Sonetos e Outros Poemas
I - SONETOS
Incultas produções da mocidade Exponho a vossos olhos, ó leitores ;
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade;
Que elas buscam piedade, e não louvores;
Ponderai da Fortuna a variedade Nos meus suspiros, lágrimas e amores ;
Notai dos males seus a imensidade, A curta duração dos seus favores ;
E se entre versos mil de sentimento Encontrardes alguns, cuja aparência Indique festival contentamento, Crede, ó mortais, que foram com violência Escritos pela mão do Fingimento, Cantados pela voz da Dependência.
Chorosos versos meus desentoados, Sem arte, sem beleza, e sem brandura, Urdidos pela mão da Desventura, Pela baça Tristeza envenenados :
Vede a luz, não busqueis, desesperados, No mudo esquecimento a sepultura ;
Se os ditosos vos lerem sem ternura, Ler-vos-ão com ternura os desgraçados :
Não vos inspire, ó versos, cobardia Da sátira mordaz o furor louco, Da maldizente voz a tirania :
Desculpa tendes, se valeis tão pouco ;
Que não pode cantar com melodia Um peito, de gemer cansado e rouco .
De suspirar em vão já fatigado , Dando trégua a meus males eu dormia ;
Eis que junto de mim sonhei que via Da Morte o gesto lívido, e mirrado :
Curva fouce no punho descarnado Sustentava a cruel, e me dizia :
"eu venho terminar tua agonia ;
morre, não peneis mais, oh desgraçado ! "
quis ferir- me , e de Amor foi atalhada, que armado de cruentos passadores aparte, e lhe diz com voz irada :
"Emprega noutro objeto os teus rigores ;
que esta vida infeliz está guardada para vítima só de meus furores. "
Já sobre o coche de ébano estrelado Deu meio giro a noite escura e feia ;
Que profundo silêncio me rodeia Neste deserto bosque, à luz vedado !
Jaz entre as folhas Zéfiro abafado , O Tejo adormeceu na lisa areia ;
Nem o mavioso rouxinol gorgeia, Nem pia o mocho, às trevas costumado :
Só eu velo, só eu, pedindo à sorte Que o fio, com que está minh'alma presa À vil matéria lânguida, me corte :
Consola-me este horror, esta tristeza ;
Porque a meus olhos se afigura a morte No silêncio total da Natureza.
Mavorte, porque em pérfida cilada O cruel moço alígeto o ferira, Não faz caso da mãe, que chora e brada, Quer punir o traidor, que lhe fugira :
Na sinistra o pavês, na dextra a espada, Nos ígneos olhos fuzilante a ira, Pule à negra carroça ensangüentada, Que Belona infernal côas Fúrias tira :
Assim parte, assim voa ; eis que vê posto No colo de Marília o deus alado, No colo aonde tem mimoso encosto:
Já Marte arroja as armas, e aplacado Diz, inclinando o formidável rosto : "Valha-te, Amor, esse lugar sagrado ! ".
Marília, nos teus olhos buliçosos Os Amores gentis seu facho acendem ;
A teus lábios voando os ares fendem Terníssimos desejos sequiosos:
Teus cabelos subtis e luminosos Mil vistas cegam, mil vontades prendem :
E em arte de Minerva se não rendem Teus alvos curtos dedos melindrosos :
Resiste em teus costumes a candura, Mora a firmeza no teu peito amante, A razão com teus risos se mistura:
És dos céus o composto mais brilhante;
Deram-se as mãos Virtude e Formosura Para criar tua alma e teu semblante.
Oh, tranças, de que Amor prisões me tece, Oh, mãos de neve, que regeis meu fado !
Oh tesouro ! oh mistério ! oh par sagrado , Onde o menino alígero adormece !
Oh ledos olhos, cuja luz parece Tênue raio de sol ! oh gesto amado, De rosas e açucenas semeado, Por quem morrera esta alma, se pudesse !
Oh ! lábios, cujo riso a paz me tira, E por cujos dulcíssimos favores Talvez o próprio Júpiter suspira !
Oh perfeições ! oh dons encantadores !
De quem sóis ?...Sois de Vênus ? - é mentira Sois de Marília, sois de meus amores.
Já se afastou de nós o Inverno agreste Envolto nos seus húmidos vapores ;
A fértil Primavera , a mãe das flores O prado ameno de boninas veste :
Varrendo os ares o subtil nordeste Os torna azuis : as aves de mil cores Adejam entre Zéfiros, e Amores, E torna o fresco Tejo a cor celeste ;
Vem, ó Marília, vem lograr comigo Destes alegres campos a beleza, Destas copadas árvores o abrigo :
Deixa louvar da corte a vã grandeza:
Quanto me agrada mais estar contigo Notando as perfeições da Natureza ! Grato silêncio, trêmulo arvoredo, Sombra propícia aos crimes, e aos amores, Hoje serei feliz ! - longe, temores, Longe, fantasmas, ilusões do medo.
Sabei, amigos Zéfiros, que cedo, Entre os braços de Nise, entre estas flores, Furtivas glórias, tácitos favores, Hei-de enfim possuir : porém segredo !
Nas asas frouxos ais, brandos queixumes Não leveis, não façais isto patente, Que nem quero que o saiba o pai dos numes :
Cale-se o caso a Jove omnipresente, Porque se ele o souber, terá ciúmes, Vibrará contra mim seu raio ardente.
Temo que a minha ausência e desventura Vão na tua alma, docemente acesa , Apoucando os excessos da firmeza.
Rebatendo os assaltos da ternura :
Temo que a tua singular candura Leve o tempo fugaz, nas asas presa Que é quase sempre o vício da beleza, Gênio imutável, condição perjura:
Temo ; e se o fado meu, fado inimigo Confirmar ìmpiamente este receio , Espectro perseguidor, que anda comigo, Com rosto, alguma vez de mágoa cheio , Recorda-te de mim, dize contigo :
'era fiel, amava-me e deixei-o "
Enquanto o sábio arreiga o pensamento Nos fenonemos teus, oh Natureza Ou solta árduo problema, ou sobre a mesa Volve o subtil geométrico instrumento :
Enquanto, alçando a mais o entendimento, Estuda os vastos céus, e com certeza Reconhece dos astros a grandeza, A distância, o lugar, e o movimento :
Enquanto o sábio, enfim, mais sabiamente, Se remonta nas asas do sentido À corte do Senhor omnipresente:
Eu louco, cego, eu mísero, eu perdido De ti só trago cheia, ó Jonia, a mente :
Do mais, e de mim mesmo ando esquecido ..
Por esta solidão, que não consente Nem do sol, nem da Lua a claridade, Ralado o peito já pela saudade Dou mil gemidos a Marília ausente : De seus crimes a mancha inda recente Lava Amor, e triunfa da verdade, A beleza, apesar da falsidade, Me ocupa o coração, me ocupa a mente:
Lembram-me aqueles olhos tentadores, Aquelas mãos, aquele riso, aquela Boca suave, que respira amores...
Ah, trazei - me ilusões, a ingrata, a bela !
Pintai-me vós, oh sonhos, entre flores Suspirando outra vez nos braços dela !
Marília, se em teus olhos atentara, Do estelífero sólio reluzente, Ao vil mundo outra vez o omnipotente, O fulminante Júpiter baixara, Se o deus, que assanha as Fúrias, te avistara, As mãos de neve, o colo transparente, Suspirando por ti, do caos ardente, Sugeriu à luz do dia, e te roubara :
Se a ver-te de mais perto o Sol descera, No áureo carro veloz dando-te assento Até da esquiva Dafne se esquecera :
E se a força igualasse o pensamento, Oh alma da minh'alma, eu te of'recera Com ela a Terra, o Mar, e o Firmamento .
O corvo grasnador e o mocho feio O sapo berrador e a rã molesta, São meus únicos sócios na floresta, Onde carpindo estou, de angústia cheio :
Perdi todo o prazer, todo o recreio,, Ah, malfadado amor, paixão funesta !
Urselina perdi, nada me resta, Madre terra ! Agasalha-me em teu seio ;
Da víbora mordaz permite, oh Sorte, Que nos matos aspérrimos que piso As plantas me envenene o tênue corte !
Ah ! Que é das graças ? Que é do paraíso ?
A minh'alma onde está ? quem logra... oh Morte, Quem logra de Urselina o doce riso ?
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Ânsias terríveis, íntimos tormentos, Negras imagens, hórridas lembranças, Amargosas, mortais desconfianças, Deixai-me sossegar alguns momentos: Sofrei que logre os vãos contentamentos Que sonham minhas doidas esperanças ;
A posse de alvo rosto, e loiras tranças, Onde presos estão meus pensamentos:
Deixai-me confiar na formosura, Cruéis ! Deixai-me crer num doce engano, Blasonar de fantástica ventura.
Que mais mal me quereis, que maior dano Do que vagar nas trevas da loucura, Aborrecendo a luz do desengano ?
Olha , Marília, as flautas dos pastores, Que bom que soam, como estão cadentes !
Olha o Tejo a sorrir-te ! Olha não sentes Os Zéfiros brincar por entre as flores ?
Vê como ali, beijando-se os Amores Incitam nossos ósculos ardentes !
Ei-las de planta em planta as inocentes, As vagas borboletas de mil cores !
Naquele arbusto o rouxinol suspira, Ora nas folhas a abelhinha pára, Ora nos ares sussurando gira :
Que alegre campo ! que manhã tão clara !
Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira, Mais tristeza que a morte me causara.
Fiei-me nos sorrisos de ventura Em mimos femininos ,como fui louco !
