.
Pois sê feliz. Eu, por mim, mantenho-me fiel a Petropolis. Tomei dois quartos no Bragança.
Quando aborreceres a natureza e quizeres vér gente e are-jar o espirito na civilisação, manda-me um tele-gramma para que eu te espere. E adeus ! Tenho de comprar cartas para o «bridge » e estou quasi na hora do trem. Mas, olha cá — e, inclinando-se sobre o hombro do amigo, perguntou em segredo: não estarás tu apaixonado ?
— Apaixonado . . . eu ? ! Sorriu com indifferença sceptica. Não sou homem de paixões, nem de ímpetos. Para alguma coisa havia de servir a educação que me deram os mestres ingleses, tornando-me rijo de corpo e d'alma. Queres, talvez, referirte ao boato do meu casamento com certa criaturinha fragil, que conheci em Friburgo, que andava sempre oscillando entre o confessionario e o tango, entre a «Imitação » e os ultimos figurinos.
Teria graça !
E sentenciou em tom grave:
— Dos «esportes» que se cultivam na alta socie-
MISANTHROPIA 319 dade, o mais difficil e arriscado é o casamento, porque exige absoluta igualdade de vistas e disciplina espartana, de ferro. Ora, como é difficil achar dois parceiros que se entendam e concordem em tudo, nunca o jogo se harmonisa, por falhas nas combinações. Quando, porém, succede encontrarem-se duas almas affins, que se identificam no amor, a luta torna-se feroz, porque o primeiro cuidado do adversario é enfraquecer a parelha, inutilisando-lhe um dos membros. E sabes tu quem, em tal jogo, é o adversario ? É a sociedade, que entra na arena, como os retrarios antigos, procurando emmaranhar o antagonista em todas as malhas, licitas e illicitas : desde as seducções mundanas (e ellas são tantas !) até a intriga, a calumnia, o telephonio e outras tramas que, muitas vezes, por subtis, escapam á perspicáacia dos jogadores e atordôam-nos, desorientando-os.
Não ! não tenho nervos para tal esporte. Iria, de preferencia, caçar tigres e leões na Africa. Vou para a Barra da Tijuca com o Antônio e um cão. Quando me quizeres vêr, deixa um bilhetinho aqui no charuteiro. E adeus ! O teu trem é ás quatro e quê.
Estás quasi na hora.
Abraçaram-se. E Adrasto ainda segredou a Erasmo :
— Tem paciência . . . mas estou a vêr mulher nessa historia.
— É possivel. Não sou misogyno. Se encontrasse a mulher que imagino . . . quem sabe !
— Uma parceira de jogo ? mulher de «esporte»...
— Sim, uma mulher se « esporte ».. . Atalanta, por exemplo. 320 MISANTHROPIA
— Isso ! Atalanta . . . e bem treinada. Pois olha, é procurá-la. Ha mulheres para todos os gostos. Agora, então, com a guerra . . . E, tomando um «taxi», Adxasto ainda aconselhou, a rir :
— Põe annuncio. Talvez aches.
— Vou experimentar. Adeus.
Esteve ainda um momento á porta da charutaria : por fim, entrou, dirigiu-se ao telephonio, pediu uma ligação e, baixinho :
— Alô ! Qui parle Oui. . . c'est moi. Veux tu venir diner en ville ? À sept heurs. Les deux. Au premier. Cest ça.
Desligou e, accendendo um charuto, voltou á porta e, carrancudo, com o lábio arregaçado em sarcasmo, pôz-se a seguir o desfilar da multidão com um olhar que flammejava anathemas. PAPOULAS
PAPOULAS
I
Quem lh'as dera, aos fidalgos, as filhas dos toucinheiros. Os brazões d'armas, meu amigo, foram vantajosamente substituídos pelas taboletas e hoje mais vale uma boa marca de fabrica, registrada na Junta Commercial, do que um escudo heraldico, com adagas ou besantes em campo de blau, relembrando esforçados feitos de avoengos. A
nobreza actual vem directamente do balcão.
Dantes eram os altaneiros castellos de senhorio, com ameias furando as nuvens e gente acobertada a formigar no terreiro e na cárcova com lanças e espadões, mais pesados que barras ; hoje são as burras de ferro, á prova de fogo, bem trancadas e recheiadas de titulos e, em torno, enxameando em luzida mesnáda, a caixeirama a servir, empunhando metros em vez de lanças, ennobrecendo-se a talhar o toucinho e a carne como um parente en-
324 PAPOULAS
nobrecia outrora toda uma geração com um só golpe de espada, cerce e rijo, que dividia o mouro em duas metades e ainda fendia o cavallo e se cravava na terra ensopada de sangue.
Querem lá saber d'avós que andaram batalhando em terras de muslim ou turco, vertendo o sangue pela religião e pelo rei, ganhando fama em muralhas de cidades, rompendo a chusma vil ou chantando marcos em praias virgens, aos olhos maravilhados do selvagem nú. O que elles querem é vêr, bem contado e luzindo, o dinheiro e bem plantada e viçosa a lavoura da toucinheira. Eao faltam sabões aromaticos que lavem a gordura do toucinho paterno.
O melhor livro de linhagens não vale um livro de cheques, esta é a verdade. Eu mesmo tenho, no fundo duma lata, onde guardo, com camphora, a papelada vetusta, a minha carta defidalguia porque sou dos Taveiras, de Tavira, que ajudaram a con quistar o Algarve. Muito tenho lucrado com isto, pois não ! Não tivesse eu a minha clinica e havia de roer um osso, dalgum avô remoto, talvez, para não morrer á mingua. Historias ! e virou, de golpe a taça.!
Estavam abancados a uma das mesas, a um canto do atravancado terraço onde, sem descontinuar, estourava o champagne refervendo e jorrando aos cachoes no ladrilho sonoro.
A lua, immensa e limpida, era como um claro foco, e ainda a illuminação electrica — porque o barão, grande accionista dos bondes, ordenara uma installação profusa — espalhava a claridade viva de centenas de lampadas pelos muros, pelos lisos e PAPOULAS 325 espelhentos soalbos e, lustrosamente, pelas copas das arvores immoveis.
