Vila Rica
VILA RICA
Cláudio Manuel da Costa (pseudônimo Glauceste Satúrnio)
VILA RICA
Poema de CLÁUDIO MANUEL DA COSTA, Árcade Ultramarino, com o nome de GLAUCESTE SATÚRNIO, oferecido ao Ilmo e Exmo Sr. Conde de Bobadela.
Ano de 1773 Ultra gargantas, et Indos proferet imperium VIRGÍLIO, Eneida, VI
ÍNDICE:
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Carta dedicatória Prólogo Fundamento Histórico Canto I
Canto II
Canto III
Canto IV
Canto V
Canto VI
Canto VII
Canto VIII
Canto IX
Canto X
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CARTA DEDICATÓRIA
Ilmo. e Exmo. Sr., Depois de haver escrito o meu Poema da fundação de Vila Rica, Capital das Minas Gerais, minha Pátria, a quem o deveria eu dedicar mais que a V.Exa.? Há muito que ansiosamente solicito dar ao Mundo um testemunho de agradecimento aos benefícios que tenho recebido da Excelentíssima Casa de Bobadela: este me persuado que o pode ser, se não pelo mais completo, ao menos pelo mais puro: a idade que o ler confessará ingenuamente que não obrou a lisonja, aonde sobressai a verdade. Dirão que adornei de louvores os preclaríssimos nomes de V.Exa. e do Esmo. Sr. Gomes Freire de Andrada, bem digno Irmão, mas poder-se-á conhecer ao mesmo tempo que me deu dilatadíssimo campo um merecimento a todas as luzes sólido, grande e incontestável.
Quem ignora que por quase trinta anos descansaram com felicidade nas mãos dos Exmos. Freires as Minas do Ouro do nosso Portugal? Quem não viu alegres os Povos, satisfeito o Monarca e conseguida em toda a sua extensão a igualdade da justiça por todo este espaço do saudoso governo daqueles Heróis? Pudera produzir muitas provas, se me não sobrasse por todas a mesma diuturnidade dos anos que refiro. Parece que o Rei desejava fazer eternos na proteção destes Vassalos, tão apartados do seu trono, aqueles espíritos que tanto apetecia ter ao seu lado: esta foi a maior significação de amor com que distinguiu aos moradores das Minas e este o testemunho maior com que qualificou o conceito que formava dos Excelentíssimos [Freires] .
Devera agora arrebatar-me na individual exposição de todas as virtudes de V.Exa., no elogio do seu esclarecido sangue, na portentosa série das suas ações: tudo tenho diante dos olhos, tudo me lisonjeia por extremo, e me estimula tudo.
Levantara uma nova Epopéia, que fizesse emudecer o rapto dos Mantuanos nos seus Marcelos; mas que posso dizer, se reconheço tão desigual o canto à vista do objeto que concebo! O Mundo me acusaria sempre de diminuto: e eu receberei grande vaidade de acabar com a ponderação deste embaraço o meu obséquio. Sou De V. Exa.
Humilde Servo, Cláudio Manuel da Costa PRÓLOGO
LEITOR, Eu te dou a ler uma memória por escrito das virtudes de um Herói que fora digno de melhor engenho para receber um louvor completo. Não é meu intento sustentar que eu tenho produzido ao Mundo um Poema com o caráter de épico; sei que esta felicidade não conseguiram até o presente aqueles homens a quem a Fama celebra laureados na Grécia, na Itália, em Inglaterra, em França e nas Espanhas. Todos se expuseram à censura dos críticos, e todos são argüidos de algum erro ou defeitos; a razão pode ser a que assina um bom Autor: inventaram-se leis aonde as não havia.
Mas doute, que eu não te ofereça mais que uma composição em metro, para fazer ver o distinto merecimento de um General que tão prudentemente pacificou um Povo rebelde, que segurou a Real Autoridade e que estabeleceu e firmou, entre as diferentes emulações de uns e outros Vassalos desunidos, os interesses que se deviam aos Soberanos Príncipes de Portugal: dirás que é digna de repreensão a minha empresa? Na verdade não espero do teu benigno ânimo esta correspondência: e tudo o que não for injúria ou acusação será para mim uma inestimável remuneração das minhas fadigas.
Se eu fiz alguma diligência por averiguar a verdade, digam-te as muitas Ordens e Leis que vês citadas nas minhas notas, e a extensão de notícias tão individuais com que formei o plano desta obra: pode ser que algum as conteste pelo que tem lido nos escritores da História da América; mas esses não tiveram tanto à mão as concludentes provas de que eu me sirvo; não se familiarizaram tanto com os mesmos que intervieram em algumas das ações e casos acontecidos neste País; e ultimamente não nasceram nele, nem o comunicaram por tantos anos como eu.
E se estas Minas, pelas riquezas que têm derramado por toda a Europa, e pelo muito que socorrem com a fadiga dos seus habitantes ao comércio de todas as nações polidas, eram dignas de alguma lembrança na posteridade, desculpa o amor da Pátria, que me obrigou a tomar este empenho, conhecendo tanto a desigualdade das minhas forças. Estimarei ver elogiada por melhor pena uma terra que constitui hoje a mais importante Capitania dos domínios de Portugal.
FUNDAMENTO HISTÓRICO
PERSUADIDO O AUTOR desta obra de que não serão bastantes as notas com que ilustrou os seus Cantos a instruir ao Leitor da notícia mais completa do descobrimento das Minas Gerais, da sua povoação e do aumento a que têm chegado os seus pequenos Arraiais, se resolveu a escrever esta preliminação histórica, em que protesta não pertender alterar a verdade a benefício de alguma paixão, e só se regula pelo mais crítico e incontestável exame, que por si e por pessoas de conhecida inteligência e probidade pôde conseguir sobre fatos que ou a tradição conserva de memória, ou escreveu raramente algum gênio curioso, que o testemunhou de vista.
Entre os desta conduta deu um importante socorro o Coronel Bento Fernandes Furtado, natural da Cidade de São Paulo, que há poucos anos faleceu no Serro do Frio, tendo sido morador no Arraial de São Caetano, distrito da Cidade Mariana.
Confiou ele do Autor em sua vida alguns apontamentos que fizera, e achando-os o Autor em muita parte dissonantes do que havia lido na História de Sebastião de Pita Rocha e outros escritores das cousas da América, procurou confirmar-se na verdade pelos monumentos das Câmeras e Secretarias dos Governos das duas Capitanias, São Paulo e Minas.
O Sargento-Mor Pedro Taques de Almeida Paes Leme, natural também da mesma Cidade de São Paulo, e ali morador, de estimável engenho e de completo merecimento, remeteu ao Autor desde aquela Cidade todos os documentos que conduziam ao bom discernimento desta obra, e regendo-se o Autor por Ordens Régias, Cartas de Governadores e atestações de Prelados Eclesiásticos, e manuscritos desde a era de 1682 achados nos arquivos que foram dos padres denominados da Companhia de Jesus naquela Província, facilmente poderá desculpar-se se oferece ao público este Poema, sem o receio de ser insultado nas opiniões que sustenta, ainda quando mais contestadas de uns e outros sectários.
Os naturais da Cidade de São Paulo, que têm merecido a um grande número de geógrafos antigos e modernos serem reputados por uns homens sem sujeição ao seu Soberano, faltos do conhecimento e do respeito que devem às suas leis, são os que nesta América têm dado ao Mundo as maiores provas de obediência, fidelidade e zelo pelo seu Rei, pela sua Pátria e pelo seu Reino.
A vigilância com que atendiam pela harmonia e utilidade econômica do seu País os aconselhou, muito antes que a todo o Portugal, a fazer sair das suas terras aos padres denominados da Companhia de Jesus; por sediciosos e maus, os puseram eles em um total extermínio em o mês de julho de 1640 e, por força de caridade indiscreta de Fernão Dias Paes contra o voto comum, foram depois restituídos a São Paulo em o ano de 1653.
Trabalharam incessantemente por adiantar os interesses do Real Erário e se gloriam de que fossem Carlos Pedroso da Silveira e Bartolomeu Bueno de Siqueira os primeiros Paulistas que apresentaram as mostras do ouro das Minas Gerais ao Governador do Rio de Janeiro, Antônio Paes de Sande, pelos anos de 1695.
Falecendo o dito Sande, ficou com o governo Sebastião de Castro Caldas, o qual remeteu a El-Rei D. Pedro as mostras do dito ouro em carta datada em o Rio de Janeiro, a 16 de junho do mesmo ano.
Por este tempo se serviu Sua Majestade de despachar a Artur de Sá e Menezes por Governador e Capitão General do Rio de janeiro, e por Carta Régia de 16 de dezembro de 1695 lhe ordenou passasse aos descobrimentos das minas do Sul a executar o que se havia encarregado a Antônio Paes de Sande, praticando com os Paulistas beneméritos as mesmas honras, e mercês de Hábitos, e foros de Fidalgos da Casa, conteúdos na Real Instrução, que pela Secretaria do Estado se expedira ao dito Sande. Depois por Carta Régia de 27 de janeiro de 1697 se mandou sair ao dito Sá com seiscentos mil réis de ajuda de custo em cada um ano, além do seu soldo.
Buscando porém as cousas na sua origem, segue o Autor por mais certa e prudente opinião não se poder averiguar indubitavelmente qual fosse o primeiro Paulista que descobriu as Minas Gerais, de que particularmente se trata nesta obra. É sem controvérsia que o primeiro objeto dos conquistadores de São Paulo foi o cativeiro dos índios, porque eles substituíam a falta dos escravos, que ao depois entraram em grande número das costas d'África.
Desde o estabelecimento daquela Povoação, que foi em 25 de janeiro de 1554, dia da conversão de São Paulo, de onde derivou o nome, se deve presumir que giravam muitos dos conquistadores pelo centro dos Sertões, e atravessavam as Minas, saindo em Bandeiras (que assim chamavam as companhias que para esta diligência se armavam), e recolhendose ao depois com a presa que facilmente podiam segurar.
Dos Sertões penetrados era o mais notável o da Casa da Casca, nome que se deu a uma Aldeia sobre as costas do Rio Doce, que vai fazer barra à Capitania do Espírito Santo e principia a formar-se desde o Córrego do Ouro Preto, recebendo em si imensos ribeiros e rios caudalosos. Destes Sertões se recolhia na era de 1693 Antônio Rodrigues Arzão, natural da Vila de Taboaté, com mais cinqüenta homens de sua comitiva. Chegado à Capitania doEspírito Santo, apresentou ao Capitão-Mor Regente daquela Vila três oitavas de ouro; a Câmara os recebeu com agrado e lhes subministrou os víveres e vestuários de que careciam, segundo as ordens que d'ElRei tinha.
Deste ouro se mandaram fazer duas memórias, uma, que ficou ao dito Arzão, e outra, que tomou para si o Capitão-Mor: aqui se fundamenta o episódio do Segundo Canto.
A denunciação desta limitada porção foi sem dúvida a primeira que se fez de ouro que se descobria nas Minas Gerais; e a de que se conserva memória em São Paulo, que é a de Carlos Pedroso da Silveira, por algumas circunstâncias discorre o Autor ser posterior a ela. Antônio Rodrigues Arzão, não podendo ajuntar na Vila do Espírito Santo a gente que precisava para segunda vez tornar aos Sertões, se passou ao Rio de Janeiro e daí para São Paulo: nesta Cidade, ferido gravemente dos trabalhos que passara, enfermou e veio a morrer finalmente, deixando encarregado a Bartolomeu Bueno, seu cunhado, de continuar no descobrimento de que havia apresentado as mostras.
Era Bartolomeu Bueno dotado de bastante agilidade e fortaleza de espírito e, como tinha perdido em jogos todo o seu cabedal, foi fácil querer melhorar de fortuna, tomando sobre si, com o favor de alguns amigos e parentes, a grande empresa a que havia dado princípio Antônio Rodrigues Arzão.
Convocados todos e guiados pelo roteiro que lhes deixara o falecido, saíram da Vila de São Paulo pelos anos de 1694. Romperam os matos gerais, e servindo-lhes de norte o pico de algumas serras, que eram os faróis na penetração dos densíssimos matos, vieram estes generosos aventureiros sair finalmente sobre a Itaverava, serra que de Vila Rica dista pouco mais de oito léguas: aí plantaram meio alqueire de milho; e porque o Sertão era mais estéril de caça que o do Rio das Velhas, para este passou Bartolomeu Bueno a tropa, enquanto madurava a pequena sementeira de que esperava manter-se, para continuar o descobrimento.
No ano seguinte, que foi o de 1695, voltaram os referidos sertanistas a colher a sua planta, e entrando na Itaverava foram encontrados do Coronel Salvador Fernandes Furtado e do Capitão Manuel Garcia Velho e outros, conquistadores também do Gentio e povoadores das Vilas que ficam ao leste de São Paulo: já então trabalhavam com algum desembaraço os primeiros sertanistas, ajudados de um grande número de índios, que haviam cativado nos sertões do Caeté e Rio Doce;
mas como lhes obstava a falta de experiência necessária, e não tinham instrumentos de ferro para a laboreação, apenas se contentavam com o pouco que podiam apurar em pequenos pratos de pau ou de estanho, servindo-lhes os mesmos paus aguçados de cavar a terra e descobrir os cascalhos, formações em que se conserva e se cria o ouro.
Quis Miguel de Almeida, um dos companheiros do Bueno, melhorar de armas, e propôs ao Coronel Salvador Fernandes Furtado a troca de uma clavina, dando-lhe por avanço todo o ouro que se achasse nos da comitiva; aceitou o Coronel a oferta, e dando-se busca ao ouro, se não achou entre outros mais que doze oitavas;
recebeu-as o Coronel, e como Manuel Garcia Velho quisesse ter a vaidade de aparecer com todo aquele ouro em São Paulo, cometeu ao Coronel a venda de duas índias, mãe e filha, a preço das doze oitavas: conveio este no trato e compra das índias, as quais catequizadas, se batizou uma com o nome de Aurora, e outra com o de Célia. Desta última há notícia que faleceu há poucos anos na Vila de Pitangui, em casa de uma filha casada do dito Coronel, e aqui tem fundamento histórico o episódio de Aurora.
Despedidos uns sertanistas dos outros, partiu ufano para São Paulo o Capitão-Mor Manuel Garcia Velho; entrando na Vila de Taboaté, aí o foi visitar Carlos Pedroso da Silveira; e porque lhe não faltava habilidade e engenho para se conciliar com os patrícios, houve a si as doze oitavas de ouro; com elas se passou ao Rio de Janeiro, apresentou-as ao Governador (como já se disse) e foi premiado com a patente de Capitão-Mor da Vila de Taboaté.
Conseqüentemente o nomeou o mesmo Governador Provedor dos Quintos, concedendo-lhe as ordens necessárias para estabelecer fundição na mesma Vila, por ser ela a povoação onde desembarcavam primeiro os conquistadores. Por este modo se vê que, posto que Antônio Rodrigues Arzão denunciasse primeiro que Carlos Pedroso da Silveira as três oitavas de ouro que descobriu nas Minas Gerais, a sua morte impediu o progresso desta denunciação, e ficou Carlos Pedroso conseguindo a glória de apresentar o ouro que ele não descobrira.
O descobrimento pois denunciado pela interposta pessoa de Carlos Pedroso da Silveira e o estabelecimento da Casa da Fundição em Taboaté foram os dous fortes estímulos que animaram os Paulistas a armarem tropas, a prevenirem-se de alguma fábrica mais proporcionada ao uso de minerar, e a desampararem a Pátria, rompendo os matos gerais desde a grande Serra do Lobo, que divide a Capitania de São Paulo, até penetrarem o mais recôndito das Minas, menos) á na conquista do Gentio, que na diligência do ouro.
O grande número de concorrentes que buscavam as Minas, e a emulação que logo se acendeu entre os da Vila de São Paulo e os naturais de Taboaté fez que, estendidos por várias partes, buscasse cada um novo descobrimento em que se estabelecesse, não se contentando os Paulistas de entrarem em parte nas repartições das faisqueiras que denunciavam os de Taboaté, nem estes nas que denunciavam os Paulistas.
Esta opinião, que tinha um semblante de fanatismo, por serem todos da mesma Pátria, posto que de diferentes distritos, veio finalmente a produzir a grande utilidade de se desentranharem em toda a sua extensão as minas do nosso Portugal, de serem penetradas de uns e de outros, não se perdoando ao rio mais remoto e caudaloso, nem à serra mais intratável e áspera, se bem que o conhecimento do ouro nas montanhas e serras veio a conceber-se mais tarde que o dos rios e seus taboleiros, que são as margens planas que os cercam dos lados.
E porque não é intento do Autor cansar ao Leitor com a multiplicidade dos nomes de tantos que têm a glória de descobridores, e apenas podem ser conhecidos dentro das suas famílias e pátria, e menos noticiar individualmente os rios, córregos e serras que por sua ordem se foram descobrindo, de que tudo tem uma verídica e suficiente informação, só pelas datas dos tempos fará ver ao curioso quais foram aqueles que deram ao manifesto as faisqueiras mais avultadas em que hoje se acham criadas as Vilas do Ouro Preto, a Cidade Mariana, a Vila do Sabará, a do Caeté, a de São João d'El-Rei, a de São José e a do Príncipe no Serro do Frio, que fazem as cabeças das quatro Comarcas da Capitania das Minas Gerais.
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Vila do Carmo, hoje Cidade Mariana 1699 MIGUEL GARCIA, natural de Taboaté, foi o primeiro que deu ao manifesto um córrego que faz barra no Ribeirão do Carmo, e se compreende no distrito da Cidade Mariana: fez a repartição o Guarda-Mor Garcia Rodrigues Velho, com assistência do Escrivão das Datas, o Coronel Salvador Fernandes Furtado. O Ribeirão chamado o do Carmo descobriu pelo mesmo tempo João Lopes de Lima, natural de São Paulo, e o manifestou em 1700: repartiuse, e porque as faisqueiras eram invencíveis pela grande frialdade das águas, despenhadeiros e matos cerradíssimos que o cercavam de ambas as margens, tanto, que só permitia trabalhar-se dentro dele quatro horas do dia, além da grande penúria dos mantimentos, que chegou a trinta, e quarenta oitavas o alqueire de milho, e o de feijão a oitenta oitavas, foi fácil desampararem os mineiros por algum tempo a sua Povoação, e só permaneceu nela o Coronel Salvador Fernandes Furtado. Dista este Ribeirão até a barra do Rio Doce 16 te 18 léguas, e pela volta do Rio se computam 30. Está situada em 20 graus e 21 minutos.
Passou a ser Vila por criação do Governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, em 8 de abril de 1711.
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Ouro Preto, ou Vila Rica O OURO PRETO, que compreende em si vários ribeiros e morros com diferentes denominações, como são Passadez, Bom Sucesso, Ouro Fino, ou Bueno etc, teve por descobridores nos mesmos anos de 1699, 1700, 1701 Antônio Dias, natural de Taboaté, ao Padre João de Faria Fialho, natural da Ilha de São Sebastião, que viera por Capelão das Tropas de Taboaté, a Tomás Lopes de Camargo, que se sitiou nas lavras, que ao depois vieram a ser de Pascoal da Silva, e a Francisco Bueno da Silva, ambos Paulistas, e este último primo do primeiro descobridor da Itaverava, Bartolomeu Bueno: de todos estes tomaram nome alguns bairros de Vila Rica. Foi criada a Vila pelo Governador Albuquerque, no dia 8 de julho de 1711; está situada em 20 graus e 24 minutos ao poente.