Vi raiar o prazer, porém tão pouco Momentâneo relâmpago não dura:
No meio agora desta selva escura, Dentro deste penedo húmido e ouço, Pareço, até no tom lúgubre, e rouco Triste sombra a carpir na sepultura :
Que estância para mim tão própria é esta !
Causais-me um doce, e fúnebre transporte, Áridos matos, lôbrega floresta !
Ah! Não me roubou tudo a negra sorte :
Inda tenho este abrigo , inda me resta O pranto, a queixa, a solidão e a morte.
Há pouco a mãe das Graças, dos Amores, Gerada pela espuma cristalina, Baixou da etérea região divina Nas asas dos Favónios voadores : "Oh das margens do Tejo habitadores !
hoje torna a luzir ( disse Ericina )
o ledo instante em que nasceu Marina, Ínclito fruto de ínclitos maiores :
Do Céu, do Mar, da Terra, os soberanos Imprimindo-lhe encantos a milhares, Criaram nela a glória dos humanos:
Eia, cantai-lhe os dotes singulares, Louvai seus olhos, aplaudi seus anos, Queimai-lhe aromas, erigi-lhe altares "
Os suaves eflúvios, que respira A flor de Vênus, a melhor das flores, Exalas de teus lábios tentadores, Oh doce, oh bela, oh desejada Elmira ;
A que nasceu das ondas, se te vira, A seu pesar cantara os teus louvores;
Ditoso quem por ti morre de amores !
Ditoso quem por ti , meu bem, suspira !
E mil vezes ditoso o que merece Um teu furtivo olhar, um teu sorriso, Por quem da mãe formosa Amor se esquece !
O sacrílego ateu, sem lei, sem siso, Contemple-te uma vez, que então conhece Que é força haver um Deus, e um paraíso.
Meu frágil coração ,para que adoras Para que adoras, se não tens ventura ?
Se uns olhos, de quem ardes na luz pura, Folgando estão das lágrimas que choras ?
Os dias vês fugir, voar as horas Sem achar neles visos de ternura ;
E inda a louca esp'rança te figura O prêmio dos martírios, que devoras !
Desfaz as trevas de um funesto engano, Que não hás de vencer a inimizade De um gênio contra ti sempre tirano :
A justa, a sacrossanta divindade Não força, não violenta o peito humano, E queres constranger-lhe a liberdade ?
Os garços olhos, em que o Amor brincava, Os rubros lábios, em que o Amor se ria, As longas tranças, de que o Amor pendia, As lindas faces, onde Amor brilhava :
As melindrosas mãos, que Amor beijava, Os níveos braços, onde Amor dormia, Foram dados, Armândia, à terra fria, Pelo fatal poder que a tudo agrava;
Seguiu-te Amor ao tácito jazigo, Entre as irmãs cobertas de amargura;
E eu que faço ( ai de mim ! ) como não sigo !
Que há no mundo que ver, se a formosura, Se Amor, se as Graças, se o prazer contigo Jazem no eterno horror da sepultura ?
Urselina gentil, benigna e pura, Eis nas asas subtis de um ai cansado A ti meu coração voa alagado Em torrentes de sangue, e de ternura ;
Põe-lhe os olhos, meu bem, vê com brandura Seu miserável, doloroso estado, Que nas garras da morte já cravado A fé, que te jurava, inda te jura :
Põe-lhe os olhos, meu bem, suavemente, Põe-lhe os mimosos dedos na ferida, Palpa de Amor a vítima inocente :
E por milagre deles, oh querida, Verás cerrar-se o golpe, e de repente Em ondas de prazer tornar-lhe a vida .
Em veneno letífero nadando No roto peito o coração me arqueja;
E ante meus olhos hórrido negreja De morais aflições espesso bando ;
Por ti, Marília, ardendo, e delirando Entre as garras aspérrimas da Inveja, Amaldiçoo Amor, que ri, e adeja Pelos ares,cós Zéfiros brincando;
Recreia-se o traidor com meus clamores -
E meu cioso pranto... oh Jove, oh nume Que vibras os coriscos vingadores !
Abafa as ondas do tartáreo lume, Que para os que provocam teus furores Tens inferno pior, tens o ciúme.
Oh retrato da morte, oh Noite amiga Por cuja escuridão suspiro há tanto !
Calada testemunha de meu pranto, De meus desgostos secretária antiga !
Pois manda Amor, que a ti sòmente os diga, Dá-lhes pio agasalho no teu manto ;
Ouve-os,como costumas,ouve, enquanto Dorme a cruel, que a delirar me obriga :
E vós, oh cortesãos da escuridade, Fantasmas vagos, mochos piadores, Inimigos como eu, da claridade !
Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade, Quero fartar meu coração de horrores.
Vinde, Prazeres, que por entre as flores, Nos jardins de Citera andais brincando, E vós, despidas, Graças, que dançando Trinais alegres sons encantadores :
Deusa dos gostos, deusa dos amores, Ah ! dos filhinhos teus ajunta o bando, E vem nas asas de Favónio brando Dar força, dar beleza a meus louvores.
Da linda Anarda minha voz aspira A cantar o natal ; tu, por clemência, O teu fiel cantor, deidade, inspira ;
Do trácio vate empresta-me a cadência, E faze que mereça a minha lira Os cândidos sorrisos da inocência .
Canta ao som dos grilhões o prisioneiro, Ao som da tempestade o nauta ousado, Um, porque espera o fim do cativeiro, Outro, antevendo o porto desejado ;
Exposta a vida ao tigre mosqueado Gira sertões o sôfrego mineiro, Da esperança dos lucros encantado, Que anima o peito vil, e interesseiro:
Por entre armadas hostes destemido Rompe o sequaz do horrífico Mavorte, Co triunfo, côa glória no sentido:
Só eu ( tirano Amor ! tirana Sorte ! )
Só eu por Nise ingrata aborrecido Para ter fim meu pranto espero a morte.
Triste quem ama, cego quem se fia Da feminina voz na vã promessa !
Aspira a vê-la estável ! mais depressa O facho apagará, que espalha o dia :
Alada exalação, que na sombria Tácita noite os ares atravessa, Foi comigo a paixão volúvel dessa Que o peito me afagava, e me feria :
Do desengano o bálsamo lhe aplico, E a teus laços, Amor, sem medo exponho Dos benéficos céus o dom mais rico : Vejo mil Circes plácido, risonho ;
E se fé me prometerem, ouço e fico Como quem despertou de aéreo sonho .
Importuna Razão, não me persigas ;
Cesse a ríspida voz que em vão murmura ;
Se a lei do Amor , se a fôrça da ternura Nem domas, nem contrastas, nem mitigas :
Se acusas os mortais, e os não abrigas, Se (conhecendo o mal) não dás a cura, Deixa-me apreciar minha loucura, Importuna Razão, não me persigas, É teu fim, seu projecto encher de pejo Esta alma, frágil vítima daquela Que, injusta e vária, noutros laços vejo :
Queres que fuga de Marília bela, Que a maldiga, a desdenhe ; e o meu desejo É carpir, delirar, morrer por ela.
Oh trevas, que enlutais a Natureza, Longos ciprestes desta selva anosa, Mochos de voz sinistra, e lamentosa, Que dissolveis dos fados a incerteza :
Manes, surgidos da morada acesa Onde de horror sem fim Plutão se goza, Não aterreis esta alma dolorosa, Que é mais triste que vós minha tristeza ;
Perdi o galardão da fé mais pura, Esperanças frustrei do amor mais terno, A posse de celeste formosura :
Volvei pois, sombras vãs, ao fogo eterno :
E lamentando a minha desventura, Movereis a piedade o mesmo inferno.
Já o Inverno, espremendo as cãs nervosas, Geme, de horrendas nuvens carregado ;
Luz o aéreo fuzil, e o mar inchado Investe ao Pólo em serras escumosas ;
Oh benignas manhãs ! tardes saudosas, Em que folga o pastor, medrando o gado, Em que brincam no ervoso e fértil prado Ninfas e Amores, Zéfiros e Rosas !
Voltai, retrocedei, formosos dias ;
Ou antes vem, vem tu, doce beleza Que noutros campos mil prazeres crias ;
E ao ver-te sentirá minh'alma acesa Os perfumes, o encanto, as alegrias Da estação, que remoça a Natureza. Mimosa, linda Anarda, atende , atende Às doces mágoas do rendido Elmano;
Cum meigo riso, cum suave engano Consola o triste amor, que não te ofende :
De teus cabelos ondeados pende Meu coração, fiel para seu dano ;
Côa luz dos olhos teus Cupido ufano Sustenta o puro fogo, em que me acende ;
Causa gentil das lágrimas que choro, A tudo te antepõe minha ternura, E quanto adoro o céu, teu rosto adoro :
O golpe, que me deste, anima e cura ...
Mas ai ! que em vão suspiro, em vão te imploro :
Não pertence a piedade à formosura.
Oh deusa, que proteges dos amantes O destro furto, o crime deleitoso , Abafa com teu manto pavoroso Os importunos astros vigilantes;
Quero adoçar meus lábios anelantes No seio da Ritália melindroso ;
Estorva que os maus olhos do invejoso Turbem de amor os sôfregos instantes ;
Tétis formosa , tal encanto inspire Ao namorado sol teu níveo rosto, Que nunca de teus braços se retire !
Tarde ao menos o carro à Noite oposto, Até que eu desfaleça, até que expire, Nas ternas ânsias, no inefável gosto.
O ledo passarinho, que gorjeia D'alma exprimindo a cândida ternura, O rio transparente , que murmura, E por entre pedrinhas serpenteia :
O Sol, que o céu diáfano passeia , A Lua, que lhe deve a formosura, O sorriso da aurora alegre e pura, A rosa, que entre os zéfiros ondeia ;
A serena, amorosa Primavera, O doce autor das glorias que consigo, A deusa das paixões, e de Cítera :
Quanto digo, meu bem, quanto não digo, Tudo em tua presença degenera, Nada se pode comparar contigo.