Por entre as mesas uma multidão refervia, sempre renovada e ruidosa. Cruzavam-se as damas em toilettes decorativas, os collos e os braços nus, refulgentes de joias, com as immensas caudas de rojo ou apanhadas á pressa quando viam lampejar o ladrilho molhado ou quando sentiam debaixo dos pós, esparrimando-se mollemente, uma empadinha, uma lasca de fiambre cahida das enormes bandejas que os criados, com segurança e destreza, levavam ligeiramente de um extremo a outro.
Os leques afiavam, trepidavam ; o fumo subia em nuvens ralas e o rumor crescia porque, como a noite ia quente e abafada naquelles salões apinha-dos e ardentes de luzes, os pares refluiam para o terraço a respirar, com delicia, um pouco de ar puro.
O dr. Taveira continuou a commentar os ideaes do século mesquinho e sem garbo, interrompendo-se para encharcar-se de champagne ou para mastigar, com gula, um camarão e os fartos bigodes que lhe entravam pela boca, com-a comida, como esfomeados, investindo como cães á presa.
— É o que eu lhe digo, meu caro Brites. Hoje são raros os casamentos por amor, como este. Rarissimos ! O
que vemos, todos os dias, é a ambição a correr atraz do interesse. E não é só a nobreza que vai sendo posta á margem, é também a belleza, meu amigo e é também a mocidade.
Não ha muito fui a um casamento e diverti-me a valer. Festa opulenta ! lá isso foi. Serviço de primeira ordem, serviço de paço, não imagina ! com a ceia na grande mesa estendida, á antiga. Isto de 326 PAPOULAS
mesas soltas é mais chie, é, mas deixe lá, homem, a ceia estendida parece que dá mais idéa de fartura, não lhe parece ? Aqui ha de tudo, até já me offereceram faisão, e a gente pôde escolher um companheiro e conversar á vontade. Mas eu gosto das grandes mesas, são mais ornamentaes, isso são...
Mas, dizia eu, tudo á grande no tal casamento, o diabo era o par. Imagine o amigo Brites um rapagão viçoso, de vinte e cinco a vinte e seis annos, com uma linda cabeça de Apollo num corpo forte de Hercules, a dar o braço a uma pobre viuva, velha e achacada, a guinchar com a asthma, como uma requinta, sem cabellos e mais magra que uma espinha chupada. Mas, meu amigo, ella era a firma da casa da qual o rapagão era apenas o guardalivros. Então? Casou com a nossa primeira fabrica de chapeus. Teve cabeça, é o que lhe digo.
Brites sorria, rodando na pequenina mesa, coberta de flores, a sua taça intacta. Era um bello homem, robusto e airoso, de physionomia sympathica e distincta. Na pelle alva a barba negra, rente nas faces, fechando em ponta, resaltava em contraste forte. Era casado com uma prima da noiva, a linda senhora D. Dolores, famosa pela graça attrahente do seu sorriso e pelo verde claro dos seus grandes olhos pestanudos e alegres.
Fora agarrado pelo dr. que o convidara para a sua mesa e ali estava inerte, como enfastiado, a ouvir-lhe a garrulice transbordante, com um sorriso affixado no rosto. Por vezes levantava os olhos e fitava as estrellas altas ou baixava-os distrahido sobre o tumulto festivo dos pares que circulavam, seguindo o sinuoso e rapido esfusiar dos criados PAPOULAS 327 que rompiam da turba com bandejas, baldes de gelo, pratos em que tremiam galantines, logo remergulhando, fugindo, desapparecendo na azafama solicita do serviço.
Mas a orchestra, emboscada entre palmeiras, no fundo da sala abobadada dos pianos, illuminada por lampadas minusculas encerradas em açucenas azues, deu o signal para uma valsa. Brites levantou-se e pediu licença :
«Estava compromettido com a prima para aquella valsa ».
— Sem cerimonia, vá. Eu por cá fico, gosando a fresca e um gelado.
E, como passasse um criado, o dr. chamou-o, pediu um sorvete. Brites seguiu lentamente, calçando as luvas, a distribuir sorrisos amaveis.
Os pares reentravam no salão que os espelhos enormes reflectiam e como que afundavam e alargavam. As toilettes sobresahiam á grande claridade, despedindo scintillações de joias e era um lento passar de senhoras esbeltas, de collos alvos, braços nús e roliços, brancos como de marmore e os homens erectos, finos nas casacas esguias, iam e vinham, em moroso passeio. E um alegre sorrir, um alegre falar, um incessante mover de leques, como azas que ensaiassem vôo, animavam o salão.
Brites atravessou a turba e foi offerecer o braço á Lúcia, admiravel no seu vestido de noivado, com o véu preso nos cabellos negros por uma pequenina coroa refulgente que lhe dava o ar augusto de uma rainha e toda ella, da gargantilha justa no liso e branco pescoço até a fimbria da cauda longa, estava coberta de flores de laranjeira em raminhos, 328 PAPOULAS
em nastros ondeantes e, aqui, ali, por entre as rendas, como perdido, um botão solitario.
Ao dar com o primo seus grandes olhos, negros e perturbadores, accenderam-se com uma chamma mais scintillante e as suas faces aqueceram-se, abrasaram-se em rubor mais vivo. Sorriram e ella, entregando-se-lhe, lá se deixou levar magestosa e a cauda solta, pesada, onde o immenso véu fluctuava leve, vaporoso, seguia-a como um sulco de claridade que ella fosse accendendo.
Por todo o salão corria um murmúrio de enlevo. O
proprio noivo, que recuara para o canto em que se haviam agasalhado os sogros desvanecidos, sorria, exultava, gosando orgulhosamente o triumpho sereno da que lhe pertencia.
Brites, levemente inclinado, ouvia-a atravéz do suave sorriso que ainda a tornava mais linda e a mesma Dolores, passando por elles, levada por um cavalheiro, louvou-os, achando-os dignos um do outro. Mas docemente, em vago e ondulante preludio, a valsa rompeu no bosque luminoso e logo os primeiros pares sahiram em torvelinho.
