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Índice Tarde na Praia A Morte da Torre Envelhecendo Antero Flor Lutuosa Non Ducor Duco À Senhora Antonieta Rudge Miller Eterno Symbolo Melancolia Pinheiro Morto Vitória-Régia A Roma Girassol Hibiscus Mutabilis Resposta a Olavo Bilac Nau Abandonada A Alberto Nepomuceno Ao "Paraíba"
A Dúvida Na Morte de Joaquim Nabuco No Lago de Genesaré No Aniversário de José Pires Brandão Sob um Retrato Sol de Outono A Uma Senhora Alma Tediosa Na Glorificação de Olavo Bilac A Um Pai A Um Possesso Sobre o Túmulo de Uma Mãe Tédio Hibernal No Festival a Luiz Pereira Barreto Poeta Numa Lápide Na Última Página de Um Álbum Nossa Velhice Velho Tema, Novo Tema Uma Carta Corvo (Edgar Poe)
TARDE NA PRAIA
A Leal de Souza Quando, à primeira vez, lhe vi a grandeza, Foi nos tempos da longe meninice.
E quedei-me à mudez de quem sentisse A alma de Pasmos e terrores presa.
Depois, na mocidade, a olhá-lo, disse:
É moço o mar na força e na beleza!
Mas, ao dia apagado e à noite acesa, Hoje o sinto entre as brumas da velhice.
Distanciado de escarpas e barrancos, Vejo-o a morrer-me aos pés, calmo, ao abrigo Das grandes fúrias e os hostis arrancos.
E ao contemplá-lo assim, tristonho digo, Vendo-lhe, a espuma, os meus cabelos brancos:
O velho mar envelheceu comigo!
A MORTE DA TORRE
A Coelho Neto Vetusta catedral que, ao tempo, te esborcinas, Choras a torre audaz que aos céus erguendo a agulha Os mysterios e os bens de que a igreja se orgulha, Do alto mostrava aos fiéis, nas sonoras matinas.
Já, de ti, longe vão as práticas divinas Com que davas ao incréu a sagrada fagulha E inda julgas ouvi-la em fragorosa bulha, A oscilar no teu flanco e a desfazer-se em ruínas.
Abateste, eu me lembro, à tarde, de repente, Doirando, no clarão de um último arrebol, O pó que te envolveu sutil e refulgente!
Torre morta! Afinal, do orgulho, no crisol, Tombaste amortalhada, ampla e gloriosamente, No purpúreo esplendor da agonia do sol!
ENVELHECENDO
A Luiz Murat Tomba às vezes meu ser. De tropeço a tropeço, Unidos, alma e corpo, ambos rolando vão.
É o abismo e eu não sei se cresço ou se decresço, À proporção do mal, do bem à proporção.
Sobe às vezes meu ser. De arremesso a arremesso, Unidos, estro e pulso, ambos fogem ao chão E eu ora encaro a luz, ora à luz estremeço.
E não sei onde o mal e o bem me levarão.
Fim, qual deles será? Qual deles é começo?
Prêmio, qual deles é? Qual deles é expiação?
Por qual deles ventura ou castigo mereço?
Ante o perpétuo sim, e ante o perpétuo não, Do bem que sempre fiz, nunca busquei o preço, Do mal que nunca fiz, sofro a condenação.
ANTERO
A Félix Pacheco Eu quisera saber em que horrendo limite, Em que fronteira atroz, em que raia do mundo, Está o ponto ante o qual, sem que a tortura o agite, O teu gênio se esvai como um Deus moribundo.
Senti-te crente um dia. Indeciso senti-te E, afinal, te senti como quem busca o fundo Das coisas e obedece a um sinistro convite, Da descrença imergir no pélago iracundo.
Não inspiras temor, mas não há quem te vença.
Por orgulho, és humilde e, na humildade, és forte.
Na imensa revolta e és a piedade imensa.
Morte, amor, crença ou vida, a quem quer que te exorte, Dizes: Sou mais que a vida e sou menos que a Crença;
Muito maior que o Amor, pouco menor que a Morte.
FLOR LUTUOSA
Natacés! Natacés! Meu dote encanto Que ameigaste, gentil, meus gestos brutos E me inflamaste, em rápidos minutos, O ininflamável coração amianto, De onde essa treva que o teu corpo santo Assim reveste de pesados lutos?
Porque esses olhos negros quando enxutos Ficam mais negros úmidos de pranto?
De luto ao ver-te, nem eu sei que sinto.
Não sei se é ver fulgir o halo de um astro, Dentro de escuro e tétrico retinto.
Creio, seguindo o teu saudoso rastro, Que vejo um cofre de ébano retinto Resguardando uma estátua de alabastro!
NON DUCOR DUCO
(Do brasão de armas da cidade de S. Paulo)
A Washington Luiz És a divisa audaz que, transpondo as divisas, Da metrópole ao vale, a escarpa, ao bosque, ao monte, De nada tens mister, de nada mais precisas Para, alargando a terra, afastar o horizonte.
Nas buscas do filão, do veio nas pesquisas, Quatridente pendão, sem o que te amedronte, Braço de bandeirante, a sacudir-te às brisas, Lá vais, a própria morte, encarar fronte a fronte.
E, oh! alma vegetal, planta rica e sadia Que, do rubi do fruto à esmeralda do galho, Te transformas em ouro, ouro que em ti irradia.
Aí está agasalhando o paulista agasalho Que é o berço da beleza e a fonte da energia, Fonte da intrepidez e berço do trabalho.