De cima dessas pedras escabrosas Que pouco a pouco as ondas têm minado, Da lua co reflexo prateado Distingo de Marília as mãos formosas :
Ah ! que lindas que são, que melindrosas !
Sinto-me louco, sinto-me encantado ;
Ah! Quando elas vos colhem lá no prado, Nem vós, lírios, brilhais, nem vós, oh rosas !
Deuses ! céus, tudo o mais que tendes feito Vendo tão belas mãos, me dá desgosto ;
Nada, onde elas estão, nada é perfeito .
Oh quem pudera uni-las ao meu rosto !
Quem pudera aperta-las no meu peito !
Dar-lhe mil beijos, e expirar de gosto !
Debalde um véu ocioso, oh Nise, encobre Intactas perfeições ao meu desejo ;
Tudo o que escondes, tudo o que não vejo A mente audaz e alígea descobre :
Por mais e mais que as sentinelas dobre A sisuda Modéstia, o cauto Pejo, Teus braços logro, teus encantos beijo, Por milagre da idéia afoita, e nobre ;
Inda que prêmio teu rigor me negue, Do pensamento a indômita porfia Ao mais doce prazer me deixa entregue :
Que pode contra Amor a tirania, Se as delícias , que a vista não consegue, Consegue a temerária fantasia ?
Das faixas infantis despido apenas Sentia o sacro fogo arder na mente ;
Meu retro coração inda inocente, Iam ganhando as plácidas Camenas ;
Faces gentis, angélicas, serenas, De olhos suaves o volver fulgente, Da idéia me extraíam de repente Mil simples, maviosas cantinelas O tempo me soprou fervor divino, E as Musas me fizeram desgraçado, Desgraçado me fez o Deus Menino ;
O Amor quis esquivar-se, e ao dom sagrado :
Mas vendo no meu gênio o meu destino, Que havia de fazer ? Cedi ao fado.
Minh'alma se reparte em pensamentos Todos escuros, todos pavorosos;
Pondero quão terríveis, quão penosos São, existência minha, os teus momentos :
Dos males que sofri, cruéis, violentos, A Amor, e aos Fados contra mim teimosos, Outro inda mais tristes, mais custosos Deduzo com fatais pressentimentos.
Rasgo o véu do futuro, e lá diviso Novos danos urdindo Amor e aos Fados, Para roubar-me a vida após do siso.
Ah! Vem, Marília, vem com teus agrados, Com teu sereno olhar, teu brando riso Furtar-me a fantasia a mil cuidados.
O Céu não te dotou de formosura, De atractivo exterior, e a Natureza Teu peito inficionou côa vil torpeza De ingrata condição, falaz e impura ;
Influiu-me os extremos da ternura A Constancia, o fervor, e a singeleza, Esses dons mais gentis que a gentileza, Dons, que o tempo fugaz não desfigura ;
Apesar da traição , do fingimento Que te inflama, e desluz, se envela e pára Em ti, alma infiel, meu pensamento;
Nas paixões a razão nos desampara, Se a razão presidisse ao sentimento, Tu morrerás por mim, eu não te amara .
Às margens do Regaça cristalino Nos olhos de Tirseia ardi contente;
Brandos olhos gentis, dos quais pendente Estava o meu prazer, e o meu destino ;
O tenro Deus,o cândido Menino Pagava meu fervor puro, inocente ;
Mas cedo me impeliu a sorte inclemente Para vós, tristes margens , que abomino ;
Aqui desde que aponta a luz febeia De lugar em lugar deliro, e corro , Com suspeitas nutrindo a turva idéia .
Não posso contra Amor achar socorro ;
Perdi todo o meu bem, perdi Tirseia Ela vive sem mim, sem ela eu morro.
Que idéia horrenda te possui, Elmano ?
Que ardente frenesi teu peito inflama ?
A razão te alumie, apaga a chama, Reprime a raiva do ciúme insano:
Esperanças consome, ou vive ufano, Ah! Foge , ou cinge da vitória a rama :
Ama-te a bela Armia, ou te não ama ?
Seus ais são da ternura, ou são do engano ?
Se te ama, não consternem teus queixumes Os olhos de que estás enfeitiçado, Do puro céu de Amor benignos lumes:
Se outro n'alma de Armia anda gravado, Que fruto hás de colher dos vãos ciúmes ?
Ser odioso, além de desgraçado.
Às águas e às areias deste rio Às flores, e aos Favórios deste prado, Meus danos conto, minhas mágoas fio, Dou queixas contra Ismene, Amor e o Fado :
A paz do coração posta em desvio, O gosto em desenganos sufocado, Lágrimas com lembranças desafio, E pela tarda morte às vezes brado ;
Tão maviosos sãos meus ais mesquinhos, Tanto pode a paixão que em mim suspira, Que se esquecem das mães os cordeirinhos:
O vento não se mexe, nem respira ;
Deixam de namorar-se os passarinhos, Para me ouvir chorar ao som da lira.
O céu, de opacas sombras abafado, Tornando mais medonha a noite feia ;
Mugindo sobre as rochas, que salteia, O mar, em crespos montes levantado :
Desfeito em furacões o vento irado, Pelos ares zunindo a solta areia, O pássaro noturno, que vozeia No agoureiro cipreste além pousado ;
Formam quadro terrível, mas aceito, Mas grato aos olhos meus, grato à fereza Do ciúme, e saudade, a que ando, afeito :
Quer no horror igualar-me a Natureza ;
Porém cansa-se em vão, que no meu peito Há mais escuridade, há mais tristeza.
Nos torpes laços de beleza impura Jazem meu coração , meu pensamento ;
Esforçada ao servil abatimento Contra os sentidos a razão murmura:
Eu, que outrora incensava a formosura, Das que enfeita o pudor gentil, e isento, A já corrupta idéia hoje apascento Nos falsos mimos de venal ternura:
Se a vejo repartir prazer, e agrado Àquele, a este, côa fatal certeza Fermenta o vil desejo envenenado ;
Céus ! quem me reduziu a tal baixeza ?
Quem tão cego me pôs ? ..ah! foi meu fado, Que tanto não podia a Natureza. Perdi tudo ( ai de mim ! ) perdi Marfida, Marfida, a glória minha,a minha amada ;
Tenra flor, a esperança malograda Do mimoso matiz caiu despida :
Pede meu coração mortal ferida, Só aos ditosos a existência agrada ;
Vida entre angústias equivale ao nada, No risonho prazer consiste a vida.
Eia, amante infeliz, teu fim procura !
Fantástico terror não te reporte, Nos túmulos não reina a formosura.
Diga triste letreiro a minha sorte ;
Daí-me piedosa sombra à sepultura Teixas, ciprestes, árvores da morte.
Lá onde o Fado impenetrável mora, Voa o menino Amor entre os Amores:
Loureja a trança,que matizam flores, Cintila o facho, que a Razão devora :
Entra, saúda o nume, ao nume implora Que de Marília os olhos tentadores Vejam sempre ante as Graças, e os Louvores De seus anos gentis surgir a aurora :
Fronte rugosa vezes três sacode O deus, cujo poder tudo atropela, E às súplicas de Amor destarte acode :
"Escape às minhas leis Marília bela, seja, seja imortal ; durar não pode, o mundo sem amor, amor sem ela ".
Quantas vezes , Amor, me tens ferido ?
Quantas vezes, Razão, me tens curado ?
Quão fácil de um estado a outro estado O mortal sem querer é conduzido !
Tal, que em grau venerando, alto e luzido, Como que até reagia a mão do fado, Onde o sol, bem de todos, lhe é vedado Depois com ferros vis se vê cingido:
Para que o nosso orgulho as asas corte, Que variedade inclui esta medida, Este intervalo de existência à morte !
Travam-se gosto, e dor ; sossego, e lida ;
É da lei da Natureza ,é lei da sorte Que seja o mal e o bem matriz da vida.
o h tu, consolador dos malfadados, Oh tu, benigno dom da mão divina, Das mágoas saborosa medicina, Tranquilo esquecimento dos cuidados:
Aos olhos meus, de prantear cansados, Cansados de velar, teu voo inclina;
E vós, sonhos de amor, trazei-me Alcina, Dai-me a doce visão de seus agrados:
Filha das trevas, frouxa sonolência, Dos gostos entre o férvido transporte Quanto me foi suave a tua ausência!
Ah! findou para mim tão leda sorte;
Agora é só feliz minha existência No mudo estado, que arremeda a morte.
T u, maligno dragão, cruel harpia, monstro dos monstros, fúria dos infernos, que em vil murmuração, ralhos eternos Estragas sem descanso a noite, e o dia:
Tu, que nas horas em que o mocho pia, Caluniaste meus suspiros ternos, Sacode a carga de noventa invernos Nas descarnadas mãos da morte fria:
Cai de chofre no báratro profundo, Cai nas entranhas da voraz fornalha, Deixa em sossego o miserável mundo:
E entre a maldita, réproba canalha, Lá bem longe de nós, lá bem no fundo, Arde, murmura, amaldiçoa, e ralha.
Usurpando um minuto a meu lamento Amigo sono os olhos me ocupava, E enquanto o débil corpo descansava, Velava amor, velava o pensamento:
Eis que em deserto e lúgubre aposento, Que semimorta luz mais afeava, Cri, Gertrúria (ai de mim!) que te avistava Já sem cor, já sem voz, já sem alento:
Súbito acordo em lágrimas banhado, E, das trevas palpando o véu medonho Em vão busco teu corpo delicado:
Mas inda em ânsias trémulo suponho Que me vaticinou meu negro fado Dos males o pior no horrível sonho.