Brites voltou-se para a prima, tomou-a delicadamente e, sorrindo, moveram-se, oscillaram e partiram maciamente, silenciosamente, em deslise subtil, quasi aereo que era como um fugir, um desprender da terra. Os passos resvalavam no liso soa-lho que lampejava e as caudas soltas, em voltas rapidas, espadanavam, curveteavam em colleantes rabeios serpentinos.
Então, como se já se não attendesse senão á dança e o rumor fosse bastante para abafar confidencias, elles fitaram-se um momento e ella baixou PAPOULAS 329 os olhos, toda pallida, apertando-lhe o braço num frenesi.
E elle, a ouvir-lhe a doce, languida voz, tremia de amor :
— Ah ! meu Luiz . . . que medo !
— Tem calma.
— E se elle descobrir ? Que vergonha !
— Vai descançada. Não vês como estou tranquillo?
És bella bastante para deslumbrar e os deslumbrados não vêm. Has de convencer-te de que é uma victoria facil.
Faze o que eu te disse e verás.
— Ernfim. . . E voavam docemente, confundindo-se no vôo dos outros pares, ao som voluptuoso da valsa que morria. Aos últimos compassos, apertando-se mais, como num adeus, olharam-se ainda, enlevados, e ella respirou tremulamente : «Antes fosse comtigo ...» Elle sorriu.
A orchestra calou-se, os leques reabriram-se e, arquejando, corada, seguindo regiamente pelo braço do primo, Lucia foi encontrar o noivo e os pais e, logo ao chegar, ainda risonha, ouviu o timido convite :
«Vamos? São duas horas ». Empallideceu.
«Pois sim ...» E encarando o primo rapidamente toda se lhe entregou num rijo aperto de mão e num doce olhar.
Elle despediu-se do noivo, ainda o felicitou e, entre os pais, inclinando a nobre e altiva cabeça para passar sob uma abobada de camelias, Lucia desappareceu. Elle ainda ficou um instante a olhar vendo aquella figura toda branca que os espelhos reflectiam. Mas uma mãozinha leve tocou-lhe o hombro e uma voz alegre tirou-o do extase: 330 PAPOULAS
— Agora é a nossa schottisch.
Voltou-se: era a mulher, sempre risonha, que lhe mostrava o carnet.
Tomou-lhe o braço e levou-a, radiante, atravéz do salão.
II
O luar brilhava ainda, mas já os gallos cantavam no frescor da manhan quando, a pretexto de enxaqueca, Brites subiu para o aposento que lhe haviam reservado no segundo andar, á frente, com quatro janellas abrindo sobre o parque, em balcões salientes. A mulher, sempre trefega, lembrando a vida que levava naquelle morto silencio do Palmeiral, entre colonos, mezes e mezes sem um divertimento, ficou aproveitando a noite.
Em baixo, o terraço illuminado ainda regorgitava e, lá ao canto, na mesma mesa pareceu-lhe vêr o dr. Taveira com um homem esguio, de lu-zente calva, que gesticulava, sacudindo furiosamente os braços. Mas o seu pensamento lá ia seguindo os noivos por aquelles silentes arvoredos da chácara das Laranjeiras. Áquella hora já tudo se teria resolvido : sim ou não. Deu d'hombros.
«Que fazer ? Se ella o denunciasse, negaria, pensou. Mas em brioso ímpeto, aprumou-se rijo, firme e, atirando a mão num gesto altivo, exclamou surdamente : «Não, isso não ! Haja o que houver, ambos somos culpados, é justo que sofframos ambos». Uma idéa, porém, alentou-o e elle sorriu PAPOULAS 331 com superior desprezo: Era rica, levava um dote soberbo.
Ainda que o outro descobrisse a falta não faria escândalo, não repudiaria a mulher que, além de bella, era a herdeira única de um millionario. O dinheiro lá estava para salválos.
Então sentiu a grande força da riqueza omni-potente.
EUa ali estava impondo-se, avassallando, humilhando.
Era aquelle palacio enorme e todo de pedra, com os seus immensos salões, os vastos dormitorios, os ladrilhados pateos onde tudo era magnifico, o parque onde trabalhavam rijos homens conservando a belleza das relvas e activando a eclosão das flores e, ainda transbordando, as propriedades que, em duas filas, estendiam-se a um e outro lado da rua, a casa de commercio recebendo ouro, despachando productos da terra, porque sempre corria os mares um navio abarrotado de cargas sahidas dos grandes armazéns do barão. E ainda nos bancos, em companhias, o dinheiro a crescer, a medrar como planta bem tratada, bem regada em leira fertil.
Não havia escrupulo, ainda o mais melindroso, que se revoltasse contra aquella potência, E que se revoltasse !...
Os pais lá estavam para perdoar e acolher a filha e a sociedade ainda lhe applaudi-ria a resolução, louvaria o seu gosto, o seu rasgo de altiva independencia desprezando, com asco, aquelle homemzínho sem carne e sem sangue, tão sêcco que quasi desapparecia a seu lado e elle voltaria a possui-la, a amá-la como dantes, com mais ardor ainda.
Vagamente lembrou-se da mulher, fixou-se nella com piedosa ternura. Lá estava, tão linda, tão cas-
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ta, de uma honestidade nunca mareada, com os seus modos estroinas e a sua graça vivaz de criança, tão meiga, tão resignada, tão pura que jamais suspeitara aquelle crime, perpetrado durante dois annos longos ali e mesmo entre os muros honestos do seu quarto no Palmeiral, emquanto ella, confiante e feliz, com as raparigas da colônia, arranjava a capella para as festas do Mez de Maria. Amava-a, amava-a sim e soffreria se a visse soffrer, mas... a outra era o delirio.