A SENHORA ANTONIETA RUDGE MILLER
Ser mulher e ser mãe dentro de um sonho de arte Que, aureolando a virtude e engrandecendo o amor, Deixa aquela integral quando este se biparte Ante o casto recesso e ante a pompa exterior, Eis o que faz querer-te, eis o que faz amar-te Alma indômita entregue ao pulso domador Que a amplia, que a desdobra e leva a toda parte, Da intérprete, a certeza e, do gênio, o esplendor.
Jamais mão feminina, ante as róseas falanges Reuniu tanto poder, tanta fascinação Como essa corn que os sons infinitos abranges.
Guaie sutil o vento ou ruja o furacão, Rouco esbraveje o mar, ou meigo gema o Ganges, Tens o eco universal dentro de cada mão!. . .
ETERNO SYMBOLO
A Oscar Bormann Aureolado da opala, o topázio, a ametista Que o sol ocíduo põe na agonia da tarde, O monte que de légua, ou de léguas, se avista, Do amplo juso à cimeira, em pedrarias, arde.
À suntuosa mudez não há olhar que resista, Nem ao quieto esplendor quern se não acobarde.
Um silêncio de luz lhe vai da base à crista:
É o féretro da pompa, é o túmulo do alarde.
Em tal fulguração, translúcido, irradia E essa translucidez que é apenas ilusória, Deixa ver que há um Além, além da fantasia.
Desce lenta, entretanto, a noite merencória. . .
Queda-se a natureza, amortalhada e fria, Na saudosa visão de um momento de glória.
MELANCOLIA
Quanta gente talvez no mundo existe Cuja ventura única consiste Em parecer aos outros venturosa.
Raimundo Correia Pelos males e pelas desventuras, Com que o destino nos foi tão cruel, Procuramos em nossas mútuas juras, Atenuar o travor do nosso fel.
Antefruindo, além, horas futuras No calmo gozo de um ideal vergel, Esquecemos passadas amarguras, O beijo impuro ou a carícia infiel.
Mas por sofrer ainda os vis apodos Dos que me não conhecem o sofrer, Vivo a fingir audácias e denodos.
Pensam, ao ver-me o alegre parecer, Que tenho o riso que ambicionam todos, Em vez do pranto que não quero ter.
PINHEIRO MORTO
Ao Paraná Nasceste onde eu nasci. Creio que ao mesmo dia Vimos a luz do sol, meu glorioso irmão gêmeo!
Vi-te a ascensão do tronco e a ansiedade que havia De seres o maior do verdejante grêmio.
Nunca temeste o raio e eu como que te ouvia Murmurar, ao guaiar da fronde, ao vento: - "Teme-o Somente o fraco arbusto! A rija ventania, Teme-a somente o errante e desnudado boêmio!
Meu vulto senhorial queda-se firme. Embala-mo O tufão e hei de tê-lo eternamente ereto!
Resisto ao furacão quando a aura abate o cálamo!"
Ouve-me agora a mim que, em vez de ti, vegeto:
Já que em ti não pesei, entre os fulcros de um tálamo, Faze-te abrigo meu nas entraves de um teto!
VITÓRIA-RÉGIA
(No álbum de Rafaelina de Barrow)
À tona ingrata e hostil de tétrica palude, Abre, gloriosamente, a impoluta corola E esplende, no vigor da vida e da saúde, Na região que um mortal sopro de peste assola.
Grande como a bondade e alva como a virtude, Na miséria de em torno ela é a radiante esmola De uma alma vegetal que em toda plenitude Do mal que a quer poluir, mais se apura e acrisola.
Bendito resplendor da flora brasileira!
Ela, Senhora, eu sei: dessa voss'alma egrégia, E o símbolo perfeito, é a expressão verdadeira ...
Fê-la rainha a ciência e, ao vê-la, a musa elege-a Como suprema flor, de entre todas primeira, -
Rival de Vós que sois como a Vitória-Régia.
A ROMA
A Sra. Gaby Coelho Neto Mal se confrange na haste a corola sangrenta E o puníceo vigor das pétalas descora, Já, no ovário fecundo e intumescido, aumenta O escrínio em que retém, os seus tesouros, Flora!
E ei-la exsurge a romã, fruta excelsa e opulenta Que de acesos rubis os lóculos colora E à casca orbicular, áurea e eritrina ostenta O ouro do entardecer e o paunásio da aurora!
Fruta heráldica e real, em si, traz a coroa Que o cálice da flor lhe pôs com o mesmo afago Com que a Mãe Natureza os seres galardoa!
Na forma hostil, porém, de arremesso e de estrago, Lembra um dardo fatal que o espaço cruza e atroa Nos prélios imortais de Roma e de Cartago!
GIRASSOL
A Amadeu Amaral Florir no descampado ou no úmido recanto De a1guma ruína, ou mesmo em áspero alcantil, É um orgulho que tem o redoirado heliantho Dês que da terra emerge a plúmula sutil Quando ele desabrocha entre os glastos e o acantho, Entre os mil tinhorões e as passifloras mil, Tem-se à conta de um sol, nascido por encanto Ao topo senhorial do tomentoso hastil.
É de vê-lo medir, a força e o valimento, Do orgulho vegetal, do seu orgulho em prol, Ante o rival senhor de terra e firmamento!
E de vê-lo, tenaz, de arrebol a arrebol, Do grande astro seguindo o régio movimento, O áureo disco volver para encarar o sol!
HIBISCUS MUTABILIS
A Henrique Venceslau Logo ao alvorecer, a corola contracta, Ela, a um raio de luz que em claridade a inunda, Abre timidamente, esquiva e pudibunda, Alva como o aflorar da espuma na cascata.
Meio dia. Ao calor que sensual a circunda, Cora, cora inda mais, em ânsias, timorata, Ruboriza-se, enfim, e não mais se recata.
É a seiva, é o sangue, é o sol, é a vida! Ei-la fecunda!