A lva Gertrúria minha, a quem saudoso Mando trémulos ais enternecidos;
gertrúria, que encantaste os meus sentidos Cum meigo riso, cum olhar piedoso: Àmor, o injusto Amor, nume doloso, insensível penedo a meus gemidos, Me exala sobre os tímidos ouvidos Estas vozes cruéis em tom raivoso:
"Tu, que já desfrutaste os meus favores, tu, que na face de Gertrúria bela Nêctar bebeste, mitigaste ardores, Não tornarás, não tornarás a vê-la:
lamenta, desgraçado, os teus amores, Acusa, desgraçado, a tua estrela."
Usurpando um minuto a meu lamento Amigo sono os olhos me ocupava, E enquanto o débil corpo descansava, Velava amor, velava o pensamento:
Eis que em deserto e lúgubre aposento, Que semimorta luz mais afeava, Cri, Gertrúria (ai de mim!) que te avistava Já sem cor, já sem voz, já sem alento:
Súbito acordo em lágrimas banhado, E, das trevas palpando o véu medonho, Em vão busco teu corpo delicado:
Mas inda em ânsias trémulo suponho Que me vaticinou meu negro fado Dos males o pior no horrível sonho.
Alva Gertrútia minha, a quem saudoso Mando trémulos ais enternecidos;
Gertrúria, que encantaste os meus sentidos Cum meigo riso, cum olhar piedoso:
Amor, o injusto Amor, nume doloso, 1nsensível penedo a meus gemidos, Me exala sobre os tímidos ouvidos Estas vozes cruéis em tom raivoso:
"Tu, que já desfrutaste os meus favores, Tu, que na face de Gertrúria bela Néctar bebeste, mitigaste ardores, Não tornarás, não tornarás a vê-Ia:
Lamenta, desgraçado, os teus amores, Acusa, desgraçado, a tua estrela." Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado, Mansa corrente deleitosa, amena, Em cuja praia o nome de Filena Mil vezes tenho escrito, e mil beijado:
Nunca mais me verás entre o meu gado Soprando a namorada e branda avena, A cujo som descias mais serena, Mais vagarosa para o mar salgado:
Devo enfim manejar por lei da sorte Cajados não, mortíferos alfanges Nos campos do colérico Mavorte;
E talvez entre impávidas falanges Testemunhas farei da minha morte Remotas margens, que humedece o Ganges.
Camões, grande Camões, quão semelhante Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo Arrostar co sacrílego gigante:
Como tu, junto ao Ganges sussurrante Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo, Também carpindo estou, saudoso amante:
Ludíbrio, como tu, da sorte dura Meu fim demando ao Céu, pela certeza De que só terei paz na sepultura:
Modelo meu tu és... Mas, oh tristeza!...
Se te imito nos transes da ventura, Não te imito nos dons da Natureza.
A deja, coração, vai ter aos lares, Ditosos lares, que Gertrúria pisa;
Olha, se inda te guarda a fé mais lisa, Vê, se inda tem pesar dos teus pesares:
No fulgor dos seus olhos singulares Crestando as asas, tua dor suaviza, Amor de lá te chama, te divisa, Interpostos em vão tão longos mares:
Dize-lhe, que do tempo o leve giro Não faz abalo em ti, não faz mudança, Que ainda lhe és fiel neste retiro:
Sim, pinta-lhe imortal minha lembrança;
Dá-lhe teus ais, e pede-lhe um suspiro, Que alente, coração, tua esperança. Já por bárbaros climas entranhado, Já por mares inóspitos vagante, Vítima triste da fortuna errante, dos mais desprezíveis desprezado:
Da figueira esperança abandonado, Lassas as forças, pálido o semblante, Sinto rasgar meu peito a cada instante A mágoa de morrer expatriado:
Mas ah! Que bem maior, se contra a sorte Lá do sepulcro no sagrado hospício Refúgio me promete a amiga Morte!
Vem pois, oh nume aos míseros propício, Vem livrar-me da mão pesada e forte, Que de rastos me leva ao precipício!
Melizeu, o menor entre os nascidos, De face cadavérica e nojosa, Tísico em verso, apoquentado em prosa, Hórrido aos olhos, hórrido aos ouvidos:
Soltando dissonantes alaridos Da boca transversal erma, e gulosa, Insulta a quem de Febo os mimos goza, Estafa-se em preceitos não cumpridos:
Ao vate Elmano plagiário chama, Sendo o mais desprezível plagiário, Que o que pilha desluz, corrompe, infama:
Profanador do Aónio santuário, Lobisomem do Pindo, orneia, ou brama, Até findar no Inferno o teu fadário!
Quem se vê maltratado, e combatido Pelas cruéis angústias da indigência Quem sofre de inimigos a violência, Quem geme de tiranos oprimido:
Quem não pode ultrajado, e perseguido Achar nos Céus, ou nos mortais clemência, Quem chora finalmente a dura ausência De um bem, que para sempre está perdido:
Folgará de viver, quando não passa Nem um momento em paz, quando a amargura O coração lhe arranca e despedaça?
Ah! Só deve agradar-lhe a sepultura Que a vida para os tristes é desgraça, A morte para os tristes é ventura. Meu nome pouco a pouco aos Céus levanto;
— Bocage A ceso no almo ardor, que a mente inflama.
Vivo de Amor, de Amor suspiro e canto;
Na face agora o riso, agora o pranto, De árvore tua, oh Febo, eu cinjo a rama:
Prezo a doce moral, na voz da fama Meu nome,pouco a pouco aos céus levanto Mas turba vil, que abato, anseio e espanto, Urde em meu dano abominável trama;
Réu me delata de hórrida maldade , Projecta aniquilar-me o bando rude, Envolto na leteia escuridade:
Que falsa ideia, oh zoilos, vos ilude?
Furtais-me a paz? Furtais-me a liberdade?
Fica-me a glória, fica-me a virtude.
B em hajas, oh Morfeu! À fantasia Que cena divinal me deste agora!
Nise , qual sai da noite a grata aurora, Surgiu-me dentre as sombras da agonia.
Mais belo inda a saudade me fingia O gesto encantador, que os céus namora;
Cuido que inda me afaga, que inda chora Pranto, que morta flor viver faria.
Graças oh nume, de meus ais magoado!
Alta mercê meu coração te deve, Por.este acinte, que fizeste ao fado:
Só tua divindade a tal se atreve;
Mas ah! Que eras prazer de um desgraçado Sempre mostraste, oh sonho, em ser tão breve.
Em sórdida masmorra aferrolhado, De cadeias aspérrimas cingido, Por ferozes contrários perseguido, Por línguas impostoras criminado:
Os membros quase nus, o aspecto honrado Por vil boca, e vil mão roto, e cuspido, Sem ver um só mortal compadecido De seu funesto, rigoroso estado:
O penetrante, o bárbaro instrumento De atroz, violenta, inevitável morte Olhando já na mão do algoz cruento:
Inda assim não maldiz a iníqua sorte, Inda assim tem prazer, sossego, alento, O sábio verdadeiro, o justo, o forte.
Tu, que em torpes desejos atolado Vergonhosos prostíbulos frequentas:
Tu, que os olhos famintos alimentas No cofre, de tesouros atulhado:
Tu, que do ouro e da púrpura adornado Quase de igual a Júpiter ostentas, bebendo as frases vis, e peçonhentas Do bando adulador, que tens ao lado:
momentos, que desonrais a humanidade, Desprezando a pobreza atribulada, E transgredindo a lei da caridade:
O Desengano ouvi, que assim vos brada:
"Tremei da pavorosa eternidade, Tremei filhos do pó, filhos do nada!"
Q h Rei dos reis, oh Árbitro do mundo, Cuja mão sacrossanta os maus fulmina, E a cuja voz terrífica, e divina Lúcifer treme no seu caos profundo!
Lava-me as nódoas do pecado imundo, Que as almas cega, as almas contamina:
O rosto para mim piedoso inclina, Do eterno império Teu, do Céu rotundo:
Estende o braço, a lágrimas propício, Solta-me os ferros, em que choro e gemo Na extremidade já do precipício:
De mim próprio me livra, oh Deus supremo!
Porque o meu coração propenso ao vício É, Senhor, o contrário que mais temo.
Nos campos o vilão sem sustos passa, inquieto na corte o nobre mora;
O que é ser infeliz aquele ignora, Este encontra nas pompas a desgraça:
Aquele canta e ri; não se embaraça Com essas coisas vãs que o mundo adora:
Este( oh cega ambição!) mil vezes chora, Porque não acha bem que o satisfaça:
Aquele dorme em paz no chão deitado, Este no ebúrneo leito precioso Nutre, exaspera velador cuidado:
Triste, sai do palácio majestoso; .
Se hás-de ser cortesão, mas desgraçado, Antes ser camponês, e venturoso!
Mais vale que delire o pensamento - Bocage Neste horrível sepulcro da existência O triste coração de dor se parte;
A mesquinha razão se vê sem arte, Com que dome a frenética impaciência:
Aqui pela opressão, pela violência Que em todos os sentidos se reparte, Transitório poder quer imitar-te, Eterna, vingadora omnipotência!
Aqui onde o que o peito abrange, e sente, Na mais ampla expressão acha estreiteza, Negra idéia do abismo assombra a mente.
Difere acaso da infernal tristeza Não ver terra, nem céu, nem mar, nem gente, Ser vivo, e não gozar da Natureza?