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Sabará TENDO SIDO ATRAVESSADO o dilatadíssimo sertão do Sabará-Bussu muito antes de qualquer outro das Minas, porque os primeiros conquistadores demandavam o Rio das Velhas, cujas dilatadas campinas eram mais povoadas dos Gentios e férteis de caça, e as primeiras diligências do ouro e pedras se fizeram ao norte de São Paulo, consta que o seu descobridor, ou denunciante das suas faisqueiras, fora o Tenente-General Manuel de Borba Gato, natural de São Paulo, de cuja história se faz menção no Canto nl. O descobrimento foi na era de 1700. Assistiu à repartição o Governador Artur de Sá e Menezes: passou Sabará a ser Vila em 17 de julho de 1711, por criação do Governador Antônio de Albuquerque: a sua situação é em 19 graus e 52 minutos.
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Caeté, Vila da Rainha ENTRE o SABARÁ e o Arraial de Santa Bárbara se criou a Vila Nova da Rainha, conhecida ainda pelo nome brasílico de Caeté, que vale o mesmo que mato bravo, sem mistura alguma de campo: foi descobrimento do Sargento-Mor Leonardo Nardes, Paulista, e de uns fulanos Guerras, naturais da Vila de Santos. O
Governador D. Brás da Silveira lhe deu o foral de Vila em 29 de janeiro de 1714, por virtude da faculdade concedida ao seu antecessor Antônio de Albuquerque. Está situada em 19 graus e 55 minutos.
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Rio das Mortes, Vila de São João e São José O Rio DA MORTES, que os Paulistas e viandantes das mais partes atravessavam freqüentemente, por distar nos primeiros tempos do Ouro Preto pouco mais de cinco dias de jornada ordinária, foi descoberto por Tomé Portes d'El-Rei, natural de Taboaté, passados muitos anos depois do descobrimento das primeiras povoações.
Aí se criou a Vila de São João d'ElRei, ficando-lhe ao nascente a de São José, no lugar então chamado a Ponta do Morro; foi descobrimento de José de Siqueira Afonso, natural de Taboaté. Foram criadas estas Vilas pelo Governador D. Pedro de Almeida, em 19 de janeiro de 1718. A Vila de São João está em 21 graus e 20 minutos; São José em 21 e 5.
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Serro Frio, Vila do Príncipe ANTÔNIO SOARES, natural de São Paulo, avançando maior salto que todos os outros, atravessou os Sertões ao norte de São Paulo, descobriu o grande Serro vulgarmente chamado o do Frio, que na língua gentílica era tratado por Hivituraí, por ser combatido de frigidíssimos ventos, todo penhascoso e intratável: do seu descobridor proveio o nome a uma das suas serras, que hoje se conhece pelo Morro d'Antônio Soares. Neste descobrimento se associou um Antônio Rodrigues Arzão, descendente do primeiro Arzão, de quem já se deu notícia. As grandes preciosidades deste continente em ouro, diamantes e todo o gênero de pedras estimáveis são bem conhecidas por toda a Europa: nele se estabeleceu o Real Contrato Diamantino, que tem devido aos Senhores Reis de Portugal a maior vigilância e zelo. A Capital denominada Vila do Príncipe foi criada por D. Brás da Silveira, em 29 de janeiro de 1714. Está situada em 18 graus e 23 minutos.
Discorrendo por entre a grande extensão destas quatro Comarcas, apenas se achará rio, córrego ou serra que não devesse aos Paulistas o descobrimento das suas faisqueiras, e estes são os serviços com que se têm acreditado, além de muitos outros, os naturais da Cidade de São Paulo.
Digam agora os geógrafos que todos são mamelucos; arguam-lhes defeitos que nunca tiveram; sirva-lhes de injúria o haverem nascido entre aquelas montanhas: as almas é certo que não têm Pátria, nem berço; deve-se amar a virtude onde ela se acha: nenhuma obrigação tinha a natureza de produzir só na Grécia os Alexandres, só em Roma os Cipiões.
Qui pur s'intende Di gloria il nome, e la virtù s'onora, A l'Alessandri suvi l'Idaspe ancora.
O ABADE PEDRO METASTÁSIO, no Drama de Alexandre *
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Primeira divisão das Comarcas EM 6 DE ABRIL DE 1714 se fez a divisão das Comarcas com assistência do Sargento-Mor, Engenheiro Pedro Gomes Chaves, e do Capitão-Mor Pedro Frazão de Brito, e se assentou que a Comarca de Vila Rica se dividisse dali em diante da de Vila Real, indo pela estrada de Mato-Dentro pelo ribeiro que desce da Ponta do Morro, entre o sítio do Capitão Antônio Ferreira Pinto e do Capitão Antônio Correia Sardinha, e faz barra no Ribeirão de São Francisco, ficando a Igreja das Catas Altas para a Vila do Carmo, e pela parte da Itaubira se faz divisão no mais alto do morro dela, e tudo o que pertence a águas vertentes para a parte do sul tocará à dita Comarca de Vila Rica, e para a parte do norte tocará à Comarca de Vila Real. O
Ribeirão das Congonhas, junto do qual está um sitio chamado Casa Branca, servirá de divisão entre as Comarcas de Vila Rica e de São João d'El-Rei, devendo tocar a Vila Rica tudo o que se compreende até ela vindo do dito ribeirão para as Minas Gerais; e do mesmo pertencerá à Comarca de São João d'El-Rei tudo o que vai até à Vila de Guaratinguetá pela Serra da Mantiqueira. Presidiu a esta repartição o Governador D. Brás Baltezar da Silveira, e assinaram nela todos os Procuradores das Vilas. Consta do Livro dos Termos na Secretaria do Governo, à fl.36.
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Série dos Governadores TORNANDO A SÉRIE dos Governadores que ou entraram nas Minas, tendo anexas as Capitanias de São Paulo e Rio de janeiro, ou que particular e sepa radamente as governaram, a que aludiu o Autor naquele verso.- Fernando, Artur e D. Rodrigo, o morto - é sem dúvida que deixados alguns governos interinos de ordem d11-Rei, ou sem ela, sucederam na administração das Minas Gerais todos os que se apontaram cronologicamente no Canto IX.
Recolhia-se Fernão Dias Paes a enviar a El-Rei as mostras das esmeraldas, e deixando a seu genro Manuel de Borba Gato, morador no Rio das Velhas, a pólvora e o chumbo, e mais petrechos e ferramenta da sua laboreação para tornar às Minas logo que recebesse as Reais Ordens. Saía D. Rodrigo por este tempo (que seria pouco mais ou menos na era de 1681) acompanhado de alguns Paulistas, como foram Matias Cardoso, Domingos do Prado, João Saraiva de Morais, Manuel Francisco, pai de Salvador Cardoso, Domingos do Prado, pai de Genuário Cardoso, e vários outros que tinham a prática dos sertões das Minas.
Avizinhando-se D. Rodrigo ao Borba, no intento de querer passar às minas das esmeraldas, lhe mandou pedir o socorro, que precisava de pólvora e chumbo, e dos mais instrumentos de ferro: repugnou o Borba, a pretexto da espera em que estava de seu sogro Fernão Dias Paes; e querendo os que acompanhavam ao Fidalgo ir à força despojar o Borba do que pediam, pacificou D. Rodrigo este primeiro ímpeto, tomando sobre si a consecução do negócio por meios menos arriscados.
Desordenou a imprudência de um ameaço toda a felicidade do empenho; e ainda que sem mandato expresso do Borba, foi morto D. Rodrigo nessa ocasião por uns pajens, ou bastardos, que viviam agregados a ele: a esta morte se seguiu salvar-se engenhosamente o Borba, afetando a repentina chegada de Fernão Dias Paes; e em conseqüência da fugida, em que para logo se puseram os Paulistas acima nomeados, foram eles os primeiros que se entranharam pelo Rio de São Francisco, e povoaram e encheram de gados as suas margens, de que hoje se sustenta o grande corpo de Minas Gerais; nem mais quiseram voltar para a Pátria, envergonhados do engano em que haviam caído.
Temeroso o Borba de que o buscassem as justiças, e que sobre a sua prisão fizesse El-Rei as maiores diligências, se meteu aos sertões do Rio Doce com alguns Índios domésticos da sua comitiva: aí viveu vários anos respeitado por Cacique, sem mais lei, ou civilidade, que aquela que podia permitir uma comunicação entre bárbaros.
Estimulado contudo dos remorsos da consciência, cuidou em mandar dous Índios práticos a São Paulo a tomar alguma inteligência dos seus parentes sobre o estado em que se achava o seu crime; estes lhe facilitaram o acesso ao Governador Artur de Sá e Menezes, recentemente chegado àquela Capitania; falou-lhe Artur de Sá com afabilidade e lhe prometeu o perdão em nome d'El-Rei, contanto que ele fizesse certo o descobrimento que denunciava do Rio das Velhas.
Bem se pode considerar o estado em que se achariam as Minas por todo este tempo, em que só o despotismo e a liberdade dos facinorosos punham e revogavam as leis a seu arbítrio. O interesse regulava as ações, e só se cuidava em avultar em riquezas, sem se consultarem os meios proporcionados a uma aquisição inocente. A soberba, a lascívia, a ambição, o orgulho e o atrevimento tinham chegado ao último ponto.
Aprestado o Borba, e socorrido de muitos parentes e amigos, acompanhou a Artur de Sá, chegou ao Rio das Velhas; deu ao manifesto este descobrimento, e se fez digno, pela grandeza das suas faisqueiras, que o Governador o premiasse com a patente de Tenente-General de uma das praças do Rio de Janeiro.
Pouco tempo se demorou Artur de Sá no Rio das Velhas; lavrado o mais fácil daqueles ribeiros, se retirou outra vez para São Paulo, substituindo-lhe uma espécie de jurisdição no Cível e no Crime o Mestre de Campo dos Auxiliares, Domingos da Silva Bueno, Guarda-Mor das Repartições das Terras e Datas Minerais, criado pelo mesmo Governador.
Com a ausência de Artur de Sá, como corpo sem cabeça, tornaram as Minas à primeira desordem: as distâncias das quatro Comarcas já penetradas, e cheias de um grande número de povoadores de diferentes Capitanias, que tinham entrado, dificultavam as providências de um só homem, em quem ainda não acabavam de reconhecer os povos a jurisdição de que estava encarregado.
Por este tempo se começaram a suscitar os ódios entre os filhos de São Paulo e os naturais de Portugal, que eles denominavam Buabas. Dous religiosos, cujos nomes e religiões se não declaram por se evitar o escândalo, fomentaram todo o calor desta desunião. Viviam eles na liberdade que permitia o País, e a impulsos de uma desordenada ambição atravessara com três arrobas de ouro o fumo e a cachaça, ou aguardente da terra, para a venderem monopolizadamente pelo mais alto preço.
Quiseram logo praticar o mesmo com a carne dos gados, e encontrando a oposição dos Paulistas, resolveram acabar com eles, expelindo-os de uma vez das Minas, que eles haviam conquistado, e em que estavam estabelecidos com as suas famílias e fábricas.
Sucedendo uns fatos a outros, e tomando corpo a emulação, conseguiram os Europeus a expulsão e despejo dos Paulistas pelos anos de 1709 para 1710, regendo-os nesta ação os dous Chefes, Manuel Nunes Viana, com o caráter de Governador, com que o decoravam os seus, e Antônio Francisco, com o de Mestre de Campo, por nomeação do mesmo Viana.
Quais fossem estes dous homens, o dão bem a conhecer as notas que se ajuntaram ao Canto Quinto e Sexto e, posto que pelo que respeita a Viana se citasse só o testemunho do Conde de Assumar em uma carta registada no Livro n° 7 da Secretaria do Governo das Minas Gerais, no mesmo Livro se encontram infinitas outras, que acusam as intrigas, sublevações e desordens que ele continuava a maquinar nos distritos, onde vivia, do Rio das Velhas, as quais por brevidade se não transcrevem. Quanto a Antônio Francisco, o mesmo Conde dá um testemunho do seu caráter na carta escrita ao Doutor Valério da Costa Gouvea, Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes, datada em 14 de março de 1718, páginas 22 e 23; nela se lêem estas palavras:
Eu não sei se me expliquei bem, quando falava a V. Mcê. na minha antecedente no extermínio deste homem, porque, se queria saber de V. Mcê. o partido com que aí me achava, era julgando ser precisa a prisão, porque bem sabia eu que os perturbadores e sediciosos não só podiam, mas deviam ser expulsados; a dificuldade só que se me oferecia era no modo de o fazer, porque a desgraça deste País é tal, que sendo de tão baixo nascimento este homem é daqueles que se não prendem para se soltarem.
Fazendo, porém, justiça, é certo que entre os rebeldes e levantados daquele tempo, tinha melhor índole que todos o suposto Governador Manuel Nunes Viana: não consta que cometesse, por si ou por algum de seus confidentes, positivamente ação alguma nociva ao próximo; desejava reger com igualdade o desordenado corpo que se lhe ajuntara; acolhia afavelmente a uns e a outros; socorria-os com os seus cabedais; apaziguava-os, compunha-os, e os serenava com bastante prudência;
ardia porém por ser Governador das Minas e, se tivesse letras, se podia dizer que trazia em lembrança a máxima de César - Si violandum est jus, regnandi gratia violandum est.
Este projeto lhe desordenava a serenidade do ânimo, e o punha na consternação de dissimular os insultos daqueles a quem era devedor do mesmo lugar que ocupava:
sobre este artigo é que o Autor o acusa nesta obra; sendo certo que a obediência aos Soberanos se deve tributar sem algum rebuço, e que nada tão sagradamente deve respeitar um fiel Vassalo.
Atormentavam os ouvidos de D. Fernando Martins de Mascarenhas os tumultos e desordens em que estavam as Minas, e querendo pessoalmente sossegá-las, marchou para elas desde o Rio de janeiro em o mês de junho de 1710. Chegou ao Rio das Mortes com o intento de passar ao Ouro Preto, aonde residiam principalmente os Chefes dos levantados: ofereceram-se-lhe alguns Paulistas e filhos de Portugal mais bem intencionados para o acompanharem nesta diligência;
ele porém não consentiu no obséquio, por evitar assim algum ruído maior entre os sublevados; não cessaram contudo eles de fazer espalhar a notícia de que D.
Fernando trazia cargas de correntes e outros instrumentos de ferro para punir aos cúmplices do levantamento e conspiração contra os Paulistas.
Derramada esta voz pelas Gerais, se dispôs Manuel Nunes Viana a disputar-lhe a entrada; armou então de política e cortejo um grande número de homens de cavalo, e repartiu ordens por todos os distritos circonvizinhos ao Ouro Preto, que com pena de morte se aprontassem aqueles moradores para uma diligência. Chegava D.
Fernando ao Arraial das Congonhas, distante oito léguas de Vila Rica, quando os que acompanhavam a Viana, avistando de longe ao Governador, clamaram em altas vozes: Viva o nosso Governador Manuel Nunes Viana, e morra D. Fernando, se não quiser voltar para o Rio de janeiro!
Alguns se querem persuadir que Manuel Nunes Viana entrara violentado nesta ação, e ele se pertendeu escusar do conceito de rebelde e sublevado, passando ocultamente na noite seguinte a falar a D. Fernando, protestando-lhe estar pronto para entregar o governo quanto à sua parte, e de tudo isto lhe pediu por escrito uma atestação.
Assustou-se o Governador com a inesperada saudação dos rebeldes, e pediu oito dias para se retirar: concederam-se-lhe estes, mas não se aproveitou D. Fernando do beneficio, porque sem muita demora deu as costas às Minas e voltou para São Paulo; aí trabalhava ansiosamente em se reforçar com os Paulistas, para vir sobre os levantados, fazendo comua a afronta deles, e meditando para o seu despique puxar as tropas do Rio e Bahia, e juntos por uma parte e outra atacarem todos ao mesmo tempo as Minas.
Chegou ao Rio de Janeiro a frota de Portugal, e nela veio render a D. Fernando o Governador e Capitão General Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, por patente datada em Lisboa em 23 de novembro de 1709.
Sem perda de tempo se pôs em marcha para as Minas, e levando a resolução de entrar nelas disfarçado como qualquer particular, buscou o Arraial do Caeté a avistar-se com um Sebastião Pereira de Aguilar, filho da Bahia, homem rico e poderoso, de conhecido valor e espírito, que tinha por então tomado sobre si atacar a Manuel Nunes Viana e todos os seus parciais pelas injustiças e violências que praticavam, especialmente com os filhos do Brasil de qualquer Província, a quem tinha transcendido o ódio conciliado contra os Paulistas.
Consta que o dito Sebastião Pereira de Aguilar escrevera a São Paulo a D.
Fernando Martins de Mascarenhas, oferecendo-se-lhe para lhe segurar o governo com o poder de muitas armas e gentes que tinha já adquirido; e talvez foi este o motivo que obrigou a Albuquerque a buscar na sua entrada aquele distrito do Caeté, hoje Vila Nova da Rainha.
Na passagem que fez a comitiva de Albuquerque pelos levantados, foi conhecido de Antônio Francisco o Capitão José de Souza, que vinha na sua guarda:
cumprimentaram-se sem algum susto, por ter servido o dito Antônio Francisco de soldado na praça da Colônia, na Companhia do mesmo Capitão. Este lhe deu a notícia de haver entrado já nas Minas o Governador, e o capacitou com fortes persuasões a que o buscassem, e se lançassem a seus pés os Chefes dos levantados, se queriam melhorar de semblante na sua causa.
A perturbação em que se via posto o governo de Viana, combatido pela parcialidade avultada de Sebastião Pereira de Aguilar, e os ameaços de um formidável castigo, que de ordem d'El-Rei acabava de insinuar o Capitão José de Souza, obrigaram a Manuel Nunes Viana, a Antônio Francisco e a muitos outros cabeças do levantamento a partirem sem demora para o Arraial do Caeté: aí se achava hospedado o Governador em casa de uns três irmãos, naturais também da Bahia, que eram José de Miranda Pereira, Antônio de Miranda Pereira e Miguel Alves Pereira, talvez parentes ou amigos de Sebastião Pereira de Aguilar.
Prostraram-se aos pés de Albuquerque os rebeldes, e desculparam como lhes foi possível os seus crimes: o Governador os recebeu afavelmente, não querendo usar do poder e das ordens de que vinha fortalecido; segurou a todos o perdão pela emenda que dessem a conhecer para o futuro; e não tardou a capacitar a Manuel Nunes e Antônio Francisco que não convinha a assistência deles nas Minas Gerais, por sossegar de uma vez o tumulto dos povos.
Retiraram-se com este conselho os dous para as fazendas que tinham nos Sertões:
sossegou o povo com a ausência dos Patronos, e prosseguiu Albuquerque na criação das Vilas e estabelecimento da Capitania. Bem é de ver quanto suor e fadigas empregaria o prudente General em segurar o fim de uma tão escabrosa como interessante empresa. Foi ele o primeiro que susteve com desembaraço as rédeas do governo; que pisou as Minas com luzimento e firmeza do caráter, em que El-Rei o pusera; que promulgou as leis do Soberano, e fez respeitar neste Continente o seu nome. Esta a heroicidade que lhe considera o Autor por virtude da qual o contempla digno do elogio com que honra Solis ao seu Cortês:
Admirável conquista, e sempre ilustre Capitão! Daqueles que vagarosa mente produzem.os séculos, e de que há raros exemplos na História!
Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho sucedeu D. Brás Baltezar da Silveira, o qual tomou posse na Comarca de São Paulo, em 1713, e passou para as Minas nos fins de setembro do dito ano.
A este sucedeu em 1717 0 Conde de Assumar, D. Pedro de Almeida, que passou para as Minas em setembro do dito ano. Foi o seu governo bastantemente crítico por encontrar a oposição dos povos na criação das Casas da Fundição. Subjugou heroicamente alguns levantados e sublevações, principalmente os de Pitangui, fulminados por Domingos Rodrigues do Prado, e o de Vila Rica, que foi ter a Mariana em 28 de junho do ano de 1720: aqui se lhe fez perciso prender a uns e castigar a outros com a última pena.