Desce a tarde. É a exaustão. É o delíquio. Fenece.
Volve a empalidecer, mas iá não irradia No primitivo albor de hóstia ou de uma alma em prece.
É o amarelecer da cera e da agonia.
É o desmaiar de quem a glória e a dor conhece, De ser virgem, ser mãe e morrer num só dia!
RESPOSTA A OLAVO BILAC
E, heróico estalará, num final, nos clamores Dos arcos, dos metais, das cordas, dos tambores, Para glorificar tudo que. amou na terra!
Olavo Bilac Para glorificar o que amaste na terra De forma que ela, assim, futuro em fora, o assista No seu teatro de amor, de orgulho ou de conquista, Basta o que há no teu estro e entre os teus versos erra.
Para ela o orgulho ter do que em seu seio encerra, Não precisa estalar teu coração de artista Na alta instrumentação, na estranha orquestra mista, De cordas e metais e tambores de guerra.
Ele, o teu coração, fibra a fibra, ressoando Na augusta vibração em que o gênio delira, Perpetuará melhor o que amaste cantando, Nesse único instrumento em que a paixão suspira Ou ruge num clangor tremendo e formidando:
Tua Humana e Divina e Imorredoura Lira! ...
NAU ABANDONADA
À excelsa poetisa Rosalina Coelho Lisboa Ei-la a sonhar ali como relíquia imota, Na ingratidão do tempo e na humana injustiça, Ela que a cada aproar e a cada nova rota Dava uma prova a mais da coragem castiça.
Espelho de uma raça e orgulho de uma frota, Nunca as velas abriu em rumo da cobiça.
Tinha, do heroísmo crente, a bravura devota, Era a lusa visão impoluta e inteiriça.
A História, aos feitos seus, quem quer que hoje a perlustre Lembra a voz com que o Herói, de alma valente e boa, Dava à pátria renome e ao próprio nome lustre.
Eu quando lhe contemplo o Netuno da proa Ou revejo o Tritão que lhe serve de aplustre, Ouço o eco dessa voz que em seu bojo reboa!
A ALBERTO NEPOMUCENO
Mestre irmão, mestre pai, mestre modelo!
Se do teu gênio a alma dos sons esvoaça, No prematuro alvor do teu cabelo Fulge a bondade que te coube em graça.
Nunca cedeste ao rancoroso apelo Dos ódios torvos ou da inveja baça.
Se da Arte trazes o divino selo, Toda a humana piedade em ti se enlaça.
A emoção que nesta hora nos invade Não leva o cunho de mentidas dores.
E a expressão quase muda da verdade.
A nossa gratidão, para onde fores, Levas contigo e deixas a saudade:
Sais coberto de lágrimas e flores.
AO "PARAÍBA"
Quando te vejo o deslizar das águas Claras, serenas como os bons momentos De amor que correm plácidos e lentos, Vão rolando contigo as minhas mágoas.
Mas quando as vejo em torvelins violentos, Torvas e turvas a raivar nas fráguas, Extingo as chamas da alegria, apago-as:
Rolam contigo os meus contentamentos.
É que sobre mim mesmo não exerço Força contrária à tua, a mim ligada Qual se liga a áurea rima a um verso terso.
E essa força, que é tudo, vem de um nada:
Às tuas margens balouçou-se o berço Da criatura eternamente amada! ...
A DÚVIDA
A José Agostinho Pereira É nova a aparição, mas, sendo nova, é a mesma Que, há muito, me procure e se me foge há muito!
Se a palpo, ei-la a esgueirar-se em coleios de lesma, Se a sigo, só lhe encontro urn rastilho fortuito.
Para bem defini-la, embalde, resma a resma, Todo o papel estrago. Em vão traço o circuito Em que a devo prender. Se agora é atra avantesma, Logo é o jogral que ri um ridículo intuito.
Ora é o duro pedrouço, ora é um frouxel de paina:
Ora o olhar amortece, ora lhe aviva o lume;
Ora agita as paixões, ora as paixões amaina.
O gesto do perdão e o gesto ultriz resume.
E eis-te mal esboçada em tua eterna faina, Sócia eterna do Amor, fonte do eterno Ciúme.
NA MORTE DE JOAQUIM NABUCO
Vai, sacrílega, a Morte, em sempiterna ronda A ceifar e a espalhar o horror e o sacrilégio.
Quem há que ao seu apelo, acaso, não responda, Seja espírito escasso ou pensador egrégio?
É uma alma juvenil? Ela, em volúpia, a sonda.
É um sábio? Ela o envenena em letal sortilégio.
É um artista? Ela o chama e erguendo a destra hedionda Ao mundo inteiro impõe o seu domínio régio.
Feliz é aquele só que ao ressurgir a tona Da vaza-mar que a terra envolve em extermínio, Ao nome, nova glória, a morrer, adiciona!
A alma do que hoje cai, não caiu em declinio.
Da História a porta entrou como senhora e dona, E a própria Morte impôs o seu régio domínio!
NO LAGO DE GENESARÉ A Leopoldo Guaraná Homem de pouca fé, por que duvidaste?
MATEUS. C. XIV. V. 31.
- “Nau da Fé! por que em ti, tornas o incenso em fumo?
Por que de um porto bom, para outro porto zarpas?
Nau da Esperança! em ti, já os sonhos não resumo:
Teu porto se antolhou de abrolhos e de escarpas!
Desarvorada Nau da Caridade! as harpas Do teu velame já se não ouvem, presumo, Pois as cordas sutis aos vendavais esfarpas E lá segues também sem velas e sem rumo!"
E a humanidade toda, entre queixas e mágoas, Entre as fúrias do mar e a cólera celeste, Fere e apura dos bons a alma em ardentes fráguas.