Só, no amplo dormitório, Brites escancarou as janellas ao luar limpido e ao ar puro e, mesmo sem accender as lampadas, sem despir-se, atirou-se ao leito largo e macio que afundou mollemente ao peso do seu corpo e, ouvindo a musica e o rumor das danças, os risos e o resoar das vozes no terraço, esti-rado, com os braços por baixo da cabeça que lateja-va, ficou a pensar e só, então, o assaltou um grande medo de mistura e a lutar com uma assanhada revolta contra aquelle homem livido e ossudo, de barba rala, já calvo, que apparecera para roubar-lhe a felicidade, levá-la, gozá-la, para o sempre !
Ó as deliciosas noites ! São era ali que o hospedavam quando elle vinha da fazenda a negocio, passar uma curta semana no Eio, só, ás pressas, alongando depois a demora para alongar o goso daquelle corpo que se lhe ia entregar, branco e fremente, com uma paixão que chegava ao delirio, tão cheia de promessas, de lances desvairados, de loucuras de amor.
Não, não era ali naquella sala immensa e rica, era lá ao fundo, no extremo do corredor que ella corajosamente atravessava descalça, no silencio e PAPOULAS 333 na treva da noite alta, para ficar com elle horas seguidas, emquanto a casa dormia e os cães, rondando as alamedas, rosnavam, ladravam ás sombras oscillantes das arvores ou ao vôo assustado dalguma ave que o luar despertava no viveiro.
Fora naquelle quarto, tão simples e tão querido, que elle a possuirá, e quanto tempo durara esse amor, cortado de súbitos receios, alagado em tímidas lagrimas quando ella murmurava, aterrada, as suas desconfianças compromettedoras. Eram peza-res ephemeros que um beijo ardente dissipava, logo volvia a ventura das longas noites de amor, noites a fio. Mesmo uma vez, durante o dia, á tarde, numa fuga ousada, ella surgira inesperadamente no quarto, rindo, emquanto a velha e pesada senhora, á espera do marido, andava pelo terraço ordenando arranjos sem preoccupar-se com elle : um parente e casado e ella uma menina 4mal sahida da puberdade.
Ó os tempos do verdadeiro amor, com os sobresaltos que ainda o tornam mais sensual, dando-lhe um acre sabor de crime ! E tudo ia entrar no comezinho, na banalidade do adulterio vulgar, se não se resolvesse em vergonha infamante. Sim, porque o outro podia descobrir e interrogá-la, ameaçá-la, e ella tudo diria, certo que diria — era mulher e fraca.
Levantou-se, foi debruçar-se á janella. Já o céu desmaiava em tons de pérola cintados d'ouro, as arvores iam sahindo da sombra e as folhas, confundidas em massa na treva, espalhavam-se, abriam-se, apartavam-se como se as libertasse a luz. A cascata levantava um perenne e fresco murmurio e o 334 PAPOULAS
ar, mais frio e mais leve, gelava como um sopro agreste de inverno.
E a manhan que não vinha, a decisiva manhan salvadora ou fatal. Haviam combinado uma florida senha para o caso da esperada victoria, elle mesmo a escolhera na vespera, e ella promettera dar-lh'a, ao telephonio, logo que se levantasse, victoriosa. E a noite tão longa, tão lenta .. .
Eevoltou-se contra aquella alegria como se o baile contribuisse para aquelle vagar das horas. Uma ave atravessou ligeiramente os ares. Que ave seria? A ultima coruja, talvez ; talvez o primeiro pombo. Mas começava a debandada.
Já pela alameda central do parque desciam grupos indecisos, logo fundindo-se na sombra, ainda densa, das arvores ; carros lentos rangiam no saibro ; vozes sussurravam. Mas ainda a orchestra atacou uma valsa airosa e viva e o rumor arrastado dos passos subiu, de novo, aos seus ouvidos, alarmados e attentos como se esperassem um clamor de catastrophe.
O céu broslava-se, começava o piar das aves. Que teria acontecido ? Pobrezinha ! E, com os cotovellos cravados no balcão, baixou a cabeça entre as mãos e ficou, em arrependido scismar, vendo-a toda núa, muito branca, com arripios de volúpia como elle a tivera, uma vez, nos braços em apaixonado, fogoso delirio.
Que faria Bolores se o seu crime fosse conhecido, se o marido, inflammado em despeitada e honrada colera, subisse aquellas mesmas escadas, que horas antes descera em triumpho, trazendo a mulher envilecida para arrojá-la, como uma torpe im-
PAPOULAS 335 mundicie, aos pés dos tremulos velhos e accusá-lo, a elle, em face, com arrogante fúria, repetindo tudo quanto Lúcia lhe dissesse no seu encolhido terror ? Pobre Dolores !
Sahiam novos grupos — as capas das senhoras branquejavam, quasi roçando a areia e a relva. Por fim a orchestra emmudeceu e, como tudo houvesse findado, os homens levantaram-se do terraço e desappareceram.
A lua no céu, sem brilho, parecia dormir. Elle cravou os olhos ao longe.
— Ainda não te deitaste, Luiz ? Voltou-se e deu com Dolores afogueada, cançada e linda que lhe estendia carinhosamente os braços nus. Abraçou-a mollemente, queixando-se da cabeça, ella chegou-se muito e, como inclinasse o rosto, com meiguíce, elle beijou-lhe os cabellos. Então, como para agradecer-lhe o carinho, ella levantou os olhos claros e fitou-o risonha e como se lhe fossem descerrando os lábios elle fechou-os com um beijo muito longo e todo cheio de amor, do grande amor, do delirante amor . . . que o outro lhe roubara.
III
O almoço corria triste, em silencio, com as lagrimas da baroneza, quando o tympano vibrou chamando ao telephonio. Brites estremeceu, em-pallideceu e como o criado, a um aceno do barão, corresse a attender, Dolores disse com a alegria a illuminar-lhe o rosto : 336 PAPOULAS
— Aposto que é Lucia !
Voltaram-se todos para o corredor, ansiosos, á espera do criado, e quando elle reappareceu sorrindo, como para logo annunciar a boa nova, a baroneza perguntou :
— Quem é ?