Estes procedimentos lhe adquiriram o nome de tirano nas Minas; mas à sua constância e resolução deve Portugal a inteira sujeição da Capitania; o exemplar castigo acabou de aterrar os ânimos de um povo tantas vezes rebelde e segurou de uma vez a Real Autoridade.
Quod si non aliam venturo fata Neroni Invenere viam, magno que Eterna parantur Regna Deis, CÊlumque suo servire Tonanti Non nisi sÊvorum potuit post bella Gigantum jam nihil, ó Superi, querimur, scelera ista nefasque Hac mercede placent.
LUCANO, Pharsal., Liv. 1, v. 33.
Durou o governo do Conde de Assumar até o ano de 1721, em que o substituiu D.
Lourenço de Almeida, que foi o primeiro Governador positivo das Minas, porque nele se separou a Capitania de São Paulo em governo à parte, ficando os Generais respectivos só com sujeição aos ViceReis do Estado.
Tomou D. Lourenço de Almeida posse na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ouro Preto, com assistência da Câmera, em 18 de agosto de 1721.
A D. Lourenço de Almeida sucedeu o Conde das Galveas, André de Melo e Castro, que tomou posse em o 10 de setembro de 1732, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias.
O Conde das Galveas deu posse a Gomes Freire de Andrada, em 26 de março de 1735.
Mediaram alguns governos, como foi o de Martinho de Mendonça Pina e Melo na ida que fez o dito Conde de Bobadela ao Rio de Janeiro, em 15 de março de 1736; foi outra vez levantado o pleito de homenagem em 26 de dezembro de 1737.
Pelos tempos em que se deteve no Uraguai com a Real Comissão do Tratado de Limites, substituiu seu irmão José Antônio Freire de Andrada, Conde atual de Bobadela, o governo das Minas. Igualmente falecendo em o 1.° de janeiro de 1763, se praticou a via de sucessão no Exmo. Bispo D. Frei Antônio do Desterro, e nos mais chamados por ela, te que no ano de 1763, em 28 de dezembro, entrou no governo o General Luiz Diogo Lobo da Silva.
Este Governador, enchendo de merecimento os dias do seu governo, deu a posse ao Exmo. Conde de Valadares, em 16 de julho de 1768.
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Descobrimento das esmeraldas, de que se faz menção no Canto Oitavo DA o AUTOR uma idéia deste descobrimento, conforme o que leu em um Poema manuscrito de Diogo Grasson Tinoco, feito no ano de 1689; e mostra quanto trabalhou nesta empresa Fernão Dias Paes, natural de São Paulo.
A 27 de setembro de 1664, cometeu o Senhor Rei D. Afonso VI a Agostinho Barbalho a empresa do descobrimento das esmeraldas, facilitando-lhe o fim deste negócio com uma carta, que escreveu o mesmo Senhor a Fernão Dias Paes, cujo zelo e capacidade já era bem conhecida naquela Corte, na qual lhe ordenava desse todo o socorro necessário para a conclusão deste particular. Esta carta fez tanta impressão no espírito generoso de Fernão Dias Paes, como se pode coligir da presteza com que satisfez as primeiras ordens que nela se continham, e bem o refere Diogo Grasson na oitava 27 do seu panagírico ao mesmo Fernão Dias.
Lendo-a Fernão, achou que EI-Rei mandava Dar-lhe ajuda, e favor para esta empresa, E em juntar mantimentos se empenhava Com zelo liberal, rara grandeza;
Mas porque exausta a terra então se achava, E convinha o socorro ir com presteza, Mandou-lhe só cem negros carregados À custa de seus bens, e seus cuidados.
Depois de passados alguns anos, tempo em que já estava no Trono o Senhor D.
Pedro ii, sabendo Fernão Dias que com a morte de Agostinho Barbalho não tiveram efeito as ordens que trouxera, se quis encarregar voluntariamente da execução delas, escrevendo primeiro a Afonso Furtado de Mendonça, Governador que era então daqueles Estados, e tinha a sua residência na Bahia, oferecendo-se-lhe para este fim com a sua pessoa, e com todos os seus bens: mandou-lhe Afonso Furtado uma patente de primeiro Chefe daquela empresa aos 3o de abril de 1672. Nos princípios do ano de 1673 se pôs Fernão Dias em marcha com vários parentes e amigos seus, demandando a altura em que Marcos de Azeredo fazia certo o descobrimento das esmeraldas, em cuja diligência sofreu trabalhos infinitos, como testifica o seu panagerista na oitava 35.
Parte enfim para os serros pertendidos, Deixando a Pátria transformada em fontes, Por termos nunca usados, nem sabidos, Cortando matos, e arrasando montes;
Os rios vadeando mais temidos Em jangadas, canoas, balsas, pontes, Sofrendo calmas, padecendo frios Por montes, campos, serras, vales, rios.
Desta sorte chegou à paragem chamada pelos naturais Anhonhecanhuva, que quer dizer água que se some, e entre nós tem o nome de sumidouro. Aqui se deteve Fernão Dias por espaço de quatro anos com pouca diferença, e fez várias entradas no Sobra Bussu, que val o mesmo que cousa felpuda, e é uma serra de altura desmarcada, que está vizinha ao Sumidouro, a qual chamam todos hoje Comarca do Sabará. Nela achou diversa qualidade de pedras, que por falta de prática se lhes não soube dar o valor de que talvez eram dignas. Da demora que aqui teve Fernão Dias, e do muito que aqui sofreu, teve origem a discórdia entre muitos dos seus companheiros, pois quase todos conspiraram contra a sua vida, e por último o deixaram só.
Vendo-se Fernão Dias neste desamparo, não esmorece, antes entra a cuidar na brevidade da sua derrota, com ânimo de buscar a endireitura chamada Vupabussu, que soa na nossa língua lago grande, e junto deste é que se supunham os socavões das esmeraldas. Achava-se Fernão Dias falto do necessário para adiantar o giro desta expedição. Escreve à Pátria e ordena à mulher não se lhe negue cousa alguma do que pede. Assim o diz a oitava 4 do seu elogio.
Isto suposto, já para a jornada Manda à Pátria buscar quanto a seu cargo Incumbe, pois que a fábrica guiada Destruída se vê do tempo largo.
Determiria à fiel consorte amada Que a nada, do que pede, ponha embargo, Inda que sejam por tal fim vendidas Das filhinhas as jóias mais queridas.
Com efeito chegou o postilhão, e trouxe consigo o que Fernão Dias pedia. Puseramse a caminho e foram discorrendo por uma dilatada montanha, até que chegaram a Tucambira, que quer dizer papo de tucano, e deixando todo este espaço avassalado, partiram para a Itamirindiba, que é rio muito fértil de peixe e significa propriamente pedra pequenina e buliçosa. Aqui pararam por algum tempo, e se proveram de forma que lhes não fosse danosa qualquer invasão do Gentio:
ultimamente buscaram o rumo do Norte, te que, depois de atravessarem uma parte dos Sertões incultos, chegaram águas do Vupabussu.
Aqui cuidou Fernão Dias logo em expedir cem bastardos dos que trazia, a fim de examinar a formalidade das terras circunvizinhas a este lago, a ver se achavam algum língua que os informasse melhor do que buscavam. Na verdade não se frustrou de todo esta diligência, porque sobre o cume de uma montanha, vendo os bastardos muita gente daquela que podia dar notícia das pedras pertendidas, investiram a ela, e apenas seguraram um que, sendo trazido à presença de Fernão Dias, mandou este que com toda a humanidade fosse tratado entre os seus. Era ele de um ânimo seguro, conforme o pinta Diogo Grasson na oitava 61.
Era o Silvestre moço valeroso, Sobre nervudo, de perfidia alheio, O gesto respirava um ar brioso, Que nunca conhecera o vão receio:
Pintado de urutu vinha pomposo, E o lábio baixo roto pelo meio, Com três penas de arara laureado, De flechas, de arco e de garrote armado.
Foi este o que descobriu os socavões de Marcos de Azeredo junto a um serro que corre do Norte para o Sul. Mas quanto não custou a Fernão Dias este descobrimento? Trabalhou sete anos nesta empresa. Foi-lhe perciso muitas vezes romper por todas as resoluções dos seus, que só o aconselhavam se retirasse para Itamirindiba, e deixasse para melhor tempo o descobrimento pertendido, certificando-o de que os matos circunvizinhos a Vupabussu exalavam de si um hálito pestilento, e que toda a sua demora ali não podia ser proveitosa. Ultimamente mandou enforcar à vista de todos os seus soldados um filho bastardo, que mais estimava, por lhe constar que conspirava contra a sua vida. Chegou enfim a ver o que tanto desejava, e fazendo-se na volta de São Paulo, donde era natural, não quis o Céu que ele tivesse a glória de apresentar ao seu Soberano o testemunho do seu zelo e da sua lealdade. Morreu junto ao Guaiaqui, que entre nós vale o mesmo que rio das velhas. Isto é tudo quanto sabemos do descobrimento das esmeraldas, sem que possamos afirmar o rumo, altura e os graus certos em que foram descobertas estas pedras.
CANTO I
Cantemos, Musa, a fundação primeira Da Capital das Minas, onde inteira Se guarda ainda, e vive inda a memória Que enche de aplauso de Albuquerque a história.
Tu, pátrio Ribeirão, que em outra idade Deste assunto a meu verso, na igualdade De um épico transporte, hoje me inspira Mais digno influxo, porque entoe a Lira, Por que leve o meu Canto ao clima estranho O claro Herói, que sigo e que acompanho:
Faze vizinho ao Tejo, enfim, que eu veja Cheias as Ninfas de amorosa inveja.
E vós, honra da Pátria, glória bela Da Casa e do Solar de Bobadela, Conde feliz, em cujo ilustre peito De alta virtude respeitando o efeito, O Irmão defunto reviver admiro:
Afável permiti que eu tente o giro Das minhas asas pela glória vossa, E entre a série de Heróis louvar-vos possa.
Rotos os mares, e o comércio aberto, Já de América o Gênio descoberto Tinha ao Rei Lusitano as grandes terras, Que o Sul rodeia de escabrosas serras.
O título contavam de Cidades Pernambuco, Bahia; e as crueldades Dos índios superadas, já se via O Rio de janeiro, que fazia Escala às Naus: buscando o continente De Paulo, uma conquista está patente, Que aos Portugueses com feliz agoiro Prometia o diamante, a prata, o oiro.
O arbítrio de um só braço moderava.
Toda a Capitania; e projetava Albuquerque, que a gente ao Cetro alista, Fazer mais dilatada esta conquista.
Da notícia de alguns tinha alcançado (E muito mais na idéia está gravado O profético anúncio) que faria Grande serviço ao Rei, se a Serrania Vencesse, e além passasse, e visse a testa Do soberbo Itamonte: manifesta A estrada se lhe mostra, e um Gênio experto O guia a ver da empresa o fim mais certo.
Tornando à margem de um soberbo Rio, Já se alojava o Herói, e do sombrio Amparo de umas árvores, enquanto Vagava a comitiva, ao doce encanto Do murmúrio das águas e do vento, Dando aos membros suave acolhimento, O leve sono lhe deitava as asas.
Tecia débil cana as moles casas, Em que apenas descansa algum rendido Da fatigada marcha; ali ferido De uma estranha paixão, que n'alma alenta, Ao lado está do General; sustenta O brioso Garcia o oficio inteiro De súdito, de amigo e companheiro.
Rende-se ao sono o Herói, e ao anelante Pulsar do peito, observa o vigilante Mancebo que o combate aflita luta No horror da fantesia; um ai lhe escuta, Que ansioso respira; outro mais vivo Lhe percebe no assalto sucessivo;
E ao ver que estende duramente os braços, Já teme, e grita, e já lhe rompe os laços Do funesto letargo: Ai! caro amigo (Lhe diz o Herói), não temas, eu prossigo, Se é que o espanto e o terror, que n'alma provo, Me dão para falar-te alento novo.
Neste instante (ai de mim!), ou fosse imagem Que há muito me oprimia, ou que a passagem Deste Rio me ofereça agouro triste, Eu vi (eu inda o vejo, inda me assiste Presente aos olhos o medonho objeto!), Eu vi que me apartava do projeto De penetrar estes Sertões escuros O grande Dom Rodrigo; dos seguros Ombros, de que pendera agrave espada, Rasga o vestido, e mostra inda manchada A carne das feridas, de que o sangue Correr se via; eu tremo, e quase exangue Desmaio a tanta vista. Ele se avança, Da mão me prende, e diz: Em vão se cansa, Em vão o vosso Rei, se ver pertende Subjugado este povo, que defende Com o bárbaro zelo as pátrias Minas;
Debalde tu também hoje imaginas Chegar ao centro delas; eu contemplo Mil perigos na empresa; fresco exemplo Te dá a minha morte; só te espera De gênios brutos pertinácia fera;
Falta de fé, traições, crimes atrozes Só terás de encontrar; se as minhas vozes Teu crédito merecem, deixa, evita A infame estrada... ; nisto ao ver que grita Mais forte e mais medonha a sombra, tremo, Pasmo, e me assusto, me horrorizo, e gemo.
Sem trabalhos (Garcia então lhe torna)
A glória não se alcança, não se adorna Do louro da virtude o que se nega Às árduas diligências; sei que chega Vosso zelo e valor ao termo, aonde Tudo o que é grande apenas corresponde Ao meditado arrojo; mas passado É talvez o pior, e já lembrado Posso esperar que o mal encha algum dia Os corações e as almas de alegria.
Temos dobrado a grande Serra;
temos Rompido os matos, onde ver podemos As feras e o Gentio que a brenha oculta Girar por entre nós: a alma insepulta Do morto General a nós nos deva Vencer do esquecimento a escura treva;
Busque-se o seu cadáver, e entre os nossos Honrada sepultura achem seus ossos.
Aqui chegava, quando a comitiva, Desde o vizinho monte, viva! viva!
Bradava em altas vozes; cresce o espanto;
Ambos se admiram; de alarido tanto A causa buscam; pouco tempo tarda Em recolher-se a dividida guarda, Com salvas, e com vivas festejando A presa, que já vem apresentando.
Três índias são, que do Pori robusto Em resto escapam; todo o corpo adusto Mostra que o Sol sobre a nudez queimara, E que a ingênita cor de branca e clara Tornou um pouco escura; a longa idade A todas três enruga a mocidade;
Curvos os ombros, poucas cãs, os braços Murchos e descarnados, mal os passos Regem tremendo; breve arrimo fazem De tintos paus, que apenas nas mãos trazem.
Tecendo a teia na morada escura Do negro Radamanto, outra figura Não inculcara mais enorme e triste O termo horrendo, que aos mortais assiste.
Conta Camargo, que o vizinho monte Subira com os seus, e que de ponte Um madeiro, que o tempo derribara, Lhe servira, e por ele além passara, Que desde ali por entre as brenhas via Uma pequena Aldeia, a quem fazia Baixa e comprida choça a cobertura Aos queimados Tapuias: desde a altura Do monte disparou por meter medo Um tiro de espingarda; nenhum quedo Se deixa então ficar: todos se apressam, Fogem, nem mais às flechas se arremessam.
Desamparado o sítio humilde e pobre, Desce ao terreno, e as índias três descobre, Que de oprimidas dos cansados anos Não puderam fugir, temendo os danos Que dos antigos Pais ouvido tinham.
Variamente uns e outros se entretinham Em contar o sucesso; e já notava Garcia, que nas índias se firmava, Que uma delas com gesto mais sereno Punha nele os [seus olhos]; por aceno Observa, mais que explica, que o conhece;
Da língua portuguesa lhe parece Que entende; e mais se assombra o bom Garcia Ao ver como em um dedo ela prendia Uma memória de ouro; a jóia observa;
Cala-se, e a melhor tempo o mais reserva, Exprimindo em um ai, que d'alma exala, O mais, que por então sepulta e cala.
Recolhidos a um tempo os companheiros, Junto aos troncos, nas grutas dos outeiros Se armam as mesas; de viandas servem A mortas caças, que nos cobres fervem:
As aves, que do chumbo o globo estreito Feriu nas asas, e rompeu o peito;
O veado, a que o índio na carreira Seguiu, e a seta disparou ligeira;
Não falta o louro mel da abelha astuta, O grelo da palmeira, e a tosca fruta, Que alguma árvore brota ali nascida, Por menos venenosa conhecida, Enquanto os brutos animais a comem (Tanto dos brutos aprendera o homem!).
Tornando às praias da infeliz Cartago O triste resto do troiano estrago, Tal se consola na fatal ruína, Que pode a Musa celebrar latina.
Longe de Europa os provimentos ficam, Nem os fortes cavalos, que se aplicam À condução dos víveres, se atrevem A romper os caminhos; mal se devem Pequenas cargas aos robustos ombros Dos domésticos índios: se os assombros Desperta em vós esta fatal penúria, Ó Generais da Europa, nobre injúria Concebe o meu Herói; ali sentado Entre os mais companheiros, rodeado Sem distinção alguma, ou já na mesa, No leito, ou no quartel, ou junto à acesa Chama, em que esperam reparar o frio, Tem toda a autoridade, todo o brio Posto no zelo só, na vigilância, Com que prova os esforços da constância, Esquecido de si e da grandeza, Por ver o fim da cometida empresa.
CANTO II
Caía a noite, e apenas cintilava No Céu alguma estrela; ao chão baixava Escassamente a luz, que Cíntia fria Mal distinta espalhava entre a sombria Rama da espessa mata e duros troncos.
Não se ouvem mais que os formidáveis roncos De aves noturnas, e famintas feras.
Só tu, Garcia amante, consideras Oportuna a teus ais a estação triste;
Amor, que ardendo no teu peito assiste, Vai buscar o remédio a seu cuidado;
Ele te guia e leva disfarçado À choça que às três índias deu abrigo.
Oh! quanto louvas o silêncio amigo, Quanto o sono dos mais! Chega, repara Na velha aflita, que a choupana avara Apenas cobre com a palha agreste;
A leve cana, que as montanhas veste, Já seca ao sol se acende, e a luz ministra Com que uma a uma as índias três registra.
Na língua nacional, que não ignora, Saúda, e neste instante a Mãe de Aurora Conhece; Aurora, a bela prisioneira Que houve da mão de Arzão, que co'a primeira Medalha de ouro ele prendara; cresce De novo a admiração, e se oferece A Índia a dar-lhe relação da filha.
Se o ver-me neste estado é maravilha, b Garcia, lhe diz, humilde e nua, Eu sou Neágua, eu sou a escrava tua.
Muitas luas, me lembro, têm passado, Desde quando dos vossos atacado Foi meu esposo Caribó: seguidos Vínheis de muitos arcos, socorridos Do Coroa, do Paraci valente:
Assaltastes de noite a nossa gente, E mortos os mais destros na peleja, Fosse rigor do Céu, ou fosse inveja Da Fortuna, eu, que a Aldeia governava, Passei com minha filha a ser escrava.
Era ela em seus anos tão mimosa, Que à vista sua desmaiava a rosa, Seus olhos claros, as pupilas belas, Oh! quantas vezes cri que eram estrelas!
Não tinham nossos campos, nem o prado Planta mais tenra, flor de mais agrado;
Enfim, porque de vós as cores tome, De Aurora os vossos lhe dão hoje o nome.
Vagando estes sertões na companhia Dos vossos, eu me lembro como um dia, A preço do metal, que desprezamos, Vós nos comprastes; ainda nos lembramos Do mimo do agasalho que fizestes, Quando na vossa casa recolhestes A mim e a minha Aurora: esta memória Desperte toda em vós a antiga história, Como? Por que arte? Por que modo fora Trazida dentre os seus? A sua Aurora, Se a seguira também? Se vive? E aonde?