Mas Cristo despe então o manto que o reveste E diz, ao desdobrá-lo, assim, por sobre as águas:
Este manto resume as três naus que perdeste!
NO ANIVERSARIO DE JOSÉ PIRES BRANDÃO
O tempo que envelhece o paço e a choça, Em ti não marca os passos da velhice, Com que carinhos ele te remoça Numa alegre e perpétua meninice.
A bondade imortal que a alma te adoça Dá-te um cunho infantil, e essa meiguice Que é nosso encanto, que é ventura nossa, Chora entre risos e, entre prantos, ri-se.
Se no espírito tens a madureza E no caráter tens a anciã virtude Dos remotos varões da sã nobreza:
Quem de ti se aproxima não se ilude:
No coração plantou-te a natureza O viço em flor da eterna juventude.
SOB UM RETRATO
Aqui tens estampado, nobre amigo, Neste prodígio de beleza e graça, Um dos momentos em que Deus dá abrigo A um ser eleito e o seu destino traça.
Vê bem que nunca o vento do castigo, Ante estes olhos ululando passa!
Olhos piedosos em qualquer perigo, Serenos diante de qualquer ameaça! ...
Ante eles, contemplando a formosura, Pára o tempo e estaciona a própria idade, Pois que idade não tem tal criatura! ...
É que Deus lhe doirando a mocidade, Nela o espelho poliu de uma alma pura, Do Belo Eterno e da Imortal Bondade!
SOL DE OUTONO
Declínio augusto de uma mocidade, Tarde melhor que esplêndida manhã, Fruto supremo na maturidade E alma da carne sazonada e sã;
Argirócomo tronco, inda te invade Juvenilmente, sápida e louçã, A seiva forte em toda intensidade Do sangue de imortal deusa pagã!
Nada te abate o orgulho da beleza, Pois tens, dentro de ti, o áureo fulgor Do Belo, eterno como a Natureza!
A arte emprestou-te o mágico vigor Da forma que persiste, altiva e ilesa, A rir da Morte e a perpetuar o Amor.
A UMA SENHORA
(No álbum de D. Amália Bittencourt)
Esse que a pena terça e lhe não treme o pulso Nem lhe vacila a mão se acaso uma arma esgrime, Que é firme inda sentindo o cérebro convulso Que é calmo inda expandindo a cólera que o oprime;
Esse que hoje é o terror do anonimato avulso E que, do poderoso, aponta a vilta e o crime, Todo ele vem de vós, do vosso honesto impulso, Do que há, no Amor, de puro e há, no Lar, de sublime.
Quem quer que lhe conheça a fibra irresistível Vos deve conhecer e render homenagem A quem, heroína sendo, o põe de heróis ao nível!
Toda a força lhe vem da vossa própria imagem, Pois vossa mão lhe forja a couraça invencível E o vosso Amor lhe acende a invencível coragem!
ALMA TEDIOSA
A Souza Costa Quando o tédio nos tira até a melancolia, Quando nos tira a dor, o prazer, a surpresa, A alma se nos confrange e, pela treva fria, Como ao clarão do sol, é a mesma a natureza.
Não n'a escurece a noite e à luz não irradia, Não tem linha, nem cor, nem forma, nem beleza;
É sem aroma o odor, sem música e harmonia:
Não ouve, aspira ou vê quem dele é a inerte presa.
É o cansaço? Talvez. Mas talvez não n'o seja Mais do que não poder sentir esses cansaços De trabalhar em prol do que mais se deseja.
Arte ingrata! Arte hostil! Em vão meus versos lassos Busco em ti refazer renovando a peleja Para amar-te, cingir-te e vencer-te em meus braços!
NA GLORIFICAÇÃO DE OLAVO BILAC
Como é bom elogiar .quando nasce o elogio De um entusiasmo assim, de uma emoção sincera.
Corre, sobre o papel, a tinta, como um rio A correr na caudal que o declive acelera!
Os vocábulos vêm, espontâneos, a fio, Como os sorrisos sãos que um são deleite gera!
Rebenta o aplauso em nós, vigoroso e sadio, Como rebenta a flor em plena primavera!
Eis por que sou feliz, em ver glorificado Fora da inveja hostil, do despeito perverso O prosador querido, o poeta muito amado!
Da arte, no sangue real, tens o teu estro imerso, Porém, não basta, Mestre! um simples principado A quem é rei na prosa e imperador no verso!
A UM PAI
Tinhas em casa um céu. E o céu que cobre a terra, O céu, que cobre o mar, e o mundo inteiro encima;
Que o infindável espaço em seu âmbito encerra;
Que dá força ao que vive e ao que está inerte anima;
Que onde há sangue e rancor e fome e peste e guerra, Põe a paz e a saúde em carinhosa estima;
O céu que a mil milhões de astros de ouro descerra O manto azul que Deus, das almas, aproxima;
Esse glorioso céu, maior que tudo, entanto, Inda te era menor que aquela maravilha, Que era o infinito céu do teu paterno encanto!
Assim também o mar que à lua e ao sol rebrilha, Te parece inferior a uma gota de pranto, Que um coração de pai verte por uma filha! . . .
A UM POSSESSO
Resposta a cartas anônimas I
Olhas o céu e o céu, todo em atra gangrena, Se te mostra corroendo as rútilas esferas.
Baixas à terra o olhar e a terra, em outras eras.
Plena de gozo e amor, ora é de horrores plena.
Sangra a etérea região, sangra a região terrena E o horizonte que as une, inda mais dilaceras.
As próprias linhas - louco! - em que a sânie verberas, Podres vêm ao papel, podres brotam-te à pena.