M inh'alma quer lutar com meu tormento;
Contenda inútil! É por ele o Fado:
Antes de oprimir-me está cansado Eterna força lhe refaz o alento:
Mais vale que delire o pensamento Te agora coa Razão debalde armado;
É menos triste, menos duro estado A Desesperação, que o Sofrimento:
A Desesperação soluça e chora, A Desesperação mil ais desata, Parte do mal nas queixas se evapora:
O Sofrimento azeda o que recata;
Prende suspiros, lágrimas devora, tiraniza, consome, e às vezes mata.
Aqui, onde arquejando estou curvado À lei, pesada lei, que me agrilhoa, De lúgubres ideias se povoa Meu triste pensamento horrorizado: Aqui não brama o Noto anuviado, O Zéfiro macio aqui não voa, Nem zune insecto alígero, nem soa Ave de canto alegre, ou agourado;
Expeliu-me de si a humanidade, Tu, astro benfeitor da redondeza, Não despendes comigo a claridade:
Só me cercam fantasmas da tristeza:
Que silêncio! Que horror! Que escuridade!
Parece muda, ou morta a Natureza.
Com ampla mão, benéfica largueza, mil vezes me hás dourado a vida escura;
aos fados meus, de horrível catadura, mil vezes tens despido a atroz dureza:
Blasone embora a túmida nobreza Dos timbres, que lhe engole a sepultura;
Esse esplendor dos grandes é ventura;
Teu esplendor, ó Freire, é natureza:
Ante a luz, que do céu mil raios lança, dignidade sem mérito é desdouro, mérito estreme a eternidade alcança:
teu gênio benfeitor supre um tesouro;
e eu, que obtive das Musas farta herança, pago - te em verso o que te devo em ouro.
J á com ténue clarão, já quase escura A nocturna Diana o céu volteia, sobre o Tejo azul, que mal prateia, Vai duplicando a trémula figura:
Aura subtil nas árvores murmura, No lago adormecido a rã vozeia, Mocho importuno agouros mil semeia, Dentre as umbrosas moitas da espessura:
Letárgico vapor Morfeu derrama, Com que insinua um doce desalento No livre coração de quem não ama:
Triste de mim! Se repousar intento Os olhos me abre Amor, Amor me inflama, E Anália me persegue o pensamento.
Vós,que de meus extremos sois a história, por negro zoilo em vão roubados, nascidos da Ternura, e restaurados co pronto auxílio de fiel memória:
Da Inveja conseguindo alta vitória Ide, meus versos, em Amor fiados, Que dele só dependem vossos fados, Que dele só demando a minha glória:
Não vos importe o público juízo;
Da voz, que pelo mundo se derrama, Os vivas caprichosos não preciso.
Voai aos olhos, cuja luz me inflama;
Tereis de Anarda aprovador sorriso, Um sorriso de Anarda é mais que a Fama.
S e é doce no recente, ameno Estio Ver toucar-se a manhã de etéreas flores, E, lambendo as areias, e os verdores Mole e queixoso deslizar-se o rio:
Se é doce no inocente desafio Ouvirem-se os voláteis amadores, Seus versos modulando, e seus ardores Dentre os aromas de pomar sombrio Se é doce mares, céus ver anilados Pela quadra gentil, de Amor querida, Que esperta os corações, floreia os prados:
Mais doce é ver-te de meus ais vencida, Dar-me em teus brandos olhos desmaiados Morte, morte de amor, melhor que a vida.
No abismo tragador da Humanidade (dela, dela não só, de quanto existe)
coa mesma rapidez, Elmano, ah! viste sumir-se a florescente, e a murcha idade!
Olha em muros, que veste a escuridade, Olha a cor de teu fado, a cor mais triste:
Talvez (agora!... agora!...) ele te aliste No volume, em que lê a eternidade!
Oh tochas funerais! Clarão medonho!
Da morte oh mudas, solitárias cenas!
Em vós arrepiado os olhos ponho!...
Ah, porque tremes, louco? Ah! Porque penas?
sonhas num ermo, e surgirás do sonho em climas de ouro, em regiões amenas.
Meu ser evaporei na lida insana Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava Em mim quase imortal a essência humana:
De que inúmeros sóis a mente ufana Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava Ao mal, que a vida em sua orgia dana.
Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube, No abismo vos sumiu dos desenganos:
Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube Ganhe um momento o que perderam anos, Saiba morrer o que viver não soube.
Já Bocage não sou!... À cova escura Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento Leve me torne sempre a terra dura:
Conheço agora já quão vã figura Em prosa e verso fez meu louco intento;
Musa!... Tivera algum merecimento Se um raio da razão seguisse pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria Brade em alto pregão à mocidade, Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui... A santidade Manchei!... Oh! Se me creste, gente impia, Rasga meus versos, crê na eternidade!
Mimo das graças te florece o canto, De ternas sensações inda orvalhoso;
D'alma, que em néctar inundei saudoso, Foge a dor, foge o mal, foge o quebranto:
São melodia os ais, delícia o pranto, Que excita o verso teu, gentil, mimoso;
Por ele jura Amor ser mais piedoso, E sente a Natureza um novo encanto;
Estro do coração! Teus sons, teus lumes, Dos montes de perene amenidade Tentem no longo adejo os flóreos cumes:
Versos, não vos merece a férrea idade;
Gozai no Olimpo, oh música dos numes, Vosso ouvinte imortal, a Eternidade!
Cara de réu, com fumos de juiz, Figura de presepe, ou de entremez, Mal haja quem te sofre, e quem te fez, Já que mordeste as décimas que fiz:
Hei-de pôr-te na testa um T com giz, Por mais e mais pinotes, que tu dês;
E depois com dois murros, ou com três, Acabrunhar-te os queixos, e o nariz:
Quem da cachola vã te inflama o gás, E a abocanhares sílabas te induz, Ó dos brutos e alarves capataz?
Nem sabes o A B C, pobre lapuz;
E pasmo de que, sendo um Satanás, Com tinta faças o sinal da Cruz!
Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura, Triste de facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno:
Incapaz de assistir num só terreno, Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura De zelos infernais letal veneno:
Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moças mil) num só momento E sômente no altar amando os frades:
Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades Num dia em que se achou mais pachorrento.
II - ODES
Assaz temos cantado, assaz carpido Ó lira, ó doce lira, Os bens e os males do comum tirano, Que nas almas derrama dor, e o riso, o néctar, e o veneno.
Longe a brilhante ideia De olhos fagueiros, de aneladas tranças, De angélicos sorrisos, De momentâneos amorosos furtos;
Longe a amarga lembrança De vis perjúrios, de cruéis enganos, De traições estudadas;
Longe as memórias da infiel Marília.
Feitiços perigosos, Verdugos da alterosa Liberdade; Tu, dom da formosura, fatal aos corações, suave aos olhos;
Tu, que em meus pensamentos No arbítrio meu despótico imperavas, Tirano, impõe teu jugo, teu férreo jugo na cerviz daqueles Que a sisuda Experiência Por entre pavorosos precipícios Inda ao templo remoto Não guiou do profícuo Desengano.
Vencida a longa estrada, Onde o Erro elevou montes e montes Para estorvar ao homem Sagaz instinto, que à Verdade o guia, Vejo, saúdo os lares, lares augustos do terrível nume, Atento à voz do aflito
Que ingénuas preces lhe dirige às aras, Surdo a rogos falazes Do cego escravo, que idolatra os ferros, Liberdade implorando...
Que solidão, que plácida tristeza, Que profundo silêncio Reina em torno do alcáçar venerando!
Oh sacro domicílio Da Verdade imortal!... Quê! Tu num ermo!
Os teus átrios desertos, Sem culto, sem ministro os teus altares, Enquanto à vã grandeza Servil caterva prostitui incensos, E a curvada Lisonja Os crimes doura, os vícios abrilhanta!
Ah! Eu te vingo, oh deusa!
Eu entro o franco pórtico espaçoso E às aras... Mas que sinto!
Que gelo, que tremor, que sobressalto Me prende a voz, e a planta, Me abate as forças, me arrepia as carnes!
Coração, que te assombra?
Que temes, coração? Perder Marília?
Marilia acaso é tua?
Não maculou traidora os puros votos, Os ternos juramentos?
Não viste a desleal sem dor, sem pejo, Cevar-se nos teus males, Cos lindos olhos de Fileno absortos?
Que importa que em seus lábios, Seu ledo rosto, seu virgíneo seio, Os Amores, e as Graças Pressintam mil imagens deleitosas, Onde os sentidos pascem, Que importa, se a traição surgiu do Averno A corromper-lhe o peito?
Que vale sem virtude a formosura?
Cede ao tempo, à desgraça;
Do espirito a beleza é sempre nova.
Coração, triunfemos, Triunfemos da pérfida Marília, E se a razão não basta, Vença a vaidade o que a razão não vence.
Envergonha-te ao menos De seres só feliz quando o permite O teu rival soberbo, Que enjoando os afagos importunos Da perjura, que adoras, Às vezes com desprezo em ócio os deixa, E se a ti se dirigem, Não vêm do coração, vêm do costume.
Eia, mísero escravo, Sacode o jugo, despedaça os ferros, A vaidade te anime:
Quase tudo o que é raro, estranho, ilustre, Da vaidade procede, Móvel primeiro das acções pasmosas.
Tente-se a grande empresa, Forcem.se os fados... Ai de mim! Palpitas?
E em frequentes arrancos Como que exprimes o pavor da morte!
Coração, não desmaies, Alenta~te, infeliz... Porém que escuto!
Que ruído! que assombro!
Que resplendor me cerca, e me deslumbra!
Torvos dragões, batendo Asas de negra cor com duro estrondo Se encontram, se atropelam, E quais nocturnas aves, que amedronta O clarão matutino, Espavoridos pelos ares fogem Ao fulgor cintilante De rubro facho, que na dextra empunha Venerável matrona, Librada sobre os Zéfiros plumosos!