Elle inclinou-se junto á sua cadeira e respeitosamente murmurou :
— É a senhora D. Lucia que deseja falar a v. ex.a — Eu não disse ! exclamou Dolores. A velha levantou-se ás pressas e, nervosa, com os olhos já sêccos, quasi correu ao apparelho. Na sala ficaram todos num silencio attento e as palavras da velha soavam tremulas, em phrases entrecortadas, mysteriosas. Foi depois uma serie de perguntas, o saudades, muitas saudades de todos e lembranças ao marido e que viesse vê-los logo que pudesse. Quando voltou á sala, mais tranquilla, sentandose, ainda suspirou. O barão quiz saber da filha.
— Está bem, manda-te beijos. E a ti também, Dolores. Só então, fitando Brites que empallidecia, como á uma vertigem, disse : É verdade. Ella pediu-me que te dissesse que são papoulas . . .
E ficou a mirá-lo, intrigada. O barão perguntou :
— Que historia é essa ?
E Brites, muito vermelho, com um leve tremor na voz, explicou risonho :
— São as flores de um chapéu que ella trazia, ha dias. Ella, hontem, teimava em dizer que eram rosas, eu garanti que eram papoulas. Apostamos.
Ella prometteu verificar logo que chegasse á casa.
Ganhei.
Sorriram. PAPOULAS 337 — Sempre a mesma cabecinha no ar, murmurou o barão. Ella presta lá attenção a coisa alguma... Vamos vêr se agora com o casamento, endireita.
— Quem ? Aquella ? ! Áquella não muda, affir-mou a baroneza.
E Brites rompeu a rir, um riso excessivo que despertou em todos curioso espanto. Voltaram-se com os olhos nelle, sorrindo, como á espera duma explicação que justificasse aquella explosiva alegria que lhe puzera no rosto duas rosas vivas e nos olhos um brilho scintillante.
— Que é ? perguntou o barão ; e elle, colhido pela pergunta, apenas murmurou:
— Lúcia . . . com as suas estroinices . . . com a sua indifferença ...
— Ora, disse Dolores, faz ella muito bem. A vida deve ser levada assim mesmo sem cuidados. Quem a toma muito a serio nunca chega a gozá-la.
— E envelhece depressa, concluiu a baroneza, palpando, de leve, o rosto como para sentir-lhe as rugas. VINGATIVA
VINGATIVA
Dizendo-me a criada que estava lá em baixo um senhor que me desejava falar com urgencia, ;saltei da cama e, no tempo rapido que consumi numa toilette summaria, repassei todo os meus negocios e compromissos sem poder achar um caso que com tanto mysterio - porque o tal «senhor» nem sequer o nome quizera dar - demandasse tao prompta solução, para que me viessem incommodar ás seis e meia d'uma fria e chuvosa manhan de junho.
Presagios de morte roçaram em minha alma. Minha mulher sentou-se na cama, sobresaltaüa, pensando em Marilia ; eu lembrei-me do Fernan-dinho que lá andava pela Suissa. E, fazendo o laço da gravata, com os dedos tremulos e incertos, notava ao espelho que ia empallidecendo, como se todo o meu sangue fosse escoando a jorros. 342 VINGATIVA
Desci ás pressas e, quando cheguei á sala obscura, porque a criada, obedecendo, talvez, ao mys-terioso visitante, entreabrira apenas uma janella e a luz escassa daquelle dia triste e opaco era ainda empannada pela densa cortina que cahia pesadamente, arrepanhada em graciosa ogiva, distingui apenas um vulto que caminhava surdamente, passando e repassando a mão pela cabeça.
Dando por mim deteve-se e, á sua voz.
pronunciando meu nome com afflicta expressão de desespero, reconheci o Landim.
— Pois és tu, homem ? Que é isto? Tu por aqui, a esta hora !
— É verdade, eu mesmo.
Abri duas outras janellas, deixando apenas fechadas as vidraças e pude ver a physionomia demudada do meu primo. Dir-se-ia um enfermo que se levantara da cama e houvesse fugido, em delirio de febre, affrontando o tempo agreste.
— Mas que tens, homem de Deus ?
— Que tenho?. . . deixou-se cahir abandonadamente no sofá e arquejou: Minha mulher abandonou-me ...
— Como!
— Fugiu. Foi para a casa dos pais.
— Por que ? Que houve ?
— Um horror ! Nem eu mesmo te sei dizer. Um horror ! Venho de casa. Entrei cedo e, quando cheguei ao meu quarto Joanna, ém pranto, entregoume uma carta de Elvira. Procurou atabalhoadamente nos bolsos ; por fim, nervoso, abotoando o casaco, disse : não trouxe, ficou por lá.
— Mas, então, dormiste fora ? Fitou-me e, sem VINGATIVA 343 animo de responder com a palavra, acenou affirmativamente. Logo, porém, pôz-se de pé e recomeçou o passeio ao longo da sala, suspirando.
Chamei a criada para que trouxesse café e cognac, depois, fechando a porta, procurei acalmar o pobre Landim. Nao desesperes, homem — isso não passa de arrufo. Arranja-se. Eu vou ter com ella.
— Ah ! rouquejou: tu não a conheces ! A cabeça descahiu-lhe ao peito e houve um silencio pesado.
Que loucura ! suspirou por fim, num arranco.
— Mas conta-me o que houve.
— É um romance, vais vêr. Quando chegamos a Lambary, em meiados de março, apesar do telegramma que daqui mandei ao Mello, logo ao desembarcar tive a triste noticia de que no hotel não havia um só commodo : tudo cheio. O Mello, porém, indicou-me o hotel do Bibiano. Como estava-mos moídos, porque chegamos com um atrazo de duas horas e meia, sem mais indagações, abalamos, curvados sob um aguaceiro desesperador, com embrulhos, escorregando na lama da ladeira escura, a caminho do hotel indicado, numa ruella que era um tremedal, uma casa enorme, chata, velhíssima, com um largo portão de cocheira entre dois ren-ques de janellas.