Mas se ao céu e se à terra e se ao horizonte e ao verso, Asco e náusea tressuando, a podridão atrelas E nela vês tombar e fundir-se o universo, Sobe do chão o olhar, baixa-o das nuvens belas E volve-o dentro em ti, pois fora o tens imerso Na própria irradiação das tuas próprias mazelas.
II
Não te busco nem quero ouvir-te a voz pressaga Sombra de um sonho mau, esqueleto de um sonho!
Não dás vida e não tens a vida que propaga A orgulhosa altivez que na humildade ponho.
Doce orgulho o de ser humilde e igual à vaga Que após, altiva, inflar o seio ao mar medonho, Morre escrava no vil beijo que a areia apaga Como eu quando de ser soberbo me envergonho.
A trama que teceste habilmente, desato-a!
Que te vale à vaidade esse fingido apreço, Ou fingido temor à tua audácia fátua?
Do medo que me impões, eu, feliz, me envaideço, Ó inofensivo leão de projeto de estátua!
Garras de papelão, mandíbulas de gesso!
III
Ninguém lhe sabe o nome e não há quem a origem Lhe possa descobrir. Ele é o mistério errante.
São de um deus sem Olimpo as mágoas que o afligem Dia a dia, hora em hora, instante por instante.
É que de instante a instante, aloucado, à vertigem De achar baixa e mesquinha a vida circundante, Não compreende o infeliz que as forças que o dirigem São as que lhe detêm o passo para diante.
Torce-lhe a inveja o olhar. Envesga-lho a infecunda Vontade de galgar sobre alheios escombros.
Deixa entrever a injúria e a calúnia secunda.
Na idade varonil dos grandes desassombros, Ele aí vai carregando, a esmagar-lhe a corcunda, Todo o Humano Rancor sobre os míseros ombros!
IV
Dos teus errores de arte ao grande erro te atiras Fazendo refluir no teu verso bisonho, O ódio que te consome em pragas vãs e dirás Porque te é infenso o Amor e te é vedado o Sonho.
Dos Pecados Mortais às setênfluas espiras Tu te vais de roldão no torvelim medonho.
Ardem-te na alma cega as aburentes iras Mal cantadas ao som do teu plectro enfadonho.
Trôpego e pepolim, o teu metro se arrasta E se enrosca raivoso à rima que rasteja Mole fugindo à tua influência nefasta.
Embalde o teu furor de um poema a glória almeja:
Tombas mudando em medo a fúria iconoclasta;
Cais pedindo perdão no fim da peleja.
V
Passas. Ouço o rugir do vento que te leva.
Quando, da Arte, me ajoelho ao místico delubro, Tu vens, lúbrico harfango a crocitar na treva.
E o tarado eu diviso, o impotente eu descubro.
Alimenta-te a inveja. O despeito te ceva.
O ódio deu-te a voz rouca e deu-te esse olhar rubro, Esse único clarão que do teu ser se eleva E que eu, do meu orgulho, ao régio manto encubro.
Anda! Beija-me aos pés a clâmide inconsútil.
Eu, piedoso, ta estendo ao desespero inerme.
Tu não és venenoso, o teu esforço é inútil.
O teu dente sutil não me passa a epiderme, Ó fonte do banal, ó vertente do fútil!
Larva, tens o perdão. Tens a piedade, verme!
SOBRE O TÚMULO DE UMA MÃE
Se alguém compreende a mágoa que te oprime Não n'a compreende mais do que a compreendo.
Mágoa que o pranto, às vezes, não n'a exprime Mas que num riso, às vezes, se está vendo! ...
Deixa, porém, que paire a alma sublime Daquela santa sobre o mundo horrendo!
Que ela te ampare contra o mal e o crime, Ao teu futuro bênçãos estendendo.
Vejo-te a rir, amigo, mas no brilho Do teu olhar eu leio todo o inferno Do teu celeste coração de filho!
Ri comigo! Eu também num riso eterno Sigo da vida o doloroso trilho, Sem o guia imortal do amor materno!
TÉDIO HIBERNAL
A Augusto Maia E morrerei sem nunca ter vivido.
Adelino Fontoura Vida, não tens os ódios nem a estima De quem o gozo teu não desconhece.
Conhecendo, entretanto, a farta messe De dissabores que o teu seio anima.
Do mal abaixo e da bondade acima Esta se alteia quando aquele desce, E, muda a voz, sem pragas e sem prece, Não há quem, alto, tal estado exprima.
Lago velado por neblinas densas, A luz do sol e ao luar sempre escondido, Noss'alma, em nada crê, nem tem descrenças.
E ó morte! eu te desejo convencido E orgulhoso do bem que me dispensas, Na glória de morrer sem ter vivido! ...
NO FESTIVAL A LUIZ PEREIRA BARRETO
Ninguém glória tamanha e tão segura Pode gozar antecipadamente, Como tu, cuja vida excelsa e pura, É uma área trajetória surpreendente.
Dos teus cabelos sobre a casta alvura Bailam, cantando, as bênçãos do presente, Anteabençoando a irradiação futura De teu trabalho e teu esforço ingente.
Vences o tempo. De ti foge a idade E a velhice te cobre com clemência, Qual se foras a. eterna mocidade!
Vai e difunde a universal essência Sagrada sentinela da verdade, Maravilhoso apóstolo da ciência!
POETA
A Alberto de Oliveira O teu estro penetra, a fundo, a natureza, Da extrema pequenez às amplidões extremas.
Sejas presa do real, sejas do sonho presa, De pâmpano e de rosa a Pan urdes estemas.
Grave guerreiro grego, à graciosa agudeza, Alias a alma altiva e, a alar-se das algemas, Mostras na alta panóplia, em pedraria acesa, O áureo escudo a fulgir nos Sonetos e Poemas.