Ah! Quem és? Vens do Olimpo, Portentosa visão? Vens socorrer-me?
Ou és aéreo fruto Da enferma, delirante fantasia Que entre ilusões vagueia?...
Não; já me iluminaste a mente cega, Reconheço-te, ó deusa, És a prole dos Céus, és a Virtude, Que no benigno seio Acolhes os meus ais, os meus remorsos, Indulgente à demora Que tive em demandar teu santo asilo.
Esses monstros, voando Ante o celeste resplendor, que espraias, São pungentes saudades, Feias traições, frenéticos ciúmes, Que invisíveis té agora As cálidas entranhas me ralavam.
Graças, ó divindade, Que do sábio varão manténs o esforço Quando a volúvel sorte, Inimiga do mérito, o sepulta Nas solitárias sombras De profunda masmorra aferrolhada Onde por mãos infames De aspérrimas correntes o carrega:
Munido da inocência Contigo ri o herói no cadafalso; Contigo alegre observa Do carrancudo algoz na mão terrível O amolado cutelo Executor da bárbara sentença;
E contigo, ó deidade, Ó alta benfeitora, encaro as portas Do formidável templo.
Teu sagrado fervor de veia em veia Me agita, me transporta, Eu te sigo, eu te sigo... Oh céus! Oh deuses!
Já sou meu, já sou livre.
Ídolo falso, que de altar profano Davas leis à minh'alma, Recebias meus votos, meus incensos, Tributos da fraqueza;
Aleivosa Mania, horror e afronta Té do tropel de ingratas, De astutas, de infiéis, que o mundo infamam, O escravo de teus olhos, A vítima infeliz de teus enganos Já tem rotos os ferros, Solta a vontade, o coração tranqüilo Como o Sol, quando vibra Na cristalina esfera os raios de ouro, Gasta, desfaz, consome Vapores, que exalou do seio a Terra;
Também, falaz Marilia, As luzes, que a verdade em mim dardeja, Absorvem, desvanecem A funesta ilusão, que na minh'alma Te assemelhava aos deuses.
Ingrata, consumiram-se os incensos, Retractaram-se os votos, Foram-se as oblações, e os sacrifícios, Caiu o altar, e o númen!
De porto mal seguro a turvo pego Sai mesquinho baixei com raras velas, Vai crespas ondas pávido talhando À discrição dos ventos:
Nauta inexperto lhe dirige o leme, Chusma bisonha lhe maneia o pano;
De um lado fervem Sirtes, de outro lado Navífragos penedos:
Sussurrante chuveiro os ares cerna, Luz sulfúreo clarão de quando em quando, D'iminente pnocela os negros vultos Feno estrago ameaçam:
Já bravos escarcéus, que se amontoam, Por cima do convés soberbos saltam:
Prossegue na derrota o débil pinho, Das vagas quase absorto.
Depois de longamente haver corrido A estrada desigual com céus adversos, Em lugar de colhê-lo, o pano aumenta, Desafia o naufrágio:
Imaginária terra se lhe antolha, De mil, e mil venturas semeada:
Anelas por surgir no porto amigo, Cobiçosa Esperança:
Para cevar o horror mais campo havendo, A torva tempestade então mais zune, Em raios, em tufões todo o ar converte, Todo o pélago em serras:
O mísero baixel desmantelado Aos duros encontrões do mar, do vento, Sobe às estrelas, aos abismos desce Entre o pavor, e a morte:
Súbito acode próvido piloto, Que oprimido até'li jazera em ferros Num vil cárcere escuro, onde rebeldes O tinham sopeado:
Estende a mão forçosa, aferra o leme, O lenho desafronta, o rumo escolhe, Com saber eficaz, com alta indústria Vai sustendo a tormenta.
Já volumosas nuvens se adelgaçam, O vento se amacia, o mar se aplana:
Do benigno Santelmo o ténue lume Reluz no aéreo tope.
Reina um pouco a suave, azul bonança;
Mas eis se tolda o céu de novas sombras;
Mais negra, mais feroz, mais horrorosa Ressurge a tempestade.
O sábio director, que todo ufano Da recente vitória inda folgava, A repetido assalto opõe debalde Arte, vigor, constância.
Tremendo aos furacões impetuosos Lá descorçoa enfim, lá desalenta;
Coa máquina infeliz, que já não rege, Misérrimo soçobra:
Oh ente racional! Oh ente frágil!
Escravo das paixões, que te arrebatam!
Olhos sisudos neste quadro emprega:
Eis o quadro da vida.
M usa, não gemas; ergue, ó desgraçada o rosto macilento;
Da vista a frouxa luz, quase apagada Nas lágrimas que vertes; Musa, alento!
Move a trémula planta, Pisa os receios, e a Manilha canta. Canta da ilustre dama a gentileza, A prole esclarecida, Os dons da sorte, os dons da natureza, As prendas com que a vês enriquecida;
E depois de a louvares Torna os teus choros, torna os teus pesares.
Ah! Que já sinto, milagroso objecto, Quanto pode o teu rosto!
Da malfadada Musa o torvo aspecto Jí cora, já se vai do meu desgosto Sumindo a névoa densa, Que desfaz, como o Sol, tua presença.
Inclina pois, magnânima senhora, Os dementes ouvidos A voz, que não profere aduladora Altos encómios de razão despidos;
A verdade celeste Com seu cândido manto os orna, e veste.
A ti, dignos de ti, Marília, voam;
A ti, bela heroína, Cujas mil graças mil virtudes c'roam;
A ti, que enches de glória a fértil China, Enquanto a que te adora Mísera pátria, tua ausência chora.
As deidades, criando-te, exauniram O seu cofre divino;
A teus encantos para sempre uniram Em áureo laço o mais feliz destino;
E eis os dons com que brilhas Reproduzidos nas mimosas filhas.
Esses tenros, lindíssimos pedaços Da tua alma preciosa, O ledo par gentil, que nos teus braços Das doces, maternais carícias goza, Teus dias felicita, E nas amáveis perfeições te imita:
Com meiga voz, com eficaz exemplo, Com saudáveis doutrinas Ao que habita a Virtude eterno templo O caminho estelífero lhe ensinas;
A mim, mor tal profano, A mim tão árduo, para ti tão plano.
Já do etéreo vestíbulo te acena Almo esquadrão radioso:
Já na celeste região serena Génios sem mancha em hino harmonioso Te nomeiam... Lá brada De ilesas virgens multidão sagrada.
Não ouves, 6 Marília, as vozes delas? Repara como of'recem Do teu pudico amor às prendas belas A glória sem limites, que merecem...
Não me engano, em vós chove O fragrante licor, que liba Jove.
Vós sois... Porém não mais, oh Musa inerte! Basta, cesse o teu canto;
As vozes de prazer em ais converte, Nadem teus olhos outra vez em pranto; Que as almas compassivas Atendem mais às lágrimas que aos vivas. Com suspiros, 6 triste, implora, implora De Marília a piedade;
Ela é justa, ela sente, ela deplora Os erros da infeliz humanidade;
Contra o fado inimigo Na sua compaixão procura abrigo.
Roga, roga-lhe enfim, que te destrua As ânsias, os temores;
Que à pátria, ao próprio lar te restitua:
Ah já te diz que sim: - não mais clamores; Musa, Musa descansa, Cantemos o triunfo, oh Esperança!
Olha como a tirana, a má Desgraça As cobras arrepela, E as sanguinosas vestes despedaça!...
Zombemos, coração, zombemos dela:
Monstro, já não me espantas, Lá cai, lá treme de Marília às plantas.
III - CANÇÕES
Agora, que ninguém vos interrompe, Lágrimas tristes, inundai-me o rosto, Mais do que nunca; assim o quer meu fado:
Enquanto o gume de mortal desgosto Me não retalha os amargosos dias, Debaixo destas árvores sombrias Grite meu coração desesperado, Meu coração cativo, Que só tem nos seus ais seu lenitivo.
Alterosas, frutíferas palmeiras, Vós, que na glória equivaleis aos louros, Vós, que sois dos heróis mais cobiçadas Que áureos diademas, que reais tesouros, Escutai meus tormentos, meus queixumes, Meus venenosos, infernais ciámes;
Ouvi mil penas, por Amor forjadas, Mil suspiros, mais tristes Que todos esses, que até'qui me ouvistes.
Aqueles campos, aprazíveis campos, Que além verdejam, de meu mal souberam A desgraçada, mas suave origem:
Ali de uns olhos os meus ais nasceram;
Ali de um meigo, encantador sorriso, Que arremeda o sereno paraíso, Brotaram mil infernos, que me afligem, Que as entranhas me abrasam, Que meus olhos de lágrimas arrasam:
Ali de uns lábios, onde as Graças brincam, Ouvi suspiros, granjeei favores, Ali me disse Anarda o que eu não digo;
Ali, volvendo os ninhos dos Amores, Cravou nest'alma, para sempre acesa, As perigosas frechas da beleza;
Ali do próprio mal me fez amigo, Ali banhou meu rosto Parte do coração, desfeita em gosto. Novas campinas testemunhas foram De nova glória, de maior ventura, Tal, que julguei, logrando-a, que sonhava:
Entre as doces prisões da formosura, Entre os cândidos braços deleitosos, Meus crestados desejos amorosos No alvo rosto, que o pejo afogueava, No néctar... ah! que eu morro, Se em vós, furtivos êxtases, discorro!
Amor! Amor! Teus júbilos excedem Da loira abelha os engenhosos favos, Mais gratos são que as flores teus sorrisos:
Gostei todos os bens, que aos teus escravos Fazem tãô leve a rígida cadeia, Tão doce a chama, que no peito ondeia:
Mas oh! Cruéis teus dons, cruéis teus risos, Princípio do tormento, Que já me tem delido o sofrimento.