Garcia lhe pergunta; ela responde:
Senhor, eu creio que inda vive A minha e vossa Aurora: dela tive Notícia há pouco tempo; um desses bravos, Que o nosso bom Pori tem feito escravos, Me contou como lá na sua Aldeia, Que não longe é de nós, ela passeia, Do Cacique estimada; ele contente A busca esposa, e ela o não consente.
Mas por que quereis vós da minha boca Ouvir todo o sucesso? Só me toca Referir uma parte, que outra ignoro.
Lá na domada Aldeia, onde sonoro Se vê correr o Paraíba, postas Fomos por vosso mando: ali dispostas A viver de outras leis, outros costumes Detestávamos já dos nossos Numes (Se alguns Deuses talvez nós conhecemos Na bruta liberdade em que vivemos), O culto, a religião; já divertidas No curvo anzol, nas redes bem tecidas Armávamos ao peixe; sobre o rio Nos viu um dia o bárbaro Gentio, Que em pequenas canoas rouba e mata;
Fugíramos talvez, mas o pirata Nos surprende e conduz: vimos cativas A viver entre os seus, e apenas vivas De povo em povo nos transportam; fico Co'a nação do Pori, e passa o rico Tesouro de uma filha, que inda choro, Ao crespo Monaxós; qual fosse, ignoro, O triste resto do fatal destino.
Dos braços ma arrancaram: de ouro fino, Ao despedir-se terna a Filha amada, Com esta jóia então me quer prendada.
Se pois de Aurora o caso vos incita À compaixão, se em vosso peito habita O antigo amor, fazei que a liberdade Se dê a quem desperta esta saudade;
Esse vizinho povo ao fogo, ao ferro Abatei, destruí: pague o seu erro;
E alegre eu veja em vossa companhia A vossa Aurora, que ao meu lado via.
Absorto está Garcia; do que escuta, Apenas deixa ver a face enxuta;
De Aurora o caso o tem sobressaltado, Quer para logo dar a seu cuidado O desafogo da cruel vingança;
Mas bem que o lisonjeie inda a esperança De ver a bela Indiana, a incerta sorte Lha pinta, antes que viva, entregue à morte.
Baixel, que sobre o Egeu de mil procelas Combatido se viu, rotas as velas, Não soçobra talvez mais duvidoso Ao grave Noto, ao Euro tormentoso.
Farei... clamava; e eis que interrompido Foi de um aviso, com que o Herói erguido Chama a Conselho os companheiros todos.
Se combatidos por diversos modos, Diz Albuquerque, de trabalhos tantos, Entre estas penhas só despertam prantos As memórias da morte de Rodrigo, Deixemos este assento; o sonho antigo Tenho de descobrir-vos, com que a idéia Igualmente me aflige e me recreia.
Lembrados estareis que há mais de um ano Vos fiz saber que o nosso Soberano, Que dos quatro Joões o nome e glória Herdou para triunfo da memória, Vendo ao Norte da terra povoada, Que atrás deixamos na primeira entrada, Que fazem vossos Pais, achar-se o ouro À custa me ordenou do seu Tesouro, Que entrasse ao centro dos Sertões, buscasse As novas minas, e que examinasse As margens, onde em vão tomaram porto Fernando, Artur e Dom Rodrigo, o morto.
Cheio deste projeto eu vejo um dia Que um rochedo fatal, a quem a fria Neve branqueja a descalvada testa, Com medonha carranca me protesta Não passe a descobrir o seu segredo;
Avizinho-me a ele e rompo o medo:
Quem és, pergunto, que ignorado encanto Se esconde em ti? Ele me torna entanto:
"Eu sou dos filhos que abortara a Terra, E fiz com meus Irmãos aos Deuses guerra (Tu, negro Adamastor, hoje em memória Me obrigas a trazer a tua história).
Meu caso um dia o Fado te destina Que escutes inda pela voz de Eulina, No centro vivo dos Sertões, que apenas Tocam das aves as ligeiras penas;
De feios monstros grande cópia habita Meu triste seio; ali se deposita Tudo quanto de grande, novo e raro O Cetro Lusitano fará claro.
Ali... mas tudo aos olhos patenteio.”
Disse, e deixando ver o escuro seio, De uma pequena lágrima, que a penha Derrama das entranhas, se despenha Gota a gota um ribeiro; logo a raia De ambas margens excede e já se espraia, Separado do berço na campina.
Um murmúrio sonoro só de Eulina Repete o nome; a maravilha estranha Inda mais se adianta; ao longe apanha Uma Ninfa na areia as porções de ouro, Com que esmalta o cabelo e o torna louro.
A margem deste rio povoada Vejo da portuguesa gente amada, Toda entregue à solícita porfia, Com que o rico metal da terra fria Vai buscar a ambição: vejo de um lado Erguer-se uma Cidade, e situado Junto ao monte, que um vale aos pés estende, Vejo um Povo também: tudo surprende, Tudo encanta a minha alma, estou detido No fantástico objeto. Eis que um gemido Arranca desde o seio o monstro escuro, E diz: "Entre as imagens do futuro Talvez te espera... mas... " e nisto em nada Se torna toda a máquina ideada;
Desfez-se a Penha, a Ninfa e o Ribeiro, Solto dos olhos o sopor grosseiro.
Não de outra sorte no último horizonte Ao sepultar-se o Sol, lá desde um monte Podem ver-se as imagens diferentes Às refrações da luz: estão presentes Bosques, cidades, ruas e castelos, Que os raios em distintos paralelos Talvez figuram; despertando a Aurora, Desaparece a sombra enganadora.
O sonho muitas vezes repetido, Desde que tenho a idéia concebido De entrar para estas Minas, me figura Um mistério na sombra e na pintura.
Vós, que por tantas vezes discorrido Tendes estes Sertões, tereis ouvido , O nome de Itamonte; esta lembrança, Este sinal só tenho de esperança;
Talvez tomando o cume desta Serra, Acharemos um dia o Rio, a Terra, A Ninfa e os mais portentos, donde tome, Dos tesouros que espero, a Vila, o nome.
Calou-se o General, e qual murmura Uma abelha, e mais outra, quando a pura Substância chupam das mimosas flores, Assim, não de outra sorte, entre os rumores Do inquieto coração, estão falando Entre si cada um, e estão pensando;
Rompe o silêncio o próvido Faria:
Eu dos primeiros fui, eu fui, dizia, Dos primeiros que o berço abandonado Deixei, mais do fervor estimulado De reduzir os Índios à justiça Da nossa religião, que da cobiça.
Entrei estes países e inda noto Em cada tronco os pousos onde, roto O vestido, tentei passando avante O giro dos Sertões; de bem distante Parte dos grossos matos descobria Uma elevada e tosca penedia, A quem coroa um pico a altiva frente.
Demandei esta rocha, e do eminente De toda ela um ribeiro vi que nasce, Que do Sol recolhendo dentro a face Pareceu converter-se todo em ouro.
Não vou buscar no meu invento o agouro, Nem creio que este o Itamonte seja, Mas sei que a língua pátria, se deseja Explicar sempre em tudo a natureza, De Itá nome lhe deu, e na rudeza Do Gentio talvez, que hoje alterado, O nome Curumim lhe seja dado.
Itá é nome pátrio (diz Garcia, Que apenas sua dor n'alma alivia), Este o Gentio a toda a pedra estende;
O esperado Itamonte em vão se entende Na confusão das Serras e dos montes, Que assombram todos estes horizontes.
Eu também discorrera de outra Serra O mesmo que Faria, aonde a guerra De feroz Botecudo inda me assusta, Mas pouco à conjectura se me ajusta Toda a confrontação (disse Camargo).
É deste continente o Sertão largo (Dizia Bueno), o Lago, a Serra, o Rio, Espalhado por tudo o infiel Gentio, Não deixam à notícia cousa certa, Onde possa entender-se descoberta A terra que buscamos. Nela intento (Albuquerque tornava) o fundamento Erguer da Capital; de penha empenha Andarei, se a Fortuna o não desdenha, Té descobrir o Monte e o Rio, aonde Tão grande maravilha o Céu me esconde.
Prosseguira o Herói, mas o embaraça Descobrir desde longe a vista escassa Brioso Cavaleiro, que seguido Vem de um forte esquadrão do índio vencido;
Soa alegre o clarim, que a marcha guia, A salva amiudada ao ar se envia;
E enquanto de Garcia o Herói se informa Do novo Aventureiro, posta em forma Cada uma das nações, que traz consigo, Um e outro se encontra ao doce amigo, Prontos os servos a estribeira pegam, E ele se apeia e abraça aos que se chegam.
CANTO III
As paixões acalmara de Garcia A chegada do Borba, e suspendia Ela mesma a partida de Albuquerque.
Sem que temor algum lhe oprima, ou cerque O nobre coração, na tenda entrava, E cortejando o Herói, assim falava:
Terás ouvido, ó General famoso, Variamente o meu caso; e duvidoso Talvez estás da fé, que guardo atento Ao meu Rei em sinal do juramento.
Acusado por cúmplice na morte Do grande Dom Rodrigo, a minha sorte, Mais que o delito meu, desculpar venho;
Sem adorno o sucesso agora tenho De dizer- te; e verás, hoje informado, Que sou mais infeliz do que culpado.
Pouco mais de três léguas em distância Deste sítio me via, quando a instâncias Do novo General, que aqui chegava, A voz de um mensageiro me ordenava Entregasse os socorros prevenidos Da pólvora e do chumbo e os cometidos À minha guarda prontos instrumentos Do ferro e do aço: oponho a seus intentos A razão que me assiste; e enfim me escuso, Dizendo que das ordens não abuso Do meu fiel Parente, a quem espero A cada instante, e perto considero De entrar comigo a registar as faldas Das montanhas e minas de esmeraldas.
Mal satisfeito da resposta volta O importuno ministro, e já se solta Contra mim declarada toda a fúria Dos vis aduladores: por injúria Reputam toda aquela resistência, E protestam que aos braços da violência Há de ceder a repugnância minha.
Um e outro se oferece, mas detinha Ao prudente Fidalgo o árduo projeto Da brandura e da paz; o nobre objeto Do serviço do Rei a mim o guia;
Em pessoa aparece, e me seria Muito fácil ceder, se não houvesse Mais forte obrigação, que [me] prendesse.
Uma e mil vezes represento o empenho, Que a duvidar me induz e me detenho Irresoluto um pouco (nem atino Se obrava nisto a força do destino!);
Constante era a razão, pois esperando As Reais Ordens para a empresa, quando Fernão Dias voltasse, não teria Os provimentos que deixado havia.
Enfim ele de cólera se acende, Nem às minhas desculpas mais atende;
Enfurece-se, grita e ameaça:
E eu (ó duro extremo da desgraça!), Rendido a todo o lance, só procuro Mitigar-lhe o rancor; um braço duro, Sacrílego, insolente, infame, ousado, Sem que eu presuma o bárbaro atentado, Se arroja dentre os meus; dispara um tiro, E a alma envolta no mortal suspiro Voou, deixando a mágoa em que me vejo, Para salvar a vida, a honra e o pejo.
A notícia do caso acende a ira Em todos os que o seguem; já conspira Em meu dano o parente e mais o amigo;
Querem vingar a morte de Rodrigo;
Em vão lhes serve de reparo ou freio, A inocência em que estou; medito um meio De salvar-me; em esquadras divididas Reparto a gente, sobre as mais crescidas Montanhas, de onde fossem descobertas.
As estradas ao longe em parte abertas Davam já vista aos ímpios conjurados, Quando os tambores e os clarins tocados Em vários sítios amotinam tudo:
Cresce o temor ao meditado estudo, E crêem que era chegado Fernão Dias.
Amparado do engano, as Serras frias Destes Sertões dobrei; passo a corrente De um grande Rio, e a margem florescente Piso, apenas de alguns acompanhado;
Aqui descubro um plano dilatado, Cômodo à criação; nele apascento Por muito tempo o gado, e em novo aumento Às descobertas Minas já preparo Na fome e na penúria o bom reparo.
Estes são os serviços com que chego, Estes os testemunhos são que alego Da inocência em que vivo; os meus parentes, Amigos e obrigados, que presentes Em grande parte estão, por mim te falem, E quando todos por lisonja calem, Do teu antecessor terás ouvido Quanto servem de informe; e este luzido Bastão, dádiva sua (então levanta A insígnia militar), é prova tanta, Que sobra a escurecer qualquer suspeita Que ao mesmo Rei pudesse ser aceita.
Dizia; e sempre grave e sempre airoso, Deixava ver no rosto generoso O espírito magnânimo que o alenta.
O Herói, que sem mudança se contenta De ouvir todo o sucesso por inteiro, Suave acolhe ao nobre Aventureiro, E dando-lhe mil mostras de amizade, De ordem do mesmo Rei o persuade A que viva seguro do delito;
Informa-se do sítio e do distrito Em que está, e o convida para a empresa, E por ele pertende haver certeza Da serra que demanda, onde fundada Veja uma vez a povoação sonhada.
Consultando as precisas providências Se detém alguns dias, e as urgências Do estéril sítio apenas socorridas Eram de algumas caças, que trazidas Vinham dos índios menos assustados Co'a chegada dos mais, que estão listados À comandância do Hóspede: entre vários Da nação Monaxós, que voluntários Ao Herói visitavam, se encontrava Um mancebo gentil, a quem cercava Branco penacho a testa; os braços cinge De amarela plumagem; bravo o finge A tinta do urucu: a cor, nem preta, Nem branca por extremo, mas que afeta Do gelado Samiúte o estranho gesto;
Pouco ao braço e ao ombro lhe é molesto O arco e a aljava; o rosto, a fala e tudo Verte um ar de respeito, ar sem estudo.
Em vão das flechas a purpúrea arara Fugir-lhe espera; em vão na garra avara Mosqueado tigre lhe ameaça a morte:
Empunha o dardo, e valeroso e forte O faz despojo do robusto braço, A fere, e corta no vazio espaço.
De impulso por então não conhecido, O índio, a quem Amor tinha ferido, Se deixava arrastar, e praticando Tudo quanto a paixão lhe está ditando, Do valor de seu braço ele confia Roubar traidor a vida de Garcia.
Protegido da noute, às horas quando Jaziam todos, n'ũa mão tomando Uma faca e em outra o dardo agudo, Por tudo olhando e precavendo tudo, A tenda busca do saudoso amante;
A luz lhe rege o passo e ao mesmo instante Na cama o tenta e lhe prepara a morte.
Houve uma vez de ser propícia a sorte, Que não dorme Garcia e sente o ruído;
Ergue-se; toma a espada e acometido Se vê apenas, quando reparada A ferida do dardo, mete a espada Por um lado ao traidor, em sangue envolta A tira e a mão suspende; a um tempo solta, A corrente de sangue inunda a terra;
O índio semivivo os dentes ferra, Acena de morrer, e grita, e brada Em roucas vozes, com que amotinada Tem toda a gente, que ao sucesso acode.
Debalde a conjectura alcançar pode O mesmo, que está vendo; estranho e oculto É o motivo do aleivoso insulto.
Faminto lobo no redil fechado Assim receoso entrou; mas acossado Do molosso feroz, foi de repente Cair despojo ao sanguinoso dente.
Conhecendo Albuquerque, que respira Inda vivo, a um dos pousos o retira, E lhe põe sentinelas; manda entanto Se lhe apliquem remédios: o óleo Santo, Que ministra de Bueno a mão experta, Estanca o sangue, e da ferida aberta Cerrando a boca, inda a esperança anima De que a morte de todo o não oprima.
CANTO IV
A continuar a marcha se dispunha O Herói, que um vivo zelo testemunha Em todos que os seguem; repartidos Aqueles a quem são mais conhecidos Os Sertões, pela margem se espalhavam À direita do Rio e se empregavam Em socavar a terra, em diligência Do metal de que têm verde experiência.
Tinha Pegado adiantado o passo Algum tanto dos mais, e o corpo lasso Junto a um lago, que sobre uma campina Se espraia e quebra as ondas, brando inclina, Procurando em um tronco em parte encosto Ao ombro, e alívio à cabeça, e rosto.
Estende-se na areia e reclinado Se vê apenas, quando (oh! inesperado Prodígio, que o surprende!) eis que mover-se Pouco a pouco se admira, ora estender-se, Ora encurvar-se o formidável tronco.
Levanta-se assustado e logo um ronco Ouve medonho, que de todo o rende;
A causa do prodígio não entende, Não pensa, não discorre o bom Pegado;
Grita aos índios atônito, pasmado, E o tronco então com rapto mais furioso Se arroja desde a praia e busca ansioso Sepultar-se no lago, o seio abrindo Das águas, que co'a cauda vai ferindo.
Não de outra sorte sobre os grossos mares, Que do Antártico Céu cobrem os ares, De mergulho se vê buscar a areia O pardo e negro monstro da baleia, Quando do arpão do pescador ferida Tinge as ondas de sangue e, submergida, Ao fundo leva a barbatana dura.
Vêm os índios chegando, e entre a escura Sombra do lago inda estão vendo o rasto Da fera, que conhecem; tanto ao pasto Da presa que avistou Leão não corre, Como um e outro Tape se socorre Dos pés nadantes, e nas mãos levando O pronto ferro, o tronco vão rasgando Co'as cortadoras facas; já de todo Boiando o fazem vir; por arte e modo Não pensado o arrojam sobre a praia.
De curioso ardor cada um se ensaia Em arrancar-lhe das entranhas tudo Quanto a fome tragara; absorto e mudo, Pegado está notando a maravilha.
Três veados comera, enquanto trilha A margem da lagoa; estão inteiros No ventre e ainda em pêlo os dous primeiros.
Riem-se os índios de Pegado, e o riso Tem ao Mancebo então mais indeciso, Vendo que novo ali não conhecera Que é o Sucuriú aquela fera, De quem ouvido aos nacionais havia Que um tronco na grandeza parecia.
Mas não foi tão debalde este portento, Que olhando para o sítio, aonde assento Fizera o monstro, o chão não descobrisse Inda mal apagado, e não se visse Um vestígio de humana sepultura.
Manda cavar Pegado a terra dura, E dentro (oh! pasmo!) os ossos encontrava De um cadáver, a quem assinalava A cruz que tem de Cristo e lhe servira De hábito, ou mortalha; então se admira Mais cada um; e aviso ao Herói dando, Todos ao mesmo passo vão cercando Em roda a sepultura: Borba chega, Afirma que é Rodrigo e logo alega Como dos índios seus à pressa fora Sepultado, fugindo os mais; e agora Reconhece o sinal na Cruz bendita, O autêntico padrão mais acredita Vizinho um tronco, à mão cortado, aonde De ordem do mesmo Borba corresponde Outra Cruz à memória deste oficio.
Celebrou-se o devoto sacríficio Junto ao sepulcro; e as últimas piedades, Pela mão de Faria, as saudades Temperaram do Morto, consoladas As memórias de sangue inda banhadas.
Urnas fastosas, que cobris no Egito Heróis famosos, sobre vós escrito Viva embora o epitáfio, que em memória Dos Ptolomeus inda respira a glória!
Sobra ao bom General, sobra a Rodrigo Da nua areia o mísero jazigo;
A vida pelo Rei sacrificada Basta a deixar a sepultura honrada!
