Textos
Textos para uso geral de domínio público.

Verdades Singelas

Estas verdades singelas, Sem artifício e conceito, Pode-as ler qualquer sujeito;
E, se vir que alguma delas Lá pela roupa lhe toca, Tape a boca.
Dizer um senhor fidalgo Que tem três contos de renda;
E que gasta uma fazenda Só em sustentar um galgo, Que todas as lebres mata, Patarata.
Querer outro senhoria Quando tinham seus avós.
Um tu, um você, um vós, Somente por cortesia Do cura, ou do senhorio, Desvario.
Trazer de luto os criados Um senhor mui reverente, E dizer a toda a gente Que gastou três mil cruzados De seu pai no mortuário, Gabatório.
Andar outro embonecado, Ter amores, ter afectos, E depois de ter já netos, Andar inda namorado Sem se lembrar da velhice, É tontice.
Dizer um por vários modos Que nos seus antepassados Tem trinta réis coroados Do claro sangue dos Godos Que pelas veias lhe gira, É mentira.
Andar outro como brasa Vendendo soberba a molhos, E metendo pelos olhos Os brasões de sua casa, E de seus avós o foro, Desaforo.
Andar um para casar, Buscando uma entre mil Senhora rica, e gentil;
E entender que há-de achar Por cima disto donzela, Bagatela.
Insultar sem causa a gente, Dar empuxões em quem passa;
Querer que lhe façam praça, Ser por ofício valente, Ser carrancudo e severo, Destempero.
O que consente à mulher Andar na dança aos boléus, Escrever a chichisbéus, E que lhe deixa fazer Em tudo a sua vontade, Vá ser frade.
Na de amor louca contenda Andar sempre em viva roda;
Gastar nisto a vida toda, O tempo, a vida a fazenda, Depois ficar pelitrate, Disparate.
O ter sempre a mesa posta, Jogar, andar em caçadas, Ter dama, fazer jornadas, E nunca tomar resposta A quem lhe pede dinheiro, Cavalheiro.
O que tendo filha ou filho, Os vê fazer a miúdo, Este calção de veludo, Aquela rico espartilho, E mostra que não entende.
Que pretende?
Sustentar doze cadelas, Um sacador, um furão, Só por numa ocasião Sair ao monte com elas E caçar coelhos poucos, É de loucos.
Ficar um filho segundo Sendo da casa embaraço;
E viver como madraço Com um sossego profundo Tocando frauta ou viola, Mariola.
A viúva rica e nova, Que na igreja muito atenta Lança devota água benta De seu marido na cova Só com a ponta do dedo, Casa cedo.
A que não conhece o mês E que diz que tem catarro, Ou é velha ou come barro;
Ou algum excesso fez, Que a curar-lhe leva às vezes Nove meses.
A que entende que nunca Pode amor entrar com ela, Seja ingrata, seja bela Lá lhe há-de vir a maré Em que caia a formosura De madura.
A senhora a quem o criado Descalça o sapato e meia, Se ela não é muito feia E o moço não for honrado, Faz um bucho retorcido A seu marido.
A que tem dores da madre, Que remédio aos mestres pede, Que vai ao padre da Rede, Ou toma cedo compadre E acrescenta a gente em casa, Ou se casa.
Se não é rica uma dama E estraga airosa veludos;
Se acaso os homens sisudos Lhe lançam nódoas na fama Pela ver com indecência, Paciência.
A que dança de arremesso, Que faz versos e é cortês, Que joga e fala francês, Enfim mulher, que eu conheço, Seja clara, seja bela Fugir dela.
A que lê livros de amores, Que sabe deitar um mote, Que estraga olandas a cote, Que faz cortejo aos senhores, Se por milagre é donzela, Ter mão nela.
Sair sem causa da terra, Ir vagar pelas estranhas, Ir por vontade às campanhas E trazer sempre na guerra Pendente a vida de um fio, Desvario.
Ser de damas confessor E ser cónego em sé vaga, E ter quem lhe cure a chaga Do tirano e cego amor Lá muito pela escondida, Boa vida.
Servir a el-rei toda a vida, E depois em recompensa Ter trinta mil réis de tença Que é somente recebida Lá no cabo da velhice, Parvoíce.
Trazer títulos de Roma Sem primeiro ter que gaste, E ter bispo de Tagaste Sem ter já rendas que coma, Pagar a bula e gabela, Bagatela.
Uma fidalga noviça, Que quer, com grande insolência, Ser tratada de excelência, Com chinelas de cortiça E manto de tafetá, Arre lá.
Jogar de abono, e perder, E não ter com que pagar;
Ter amor e ver mudar A dama que bem se quer, E não ter lenha no Inverno, É inferno.
Ministro que lê Descartes Em vez de ler por Temudo, Ou que faz na solfa estudo Mais que nos feitos das partes, Está mui bem premiado Aposentado.
No que tem filhas bonitas, E no dia dos seus anos Consente que alguns maganos Lhe façam não só visitas Mas também algum calote, Chicote.
A que bebe sem vergonha, Que toma tabaco e dança, Que do jogo não se cansa, Que é toda guapa e risonha, Se por milagre é donzela, Ter mão nela.
Ser bispo sem jurisdição, Capitão de auxiliares, Cadete nos militares, Cavalheiro de esporão, E casar-se na velhice, Parvoíce.
O que passeia montado Sobre rocim muito podre, Com xairel de pele de odre, Com teliz esfarrapado E lacaio de capote, Dom Quixote.
A que tem só um amante E lhe manda a consoada;
E, se o vê fazer jornada, Nunca mais sobe ao mirante Pelo respeitar ausente, É inocente.
Ver uma dama noviça Querer ela ser senhora Tendo vindo de pastora, Que de alguém o afecto atiça Só por ter quem a sustente, Não é gente.
Ver andar de ceia em ceia Alguns, que aqui não nomeio, Ir ao jogo, ir ao passeio, E pretenderem que eu creia Que vão só tomar café, Não bofé.
Naquele que anda em carroça E pretende senhoria, Sem se lembrar que algum dia Andava seu pai de croça E sua mãe de tamanca, Boa tranca.
Letrado que atrasa a causa Com mui enredos astutos, Que lê feitos circundutos, E se passeia com pausa, Falando só no escritório, Farelório.
Mercador que faz rebates Depois de casar as filhas, Que manda navio às ilhas E não paga aos calafates Senão depois de citado, Tem quebrado.
O que nega a mão direita A todo o clérigo, e frade, E o que por mais vaidade A senhoria lhe aceita, E lhe fala impessoal, Animal.
O que namora a mulher Na igreja ou camarote;
E que a deixa dar um mote Em noite de baile, e quer Que aos mais pareça discreta, É pateta.
O que vai sempre ao café, Que traz papéis no cabelo, Que dá muito ao cotovelo E que em passo de cupé Caminha pelo ladrilho, Peralvilho.
Se às vezes traz a verdade Algum dissabor consigo, Aquele que das que digo Não mostrar nunca vontade, Tenha ao menos por prudência Paciência.


Domínio Público Gov.BR


Compartilhe esse texto!

O que você achou desse texto?

Comente abaixo e participe!

0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
Os comentários não representam a opinião do site e seus parceiros. A responsabilidade do conteúdo da mensagem é unicamente do autor do comentário.