É assim que surges tu, ante as almas surpresas Como imortal padrão, como sagrado emblema, Da musa no esplendor das excelsas belezas.
Quando engastas no verso a rutilante gema Da rima rica e rara em rubis e turquesas, Tem-se o supremo culto e o amor da arte suprema.
NUMA LÁPIDE
Qual se teu filho fora eu me acabrunho E, de mágoa, a falar-te mal me atrevo.
Aceita, entanto, o humilde testemunho Do quanto foste meu sagrado enlevo.
Fosse-me dado, de cinzel em punho Talhar o liso mármore em relevo, E eu daria da pedra o eterno cunho, Às estrofes que em pranto e sangue escrevo.
Sei que não cabem nestes sons dispersos, O pranto em que esta angústia não se acalma, E o sangue em que tais sons morrem imersos.
Não cabe dentro de votiva palma Nem na estreiteza de mesquinhos versos, O infinito de dor que tenho n'alma! ...
NA ÚLTIMA PÁGINA DE UM ÁLBUM
Deste álbum, se até aqui, senhora minha, Chegar o vosso olhar, tende piedade De quem do fim da vida se avizinha Nuns derradeiros versos de saudade.
Saudade, não da vida árdua e mesquinha Que atravessei desde a primeira idade, Porém do tempo em que o meu verso tinha O audacioso vigor da mocidade.
Ai, nesse tempo, os vossos dons divinos, Em vez de versos trôpegos e mancos, Teriam senhoriais alexandrinos.
Hoje a musa caduca em vãos arrancos, Anda como eu, exausta, aos desatinos, Toda coberta de cabelos brancos.
NOSSA VELHICE
Canção musicada por Alberto Nepomuceno Dizes-te velha, entretanto, Em ti encontro, cada dia, Um novo, inédito encanto, Mais viço, mais louçania.
Em cada ano que se passa Eis a diferença nossa:
Minha alma envelhece baça A tua, em brilho, remoça.
Seguimos da vida o trilho Tu remoçada deveras, Eu como um velho casquilho Saudoso das primaveras.
Nossas almas, se me esforço Por vê-Ias, a vida alcança, A minha como o remorso, A tua como a esperança.
Tens do tempo a cada arranco No olhar um novo alvoroço, E a cada cabelo branco No lábio um riso mais moço, E se os cabelos de prata Soltas perdoando algum crime Por sobre mim se encascara A água lustral que redime.
Da terra no seio forte, Os lyrios matam os goivos.
Marcharemos para a morte, Como se fôssemos noivos.
VELHO TEMA, NOVO TEMA
Foi no mar, foi na terra ou no espaço infinito Que se ouviram, a errar, como errabundas boêmias, Eu uivo doloroso e aterrorante grito, Do ciúme e da paixão as duas vozes gêmeas?
Ambas tendo por berço um coração aflito, A dúvida as gerou e em suas garras preme-as.
Mas livres, afinal, do comprimente atrito Ei-las, soltas, a urrar em ditas e blasfêmias.
Em grotesco clangor ou trágico zabumba, Vendo Deus no demônio e o horrendo no sublime, Ante a fúria em que vão, não há quem não sucumba.
Passam, sem força haver que as dome ou desanime, Abatendo rivais e abrindo a própria tumba, Aos clarins da vingança e às trombetas do crime.
UMA CARTA
Félix Tu, que estas linhas, com teu nome encimas, Deixa que um grito de entusiasmo parta Da larva humilde, a efêmera lagarta Que não tem a haste flórea a que te arrimas.
No seu berço de imagens e de rimas, Tenho ante os olhos a inocente Marta, E o olhar, de olhá-la, não se cansa e farta, Tal o encanto dos versos com que a animas.
Todo o fel de que andei sempre embebido No meu desventurado amor paterno, Fez-se mel pelo mel neles contido.
Enterneces e ameigas, meigo e terno, Um coração de pai desiludido:
Beija o teu céu, eu beijo o meu inferno...
CORVO
(Edgar Poe)
À memória de Machado de Assis O inexcedido e inexcedível tradutor do genial poema de Edgar Poe, consagro esta pálida paráfrase que em nada se aproxima e jamais pretendeu aproximar-se da imorredoura tradução feita pelo Mestre dos Mestres.
Emílio de Menezes Desta amarga existência em certo, amargo dia, A hora da meia noite, augural e profana.
Eu, de velha doutrina, as páginas relia Curvo ao peso do sono e da fadiga insana.
Mal do meu pensamento a direção seguia Por essa hora de horror em que da treva emana Toda em funda hediondez, desoladora e fria, Da atra recordação, a atra saudade humana.
Foi assim que senti, do meu triste aposento, Como um leve sussurro a passar, lento e lento, E uma leve pancada a bater nos umbrais.
Disse comigo: é alguém que pela noite fora, Vem, retarda visita, e retarda-se agora...
A bater mansamente à porta, nada mais! ...
II
Ó se o recordo, e bem! numa invernia brava, O ríspido e glacial Dezembro decorria E, da lareira ao chão, cada brasa lançava O supremo fulgor da sua lenta agonia.
E eu a esperar, em vão, a aurora que tardava Queria, em vão, achar nessa velha teoria Contida no volume antigo que estudava, Um consolo sequer à dor que me pungia.
Em vão! consolo, em vão! à minha dor profunda Em vão! repouso, em vão! à alma que se me inunda Desta imortal saudade aos prantos imortais.
Porque jamais se esquece, alma consoladora Como essa que nos céus é chamada Eleonora, Nome que nunca mais ouvirei, nunca mais!
III
Ante o vago oscilar, indefinido e brando, Das cortinas que o vento, ao leve, sacudia, Ia-me o coração sinistramente entrando O sombrio terror da noite erma e sombria.