Magoado deste objeto se cansava O Herói, e já partir dali pensava, Mas o deteve e lhe cortou o passo, Convalescido da ferida, Argasso (Este era o nome do índio); em companhia Vinha da sentinela, a quem pedia Que à presença do Herói o conduzisse;
Como acaso a seu lado então não visse A Garcia, falou mais animado:
De traidor e aleivoso sou culpado, Magnânimo Albuquerque; ouve-me, atende, Saberás que o meu braço não te ofende, Nem se conspira contra os teus; a dura Condição de uma bárbara, que jura Não ser minha, apesar dos meus desvelos, Meu coração encheu tanto de zelos, Que imaginei na morte de Garcia Vingar o meu desprezo, e a tirania Castigar do meu bem: fui desgraçado, Inda não me arrependo do passado.
Albuquerque lhe diz que exponha a história De seu furioso amor e que em memória Traga todo o sucesso; ele, mordendo Raivoso os beiços e mil ais vertendo, Não posso, diz, não posso em tudo ou parte Dizer-te o que padeço; o esforço, a arte Vos sobra a vós; em mim obra a rudeza, Que mais desculpa a natural fraqueza.
Amo a bela Indiana, a linda Aurora, Que não daqui muito distante mora:
Prisioneira em meu braço a vim trazendo Lá desde o Paraíba, e discorrendo Que entre os meus Monaxós se renderia, Só o nome lhe lembra de Garcia.
Neágua, a Mãe, desde o Pori roubada, Conheceu-me e me informa da chegada Deste bom Cavalheiro; não sabia Que o meu curioso ardor se dirigia A mais árduo projeto; tento a morte, E em despojo cuidei do braço forte Por triunfo levar à minha amada A cabeça do tronco separada.
Assim fala arrogante; o Herói piedoso Quer dar provas do peito generoso:
Chama a Garcia; informa-se do resto, E por voz de Neágua é manifesto O vário giro da amorosa história.
Argasso (diz), da portuguesa glória Tu não sabes o timbre; a Indiana bela Não disputa Garcia, e a tua estrela Não queiras contrastar por modo estranho;
Ele ta cede, eu próprio te acompanho, E contigo pertendo ver a Aldeia, Onde ela vive e o teu amor te enleia.
Que vós partais, Senhor, eu não consinto, Disse Garcia; ao meu valor distinto, Ao meu zelo católico era injúria Saber-se que a conter a minha fúria Necessária se fez vossa presença;
A Argasso desde já perdôo a ofensa, E quero que conheça aos Portugueses;
Com ele partirei, e as suas vezes Sustentando ao favor da bela Indiana, Farei que ele ditoso, e mais humana Ela, se abrasem no gostoso alento De um santo, de um perpétuo sacramento.
Fia de mim (ao índio se tornava), Que a mesma que já viste minha escrava, Há de ver-me a seus pés por ti rogando;
Nem de ti outro prêmio então demando Mais que em uso melhor convertas logo Esse tão louco, como ilustre fogo, Que alimentas no peito; serás nosso Amigo e não escravo, e quanto eu posso, Nobre rival, te digo desde esta hora, Neágua é tua, é tua a minha Aurora.
Ó tu, Ciro famoso, se pudeste Eternizar teu nome, quando deste A formosa Pantéia ao nobre Araspe;
Se na dádiva bela de Campaspe Ao namorado Apeles, glória tanta Te adquire, ó Macedônio, a voz que canta Teu nome inda por toda a redondeza, Vê quanto mais se avança esta grandeza, Com que de uma paixão a rebeldia Doma, e castiga o esplêndido Garcia.
Convém o Herói e espera que domado O Monaxós, e à Religião chamado Se veja por tal modo; do projeto Se faz parcial Faria; turvo o aspecto O Índio tem a tanta ação, nem sabe Como no coração de um homem cabe Subjugar tão valente a paixão dura, Que inspira amor. Neágua se procura Unir à companhia; as outras ficam Entregues ao favor dos que se aplicam A povoar entanto aquela margem.
Despedem-se; e Albuquerque, pela vargem Que ali se estende, a marcha ao centro guia;
De Borba tendo pronta a companhia, E dos mais, parte em tropas do Gentio, E das Velhas o nome impõe ao Rio.
CANTO V
Magnífica, esquisita arquitetura De um templo guarda o abismo, onde a figura Ao preço da matéria corresponde;
Lá no mais fundo dos altares, onde Arde em perpétuo fumo o rendimento, Tem o Interesse seu dourado assento.
Este ídolo fatal, que se alimenta De humano sangue, um monstro representa Armado sempre em guerra, cobre o peito Três vezes de aço, e tem o braço feito Ao furor, aos estragos e à ruína;
Tinto em sangue um punhal a mão fulmina, E enterrando em um globo a aguda ponta Pareceu intentar por nova afronta Cravar o coração de todo o mundo;
Indignou-se, e do seio mais profundo Suspirou esta vez; e conhecendo Que do calvo Itamonte o aspecto horrendo De um pânico terror ao longo ameaço Não bastava a cortar do Herói o passo;
Que ao fim se dirigia a ilustre empresa E que em breve há de ver posta em certeza Toda a idéia do sonho concebido;
De todo agora em cólera acendido Se empenha a embaraçar o alto projeto Do magnânimo Chefe; toma o aspecto De um Frade (quem o crera!), que influíra Nas primeiras desordens e que vira Dos nacionais sinceros o destroço:
Este em tratos ilícitos um grosso Cabedal ajuntara, tendo a idéia De vender por estanco` o que franqueia O liberal despego dos paisanos.
Meditando traições, tecendo enganos, Firmado no caráter o respeito, Aparecia o indigno; e tendo feito Já parciais de seu ânimo alguns poucos, Assim lhes fala: Ó Europeus, que loucos Às portas esperais vossa ruína!
Credes que esta inação é de vós digna?
Assim vos vejo estar com gesto manso, Quando a desconcertar vosso descanso Corre armado o furor de um braço forte?
Desconheceis acaso que outra sorte, Outra fortuna vos espera, vindo Tão próximo Albuquerque, a quem seguindo Vem o infame tumulto dos Paulistas, Que aspiram senhorear estas conquistas?
Já vos não lembra o meditado empenho De evitar as justiças, e o despenho Patrocinar dos novos atentados No refúgio aos países retirados Que domina o Espanhol? Tanto afortuna Abandonais na máxima oportuna De nos enchermos dos preciosos frutos Que guarda a Terra, e dos Reais Tributos Fugir à imposição? Credes que venha A outra cousa, e outro projeto tenha Mais que roubar-nos as fazendas nossas, Ganhadas a tal preço, que inda as grossas Correntes desses rios se estão vendo Turvas de sangue? O ímpeto tremendo Não trazeis em memória dos tiranos, Que fundados no timbre de paisanos, Mais escravos que amigos nos queriam?
Não vos lembra os insultos que faziam?
Não vos lembra quem foi, quem é Pedroso?
Ignorais que no cerco duvidoso Perto estivemos de perder as vidas, Se por meio de Antunes conseguidas Não fossem por então nossas idéias?
Ignorais que as montanhas estão cheias Destes perturbadores, desde quando, Arbitrária e fantástica ordem dando Em o nome do Rei, os compelimos A largar-nos as armas com que os vimos?
Se do auxílio do Grande se aproveitam, Se a sua fé, se o seu favor aceitam (Como é crível que o façam), que destino Tão triste para nós! Eu imagino Que não sois Europeus: a vossa glória Acabou de uma vez para a memória.
Virá, eu vejo, o Montanhês tirano, Roubará nossos bens, irá ufano Contar aos nacionais seu vencimento;
Albuquerque, eu o vejo, em nobre aumento Fará brilhar a Lusa Monarquia;
Nós lhe daremos nova glória um dia.
Eia, Europeus briosos, eia amigos, Vejam-se os ódios respirar antigos.
Torne, torne de nós a ser lembrada De Dom Fernando a fresca retirada;
Venha em memória de Rodrigo o caso;
E ou em falsa traição, ou campo raso Ataque-se Albuquerque, fuja e leve De uma vez, pois que a tanto hoje se atreve O desengano da ousadia sua.
Assim fala Menezes: continua A propagar Conrado o ímpio partido, Que de acordo comum têm concebido.
Derrama-se o veneno e vai chegando Aos corações de muitos, avivando As imagens da antiga rebeldia.
Já um número grande concilia De atrevidos o Frade: estão dispostos A disputar a entrada; ao Herói opostos, Se querem sustentar na liberdade;
Francisco, o vil Francisco os persuade A viverem seguros nos protestos Firmados com Viana: de funestos Agouros ao Paulista se enche tudo.
Eis do sulfúreo pó, do ferro agudo Se buscam munições. A arte, o engenho (Qual o País permite), o desempenho Se propõem da vitória nos tostados Paus, de que os duros cafres vêm armados:
Emboscadas ao longe se preparam;
Tomam-se os sítios, fortes se declaram Contra Albuquerque os insolentes peitos.
Já de Marte ao furor, campos estreitos, Eu ouço em vós soar da guerra o brado, A arcada trompa do Indiano ousado Enche a terra de horror, de assombro os ares.
Conta-me, ó Fama, de que estranhos lares, De que montes, florestas, vales, rios Vistes correr os bárbaros Gentios, Que o bravo Tutonaque armou de lanças?
Que socorros são estes, que alianças, Que aos Chefes dos rebeldes votos rendem?
Desde o Sabrabuçu matos se estendem Que habita o Pataxós, nação que um dia Um Reino, um vasto Reino parecia.
Tutonaque é quem manda a turba imensa;
Ele os nutriu no crime e na licença, Cheios de raiva e de furor salvagem;
A seu arco é quem só dão vasselagem;
De verdes anos a domar valentes Da onça as garras, e do tigre os dentes Aprenderam talvez; o óleo os tinge Do pau silvestre, que inda mais os finge À vista horrendos; são caciques deles Olinté, Mamigé, Teuco, Tameles, Marminton, Quezincoal, Remlo, Kalupa.
Bárbara esquadra desta gente ocupa Toda a falda de um monte; em roda os matos Dão abrigo aos rebeldes, que insensatos Não pensam mais que em fazer crer a todos Que a antiga liberdade por mil modos Será turbada, se o bom Chefe os rege.
Entre nós, diz Francisco, se protege A maldade; debaixo deste indulto A traição, a vingança, o roubo, o insulto, Tudo concorre a nos fazer ditosos.
Em paz tranqüila a desfrutar gostosos Vivemos no País que outro não manda;
Sem susto o delinqüente entre nós anda;
Que será quando um braço mais potente Arroje do castigo o raio ardente?
Quando as nossas paixões intime o freio?
De qualquer desafogo no receio Cheios de medo sempre, e sempre indignos, Não saberemos contestar malignos A oposição dos Montanheses feros.
Quanto conosco hão deportar-se austeros Os Chefes recebidos! Não é novo Viver sem leis, e sem domínio um povo;
Nações inteiras têm calcado a terra Sem adorar a mão que o Cetro aferra;
E tal houve que creu felicidade Desconhecer inda a justiça: a idade Tem [ ] a humana inteligência Para abraçar sem susto o que é violência:
Que tormento maior a um livre peito Que a um homem, a um igual viver sujeito?
A liberdade a todos é comua;
Ninguém tão louco renuncia à sua.
As leis, que um ente humano lhe prescreve, Cego capricho sustentar-nos deve Neste, diga-se embora fanatismo, Embora seja abismo de outro abismo.
Talvez justa noção, princípio, ou dogma O comum bem noutros projetos soma;
Mas dou que haja razão que assim o dite, Que um saudável concelho facilite O bem e a paz na obediência; eu vejo Que não podemos já viver sem pejo.
Ao ludíbrio dos mais sacrificados Nos tratarão de membros empestados;
Sobre nós cairá todo o castigo, Que nos encobre agora um rosto amigo.
Longe, longe, tão baixos pensamentos;
Este é o fim, que segue a passos lentos O novo Chefe; eu o provejo: posso Contestar-lhe o poder; o resto é vosso.
Calou o Infame; em um tremendo grito Soa aplaudida a idéia do delito;
É geralmente a rebeldia aceita.
Do descuido do grande se aproveita Entretanto o Traidor; expede aviso A um corpo de Europeus, que vê preciso Para auxiliar seu braço: o Itatiaia Os recolhe em seu seio; ali se ensaia A sedição em poucos mais de um cento.
Houvera de lograr-se o ousado intento, Mas o Gênio, que guarda as Pátrias Minas, E a seus descobridores de benignas Influências enchera, percebendo A crua idéia do atentado horrendo, Do mais fundo de um monte a estância bruta Buscara; ali se acolhe; e em uma gruta Da cavernosa lapa anima o gesto De um índio já cansado, inútil resto Dos anos que contara a mocidade.
Barba e cabeça lhe branqueja a idade;
Dos fundos olhos inda mal se via O fogo cintilar, em que nutria Um espírito vivo e penetrante:
De leito serve a pedra, e tem diante De si os secos ramos, onde acende A pequena fogueira; a ela estende As mãos mirradas, o calor buscando.
De uma clara corrente, que manando Vinha do centro do penhasco, o curso Segue Albuquerque, entregue o seu discurso, Separado dos mais, a idéias várias;
Entrava; e suspendido entre as contrárias Imagens que o combatem, de repente Punha os olhos no índio, e no acidente Do inesperado encontro está pasmado.
Caminhante que dorme descuidado Tanto não se enche de terror e medo, Quando abre os olhos, e vizinho e quedo Vê desde longe o tigre, a onça brava, Que da brenha saía, e atento o olhava.
Cuida ver uma fera o Herói; ousado Aponta o férreo cano, e já dobrado Houvera a mola, se de riso o velho A boca não enchera; ao seu conselho, Às suas vozes Albuquerque chega, E todo ao pasmo e à admiração se entrega.
Eu vos conheço, ó Europeus, conheço (Dizia o Gênio) o generoso apreço, Que de vós faz o Mundo; em vão dos anos Não conto os largos e crescidos danos.
Confunde-se o Varão; pede-lhe conte Quem é. Que faz? Eu sou, diz Filoponte, O primeiro que entrei estas montanhas Com o famoso Arzão; ele às estranhas Regiões se passou; eu só deixado, E ao comércio dos homens já negado Vivo neste retiro; a minha vida, Fortuna e mal, história é tão crescida, Que só pode cansar-te a minha história;
Mas, pois a sorte com feliz vitória Te conduziu té aqui, chegando a ver-me, Sabe quem sou, e aspira a conhecer-me.
Assim dizendo, com a mão feria O penedo de um lado, e já se via Aberta uma estrutura transparente De cristalinos vidros, tão luzente, Que aos olhos retratava um firmamento De estrelas esmaltado, e o nascimento Do roxo Sol, quando no mar desperta.
Em cada vidro a um tempo descoberta Uma imagem se vê, que os riscos formam, Estas em outros vultos se transformam, E a cena portentosa a cada instante Se muda e se converte; está diante Uma extensão larguíssima de montes, Que cortam vários rios, lagos, fontes;
Densos matos a cobrem; vêem-se as serras De escabrosos rochedos novas guerras Tentar, buscando os Céus, como tentara Briareu, quando aos Deuses escalara.
Logo uns homens se vêem, que vão rompendo Com intrépida força o mato horrendo, Nus os braços e os pés, mal socorridos Do necessário à vida: estão metidos Por entre as feras,-e o Gentio adusto;
Cada um de si só, perdido o susto, Se embosca ao centro dos Sertões, se entranha Já pelo serro, já pela montanha;
Uma e outra distância gira em roda, E deixa descoberta a extensão toda.
Passa este quadro, e logo outra pintura Nova imagem propõe, nova figura, Que retrata uns mortais de negras cores, Regando o aflito rosto de suores À força das fadigas com que cavam As brutas serras, e nos rios lavam As porções extraídas, separando As pedras do metal, que andam buscando.
Eis que outros homens de semblantes feros Contra os Conquistadores já severos Os fazem despejar desde os seus lares;
Disperso o sangue se recolhe em mares;
Família, e armas, cabedais, e tudo Cede aos avaros, que do ferro agudo Fazem despojo à fugitiva gente.
Ao som da caixa o vidro transparente Retrata logo em monstruoso vulto Correndo à rédea solta a todo o insulto Confusa multidão, que se prepara Arrogar-se o Governo e emprende avara Sustentar com seu sangue o roubo indigno;
De um Chefe os rege o coração maligno, Bem que se justifique na aparência De um influxo de zelo e de prudência.
Desde o cume de um monte está voltando As costas um Guerreiro, que domando A insígnia traz na mão; segue seus passos O resto desses míseros, que aos laços Dos ímpios escapara; tem a morte Presente aos olhos; e na dúbia sorte Escolhe de outras forças redobrar-se, Té que chega a ocasião de vindicar-se O respeito, que em vão aos maus intima.
Passavam outros vultos, quando em cima De um soberbo cavalo vem montado O mesmo Herói, o Herói que está pasmado De se ver a si próprio: ao longe um pico Desde uma serra o convidava ao rico País, que assombra o bárbaro Itamonte Co'a robusta presença: tem defronte O demandado Rio, que já vira, E notara em seu sonho; então se admira Inda mais Albuquerque, e crê que a idéia Em um fingido objeto se recreia, Figurando por força do costume O Rio e a Serra, que encontrar presume.
Alegre se encantara nesta vista:
Mas notou (triste horror!) que da conquista Embaraçava a entrada o vil partido Dos conjurados Chefes, produzido O exemplo do retiro de Fernando.
Tanto se atreve o insolente bando!
Encheu-se de tristeza, e o Gênio ativo, Que atende a protegê-lo, logo um vivo Esforço comunica ao nobre peito;
Antes que em fumo ou ar voe desfeito De tanta idéia o quadro portentoso, Quer declarar em tudo o misterioso Teatro das imagens: vós agora Influí-me uma voz alta e sonora, Ninfas do pátrio Rio, com que eu possa Cantar na glória minha a glória vossa.
CANTO VI
Na diáfana máquina presente (Diz Filoponte) todo o continente Vês, Albuquerque, das buscadas Minas.
São estas, são as regiões benignas, Onde nutre a perpétua primavera As verdes folhas, que abrasar pudera Em outros climas o chuvoso inverno.
Dos mesmos Deuses o poder eterno Não se atrevera a combater os montes E as serras, que em distintos horizontes Murando vão pelos remotos lados Mares e lagos, com que ao Sul marcados Seus limites estão: a forma, o nome Variam serra e rio, e sem que tome Firmeza alguma o prolongado vulto, Sempre o princípio te há de ser oculto, Quando chegues ao fim do rio ou serra.
Levados do fervor que o peito encerra Vês os Paulistas, animosa gente, Que ao Rei procuram do metal luzente Co'as próprias mãos enriquecer o Erário.
Arzão é este, é este o temerário, Que da Casca os sertões tentou primeiro.
Vê qual despreza o nobre aventureiro Os laços e as traições, que lhe prepara Do cruento Gentio a fome avara.
A exemplo de um contempla iguais a todos, E distintos ao Rei por vários modos Vê os Pires, Camargos e Pedrosos, Alvarengas, Godóis, Cabrais, Cardosos, Lemos, Toledos, Paes, Guerras, Furtados, E os outros, que primeiro assinalados Se fizeram no arrojo das conquistas, Ó grandes sempre, ó imortais Paulistas!
Embora vós, Ninfas do Tejo, embora Cante do Lusitano a voz sonora Os claros feitos do seu grande Gama, Dos meus Paulistas louvarei a fama.
Eles a fome e sede vão sofrendo, Rotos e nus os corpos vêm trazendo;
Na enfermidade a cura lhes falece, E a miséria por tudo se conhece.
Em seu zelo outro espírito não obra Mais que o amor do seu Rei: isto lhes sobra.
Abertas as montanhas, rota a Serra, Vêconverter-se em ouro a pátria terra;
O Etíope co'os Índios misturado Eis obedece ao próvido mandado Dos bons Conquistadores: desde o fundo, De ouro e diamantes o país fecundo Produzas grandes, avultadas somas.