Elvira, encharcada, com os pés doídos, lastimava-se arrependida de haver deixado o seu conforto por um capricho da vaidade — porque nenhum de nós, graças a Deus, precisava d'aquellas aguas.
ííão, não foi a vaidade que nos levou áquelles lugares, foi a fatalidade. Tinhamos de cumprir uma siDa, meu amigo, havíamos de cumpri-la.
Não tenho razões para dizer mal dos aposentos 344 VINGATIVA
que nos arranjou o Bibiano, um homem admiravel, cujas virtudes eu descreveria se tivesse mais calma.
Não eram dignos de príncipes, mas agasalhavam e, de manhan, com as janellas abertas, tinha-mos uma vista encantadora : a estação lá ao alto e boizinhos que pastavam immoveis como se fossem figurinhas de barro, postas ali para animação da paizagem.
A casa a que nos acolhemos era uma succursal do hotel e transbordava de hospedes. Ao almoço, numa grande sala onde a mesa, em ferradura, ia de ponta a ponta sem um lugar vago, a minha atten-ção foi para uma mulher, uma esplendida loura que entrou triumphante, seguida dum mocinho pallido e timido que parecia humilhado junto da-quella deusa heroica.
Sentaram-se bem defronte de nós. Uma cabeça de erynnia, os cabellos, num penteado estroina, quasi soltos, esvoaçavam brilhando : por vezes uma madeixa mais rebelde rolava, ella reconduzia-a graciosamente, levantando muito o braço que, no repuxar da manga, accusava a carne forte e roliça, até a axilla funda e o collo que ondulava, tumido. Os olhos verdes, inquietos, enormes, lampejavam, a boca muito vermelha, sensual, revestida de claros e pequeninos dentes, abria-se como em langui-dos e contidos bocejos e era a ponta côr de rosa e arisca da lingua que sahia a passear pelos labios, humedecendo-os ou eram os dentinhos que os remordiam, avivando-lhes a côr.
Elvira observou-a e logo nella nasceu uma antipathia pela mulher que parecia procurar a nossa amizade, sorrindo, dirigindo-nos olhares e, ao fim do VINGATIVA 345 almoço, como sahissemos a passeio, encontramo-la junto ao poço sempre com o mocinho, garrula e risonha.
Elvira segredou-me : «Que a achava sem modos, nem parecia uma moça de familia ». E já lhe conhecia toda a historia — como a soubera ignoro — « que era casada de pouco com aquelle mocinho, engenheiro, recentemente chegado de Manáos onde andava a dirigir umas obras ».
As outras senhoras, receiosas, sem duvida, de que Blvira, com a sua bondade ingênua, se deixasse fascinar pela perigosa criatura da qual todas as familias se afastavam, trataram de pô-la ao corrente de certos boatos que corriam na vílla desde a chegada de Virginia — chama-se Virgínia :
« Que fugira de casa para casar ; que tinha uma irman separada do marido e perdida ; que provocava escândalos em toda a parte ; que fumava e jogava como um homem ».
As intrigas surtiram o desejado effeito: Elvira prohibiu-me absolutamente toda a conversa com a pobre moça, com a qual eu começava a sympathisar por pena, vendo-a banida de todos os grupos, afastada por um obstinado e rancoroso silencio de todas as rodas. Imagina tu a minha situação na sala, á noite, aos jogos de prendas, os malditos jogos !
dirigindo-me a todos menos áquella bella mulher que, sobre ser formosíssima ainda, como por acinte á chusma de ciumentas, só apparecia elegantemente trajada e com um garbo que devia torturar e humilhar aquellas achamboadas que se acaçapavam nas cadeiras e ficavam chatas como grandes magois ridiculos.Tocava, cantava com uma 346 VINGATIVA
voz admiravel e com uma indifferença, meu amigo, que revelava uma mulher superior ou uma grande cynica.
Eu evitava-a. Uma manhan, porém, encontramo-nos no parque. Falou-me, respondi com medo, relanceando os olhos por aquellas moutas, pelos caminhos : não estivesse por ali alguma das amigas de minha mulher para levar-lhe a noticia.
Não foi tão rápida a nossa conversa porque ella teve tempo de referir-se á guerra que lhe faziam no hotel, ás calumnias que assoalhavam, á inveja de todas aquellas «virtuosas senhoras» que não a sup-portavam porque ella fazia duas toilettes por dia e ousava apparecer á mesa com um grande ramo de rosas no cinto. Sorriu e, encarando-me, disse entreabrindo, com um geito todo seu, os labios encarnados :
— Sua senhora, também, ao que parece, não sympathisa commigo — evita-me, mal corresponde aos meus cumprimentos e, brincando com uma rosa — as outras naturalmente já lhe falaram de mim. Encolheu os hombros accrescentando com orgulho: Realmente, foi preciso que eu viesse a Lambary para convencer-me de que .. . não sou feia. Não ha melhor espelho para uma mulher do que . . . outra mulher.
— Ou . .. um homem, accrescentei eu, idiota-mente e ella, inclinando a cabeça, sussurrou em voz macia :
—Acha! ?
E, como se me restituisse um objecto que me pertencesse, abandonou-me nas mãos a rosa com que brincava. Aceitei-a e, tremulo, despedi-me VINGATIVA 347 dando intimamente razão ás senhoras que tanto temiam a graça fascinadora d'aquella mulher.
Não sei se havia alguém no parque a espiar-me. O
que te posso garantir é que Elvira foi informada do meu encontro, aliás fortuito. Fui achá-la em pranto, e, á noite, na sala, brincando-se a «berlinda», á entrada de Virginia realisou-se o que eu tanto temia : Encontraram-se as duas. Não ouvi as palavras de Elvira, ouvi apenas uma gargalhada sarcástica e logo em seguida um grito e mal tive tempo de acudir á minha mulher que cahira com um ataque.
É escusado dizer que houve em todo o bando feminino um clamor contra a «sem-vergonha, a offerecida» e o Bibiano, o excellente Bibiano, intimado por todos os maridos a despedir o «pomo de discordia », sob pena de ficar com o hotel ás moscas, esteve a ponto de enlouquecer, hesitando entre o cavalheirismo e o interesse, e teria enlouquecido se Virginia não houvesse resolvido partir dois dias depois.