Um tétrico pavor que então desconhecia E que me estrangulava o peito miserando, A alma, sem compaixão, de dúvidas me enchia E pouco a pouco foi meu ser avassalando.
Enfim, para volver à ambicionada calma E a coragem, de novo, amparar-se-me d'alma, Repetia a mim mesmo estas palavras tais-
"Nada mais é talvez, que retarda visita Que vem da noite em fora e entrada solicita!
É visita que vem, por certo, nada mais!"
IV
A calma que até aí do peito me fugia Voltou de novo ao peito e, à coragem primeira, Não mais vacilações, não mais mente erradia!
Ao estranho rumor falo desta maneira:
"Como nesta ocasião o sono me prendia E a pancada foi tal, tão leve e tão ligeira, Que presto não corri; perdoai-me esta ousadia Dama ou senhor que estais da minha porta à ombreira."
Tão receosamente e vagarosamente Batestes, que não fui receber-vos contente, Como hóspede que sois e à minha porta estais.
E assim falando e olhando, escancarei a porta, Mas só encontrei naquela hora adiantada e morta.
Treva! Treva somente! A treva e nada mais!
V
Cravo os olhos na treva e longamente a escruto, E a treva é muda e é muda a própria ventania, E longo tempo assim com o próprio medo luto, De dúvida e terror povoando a fantasia.
Sonhos que outro mortal, como eu nunca ousaria Sonhar, me vêm num bando esmagador e bruto.
Profunda calma aquieta a quieta calmaria Imóvel é o silêncio e s6 o silêncio escuto! ...
A única voz humana, o único som ouvido, É este nome, em surdina e, a medo, proferido;
É este nome que encerra os meus mortos ideais.
Sou eu quem o profere, eu que o trago na mente, E um eco a repercutir, repete-o vagamente:
"Eleonora! Eleonora!" É isto e nada mais!
VI
Entrei de novo em ânsia e ardendo a estranho fogo, Senti que dentro em mim, todo o meu ser ardia.
Ouvi distintamente outra pancada e, logo, De outra pancada o som mais claro percutia.
A essa nova impressão, volto-me e monologo:
Talvez cousa qualquer me bata à gelosia.
Certamente que sim, pois que ludíbrio e jogo Do pavor de mim mesmo, eu, certo, não seria!
Fujamos, pois, do medo, ao tenebroso império!
Ânimo, coração! sondemos o mistério, Se bem que a noite esteja uivando aos vendavais.
E continuando fui: Nada mais foi que o vento, Não foi mais que o feroz, não foi mais que o violento Sopro do furacão! Foi isso e nada mais! ...
VII
Abro a janela e vejo entrar, ruidosamente, Amplas asas batendo e ares de fidalguia, Um majestoso corvo altivo e irreverente Como arauto feral da noite erma e bravia.
Sem fazer o menor sinal de cortesia, Sem um gesto sequer de hesitação prudente, Como entraria um nobre, alta dama entraria, Entrou e se alojou despreocupadamente.
Vagaroso e solene, ar indolente e farto, Exatamente sobre a entrada de meu quarto, Seguro abrigo achou acima dos portais.
Esta recordação até agora me enerva:
Sobre um pálido busto antigo de Minerva, Rígido e senhorial, postou-se e nada mais!
VIII
A este pássaro audaz, de ébano a cor das penas, Grave na compostura e na fisionomia, Que ao cérebro me dava idéias mais serenas, Que me acalmava o peito, e a sorrir me induzia.
Voltando-me disse eu: "Tu que te não encenas De altas cristas ou poupa à negra frontaria, Velho corvo feral que te mostras apenas, Certo, não és o vil núncio da covardia.
Corvo! antigo viajor que das regiões da noite Partiste a procurar um teto que te acoite, Dize-me tu quais são teus títulos reais!
Qual a pátria ante a qual teu orgulho se ufana?
Quais as tuas regiões na noite plutoniana?...
E o corvo senhorial respondeu: "Nunca mais!..."
IX
Ao perceber assim que ave me compreendia E que dava resposta a esta pergunta estranha Que eu, entre espanto e medo, a medo lhe fazia, Senti, de pasmo, n'a1ma um peso de montanha.
Porque ainda quem tenha uma intuição tamanha Capaz de perceber o que outrem mal veria, Certo, não achará neste dédalo um guia Para o tirar do caos em que a alma se emaranha!
Ninguém verá como eu, a ave negra num busto, Sem que mova o receio e sem que a mova o susto, Tranqüila espreguiçando as asas triunfais, Ouvir a minha voz a lhe indagar o nome E ante a curiosidade atroz que me consome, Dizer-me simplesmente a frase: Nunca mais!...
X
A ave hedionda, entretanto, erma, a encimar o busto Sobre cuja brancura as asas distendia, Como se essa palavra o sentido mais justo Tivesse e contivesse a suprema harmonia;
Fosse do pensamento um invólucro augusto Cheio de precisão e cheio de energia, Nada mais pronunciou, nem ao menos, a custo, Uma pluma moveu da plumagem macia.
Eu que continha mal toda a minha saudade, Apenas murmurei: Amigos de outra idade Tive, partiram; certo, assim também te vais!
Assim também te irás, mal rompa em luz a aurora!
Esperanças que tive assim fostes embora!
E o corvo repetiu a frase: Nunca mais!. ..
XI
Todo o assombro em meu ser por tremor se anuncia, Ouvindo a ave augural sem o menor estorvo, Tal resposta me dar, com tanta analogia Que inda agora, a lembrá-Ia, eco por eco a sorvo.