Tu por empresa, nobre engenho, tomas Fabricar inda o esférico instrumento, Que o trabalho fará menos violento.
Já dos rebeldes o esquadrão ferino Se conjura afazer o roubo indigno, Tomando outro partido esses, que devem Respeitar um só Rei; ímpios se atrevem A lançar desde os lares, que têm feito Os míseros Vassalos: o preceito Intimado na voz do Rei lhes tira As armas, um e outro se conspira, E em vários choques, em ataques vários, Ou morrem já, ou buscam solitários E fugitivos o seu pátrio berço.
Ide, infelices; o ânimo perverso Cessará uma vez de maltratar-vos;
O Rei sabe puni-los, sabe dar-vos Justa satisfação, justa vingança.
Sobre eles vem Fernando; mas o lança Inda o furor da levantada gente;
Volta a munir-se o Capitão valente, E a vosso beneficio já protesta:
Fará cair ao chão mais de uma testa.
Já dos parentes, dos amigos vossos Se vão juntando e vêm correndo os grossos Esquadrões, que pertendem desde a Serra Fazer aos ímpios a sangüínea guerra;
Mas tu sucedes, Albuquerque invicto, No bastão a Fernando; o Rei prescrito As ordens te tem já, porque temperes O orgulhoso furor: não consideres Tão segura porém a tua entrada;
A vil conspiração mal apagada Inda ao longe te forja e te fulmina Nos levantados Chefes a ruína.
Tens ao teu lado a próvida influência Do pátrio Gênio; contra uma violência Outras suscitarei; lá desde o seio Das mesmas Minas, um incêndio ateio Nos ilustres Pereiras: estes passam A disputar co'os outros e se enlaçam Em vingar os domésticos insultos.
Vós e os mais vossos passareis ocultos E disfarçados aos distritos, onde Dos rebeldes o número se esconde.
Lá convosco estarei, e... prosseguia, Mas de uma e outra parte concorria Buscando o Herói a comitiva, crendo Que aos matos se entranhara e que, perdendo Talvez o rumo, duvidoso errava.
Faria já com eles se ajuntava, E Garcia, que o rosto traz magoado Do sucesso infeliz que tem notado.
Tudo desaparece neste instante Ao assombro da nuvem, que diante Da penha condensara o Gênio astuto.
Um chuveiro cerrado desde o bruto Cume da rocha se estendia, e nada Mais que a sombra na lôbrega morada Se deixa perceber por tudo quanto Detivera ao Herói no estranho encanto.
Ao passo que se assusta e se entristece Das imagens que vira, restablece O espírito no amparo prometido Do Gênio, em quem contempla introduzido O influxo de alguma alta inteligência, Que se encobre dos homens na aparência.
Alegre sai da nuvem, que desata, E no arcano mais íntimo recata O que ouve e vê, notando os companheiros;
Que é isto, diz, chegastes mui ligeiros, Vós, Padre, e vós, Garcia! A vossa empresa Talvez se conseguiu com mais presteza Do que eu tinha esperado: em doce laço, Dizei, já vive Aurora? Vive Argasso?
Ah! Senhor, diz Fialho (que Garcia, Os olhos rasos d'água, mal podia Falar, e quase absorto o Herói saúda), O caso é tão funesto, que na muda Mágoa só pode cabalmente ouvir-se.
Saímos há seis dias; descobrir-se A Aldeia pouco já se começava;
Aos acenos de Argasso festejava O Monaxós alegre a nossa vinda;
Não tardou de saber a crua Eulinda, Rival de Aurora, o firme pensamento Do meditado Santo Sacramento;
Conspirou em seu dano, e de ira cheia A cova foi buscar de Teriféia:
Esta a superstição teve por nome, Inocentes meninos traga e come.
Dous arrancados dos maternos peitos Lhe leva a crua Indiana; ela desfeitos Os tem já entre as presas aguçadas:
"Eu vi (contou algum) que sufocadas As cãs estavam de seu sangue, e quentes Brotavam dentre os beiços as correntes."
Do destroço fatal contente a velha, Nas vítimas, que Eulinda lhe aparelha, A dar-lhe ajuda alegre se convida.
A instâncias de Garcia está rendida Em breve instante Aurora; nem se assusta Ao proposto Himeneu, e crê que é justa A persuasão, ao ver que afaz Garcia.
Do antigo amor de todo se esquecia Um e outro; e a virtude só pertendem Acreditar no estímulo, que acendem Dentro em seus corações, de propagada Ver uma vez a religião amada.
Ao Índio instruo nos mistérios Santos Da ortodoxa doutrina; e longe encantos, Superstições e mágicas, já creio Que tenho descoberto nele um meio De derramar por entre os mais a cura Da radicada antiga desventura.
Contentes andam todos pela Aldeia, Festejando o consórcio; qual passeia, Calçados pés e mãos de várias plumas, Qual faz soar o apito (nem presumas)
Que se ignora da música o concerto Entre os crus Monaxós); já vinha perto O dia ao caro laço destinado;
O Cacique, do amor estimulado Que tem pelos seus hóspedes, destina Que divididos vão pela colina, E que desçam ao vale os que destreza Têm no dardo e na flecha; encher a mesa Intenta com a caça, que sepulta Nos seus seios a gruta mais oculta;
Brindar quer os mais índios deste modo:
Convida desde já ao povo todo.
Ele próprio à fadiga não se nega;
Arremessa-se ao mato. Aurora pega No seu arco também; todos se atiram Ao fundo espesso, e pelas brenhas giram.
Teriféia a ocasião julga oportuna, Põe os olhos no Céu, alta coluna Levanta e firma em terra; já sobre ela Se ergue e murmura, e nota cada estrela Com o dedo; depois desce, e riscando Muitas vezes em roda, vai tocando A coluna, que treme e que se move:
Tolda-se em sombra o ar, troveja e chove;
E o tronco, dentre a nuvem que o cobrira, Sai figurando um tigre, que respira Fogo e veneno pelos olhos; passa Com ele ao monte, e o guia aonde a caça Se tenta e busca: aqui dormia Aurora;
Dormia; e junto aos pés branda e sonora Fontezinha o repouso convidava;
O peito em grande parte debruçava Sobre uma penha, e ao gesto brando e lindo De encosto o mole braço está servindo.
Chega a Maga cruel, põe-lhe diante A fera que conduz, e ao mesmo instante Se oculta em parte onde o sucesso veja.
O cuidado de a ver, ou fosse a inveja, Àquele sítio encaminhava os passos Do destemido Argasso; entre embaraços De mal distintos ramos, já descobre O mosqueado tigre, ao braço nobre O crê despojo, e de matá-lo espera;
Firme o pé desde longe aponta a fera, E atrás puxando o braço a seta envia, Que vai cravar no monstro aponta fria.
Corre gritando - oh! Céus! - e vê passado De Aurora o peito; em vão busca assombrado O tigre, que não há; já desfalece A pouco a pouco a bela; a mágoa cresce No mísero homicida, clama e grita, Atroa os Céus, e contra os Céus se irrita;
Nem mais a vida, que estimara, preza;
Arroja o arco, e à infeliz beleza Consagra de seu corpo o último resto.
"Amor, disse, cruel, pois que funesto Foi o fim de um princípio tão ditoso, Pois que cortastes o vínculo gostoso Que a dita, a mesma dita ia tecendo;
Bem que inocente o impulso inda estou vendo, Que animou este braço, acabe o peito, Onde ele se forjou; roto e desfeito O véu que cerca esta alma, ela se aparte, Indiana adorada, ou a pagar-te Com seu eterno pranto a dura ofensa, Ou a pôr de teus olhos na presença, A mágoa enfim de um erro involuntário."
Disse; e trepando a penha, ao chão contrário Desesperado já se precipita.
Teriféia de longe aos índios grita, E alegre da vitória deixa o monte;
Não há quem visse, ou quem a história conte:
Mas da homicida bárbara informada Já torna Eulinda; furiosa brada A Aldeia, por vingar tanta maldade;
Sobre nós faz cair a atrocidade Do delito, e abrasando a Aldeia inteira De oculta chama, que ateou ligeira, Ministros nos faz crer deste atentado:
A fuga nos salvou, nem avisado Serias de um tão trágico sucesso, Se de Argasso um rival, que a tanto preço Eulinda amava, então não descobrira Tudo o que a Eulinda e a Teriféia ouvira.
Calou Fialho; em vão susteve o pranto Albuquerque; e notando que o quebranto De Garcia a rendê-lo se avançava, Consolando seu mal, assim falava:
Jamais se viu segura uma alegria, Nem estável jamais pôde algum dia Sustentar-se a fortuna de um ditoso:
Espere sempre o inverno proceloso Aquele por quem passa a primavera;
Amor que em brandas almas só pudera Empregar toda a força de seus tiros, Fará que troque as glórias em suspiros Aquele que em vão crera aos desenganos;
Ó vós, felices, vós, que os doces anos Entregais à virtude, eu vos agouro O sempre imarcescível, fresco louro, Que vos há de levar na longa idade Muito além da cansada humanidade.
CANTO VII
A Madre de Mêmnon dourava a terra, E já se descobria uma alta Serra Com três dias de marcha; de Itamonte O carregado aspecto está defronte.
Não repugna do Herói à nobre entrada, Mas tem presente ainda a retirada De Fernando; inda vê de sangue tinto O campo; e nota o ódio mal extinto Dos infames rebeldes, conjurados.
Embaraçar pertende os apressados Passos que vêm trazendo, e quer primeiro Co'a vista de um obséquio lisonjeiro Demorar a Garcia: teve o indulto Este Vassalo de avançar-se oculto E entrar na povoação, notando o estado Da levantada gente: era chegado À margem de um ribeiro; e os olhos tendo Mal enxutos ainda, se está vendo Na prisão insensível de um encanto, Que enfim lhe acaba de pôr termo ao pranto.
Uma voz se lhe finge, que feria Os ares docemente e assim dizia:
Saudoso Ribeirão, Mancebo infausto, Seja perdida a pompa, a glória, o fausto, Em pequena corrente convertido Vás regando este vale, o teu gemido Não acuse de Eulina o brando peito;
Talvez Amor tirano a teu respeito Quis que eu fosse cruel, e involuntário Seguiu meu pensamento esse contrário Influxo das Estrelas; eu te amava, E dentro da minha alma protestava Não render o troféu desta beleza Mais que aos suspiros teus, e à chama acesa De Amor, que nos teus olhos percebia.
Apolo, o ingrato Apolo é quem devia Ser contigo mais brando e mais propício:
A culpa é só de Aucolo; o sacrifício, O voto que ele fez ao Deus tirano, Tudo enfim se ajuntou para o teu dano.
Talvez não conhecia eu, desgraçada, Que eras tu o que então com mão armada Me estavas a esperar lá perto à fonte.
Este aleivoso Deus, para que conte Da minha história a triste desventura, Depois que presa a minha formosura Entre a nuvem levara enganadora, Faltando a toda a fé, me ordena agora Que eu torne ao pátrio berço, e convertida Em Ninfa destas águas, passe a vida Entregue sempre a míseros lamentos.
Oh! e quem crê de um Deus nos juramentos!
Aqui o teu sussurro estou ouvindo, E nele a tua queixa inda sentindo, Quando escapada aos amorosos laços Dizer-te escuto: "Onde a meus ternos braços, Onde te escondes, onde, amada Eulina, Quem tanto estrago contra mim fulmina?"
Aqui teu duro mal percebo e noto, Quando, do agudo ferro o peito roto, Dás à cega ambição em cópias de ouro O que roubaste, mísero tesouro De Itamonte, teu Pai, que não sabia Que a seus cansados anos deveria Suceder um tão fúnebre desgosto.
Cheio de mágoas te estou vendo o rosto Com que acusas o humano atrevimento, Quando lhe acordas o furor violento Que faz de Polidoro a desventura, Oh! ambição! Oh! sede! Oh! fome dura!
Ouve Garcia o canto, e não atina De onde tanto prodígio, mas de Eulina A delicada face está patente:
Fita os olhos, e vê desde a corrente Lançar a mão à praia a Ninfa bela;
Toma uma areia de ouro, e já com ela Pulveriza os cabelos: neste instante O sonho de Albuquerque o faz avante Passar; os braços abre, à Ninfa chama;
Ela o vê, e não teme, e já se inflama De amor por ele; aos braços o convida, E abrindo o seio o Rio, uma luzida Urna de fino mármore os sepulta, Recebendo-os em si: ficou oculta A maravilha a quantos o acompanham.
Em busca de Garcia já se entranham Pelos matos mais densos, mas perdida A esperança de achá-lo, e recolhida Volta ao Herói a esquadra aventureira.
De inadvertido brincos ação grosseira Turbara neste tempo a comitiva;
Querem que entre eles o partido viva De Europeus e Paulistas, e já passa A desafio em uns o que foi graça.
Conta-se que por mofa algum dizia Que seguro em si só não vai Garcia;
Que ao valor europeu em pouco ou nada Disputar do Paulista pode a espada.
Leva-se Borba do furor ardente, Empunha o ferro, atreve-se valente Ao mesmo tempo a rebater Pegado O colérico ardor; vê-se insultado No respeito Albuquerque: Olá! dizia, Os braços suspendei; de rebeldia É este um sinal claro; não se deve Tanto despique à ofensa, que é tão leve. Se ao Paulista de fraco alguém acusa, Ele de seus espíritos só usa, Quando a honra do empenho ao campo o chama.
Não é valente, não, o que se inflama No criminoso ardor de a cada instante Dar provas de soberbo, e de arrogante.
Os Europeus são fáceis neste arrojo."
Se justo imaginais foi o despojo Das Minas, que lhes tiram, porque avaros Se pertendem mostrar (bem que são raros Os que entre eles se arrastam da cobiça), Dizei: não pede a próvida Justiça Que zele cada um, que guarde, e reja O que adquire o seu braço, quando a inveja Lho pertende roubar? Estas conquistas, A quem se deverá mais que aos Paulistas?
Mas eu ponho de parte os argumentos, Que com substância igual os fundamentos Fazem desta disputa assaz ligeira;
Seguiremos a máxima grosseira Dos espíritos vis, que têm formado Nestas Minas um corpo levantado?
Acaso um mesmo Rei nos não protege?
Uma só Lei a todos nos não rege?
Do tronco português não é que herdamos O sangue de que as veias animamos?
Não faz comuas um Vassalo as glórias Do seu Rei? Do seu Reino? Das vitórias Que um ganha, o outro perde, não alcança A todos o infortúnio ou a bonança?
Somos nós dessa estirpe, que brotara Do antigo Cadmo a bárbara seara, Onde uns irmãos com outros pelejando O ferro no seu sangue estão banhando?
Árbitro entre vós outros me conheço, Do Europeu, do Paulista faço apreço, E distinguindo em todos a virtude Não espereis que de projeto mude.
Não faz a Pátria o Herói, nascem de Aldeias Almas insignes, de virtudes cheias;
E nem sempre na Corte nobre e clara Ingênua série, portentosa e rara Se vê de corações, que resplandecem Pela glória somente, e nela crescem Dizia; e ao mesmo passo de Pereira Um aviso chegava, de onde inteira Informação o Herói já recebia Da sacrílega, ousada rebeldia.
Sabe que ao longe os montes estão cheios Dos conjurados Chefes; nisto os meios Consulta de passar; e tem presente A imagem, que no vidro transparente Formara o Gênio; de Garcia ousado Só quisera partir acompanhado;
Por ele chama, e teme, e se entristece Ao ver que falta, e apenas aparece Quem dê notícia, ou conte a sua ausência.
Teme que surprendido na violência Ficasse dos Rebeldes; resolvido Já tem partir sem ele; do vestido Que traja, militar, e rica banda Se despe; humilde capa aos ombros manda, E por tudo disfarça o alto respeito, Que inculca o aspecto: a todos no conceito Segura desta empresa, e lhes ordena Que em marcha vagarosa, entre a serena Sombra da noite ao longe o vão seguindo;
Parte, e encostado à Serra vai subindo Uma colina, que lhe põe defronte O pico, o grande pico de Itamonte.
Chegava o dia ao termo derradeiro, E ao vale vem descendo desde o outeiro A sombra carregada; humilde tenda Aqui recolhe o Herói; como pertenda O Interesse adiantar o seu partido, Bem que o Gênio a seu ímpeto escondido Tinha as idéias com que o Herói salvava, Na mesma tenda a um tempo abrigo dava O indigno Monstro aos Chefes levantados.
Todos em um congresso declarados Entre si praticando estão na vinda De Albuquerque, nem crêem que esteja ainda Tão próximo a chegar; longe o figuram, E muitas vezes protestando juram De obrigá-lo a voltar; a morte certa Prometem, se o resiste; descoberta A Albuquerque se faz por este modo A torpe idéia do desígnio todo.
Recolhem-se a dormir, e se recolhe Albuquerque também, que não lhe tolhe A constância o temor; cauto pertende Aos Pereiras juntar-se, e mais se acende No desejo de ver ao bom Garcia, Que aos três irmãos já crê que passaria.
Cheio destes cuidados entregava Ao leito os lassos membros, e pensava Em vencer da alta noite por diante O caminho. Eis o Gênio vigilante, Que o perigo iminente está prevendo, Com seus influxos sobre o Herói descendo, Da mão o prende e o guia a um sítio aonde O escuro Caeté de acordo esconde Um magnífico Paço, em que destina Que tenha o Herói habitação mais digna.
Aqui dos três Pereiras o esperava O nobre ajuntamento, e protestava, Cada um em seu nome, que faria Cair por terra a infame rebeldia;
Que de amigos, patrícios e parentes Tinha a seu mando prontas e obedientes Muitas esquadras, que traria ao lado.
Tudo agradece o Herói; mas tem pensado Mover por arte e por indústria os Povos.
Estamos, disse, em uns países novos, Onde a polícia não tem inda entrado;
Pode o rigor deixar desconcertado O bom prelúdio desta grande empresa.
Convém que antes que os meios da aspereza Se tente todo o esforço da brandura.
Não é destro cultor o que procura Decepar aquela árvore que pode Sanar, cortando um ramo, se lhe acode Com sábia mão a reparar o dano.
Para se radicar do Soberano O conceito, que pede a autoridade, Necessária se faz uma igualdade De razão e discurso; quem duvida Que de um cego furor corre impelida A fanática idéia desta gente?
Que a todos falta um Condutor prudente Que os dirija ao acerto? Quem ignora Que um monstruoso corpo se devora A si mesmo, e converte em seu estrago O que pensa, e medita? Ao brando afago Talvez venha a ceder; e quando abuse Da brandura, e obstinado se recuse A render ao meu Rei toda a obediência, Então porei em prática a violência;
Farei que as armas e o valor contestem O bárbaro atentado; e que detestem A preço de seu sangue a torpe idéia.
Disse; e deixando a todos a alma cheia De uma nobre esperança, já passava A saber de Garcia; nem lhe dava Notícia dele algum dos três Pereiras.
A um fundo Rio estavam sobranceiras Espessas matas de árvores copadas;
De seus ramos, quais) á foram mostradas Ao Troiano, que tenta o Reino escuro, Em vãs imagens pende o sonho; um duro Tronco escolhera o Gênio; ali fizera Em uma e outra fúnebre quimera Respirar o terror, forjar-se o susto.
Dali manda se espalhe a todo o custo Uma e outra ilusão; partem voando As fantásticas sombras; vão pintando Grilhões, cadeias, cárceres, suplícios, Degoladas cabeças, artifícios Nunca inventados de instrumentos vários Que estão ameaçando aos temerários, E rebeldes Vassalos a ruína:
Confundem-se os infames, e destina Cada um desde já buscar o meio De pôr de parte o crime enorme e feio, E acreditar aos pés do Herói que chega A fé, com que ao seu Rei se rende e entrega.