Na vespera da viagem passou o dia a tocar e a cantar, sozinha na sala, sem que ninguém ousasse apparecer, porque as damas affrontadas trancaram-se com os maridos para que aquelle demonio não os perdesse.
Eu não pude, confesso-te. Uma forte piedade impellia-me para a repudiada. Minha mulher fora ao quarto de uma amiga commentar os escandalos da desaforada. Aproveitei o ensejo para chegar um momento á sala, certo de que lá encontraria o marido. Entrei:
Virginia estava á janella, só e soberba.
Sentindo-me, voltou-se e, vendo-me, sorriu: 348 VINGATIVA
— Ah! é o senhor ? Tem coragem, francamente!
— Por que ?
— Ora . . . porque! E, precipitando as palavras, disseme : Parto amanhan, já sabe ? Espero vê-lo em nossa casa. Quando chegar ao Eio dê-nos o prazer da sua visita, sim?
E entregou-me um pequenino cartão com o seu endereço O aperto de mão que trocámos e o olhar com que nos fitámos longamente foram o sello de uma promessa que se cumpriu, infelizmente.
Lambary, com a retirada de Virgínia, ficou em calma:
as senhoras respiraram, os homens puderam gosar francamente o parque ; o proprio Bibiano tomou um dia para ir aos porcos, certo de que a casa ficava em paz. Mas eu, meu amigo . . . Eu é que não vivia ! Sempre a pensar naquella mulher, vendo-a, ás vezes, apparecer no fundo do corredor como uma visão, ouvindo-lhe a voz, sentindo-lhe o perfume, obcecado. Felizmente Elvira, com os dias chuvosos, começou a aborrecer a villa e propoz voltarmos. Voltamos. Dois dias depois da nossa chegada fui, á noite, á Santa Thereza.
A casa estava fechada,, mas surdos sons de piano denunciavam moradores. Bati. Um cão ladrou na sombra e pouco depois uma criada appareceu na varanda, na faixa de luz que alastrava o ladrilho. Perguntei pelo engenheiro. Não estava. A criada, porém, pediu-me o nome, dei-lhe o meu cartão e, sem grande demora, vi abrir-se uma das portas da frente e fui introduzido numa pequena sala, dum gosto bizarro, onde logo senti o perfume entontecedor de Virgínia. VINGATIVA 349 Minutos depois ella entrava, mais bella que nunca. E
como me recebeu ! com que alegria estroina, achando-me forte, bonito, perguntando pelas suas cordiaes inimigas, querendo saber como haviam ficado aquellas senhoras depois da sua partida. Falou-me do marido : Lá fora para o Norte, coitado ! ao Espirito Santo, vêr umas terras por conta duma empreza. Lamentou a vida do pobre rapaz —
pouco parava em casa, sempre em viagens e ella sem poder acompanhá-lo, não que receiasse, até gostava daquella vida agitada e aventurosa, com os perigos nas florestas, nos rios encachoeirados, dormindo em ranchos, em barracas, com o fogo a arder para afugentar as feras, e homens sempre em armas para o caso d'uma surpreza de salvagens. Mas o marido oppunha-se temendo expô-la ás molestias que reinam nesses lugares virgens, onde tudo é bravio e hostil: o homem e a terra, o ar, a água e a luz.
Por fim, sem transição, falou-me de Elvira e os seus olhos brilhavam, a sua boca tornou-se ainda mais vermelha.
Procurei desculpar minha mulher com a molestia, ella sorriu derreando a cabeça e o seu pescoço alvo, polido, como que se desnudava moven-do-se vagarosamente.
— Nervos ... O senhor acha ? Ninguém é mais nervosa do que eu, e seria incapaz de fazer a uma inimiga o que ella me fez. Paciencia! arruinou.
Enchera m-se-lhe os olhos d'agua. Eu quiz dizer alguma coisa, mas . . . não sei! Aquelle pranto tornava-a mais linda, creio mesmo que ella tinha certeza de que as lagrimas lhe davam maior encanto, porque não se preoccupoucomellasdeixando-as 350 VINGATIVA
correr lentamente em dois globos que brilharam e cahiram na seda carmesi da blusa.
Ficámos um momento calados. De repente ella levantou-se respirando forte, foi á janella, fechou-a e, sem voltar-se : «Está frio, não acha ? » O tempo que ella ficou a fechar vagarosamente as portas en-vidraçadas, depois as folhas- de madeira, permittiu-me examinar-lhe o corpo ondulante e esbelto, a nuca, os cabellos fulvos.
«Vai ao theatro? » perguntou encaminhando-se para o meu lado num andar lento, alisando os cabellos das temporas.
— Não, senhora.
Ficou parada sob o lustre com um nimbo de luz na cabeça doirada, a oliiar-me. Depois, serenamente, sorrindo, caminhou e, muito perto de mim, insistiu :
— Está frio !
— Nem por isso.
— Nem por isso? Veja como tenho as mãos.
Estendeu-m'as e adiantou-se mais, ficando tão perto que eu sentia o seu vestido roçar-me nos joelhos.
Tomei-lhe as mãos ambas e todo o meu corpo poz-se a tremer e. quando levantei o olhar, dei com aquelles olhos terriveis que me abrasavam e com aquella boca em sangue, boca de vampiro, encantadora e má.
Não te sei dizer o que se passou naquelle minuto —
os nossos labios uniram-se e ella, sentada nos meus joelhos, tremendo convulsa, apertava-me nos braços e eu sentia-lhe o calor da face, a ardencia do halito, o estuar do collo. Ali ficamos até á hora em que a criada, batendo discretamente á porta, veiu chamá-la para o chá.
Levantei-me para VINGATIVA 351 sahir, ella prendeu-me e, aos beijos allucinados, fomos d'encontro ao piano e, rindo, ella pediu-me que ficasse.