Certo a frase aprendeu na triste companhia De algum mestre infeliz cujo destino torvo, Da dor o escravizou à fera tirania, E a sabe assim de cor, o foragido corvo!
Tantas vezes a ouviu. Tão repetidamente O seu mestre infeliz lha fez vibrar na mente.
Que hoje a profere a rir, como a profere em ais!
De profundis! cruel de uma morta esperança, Tão tristonhas canções deixaram na lembrança, Do corvo este estribilho, este só: Nunca mais!...
XII
Como apesar de tudo a calma conseguia Fazer-me d'alma vir, do lábio, um riso, à tona, Chegando-me ao portal, do corvo hospedaria, Sentei-me e recostei-me a uma antiga poltrona.
Frente à frente do corvo, a alma já me sorria E toda entregue a mim, como quem se abandona, Busco ansioso indagar que novas me traria O fúnebre viajor que inda hoje me emociona!
Procuro compreender qual o escondido gozo Desse vil e sinistro arauto tenebroso Que em dois termos resume os seus vis cabedais;
Que os seus vis cabedais de ciência e de linguagem Resume ao exibir-me a tétrica plumagem Crocitando e grasnando a frase: Nunca mais!...
XIII
Deixo-me após ficar como quem se extasia Entre alucinação e funda conjetura, Ante a luz da razão e a névoa da utopia, Sem nada a me apoiar a mente mal segura.
Nada mais pronunciei, nem um som se me ouvia E como a um ferro em brasa, a uma horrível tortura, Da ave ao olhar hostil e à pérfida ironia N'alma entrou-me o terror que as almas transfigura.
Mas a um torpor de quem vagamente ressona, Recosto-me ao espaldar dessa velha poltrona Que eu para ali trouxera em ânsias infernais, E vejo a luz brilhar sobre o roxo veludo Em que por tanta vez d'Ela o semblante mudo Brilhou, mas nunca mais brilhará! Nunca mais!
XIV
Sinto assim a envolver-me uma nuvem de incenso, Solta de um incensório oculto que pendia Das invisíveis mãos de anjos que em coro extenso, Revoavam roçagando a ampla tapeçaria.
Haurindo o ar aromado e, de bálsamo, denso, De mim para mim mesmo exclamo em gritaria:
Infeliz! Infeliz! Um Deus piedoso e imenso, Pelos anjos te manda o repouso e a alegria!
Do nepentes é o sumo! Ei-Io, bebe-o! Ei-lo, esquece!
Ele é a seara do bem, do esquecimento a messe!
Nele ouvirás a voz dos gozos celestiais!
É o nepentes ideal que Deus te manda agora!
Bebe-o! Bebe-o olvidando a tua morta Eleonora!
E o corvo crocitou de novo: -Nunca mais!
XV
Pássaro ou Satanás, ave de profecia, Sejas ave ou Satã, sempre hás de ser profeta!
Venhas do teu inferno ou da brava invernia Que náufrago te fez, acalma esta alma inquieta.
Já que a noite exigiu, no vôo que te guia, Que caísses aqui, onde a angústia secreta, Onde o secreto horror tem teto ou moradia, Do pouco que disseste o sentido completa!
Diz-me, por quem és, se neste mundo triste, Existe algum repouso, algum consolo existe Para estes meus cruéis, sofrimentos mortais!
Existe esse mendaz bálsamo da Judéia Que, da saudade, a dor nos arranca da idéia?
E o corvo, inda outra vez, repetiu: Nunca mais!
XVI
Profeta ou Satanás, negro ser da desgraça!
Profeta sempre atroz de negra profecia, Pelo azul deste céu que sobre nós se espaça, Pelo Deus, todo luz, que em ambos nós radia, Dize a esta alma sem luz e de dúvidas baça, Baça de incertidão e de melancolia:
Ser-lhe-á dado abraçar o anjo que entre anjos passa, E de cujo esplendor hoje o céu se atavia?
Ser-lhe-á dado abraçar a virgem pura e santa, Virgem casta e piedosa e que os anjos encanta Com seus gestos de encanto e encantos virginais?
Ser-lhe-á dado abraçar; oh! dize-o sem demora, A rútila, a radiosa, a radiante Eleonora?
E o corvo rouquejou, roufenho: Nunca mais!
XVII
"Que esta palavra, enfim! de negra profecia Do teu regresso o início ambicionado seja!
Regressa ao reino teu, à noite que te envia, A noite plutoniana, essa que em ti negreja!
Volve! Cala essa voz que me fere e angustia!
Reentra no temporal, volve à tua peleja De lá fora e não fique uma só pluma esquia Neste chão, de tua vil plumagem malfazeja!
Não quero que de ti uma reminiscência Fique nesta de dor, sagrada residência, Sobre a qual distendeste as asas funerais!
Vai-te! Deixa da deusa a face casta e branca!
Arranca-me do seio as garras vis, arranca!"
E o corvo crocitou de novo: Nunca mais!
XVIII
E o corvo permanece em perpétua estadia, Sinistro a repousar, do mármore, à brancura.
Quem o contempla assim pela verdade jura Que algum sonho feroz seu aspecto anuncia.
É um demônio a sonhar sonhos que o inferno cria E que lhe enrijam mais a rija catadura, Talo fulgor do olhar que os olhos lhe alumia E com que a própria sombra ele sondar procura.
Essa sombra que a luz da lâmpada suspensa Faz refletir no chão, qual atra nuvem densa, No mesmo chão negreja em linhas sepulcrais:
E desse âmbito negro, esse âmbito de sombra, Minha alma que da dor da saudade se assombra, Nunca mais sairá! Nunca mais! Nunca mais!


Obra de referência:
Obra Reunida, de Emílio de Menezes,
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.


Domínio Público Gov.BR


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