CANTO VIII
Entretanto que o Gênio se cansava Nesta empresa, o Interesse fomentava Novas discórdias; e do altar impuro, Aos sussurros de um fúnebre conjuro, Subir fazia desde o horrível centro Vorazes Fúrias, e do Abismo dentro A guerra ateia, que aos mortais destroça;
Tiram bravos leões uma carroça, Em cujo assento aparecer se via Com vulto horrendo a infame Rebeldia;
Víboras os cabelos são, que estende Sobre a enrugada testa; um Etna acende Em cada olho, e da boca em cada alento O veneno vomita o mais violento.
Tem por despojos a seus pés caídas Púrpuras rotas, destroçadas vidas De Reis, de Imperadores; vem cercada Da Traição e do Engano, e disfarçada Entre estes monstros com fingido rosto A Hipocrisia tem seu trono posto.
Este ídolo cruel, que se autoriza Mais entre os outros, porque estraga e pisa Com mudo pé dos Grandes as moradas, Tendo a seu lado as Fúrias convocadas, E entrando em parte já co'a Rebeldia, Ao Nume do Interesse assim dizia:
Sei que vacila o teu arrojo, e vejo Que muito além do natural desejo Vão correndo as cansadas diligências, Com que até aqui no esforço das violências Quisemos impedir a triste entrada Deste Herói, que nos traz ameaçada Toda a ruína de uma longa idéia.
Se talvez sombra vã não lisonjeia Meus altos pensamentos, eu discorro Que a mim me toca só dar o socorro Ao decadente impulso desta empresa.
Não sei de que triunfo na certeza Eu me prometo um dia a segurança De uma eterna, pacífica bonança.
Se passou Albuquerque, e tem rompido Ao centro destas Minas, destruído Eu verei de uma vez o seu projeto.
Tomo a meu cargo simular o aspecto De uma rendida sujeição, levando Na lisonja encoberto o insulto, e quando Ele acredite mais nossa obediência, Farei que, rota a máscara, a violência Dentro dos nossos braços o acometa;
Que morra a frio sangue, ou que se meta Às brenhas fugitivo, e busque a estrada Que lembra de Fernando a retirada.
Assim falava a torpe Hipocrisia, O Engano co'a Traição já se lhe unia;
Aprovava o Interesse a idéia insana, A Rebeldia se gloriava ufana;
E por todos o alento suscitado, Se alegram, crendo já executado Tudo quanto entre as Fúrias se medita.
Vão buscando os Chefes; corre, e grita A infame esquadra de uma e outra Fúria:
Pouco se afligem da passada injúria.
Cortam desde o seu templo os crespos ventos;
E ao hábito nocivo, aos pestilentos Influxos, que derramam, se enche tudo De serpentes, de feras, que de agudo Veneno têm a fauce infeccionada.
Talvez não viste tu, Líbia abrasada, De monstros mais coberta a tua areia, Quando o Filho de Acrísio ali semeia O sangue da cabeça que cortara O ferro, de que a Deusa a mão lhe armara.
Mas já, Garcia amante, me convidas A descrever as horas entretidas Nos braços a que Eulina te trouxera.
Dentro da mansa e dilatosa esfera Do peregrino Rio entrado havia O Mancebo feliz, e já se via Pisando de uma sala o pavimento;
Por tudo refletia o luzimento Da riqueza, que os tetos esmaltava;
Sobre colunas de cristal estava Sustentado o edifício; delas pendem Lâminas de ouro, onde seu rosto acendem Em vivo resplandor Varões egrégios.
Da Fortuna e do Tempo os privilégios Inculcam dominar; nas mãos sustentam As insígnias do mando, e representam A Régia Autoridade: em cada testa Lhes verdeja o laurel que manifesta A duração da imarcescível Fama.
Eulina, que Garcia ao lado chama, Em um assento de ouro marchetado Lhe tem junto a uma mesa preparado O brinde da mais rara formosura.
Cem taças de ouro são, onde procura Mostrar-lhe aos olhos quanto desentranha De mais precioso o Rio, ou a Montanha.
Cerrava um branco véu logo diante Uma estância; rasgou-se, e em breve instante Deixou ver recortado junto a um monte O venerando rosto de Itamonte.
Era de grossos membros a estatura, Calva a cabeça, a cor um pouco escura, De muitos braços, qual a idade vira Tifeu, que a dura Terra produzira.
Quase a seus pés, o corpo debruçando Sobre um punhal, estava trespassando O peito um gentil Moço; da ferida Uma fonte brotava, que estendida Com as vermelhas águas rega a areia.
Eulina, que nas graças não receia Competir co'a Deidade que o Mar cria, De transparente garça se vestia, Toda de flores de ouro matizada:
A cabeça de pedras tem toucada, Deixando retratarem-se as estrelas Em seus olhos; tão ricas, como belas, Muitas Ninfas em roda a estão cercando, Nas lindas mãos nevadas sustentando Os tesouros que oculta e guarda a Terra (Tristes causas do mal, causas da guerra!).
Niséia em uma taça oferecia Um monte de custosa pedraria, Em que estão misturados os diamantes, Co'as safiras azuis, e co'os brilhantes Topázios, co'os rubis, co'as esmeraldas Que servem de esmaltar essas grinaldas, De que as Ninfas do Rio ornam a frente.
Em outra taça do metal luzente, Copioso monte apresentava Loto, Por extremo formosa; desde o roto Seio do Rio o louro pó juntara;
Dele costuma usar Eulina clara Para dar novo lustre a seus cabelos.
Parece que a fadiga dos martelos Batem o mesmo pó coalhado ao fogo, Pois deixada esta taça e olhando logo Para outra que Licenda na mão tinha, Nelas de barras mil um monte vinha, Em que o divino pó se convertera.
Não tardava a chegar branda, e sincera, A mimosa Leutipo: esta ofertava Uma e outra medalha, que cunhava Nas pequenas esferas do ouro fino.
De vários caracteres peregrino [De ouro, de diamantes circulado]
Jeroglífico ali se vê gravado, Onde a letra em três riscos dividida Tinha estampa entre as outras mais luzida.
Do formoso espetáculo no meio, De júbilos Garcia se vê cheio;
As Ninfas o entretêm, Eulina o prende, De Itamonte a grandeza mal entende, E do Moço qual vê rasgando o peito Não sabe a história; que se o doce efeito Provado houvesse do gostoso fruto Que encontrara na Hespéria o Grego astuto, De si, dos companheiros se esquecia, E transportado em outro já se via.
Com a voz descansada lhe falava O bom velho Itamonte: e pois que a brava E inculta região das pátrias Minas Tens pisado, ó Garcia, de ti dignas Sejam tuas ações; tu te atreveste Primeiro que outro algum; e tu pudeste Romper os matos, franquear o passo Do não tentado Rio; o Fado escasso Contigo não será, tendo encoberto Por mais tempo o País que traz incerto O teu grande Albuquerque; ele procura Erguer a Capital, aonde a escura Sombra de um sonho lhe propôs defronte O carregado aspecto de Itamonte.
Neste sítio ele está; ali se ajunta Com os fortes Pereiras, e pergunta Por ti: o pátrio Gênio o tem guiado;
Deu-lhe a mão, lá opôs, ali prostrado Ele vê a seus pés esse que há pouco, Levado de um furor insano e louco, Embargar pertendera a sua entrada.
Por muitos anos sei como ignorada Foi aos humanos esta Serra: agora A têm tentado alguns e nela mora Um corpo de Europeus, a quem oculto Tenho ainda os tesouros que sepulto.
Permite o Céu que sejas o primeiro, A quem eu patenteie por inteiro Todo o segredo das riquezas minhas.
Já desde quando no projeto vinhas De encontrar as preciosas esmeraldas, Eu te esperava deste monte às faldas.
O Deus destes tesouros impedia Até aqui descobri-los, e fingia Meu rosto aos homens tão escuro e feio, Porque infundisse em todos o receio.
E pois que a sorte tens de que em meus braços Ele mesmo te ponha; os ameaços Cederão de Itamonte ao teu destino;
Vê pois, Garcia amado, o peregrino Cabedal que possuo, e que pertendo Ceda ao teu Rei. Se aos olhos estás crendo, Não é fábula, não, essa grandeza Que tens defronte da preciosa mesa.
Toda essa terra, que o descuido pisa Dentro em meus braços, crê que se matiza Com o louro metal, geral o fruto, O nome de Gerais por atributo Estas Minas terão; vês os diamantes:
Eles vêm de outras serras mais distantes, Mas tudo corre a encher os meus tesouros;
Hão de brilhar os séculos vindouros Com esta fina pedra; em abundância Vencerão os que vêm de outra distância;
[E do Indo será menor a gloria,]
Quando vir apagar sua memória, Nas terras onde o Sol iguala o dia, Do meu Jaquitinhonha, a onda fria.
Sobre grossos canais ao alto erguidas As correntes do Rio, e divertidas Da margem natural, darão entrada À industriosa mão, que já rasgada Uma penha, e mais outra, faz que a terra Descubra aos homens o valor que encerra.
De ti, ó Rei, das tuas Mãos só fio Romper o seio do empolado Rio.
As pedras amarelas, e encarnadas, De que estão essas taças coroadas Produz o Itatiaia; aquele Rio, Que vai buscar com plácido desvio Outro, que do guará, purpúrea ave, Na língua pátria o nome tem suave;
[Ele por vários córregos girando]
E juntando as correntes, vai formando O grande Rio Doce; de Gualacho Nos futuros auspícios talvez acho Que um pequeno ribeiro o nome guarda.
Nas margens suas de nascer não tarda O grato engenho, que decante um dia As memórias da Pátria, e de Garcia;
Que levante Albuquerque sobre a Fama, Que a Vila adorne de triunfante rama, E dos pátrios Avós louvando a empresa, Sobre o estrago dos anos deixe acesa A memória defeitos tão gloriosos;
Crescei para o cercar, louros famosos.
As safiras azuis produz a Serra Do Itambé; tem rubis aquela terra, Aonde em breves fontes a Juruoca Vê o Rio nascer, que as águas toca Do grosso Paraguai; o Rio Verde Daqui nasce também, que o nome perde, Entrando pelo Grande; estes unidos Vão formar com mais outros os crescidos E agigantados passos, que desata Pela raia da Espanha o Rio da Prata.
Das esmeraldas ao precioso Erário, Talvez que não permita o Céu contrário Que outro mais que teu Pai registre as Minas.
Encobertas serão as pedras finas Por uma longa idade, e fatigadas Serão debalde as serras levantadas Do escuro Caeté, onde se abriga O Botecudo infiel, gente inimiga, Gente fera e cruel, que o sangue bebe Humano, e encarniçado não concebe Zelo algum pela própria Natureza.
Todos estes tesouros e a grandeza De todas estas pedras determino, Que por mão de um benévolo destino Vão buscar inda a Lusa Monarquia.
Desde o seio da terra a ver o dia O mármore virá, que aos Céus levante Edifícios soberbos; a elegante Mão do artífice, a Vila edificada, Fará que sobre as outras respeitada De Rica tenha o nome, derivado Dos tesouros o epíteto prezado.
Aqui chegava, e quase enfraquecido Tinha o vigor da voz, quando advertido De Eulina o arrebatado pensamento Com que o grande Garcia olhava atento Para as imagens que pendentes via;
Com que igualmente os olhos dirigia Para o Mancebo que rasgara o peito;
Tomando a lira, e com suave efeito Soar fazendo as cordas de ouro fino, Em cadências de um número divino De Itamonte lembrava a grande história;
Contava que empreendendo por mais glória Os Deuses conquistar deste Hemisfério, Deixando a Adamastor no vasto Império Das ondas lá do Atlântico Oceano, O pacífico mar buscara ufano;
Que de um raio de Júpiter ferido Fora em duro penhasco convertido;
Que um filho concebera de uma penha, Que foi Ninfa algum dia; ele se empenha Em contrastar de Eulina o peito ingrato;
Apolo oposto ao amoroso trato Lha rouba, e leva em uma nuvem; triste O Mancebo infeliz, já não resiste Ao rigor de seu Fado: busca ansioso Sobre um punhal o termo lastimoso De tanta desventura; de piedade Movido o louro Deus, ou de crueldade, Em fonte o converteu, e a cor trazendo Do sangue, que do peito está vertendo, Por castigo maior do fatal erro Sobre ele faz bater o duro ferro.
Assim atado ao Cáucaso gelado O ventre vê das aves devorado Em contínuo tormento esse, que intenta De Apolo arrebatar com mão violenta O raio, de que anima a estátua muda, Que tanto em fabricar seu dano estuda.
Tudo isto canta a Ninfa, e alegre passa A dar à linda voz mais bela graça:
Levando o rosto, e os olhos aplicando Para as lâminas de ouro, e reparando Em cada uma, concebe um novo alento;
Aqui levanta, e esforça o acorde acento, E como se Itamonte lhe influíra, Do peito do Gigante as vozes tira.
CANTO IX
Matéria é de coturno, e não de soco, O que a Ninfa cantava; eu já te invoco, Gênio do pátrio Rio; nem a lira Tenho tão branda já, como se ouvira Quando a Nise cantei, quando os amores Cantei das belas Ninfas e Pastores.
Têm os anos corrido, além passando Do oitavo lustro; as forças vai quebrando A pálida doença; e o humor nocivo Pouco a pouco destrói o suco ativo, Que da vista nutrira a luz amada:
Tampouco vi a testa coroada De capelas de louro, nem de tanto Preço tem sido o lisonjeiro canto, Que os mesmos que cantei me não tornassem Duro prêmio; se a mim me não sobrassem Estímulos de honrar o pátrio berço, Deixara de espalhar pelo Universo Algum nome, deixara... mas Eulina Me chama já: soava a voz divina, E aos bustos discorrendo, assim cantava:
Aquele (e no primeiro se firmava), Aquele que na frente traz gravado O caráter de um ânimo empregado Em contínuas fadigas, que inda sua Por entre a espessa brenha e serra nua, Vencendo ásperos riscos e as correntes Dos rios não cortadas de outras gentes Mais que do hirsuto e bárbaro Gentio, É Rodrigo, que junto àquele rio Que acabas de pisar a vida entrega Às mãos de uma ousadia infame e cega.
Em vão tentou ao Rei dar novo aumento Das Minas no feliz descobrimento, Que atalhando seus passos duro fado Aqui lhe tinha a urna preparado:
Em vez de roxos lírios e açucenas, Bárbaras flores lhe derrama apenas Piedosa mão, se acaso Monstro enorme Seu túmulo não pisa, e nele dorme.
Artur é quem sucede mais ditoso, Pois que atraindo ao Borba generoso, Que ao centro dos Sertões se retirara, Com ele emprende ver a terra avara, Onde jaz de Rodrigo a sepultura:
Vê qual próvida mão dar-lhe procura O luzente metal, que em longos anos Se negara à fadiga dos humanos.
O terceiro é Fernando, que sustendo Dificilmente as rédeas se está vendo Entre os insultos da rebelde gente;
Desde longe o ameaça a bala ardente, A crua espada e o punhal ferino, Se não volta e obedece ao seu destino:
É prudente o Varão; vê-se arriscado Sem armas, sem defesa, e profanado O respeito não quer e a autoridade, Que sustenta do Rei a Majestade.
De vendicar o mando a empresa toma O famoso Albuquerque, e a grande soma, Dos tesouros que guardo eu lhe preparo.
Melhor do que nos mármores de Paro, Ou nos polidos bronzes de Corinto, Ele o seu nome levará distinto, De uma vez as cabeças decepando Da Hidra venenosa, que soprando Ainda o fogo está da rebeldia.
Fará subir com nobre valentia De choupanas humildes a altas torres Essas povoações, que a ver discorres Desde esta margem te meu fundo centro;
Quanto do seio meu se encerra dentro Liberal eu virei dar-lhe em tributo;
Da grande cópia do amarelo fruto Os curvos lenhos em fecundas frotas Irão levar às regiões remotas As preciosas porções, que nunca vira Em tal grandeza o Rei, que dividira As águas do Eritreu, e desde o Tiro Ao claro Ofir voou com longo giro.
Do Carmo a Vila, e a Vila do Ouro Preto Formarão das conquistas o projeto;
Junto ao Rio, a que as Velhas deram nome, A terceira erguerá, que o foral tome.
lá vens cortando o mar para rendê-lo, Magnânimo Silveira; do teu zelo Fia o Rei se adiante o novo Empório:
Em trinta arrobas de ouro faz notório Por esta vez o Povo o seu tributo, E agradecido o Rei conhece o fruto Da tua persuasão, sem que a violência Arrastasse os esforços da prudência.
Do teu Antecessor seguindo a estrada, Passas a ver com glória edificada A Vila que escondida o Fado tinha Com o precioso nome da Rainha;
E no distante Serro se levanta A outra, que do Príncipe se canta;
Ditosas povoações, que hão de algum dia Encher de lustre a Lusa Monarquia.
Criadas as três Vilas, já demarcas Os distintos limites das Comarcas:
Dás com próvida mão leis, e moderas As discórdias civis; já consideras Domado o povo, e em sucessão gloriosa Ao claro Almeida entregas a preciosa Porção das Minas do Ouro: ó tu, mil vezes Digno filho de Marte, que os arneses Acabas de romper entre os Iberos;
Que ousados braços, que semblantes feros Te não cabe aterrar! Ao longe eu vejo Erguer-se a multidão, que em vão forcejo De atrair e render; vem arrastando Infames Chefes o atrevido bando:
Chegam, propõem, disputam; nem se nega Teu intrépido rosto à fúria cega Do fanático orgulho. Ah! não se engane O Vassalo infiel; bem que profane, Que ataque e insulte a Régia Autoridade, Ao destroço da vil temeridade Será o campo teatro, e em sangue escrito Chorarão sem remédio o seu delito.
Cai a sublevação, e restablece Outro Almeida o real decoro; cresce A opulência no Estado; um Melo e Castro, Da esfera lusitana feliz astro, Já sucede ao bastão que Almeida empunha;
Deste Herói as virtudes testemunha Itália toda, e as suas glórias soma, Cheia de tanto nome, a ilustre Roma.
Mas qual te chamarei, ó sempre digno Sucessor de Galveas; o benigno Céu, que te envia a nós, de riso cheio O seu semblante inculca; ah! que do meio Do Guadiana te arrancou! Pendente Lá vejo a espada, e vejo a areia quente Do sangue derramado! Que destino Tão fausto para nós! Já imagino Que eternos os teus dias lograremos!
Dos Tritões sobre as costas levaremos Ao luso Atlante, nunca tão pesados, Os Reais Cofres; vinde, ó dilatados Sertões, vinde montanhas, vinde rios;
Chegai também, ó bárbaros Gentios Do bravo Cuiabá, do Mato Grosso, De Pilões, de Goiases, vede o vosso Destro Governador, que desde as Minas Sustenta a rédea, e manda as peregrinas E sábias direções, com que reparte Em uma e outra dilatada parte Sua próvida mão, com que segura O bem do Rei, dos Povos a ventura!
Já do pardo Uraguai busca a corrente;
O Irmão o substitui; o sangue ardente Lhe lembra a imitação de heróicos feitos, Generosos A Andradas, dignos peitos!
Este alimpa os Sertões da gente ociosa, Que do roubo se nutre; a deliciosa Margem do Rio Grande é povoada.
Toda a larga campina que pisada Fora do cafre vil ao Régio Erário Rende os tributos; pode o Céu contrário, Sim, roubar-vos, ó Freires, mas na idade Há de ser imortal nossa saudade.