Miserável de mim! Qual o piloto, Que lera nos azuis, filtrados ares Indícios de uma sólida bonança, E eis que vê de repente inchar os mares, Vestir-se o céu de nuvens, donde chove O fogo vingador, que vibra Jove;
Tal eu, quando supus mais segurança No meu contentamento, O vi fugir nas asas de um momento.
Anarda, Anarda pérfida, teus olhos, Onde Amor traz escrita a minha sorte, Teus mimos por mim só não são gozados!
Oh desesperação, pior que a morte!
Oh danados espíritos funestos, De hórridos vultos, de terríveis gestos, Moderai vossa queixa, e vossos brados, Que as penas do profundo Também, também se encontram cá no mundo!
Ver outro disputar-me o caro objecto, Em cujas lindas mãos pus alma, e vida, Não me arranca suspiros: o tormento, Que no peito me faz mortal ferida, O maior dos tormentos, ó perjura, É ver, que de outrem sofres a ternura:
E ver, que dás calor, que dás alento A seus mimos, e amores Cum riso, precursor de mil favores.
Tu não foges de mim, tu não te esquivas Destes olhos, que em ti cativos andam;
Delícias, onde pasma o pensamento, Doces instantes meu ciúme abrandam:
Mas ah! Não é só minha esta ventura, Meu vaidoso rival a tem segura.
Que indigna variedade! Em um momento Teus olhos inconstantes Acarinham sem pejo a dois amantes.
Honra, Virtude, Agravo, e Desengano Me gritam n'alma, que sacuda os laços, Que tanto sofrimento é já vileza;
Ouço-os, protesto desdenhar teus braços, Protesto, ingrata, converter meus cultos Em mil desprezos, irrisões, e insultos:
Mas ah! Protestos vãos, baldada empresa!
Sou a amar-te obrigado;
Não é loucura o meu amor, é fado.
Canção, vai suspirar de Anarda aos lares;
Mas se não lhe firmares O instável coração, deixa a perjura, E iremos sossegar na sepultura.
I nda não bastam, minha voz cansada, Tantos ais, que tens dado;
É necessário renovar queixumes, Queixumes, de que o fero Amor se agrada, De que zombando está meu duro fado:
Gritemos, pois, frenéticos ciúmes, Gritemos outra vez; que dos aflitos São triste refrigério os ais, e os gritos.
Carrancuda Agonia, azeda, azeda Inda mais, se é possível, O venenoso fel, que em mim derramas;
Doces enganos da minh'alma arreda, Deixa-lhe a dor intensa, a dor terrível Dos ígneos zelos, das tartáreas chamas, Deixa-lhe as ânsias, a peçonha, as iras, E a desesperação, que tu respiras.
Farte-se Anarda, o variável peito, Cujas graças me encantam, Cujas traições no coração me ferem, E por quem gemo, em lágrimas desfeito:
Que já mil bens dulcíssimos não cantam Os ternos lábios meus, antes proferem Lamentos contra Amor, contra a Ventura, Conheça a desleal, saiba a perjura.
Sim, traidora, que o júbilo em torrentes Viste alagar meu rosto, Quando em teus braços possuí mil glórias, Hoje morro de angústias, e o consentes, Podendome, cruel, matar de gosto?
Oh êxtase! Oh delícias transitórias!
Oh vão prazer dos crédulos amantes, Mais fugaz que os alígeros instantes!
Cansaste, Anarda: a sólida firmeza Vezes mil protestada, Votos de eterna fé, que me fizeste, Manter não pôde feminil fraqueza, A quem somente a novidade agrada:
Já lugar na tu'alma a outro deste, E o mais ardente amor, o amor mais puro Não satisfaz teu coração perjuro. Se me fugisses, se de todo as chamas, Que por mim te abrasavam, A nova inclinação te amortecera, Desculpara esse ardor, em que te inflamas;
Porém quanto, infiel, quanto me agravam Os sorrisos de amor, com que assevera Teu gesto encantador, teu meigo rosto, Que inda propende a saciar meu gosto!
Presumes, que se paga uma alma nobre, Um coração brioso De um sórdido prazer, torpe, e corrupto Qual esse, que me ofertas, se descobre?
Assim só pode o vil ser venturoso, Essa fortuna por baldão reputo:
Em amor antes só ser desgraçado, Que de outrem na ventura acompanhado.
Vai, fementida, que a paixão perfeita Os seus dons não reparte;
Vai gemer noutro peito, e noutros braços:
Pérfidos mimos desse infame aceita, Enquanto juro aos Céus de abominar-te, Enquanto arranco meus indignos laços, Enquanto... ah! Que falei! Meu bem, detém-te, Abafa a minha voz, dize que mente!
Eu deixar-te (ai de mim!) primeiro a Terra Mostre as fundas entranhas Por larga boca horrível, que me trague:
Primeiro o mar, e o Céu me façam guerra, Despenhem-se primeiro estas montanhas, E a meu corpo infeliz seu peso esmague:
Primeiro se confunda a Natureza, Que eu cesse de adorar tua beleza.
Vejam meus olhos esses teus pasmados De um rival no semblante;
Ouça-te os ais, que com seus ais misturas, E os agrados, que opões aos seus agrados:
A tudo está sujeito um cego amante, Que não pode quebrar prisões tão duras;
A tudo estou submisso, estou disposto, Quero tudo sofrer, porque é teu gosto.
Terá por crime, suporá vileza Tão cruel tolerância Quem não sente o poder da formosura;
Porém minh'alma, nos teus olhos presa, Inda chega a temer, que esta constância Prova não seja de exemplar ternura:
E saibam, se com isto um crime faço, Que o crime adoro, que a vileza abraço.
Sobre as asas dos ventos Canção chorosa, e rouca, Vai narrar pelo mundo os meus tormentos:
De almas estóicas a dureza louca Rirá dos teus lamentos;
Mas nos servos de Amor terás abrigo:
Quando te ouvirem, chorarão contigo. EPICÉDIO
A OLINTA
Co/ei di gioia trasmutossi, e rise, E in atto di morir /ieto, e vzvace Dir parea: s'apre ii cie/o, io vado in pace'.
Tasso, Jerusa/. Libert., canto XII
( 'COLEI DI GIOIA TRASMLJTOSSI ... lO VADO fN PACE. Ela de gáudio transmutou-se, e riu,! E no semblante de morte ledo e vivaz! Parecia dizer: abre-se o céu, vou-me em paz. )
O linta jaz na terra, Contigo, ó Noite, para sempre mora, E Amor grita, Amor chora, Chora o fagueiro Amor, que lhe brincava Nos melindrosos braços, Movendo aos corações sanguínea guerra;
Ei-lo já delirante; a ebúrnea aljava, Arco, venda, farpões eis em pedaços Sobre o frio, o medonho Lugar sagrado, aonde Com ar inda risonho O seu, e o nosso bem se nos esconde;
Na terra oculto jaz mais um tesouro Por decreto da Sorte:
Daquela tenra vida o fio de ouro Quão cedo rebentou nas mãos da Morte!...
Ah Morte inexorável, que te nutres Em ruínas, em ais, em sangue, em pranto!
Mais negra que os Infernos, mais faminta Que os famintos abutres!
Ó tu, da humanidade horror, e espanto, Levaste - lhe o melhor, levaste Olinta;
Olinta, em cujas faces delicadas Corações atraíam As rosas sobre neve desfolhadas, Que de virgíneo pejo se acendiam Ao brando assalto da menor fineza;
Olinta, em cujos olhos, que encantavam, Ufana se revia a Natureza!
Olhos! Flama celeste, a que voavam Açorados, terníssimos desejos, E onde, quais borboletas, se crestavam, Dando suspiros, dando-vos mil beijos, Olhos! Olhos! Oh dor! E estais fechados!
Estais de opacas névoas eclipsados!
Olhos suaves, olhos milagrosos, Com vossos deleitosos E froixos movimentos Dáveis flores aos prados, Alento aos corações desesperados, Enfreáveis os ventos, Removíeis das rochas a dureza, Transgredíeis as leis da Natureza, E não podeis sair desse letargo!... Oh doidas ilusões! Oh desvarios!
Oh desengano amargo!
Olhos tristes, sem luz, olhos já frios, A Morte não se rende à Formosura:
Não, jamais torna a si, jamais desperta Quem dorme, como vós, na sepultura.
A desesperação, que nunca acerta No que faz, no que diz, porque não pensa, Nest'alma, de aflição, de amor perdida, Loucuras proferiu. Não há quem vença O monstro, que executa a lei da Sorte:
E um contrato a vida, Que fez o justo Céu co mundo ingrato, E tu deste contrato És fatal condição, terrível morte, Que restituis a matéria ao nada.
O rei, que os povos como filhos ama, E que de benfeitor, de pio a fama Preza mais do que a púrpura sagrada, Castigando com lástima o delito, Reinando em corações, qual novo Tiro;
Aqueles, que entre bando lisonjeiro, Servil, e dependente, Se presumem do raio omnipotente Livres, seguros, coa Fortuna ao lado, E de mais pura massa Que o frágil barro do varão primeiro:
Aqueles, que com ar divinizado, Insensíveis aos gritos da Desgraça, Envolvidos em lúcido brocado, E tendo a mansidão por um desdouro, Para vós olham, míseros, e pobres (Ricos talvez de espíritos mais nobres)
Qual para o mundo o Sol do carro de ouro, Todos hão-de sulcar (oh Morte! Oh Fado!)
Esse horrendo Oceano Da nunca fatigada eternidade:
Lá verão, que no mundo a voz do Engano Traz o filho da terra alucinado, Que no mundo não há felicidade;
Todos, todos hão-de ir, por lei superna, Inviolável, eterna, Dormir nas trevas como Olinta dorme...