Insisti na necessidade de partir, mentindo : Que deixara Elvira indisposta ; que tinha uma viagem na manhan seguinte. Foi inflexivel. Fiquei e, quando me despedi, ao luzir d'alva, ella, aos beijos, martyrisando-me deliciosamente com uma furia felina, exigiu que eu voltasse á tarde, promettendo deixar-me sahir cedo.
Elvira dormia quando cheguei á casa, já sol nado.
Despia:me quando ella acordou. Falei-lhe do Jayme que, como sabes, está convalescendo no Corcovado. Disse-lhe que fora jantar com elle e que perdera o trem, descendo no primeiro da manhan. Acreditou ou fingiu acreditar, mas como olhasse muito para o meu rosto, com uma expressão ironica, perguntei:
— Que é ?
— Nada . . . ! resmungou, voltando-se no leito.
Eu então, desconfiado, cheguei ao espelho e descobri na face uma grande mancha roxa, uma verdadeira ecchimose. Aquelles beijos ! Aquelles beijos !... Ás 2 horas sahi e, depois de uma volta pela rua do Ouvidor, attrahido por aquella mulher, corri para o bonde e lá fui, montanha acima, sofrego, achando que a viagem era vagarosa, que o bonde subia arras-tadamente, parando de segundo em segundo, e por um caminho que me parecia mais longo. Julguei que me houvesse enganado, mas não:
Lá estava a casa com as duas palmeirinhas á frente, o cara-manchão de rosas e a varanda. Que te hei de dizer que não tenhas adivinhado ?
Quando sahi era dia e Virgínia, alegre, veiu tra-
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zer-me ao jardim e ali, ao ar azul e cheiroso, no qual já se esparzia a dourada poeira do sol, deu-me o ultimo beijo.
Ah ! meu amigo, essa foi a minha primeira manhan de tortura. Como havia eu de entrar em casa ! Que havia de dizer ? Não me occorria uma idéa e, se procurava imaginar uma desculpa, só me acudiam á lembrança os delírios daquellas noites com aquella mulher, aquella desesperadora mulher !
Elvira recebeu-me severa, sem uma palavra e eu não pude mentir. Olhámo-nos calados e, como ella se afastasse, subi para o meu quarto e só, passeando, puz-me a pensar no meu procedimento infame, protestando nunca mais tornar aquella casa maldita, áquelles beijos, áquelle goso mortal. Mas, que queres ? voltei e foi hontem e só hontem eom-prehendi que aquella mulher diabólica não se entregara ao meu desejo por amor, senão por vingança e só por vingança me fizera pernoitar em sua casa.
Só hontem me convenci de que era o instrumento do seu ódio perverso, que o seu despeito andava a saciar-se em mim. É, como vês, um vampiro da peior espécie porque, senão sugava o meu sangue, levava-me a felicidade, o amor, a honra e quem sabe ? talvez me leve a vida.
Hontem, ao meu collo, sorrindo perversamente, perguntou: « Se Elvira já não tinha ciúmes de mim?
Como conseguira eu illudi-la, entrando em casa com o sol, dois dias seguidos» ? Contei-lhe tudo, falei-lhe dos meus receios. Ella riu ás gargalhadas, foi para o piano e pôz-se a cantar com aquella voz que é toda um amavio. VINGATIVA 353 — E ficaste ?
— Fiquei. Fiquei para ouvir a declaração odiosa da terrível criatura justamente quando me beijava allucinadamente : « Que estava vingada ! »
— De quem ? perguntei, e ella, contorcendo-se, disse-me, abrindo muito a boca, com asco :
— De tua mulher . . .
Quiz repelli-la, tive impetos de maltratá-la brutalmente e ella, percebendo o meu furor, longe de intimidar-se, abriu os braços entregando-se abandonadamente e, queimando-me com os olhos muito abertos, os cabellos espalhados pelo travesseiro, semi-nua, allucinadora, pôz-se a silvar :
— Faze o que quizeres, maltrata-me, injuria-me, mata-me, que me importa.! Ella ha de soffrer mais do que eu, porque gosta de ti . . .
— E tu ! ? exclamei rilhando os dentes.
Encolheu os hombros com indifferença. E, de pois de fitar-me, desatou a rir ás gargalhadas.
— Fugi, meu amigo, fugi para não commetter uma infamia e aquella mulher nua, torcendo-se a rir, parecia acompanhar-me, perseguir-me, pairando sobre mim, a vergastar-me com a sua gargalhada.
Eis o caso. E agora ? Que hei de fazer ? dize . . .
— Meu amigo, a tua aventura é realmente sinistra e tua mulher procedeu como devia, mas eu vou falar a Adelaide para que se vá entender com ella e creio que conseguiremos restabelecer a paz.
Quanto á tua Virgínia, essa não me dá cuidado por que, se ella se fez tua amante para vingar-se de tua mulher, por justiça não esquecerá as outras e, como a estação foi das mais concorridas, temos tempo para pensar. Como me parece que ella já está suffi-
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cientemente vingada de Elvira, oomo se vingou de D.
Clara, acho que podes esquecê-la.
— Que Clara ?
— Uma que esteve com vocês em Lambary, no hotel Bibiano : alta, gorda, com um menino .. .
— Sei.
— Pois essa senhora, que nunca se separou do marido, fazendo com elle um magnífico pendant para os « bem casados» da virtuosa villa, deixou-o, a pretexto de saúde e lá foi para a fazenda. Antes disso, porém, durante três ou quatro dias seguidos, encontrei o marido no largo da Carioca, á hora em que eu tomava o bonde para casa.
Elle ia para Santa Thereza jogar o pocker. Ora has de concordar que é preciso que os companheiros sejam excellen-tes para que um homem se abale todos os dias do alto da Tijuca para Santa Thereza só para jogar.
— Então essa mulher ? . . .
— Vinga-se das que a maltratam e do marido que é um idiota ou . . . Mas vamos entrar porque Adelaide deve estar sobresaltada, ima.ginando, com certeza, que se trata de coisa mais grave.
FIM
PORTO
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Millaud e Bcrtrand — Lisboa-Paris
1925