Vês ora o grande Lobo: este caminha Seguindo a Serra, que lá tem vizinha De Paulo a Capital; impede os passos, Que abre o extravio; pronto aos ameaços Da Guerra acode, a Terra fortalece De militares tropas, e a guarnece De bélicos petrechos: já fundido Sai da fornalha o bronze, e convertido Em raios de Vulcano atroa os montes.
Mas ai! que já do Tejo os horizontes Se vêem escurecer! Já deixa a praia Aquele Herói saudoso, que se ensaia De verdes anos a ganhar vitórias!
Já nos demanda e busca: nas memórias Seu nome impresso guardarão as Minas.
Oh! e de que influências tão benignas Seu governo não é! Ao conquistado Quanto de novo tem acrescentado!
Domésticas aldeias reconhecem A proteção do Rei; já obedecem As distantes regiões; vem o Tapuia Do escuro Cuieté, ou do Urucuia Beijar o Santuário: qual se esconde Rio, ou montanha tão remota, aonde Não se investigue por seu mando o ouro?
Que crime há tão seguro, que ao vindouro Com o exemplo profane? Oh! singulares Dotes do Conde meu de Valadares!
Assim cantava a Ninfa, arrebatada Do profético espírito; dourada E sonorosa a trompa já se ouvia Entre um tropel de brutos, que feria A praia oposta; a luminosa sala Se ia negando aos olhos; já não fala Itamonte, e o Mancebo já se esconde;
E Garcia (oh! prodígio!) se acha aonde Há pouco antes se achara, e adverte, e nota Que para ali com plácida derrota Vêm chegando Albuquerque e os companheiros.
Já festivos clarins pelos oiteiros Se deixam perceber, louvando a vinda;
Em vivas tudo soa; e corre ainda O mesmo bando que turbara a entrada A protestar a fé, já detestada A torpe idéia, que o arrastara um dia.
Alegre o Herói se abraça com Garcia;
Alegres dão-se as mãos Borba e Camargo;
Conta o Mancebo do feliz letargo As horas; conta o Herói o que passara, Como um e outro Chefe ali o buscara;
Como já com certeza achado tinha O sítio, aonde levantar convinha A Capital das Minas: vem Fialho, Afirma que, seguindo um breve atalho, O fundo registrara de Itamonte;
Que vira o vale e a aprazível fonte, Onde de Eulina inda a memória vive.
Presente, diz o Herói, também eu tive Toda esta noite quanto viu Garcia.
O Gênio celestial, que pôde um dia Descobrir-me o segredo deste empório, Tudo aos meus olhos, tudo pôs notório;
Vi este sítio, o Vale, o Rio, a Serra, E os tesouros, que o monte ao longe encerra;
Aqui entre estes povos se levante A Vila, e já passando mais avante Se erija a Capital: isto dizendo, Reparte as ordens; todos concorrendo A um tempo vão na fábrica luzida De um e outro edifício! Da ferida Que abria o ferro em um robusto lenho, Cômodo à obra, por notícia tenho Que um cheiroso licor se derramava Da cor do sangue; absorto o Herói estava, E vendo a maravilha, diz a Bueno:
Acaso crera que o país ameno Lembra o sucesso das irmãs piedosas, Que inda choram no Erídano as saudosas Memórias do abrasado irmão; coalhadas Assim se vêem as lágrimas brotadas Dos moles choupos. Bueno, que não perde A oportuna ocasião, do tronco verde Toma argumento e diz: A antiga história Desta árvore, eu a guardo de memória, Desde a primeira vez que um índio velho Encontrei nos Sertões, e de conselho Saudável quis que eu fosse socorrido.
Nestes montes me conta que nascido Fora um mancebo: Blázimo era o nome, Que a corrupção do tempo em vão consome, De bálsamo guardando inda a lembrança.
Este, tão destro em sacudir a lança, Como em matar às mãos o tigre ousado, Da formosa Elpinira namorado, E seguro no cetro que mantinha De trinta aldeias que a seu mando tinha, A demandava esposa: disputava Argante um tal amor; a grossa aljava Dos ombros lhe pendia, e sempre em guerra Fumar fazia a ensangüentada terra.
Elpinira, que causa se conhece De tanto estrago, entre ambos se oferece A dar a mão ao que a ganhasse em sorte (Por que caminhos não buscava a morte!).
Convêm os dois rivais, e o pacto aceito, Um dos dias do ano têm eleito, Em que o seu Paraceve festejavam.
Brancas e negras pedras ajuntavam Em uma concha e, em roda juntos todos, Ao grande ato concorrem; vários modos Inventam já de baile, jogo e dança, Coroando cada um sua esperança.
Preside às sortes o bom velho Alpino, Pai de Elpinira e Rei: vem o ferino Argante, pés e mãos tendo cercado De verdes penas, onde amor firmado Traz a esperança da vitória; a frente Blázimo adorna de um laurel florente, Que tecem muitas rosas, misturadas De suavíssimo cheiro; estão sentadas Várias índias, cercando em meio a bela Elpinira; orna a testa uma capela De rosas, e folhetas pendem de ouro Das orelhas; por tudo um triste agouro Respirou: muitas árvores tremeram, Os pássaros do dia se esconderam, Só os da noite sussurrar se viram.
Juram, dando-se as mãos os dois, e tiram Cada qual sua pedra; a branca expunha Sorte feliz; a negra testemunha A perda da consorte; está jurado Sofrer com paz o que não for premiado.
Blázimo vence, Argante se retira, E simulando a dor, geme e suspira.
"Viva Blázimo!", dizem: logo as vozes A Argante vão ferir, e tão atrozes Passam a ser as fúrias em seu peito, Que desde aquele instante faz conceito De vingar sua dor, roubando a glória Ao mesmo que o privara da vitória.
Com rosto disfarçado quer contudo Lograr o golpe; um meditado estudo Lhe lembra a ocasião, o sítio, e a hora De banhar toda em sangue a mão traidora:
"Eu, diz Argante, eu devo entrar em parte Nas vossas glórias; todo o esforço d'arte E do engenho porei, por que se veja Que cedo alegre, e não me arrasta a inveja.
Na minha aldeia, e entre os meus povos quero Festejar vossas núpcias; nela espero Dar-vos provas do gosto e da alegria Que me sabe trazer tão fausto dia.
Ali de firme paz e de aliança Farei novo concerto, e da vingança Cederá de uma vez o vil projeto"
(Oh! dura força de um mentido afeto!).
Aceita Alpino: Blázimo é contente, E Elpinira também, que já presente Crê a ventura que esperava ansiosa.
Três dias pede Argante, e a insidiosa Idéia lhe propõe um torpe meio De executar o dano sem receio.
Manda alimpar a estrada, funda cava Faz abrir no mais plano, que abarcava Ambas as margens; desde o centro ao alto Mete a aguçada estaca, e quanto falto De terra está cobre de ramo brando;
Sobre ele moles folhas vai deitando, Que a mesma terra entaipa, e já figura A superfície igual, e limpa, e pura.
Chega a terceira Aurora; desde a Aldeia Alegres vêm saindo, e os lisonjeia Argante, tendo em fronte aparelhado Do lugar da traição o costumado Baile, com que na paz se festejavam De muitos dos seus índios. Já pisavam A estrada os dois amantes: o Pai vinha De um lado, e de outro lado da mão tinha Blázimo presa a idolatrada Esposa (Que alegre vista, que ilusão faustosa!).
Todos diante vêm; este o costume É da nação; nem teme, nem presume Algum dos três, e inda o povo todo, A urdida morte por tão novo modo.
Com Argante e seus índios se avistavam, Em vivas desde longe se saudavam.
Infelizes (que dor!) as plantas punham Sobre a coberta cava, e já supunham Que os braços ao amigo se estendiam, Quando passados os seus peitos viam Das aguçadas farpas: volta Argante Colérico, soberbo e triunfante Sobre os desprevenidos que acompanham Sem armas ao seu Rei; todos se apanham Presos às mãos das emboscadas; morrem Imensos índios; a fugir recorrem, Mas a gente que às costas lhes ficava, O resto, o infeliz resto destroçava.
Já mortos os três índios, lançam terra Sobre os seus corpos; uma só urna encerra O mísero despojo. O Céu procura Vingar o grave horror: da sepultura Vê-se brotar uma árvore, que verte Cheiroso sangue. O caso se converte Em fabulosa história, e se acredita Que Blázimo, a quem segue esta desdita, Das mesmas flores de que a testa ornara, E do seu sangue a cor e o cheiro herdara;
E que o Céu testemunhos multiplica, Multiplicando os troncos; assim fica A tradição nos nacionais guardada;
O Índio que me conta a dilatada História diz-me, então, que mal segura É sempre a fé que o inimigo jura.
Ouve Albuquerque o caso, e não ignora Que alto mistério dissimula agora Em suas vozes Bueno; tem previsto Quanto o nome do Rei se vê malquisto Entre os Chefes do povo levantado;
E trazendo em memória o já passado Encontro adulador, que de Fernando Acobardara a entrada, então chamando Os membros principais, que arrebatava A fanática idéia, assim falava:
Vassalos sois de um Rei, que não vos deve O cetro, ou a coroa; a origem teve Já dos vossos Senhores; por herança O Reino Augusto em suas mãos descansa.
Sendo assim, bem sabeis que é só tributo, E não dádiva vossa aquele fruto Que adquirem vossas forças; dou que fosse Vossa a conquista; o seu domínio e posse Só cede ao vosso Rei; causa comua Seja ela embora, é nossa, porque é sua.
Ele os seus braços para nós estende, Nos manda e rege; e tudo compreende O seu Império na maior distância;
Nós juramos das Leis toda a observância, E do primeiro pacto não devemos Apartar-nos, pois nele nos prendemos.
Do castigo e do prêmio ele confia Das minhas mãos o arbítrio; eu deveria Usar do meu poder; porém cedendo À piedade o rigor, de vós pertendo Só dignas provas de obediência pura.
Não quero crer a sem-razão perjura, Que dominou em vós; a caluniosa, Torpe mentira, cuido que enganosa Fez voar tudo quanto é já notório Que tem feito a ruína deste empório;
Enfim perdôo a todos o passado;
Firma o Rei o perdão que tenho dado.
Conheço (e com Viana só falava)
Que em vós, e em vosso peito dominava Um zelo justo pelas leis que guardo;
De dar as providências já não tardo Sobre os dous ímpios, que influir puderam Nas discórdias civis: eles se alteram Com a minha chegada, e vão buscando Estranhos climas, libertando o bando, Que atraíram talvez, ou que arrastaram:
Os poucos membros, que entre nós ficaram, Farei por conservar na paz, que espero;
Mas da vossa obediência aprova quero Mais sólida e mais firme; ao longo centro Dos Sertões passareis, e ali dentro Dos seus limites contereis seguros Na doce paz os ânimos impuros;
Que os não manche outra vez o humor nocivo Da infame Rebeldia; o braço ativo Saberá, esgotando todo o empenho, Destroçá-los, puni-los: mas que venho A meditar? De vós tudo confio;
De vós, do vosso zelo, esforço e brio.
Isto dizendo, os braços estendia Para Viana: neles recebia Logo a Francisco, a quem recomendava O mesmo, e muitas vezes protestava Que do seu Rei poria na presença Um tal serviço; ordena sem detença Que partam desde logo; têm por dita Os dous Vassalos ver que os acredita O conceito do Herói; as mãos lhe beijam, E o desterro político desejam Cumprir, mais que por força, por vontade.
Conrado e outro conspirado Frade Ao longe vão marchando; e dão as costas À torpe Hipocrisia, que dispostas Tinha em vão as idéias do atentado;
A Rebeldia ao centro tem baixado;
Cheio de fúrias mil vomita fogo O Interesse, que o guia e arrasta logo O falso Engano e a Traição malvada, Que vêem tanta fadiga malograda.
CANTO X
De Flégon e Pírois as rédeas de ouro Batia o Sol, e com feliz agouro Em giros onze ao lusitano fasto Sobre mil setecentos que tem gasto Pelo eclítico cerco, enfim trazia O mês que Roma do seu Júlio fia Eis que Albuquerque, adiantando o passo Da margem que deixara, em breve espaço Pisava as faldas do Itamonte: estava Co'os olhos fitos o Gigante, e dava Vivos sinais de uma alegria interna;
Certo que de seus braços já governa Tão grande parte a direção prudente Do magnânimo Herói, ele impaciente Na dilação de ver a Vila erguida, Conta-se (nem do caso se duvida), Que assim falara quando o viu diante:
Ó tu, por tantos riscos triunfante, Albuquerque feliz, pois que a fortuna Te conduziu com máxima oportuna A registar de perto os meus domínios, Pois que cortados os fatais desígnios Do conjurado bando alegre pisas Este verde País, onde eternizas Em gloriosos feitos o teu nome, Deixa que em teu obséquio a empresa tome De ir já desentranhando do meu seio Os mármores mais finos; nisto veio Pulando desde o centro um Padrão liso Da mais subida massa; eu já diviso Nele entalhadas do cinzel agudo As Régias Armas; tanto ao destro estudo De Praxíteles não devera a idade:
Sobre o quadro da base à eternidade Se recomenda a estampa; ao alto erguida Sobre a coluna, a ponta está partida De um aguçado alfanje; assim denota Que aos crimes ameaça, e o sangue esgota Dos que entregues à pérfida maldade Desconhecem as leis da humanidade.
Este Padrão no meio se coloca Da Régia Praça, que os Céus provoca Soberba torre em que demarca o dia Volúvel ponta, e o Sol ao centro guia.
De férreo pau já sobe, e já se estende Magnífico edifício, onde pertende A Deusa da justiça honrar o assento.
Aqui das penas no fatal tormento A liberdade prende o delinqüente, E arrastando a misérrima corrente Em um só ponto de equilíbrio alcança Todo o fiel da sólida balança.
Da sala superior teto dourado Já se destina ao público Senado, Que o Governo econômico dispensa.
Lavra artífice destro sem detença Os mármores cavados; de polidas E altas paredes já se vêem erguidas As majestosas casas, que recolhem Régios Ministros que os tributos colhem;
Em respectivos tribunais decentes Dão as próvidas leis: talvez presentes Tem Itamonte já no claro auspício De um e outro magnífico edifício As que espera lavrar líquidas fontes, Que vomitam delfins, e régias pontes, Que se hão de sustentar sobre a firmeza De grossos arcos da maior riqueza.
Presentes tem talvez os Santuários, Em que se hão de esgotar tantos erários, Onde Roma há de ver com glória rara Que debalde aos seus templos disputara A grandeza, o valor e a preeminência.
Trajando as galas da maior decência Na casa do Senado o Herói entrava;
Da cor da tíria púrpura talhava A farda militar; cinge-lhe o lado A rica espada, que já tem provado Mil vezes o furor do irado Marte;
E a mão, que os prêmios liberal reparte E dispõe os castigos, já sustenta O bastão que os poderes representa.
Estão no plano os esquadrões formados, Monta a Cavalaria, e cinge os lados;
O centro ocupa a Infantaria; tudo Respira da grandeza um novo estudo:
Brilha o asseio e a ostentação; a idéia Crê que dos Céus na vista se recreia, Vendo nos recamados fios de ouro Que o Sol retrata ali o seu tesouro.
Desta arte entrando vai na Régia Sala, Senta-se, mede a todos, e assim fala:
Felizes vós, feliz também eu devo Chamar-me neste dia, pois que escrevo Com letras de ouro o meu, e o nome vosso.
Entre as vitórias e entre as palmas posso Seguro descansar: enfim caída Vejo de todo a rebeldia erguida, E Vassalos de um Rei, que mais vos ama, Buscais acreditar a vossa fama Com o dote imortal, que a Nação preza, De uma fidelidade portuguesa.
De meus antecessores longe o susto;
Goze-se a doce paz, e um trato justo De amizade e de fé, de hoje em diante Acabe de apagar o delirante, Fanático discurso, que inda excita De algum Vassalo a dor; não se limita O Régio Braço: a todos se dilata, A todos favorece, acolhe, e trata Sem outra distinção mais do que aquela Que demanda a virtude ilustre e bela.
Disse; e solenizando a ação, procura Se lavre logo a sólida escritura, Onde o foral da Vila se establece.
Entanto o pátrio Gênio lhe oferece, Por mão de destro artífice pintadas Nas paredes, as férteis, dilatadas Montanhas do País; e aqui lhe pinta, [Por ordem natural, clara e distinta]
A diferente forma do trabalho Com que o sábio mineiro entre o cascalho Busca o louro metal, e com que passa Logo a purificá-lo sobre a escassa Tábua, ou canal do liso bulinete, Com que entre a negra areia ao depois mete Todo o extraído pó nos lisos vasos (Que uns mais côncavos são, outros mais rasos)
E aos golpes d'água da matéria estranha O separa e divide; alta façanha De agudo engenho! A máquina aparece, Que desde a sua altura ao centro desce Da profundada cata, e as águas chupa.
Vê-se o outro mineiro, que se ocupa Em penetrar por mina o duro monte Ao rumo oblíquo, ou reto; tem defronte Da gruta, que abre, a terra que extraíra;
Os lagrimais das águas que retira Ao tanque artificioso logo solta;
Trazida a terra entre a corrente envolta, Baixa as grades de ferro; ali parados, Os grossos esmeris são depurados, Deixando ao dono em prêmio da fadiga Os bons tesouros da fortuna amiga.
Por entre a pedra estoutro vai buscando As betas de ouro; aquele vai trepando Pelo escabroso serro, e as águas guia Pelos canais que lhe abre a pedra fria.
Não menos mostra o Gênio a agricultura Tão rara do País, aonde a dura Força dos bois não geme ao grave arado;
Só do bom lavrador o braço armado Derriba os matos, e se ateia logo Sobre a seca matéria o ardente fogo.
Da mole produção da cana loura Verdeja algum terreno, outro se doura;
O lavrador a corta, e lhe prepara As ligeiras moendas; ali pára O espremido licor nos fundos cobres:
Tu, ardente fornalha, me descobres Como em brancos torrões haja tornado A estímulos do fogo o mel coalhado.
O arbusto está, que o vício tem subido A inestimável preço, reduzido A pó sutil o talo e a folha inteira.
Não menos brota a oriental figueira Com as crescidas folhas, e co'o fruto, Que inda nos lembra o mísero tributo, Que pagam nossos Pais, que já tiveram A morada do Éden e não puderam Guardar por muito tempo a lei imposta (Ó natureza ao Criador oposta!).
Os pássaros se vêem de espécie rara Que o Céu de lindas cores emplumara;
As feras e animais mais esquisitos Todos no alegre mapa estão descritos, Os olhos deleitando e entretendo O Herói que facilmente o está crendo, Ao ver que destra mão dar-lhes procura A vida que lhes falta na pintura.
Mas já lavrado estava e já firmado O termo, que escrevera o bom Pegado;
Quando mais que a eleição, podendo o acaso, Manda o Herói que se extraiam dentre um vaso Os nomes dos primeiros a quem toca Reger a Vara que a justiça invoca.
A ti te chama a sorte, ó grande Melo, E tu, Fonseca, em nobre paralelo Cedes nos anos teus a precedência, Do que contemplas próvida influência.
Seguem-se àqueles dous um Figueiredo, Um Gusmão, um Faria, e te concedo Que sejas tu, Almeida, o que completes O número na ação em que competes.
Ansioso o Povo às portas esperava Pela alegre notícia, e já clamava Viva o Senado... Viva! Repetia Itamonte, que ao longe o eco ouvia.
Enfim serás cantada, Vila Rica, Teu nome impresso nas memórias fica;
Terás a glória de ter dado o berço A quem te faz girar pelo Universo.
LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Vila Rica, de Cláudio Manuel da Costa
Edição de Referência:
A Poesia dos Inconfidentes, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1996.