Mas ah! Filha cruel de Érebo enorme, Mudo espectro horroroso, Verdugo universal! Não te enganaste Ao menos, quando a fouce preparaste Contra o peito mimoso, Cujos tesouros, que o purpúreo pejo À sombra do véu cândido zelava Do espiador, solícito desejo,
Meu pensamento audaz apenas via, E inda eu vê-los assim não merecia!
Nem sequer desviaste a mão ferina Uma vez, parecendo-te divina, E exempta das pensões da Natureza Aquela rara, e cândida beleza;
O mágico volver dos olhos puros, Que viam seus escravos quantos viam; Os olhos, ante quem se derretiam Os penedos, os mármores mais duros;
A longa trança, a face transparente, Tão meiga para nós, como inocente;
A rubra, intacta boca, as mãos nevadas, A flor da gentileza, a flor dos anos, As patéticas vozes, já truncadas, Que não feriram só peitos humanos, Que essas montanhas estalar fizeram, Ao menos não puderam, Hórrido monstro, monstro famulento, Teu golpe demorar por um momento!
Monstro, monstro voraz, se nos tragaste Todo o bem, todo o gosto Naquele singular, benigno rosto, Para que nos deixaste Cá nesta solidão? Mortais, choremos, A ver se à força de chorar morremos:
Por Olinta querida Em lágrimas de amor se esgote a vida!
Fervam suspiros, fervam pelos ares, E criem nossos olhos novos mares.
De um bem, que áspera lei de nós desterra, A falta, a perda qual de vós não sente?
Mundo, suspiros, lágrimas, oh gente!
Olinta foi-se, Olinta jaz na terra.
Gritemos.., sempre em vão, tristeza, e luto Nos volva em noite o dia, Gritemos.., sempre em vão... Porém que escuto!
Céus! Estrelas! Que súbita harmonia, Que nunca ouvido tom, que etéreo canto Me faz balbuciar no meu lamento, Me faz a meu pesar conter o pranto!
Desencrespou-se o mar!... Nem bole o vento!...
Soava aquele arroio.., ei-lo calado, E como que se ri de gosto o prado!
Oh pasmo! Oh maravilha!
Este canto... este som... nào é terreno...
Vem do Céu, vem do Céu, que tão sereno, Olhos meus, nunca vistes;
Néctar consolador minh'alma rega...
Porém que nova luz nos ares brilha!
Que resplendor me cega!
À vista dele o Sol despe a beleza, Como à vista do dia a tocha acesa!
Que é isto, coração! Lágrimas tristes, Recuastes, fugistes!
Que doçura! Que encanto!
Este som faz que em êxtase me sinta!...
É verdade, é verdade: os anjos ouço...
Mas é digno um mortal de ouvir-lhe o canto?
Humanos, escutais? Oh céus! Olinta!
Olinta! É ilusão do pensamento...
Não, não é... que portento!
Humanos, atenção: - "Na corte imensa Do rei, que vibra os raios vingadores...
Prostrada.., aos pés divinos...
Olinta... goza já... da recompensa...
Das palmas... da virtude.., os seus louvores...
Sobre... as asas... dos hinos... Como... soam no Céu.., na Terra soem...
Consolai-vos... humanos,., Mais suspiros... não voem;
Vosso néscio queixume... a Deus insulta, Longe... de olhos profanos...
Que não merecem... ve-la, aqui... se encerra...
Aqui... das virgens.., entre o coro exulta.., Consolai -vos.., humanos,., Olinta... está.,, no Céu.., não jaz na terra."
Ah! Que o verso adorável emudece, E a luz celestial desaparece!
Deus! Oh Deus! Será sonho?
Será sonho, ó mortais, o que escutamos?
Não, não é, que inda o prado está risonho, Que o límpido regato inda não anda, Nem Zéfiro bafeja os arvoredos, Nem bate o mar nos íngremes penedos.
Ah! Bendito o Senhor, que nos abranda Esta saudade, que mortal julgamos.
Prazer, oh mundo, cânticos, oh gente!
Olinta está nos Céus, e lá piedosa Desde os áureos degraus do trono eterno Do nume omnipotente Nos chama para o bem, de que ela goza.
Lá faz estremecer o horrendo Inferno, Lá prende, orando, o braço justiçoso Daquele, mais que os séculos anoso, Que, farto de sofrer nossos delitos Quase, quase infinitos, Me faz crer a Razão, que já queria Mostrar-nos, ó mortais, quanto podia, Lançando-nos às testas criminosas Irresistível, pavoroso estrago:
A bárbara invasão, que oprimiu Roma, Hórrida fúria, que arrasou Cartago, Ou chuva ardente, que inundou Sodoma.
Cenas terríveis, cenas lutuosas, Olinta é quem de nós vos afugenta, Olinta a mão sustém, que nos sustenta...
Ah! Gratidão, saudade! A nossa amada Seja, seja cantada;
Versos em vez de lágrimas lhe demos, Do cedro vivedouro Com seu nome adorado o tronco honremos;
De beijos, e de rosas Cubra-se o cofre, cubra-se o tesouro Daquelas sacras cinzas preciosas;
E depois que do peito amortecido A nossa frágil vida transitória Voar nas asas do final gemido, Vereis quão terna Olinta nos recebe Lá nessas fontes de inefável glória, Onde mais quer beber quanto mais bebe.
Longe da nossa ideia, oh bens mundanos!
Sim, desde agora vos armamos guerra.
Orai a Olinta, não choreis, humanos:
Olinta está no Céu, não jaz na terra.
Outros Poemas ELEGIAS À TRÁGICA MORTE DA RAINHA
DE FRANÇA, MARIA ANTONIETA
Guilhotinada aos 16 de Outubro de 1793 Século horrendo aos séculos vindouros, Que ias inútilmente acumulando Das artes, das ciências dos tesouros:
Século enorme, século nefando, Em que das fauces do espantoso Averno Dragões sobre dragões vêm rebentando:
Marcado foste pela mão do Eterno Para estragar nos corações corruptos O dom da humanidade, amável, terno.
Que fatais produções, que azedos frutos Dás aos campos da Gália abominados, Nunca de sangue, ou lágrimas enxutos!
Que horrores, pelas Fúrias propagados, Mais e mais esses ares enevoam Da glória longo tempo iluminados!
Crimes soltos do Inferno a Terra atroam, E em torno aos cadafalsos lutuosos Da sedenta vingança os gritos soam.
Turba feroz de monstros pavorosos O ferro de ímpias leis, bramindo, encrava Em mil, que a seu sabor faz criminosos.
A brilhante nação, que blasonava D'exemplo das nações, o trono abate, E de um senado atroz se torna escrava.
Por mais que o sangue em ondas se desate Nada, nada lhe acorda o sentimento, Que as insanas paixões prende, ou rebate;
Vai grassando o furor sanguinolento, Lavra de peito em peito, e de alma em alma, Qual rubra labareda exposta ao vento:
Não cede, não repousa, não se acalma, E a funesta, insolente liberdade Ergue no punho audaz sanguínea palma.
Bárbaro tempo! Abominosa idade, Às outras eras pelos Fados presa Para labéu, e horror da humanidade!
Flagelos da virtude, e da grandeza, Réus do infame e sacrílego atentado De que treme a Razão, e a Natureza! Não bastava esse crime?... Inda o danado Espírito, que em vós está fervendo, A novos parricídios corre, ousado?...
JUSTOS CÉUS ! QUE ESPETÁCULO TREMENDO ! magens de terror; que horrível cena Que imagens de terror ; que horrível cena Vou na assombrada ideia revolvendo!
Que vítima gentil, muda, e serena Brilha entre espesso, detestável bando, Nas sombras da calúnia, que a condena!
Orna a paz da inocência o gesto brando, E os olhos, cujas graças encantaram, Se volvem para o Céu de quando em quando:
As mãos, aquelas mãos, que semearam Dádivas, prêmios, e na mole infância Com os ceptros auríferos brincaram.
Ludíbrio do furor, e da arrogância Sofrem prisões servis, que apenas sente O assombro da beleza, e da constância.
Oh justiça dos Céus! Oh mundo! Oh gente!
Vinde, acudi, correi, salvai da morte A malfadada vítima inocente!...
Mas ai! Não há piedade, que reporte A raiva dos terríveis assassinos;
Soou da tirania o duro corte.
Já cerrados estais, olhos divinos;
Já voando cumpriste, alma formosa, A férrea lei de aspérrimos destinos.
Do Rei dos reis na corte luminosa Revês o pio herói, por nós chorado, Que da excelsa virtude os lauros goza.
Na mente vos observo: ei-lo a teu lado Implorando ao Senhor, que os maus flagela, Perdão para o seu povo alucinado.
Despido o véu corpóreo, ó alma bela, No seio de imortal felicidade, Só sentes não voar mais cedo a ela.
Enquanto aos monstros de hórrida maldade Murmura a seu pesar no peito iroso A voz da vingadora Eternidade.
Desfruta suma glória, ó par ditoso, Logra em perpétua paz júbilo imenso, Que o mundo consternado, e respeitoso, Te apronta as aras, te dispõe o incenso. IDÍLIOS
FILENA, OU A SAUDADE
(Pastoril)
Que terna, que saudosa cantilena Ao som da lira Melibeu soltava, O pastor Melibeu, que por Filena, Pela branca Filena em vão chorava!
Inda me fere o peito aguda pena, Quando recordo os ais, que o triste dava, O pranto que vertia, amargo, e justo À sombra, que ali faz aquele arbusto.
Tu, maviosa a choros, e a clamores, Tu, Vénus (Vénus só na formosura)
Luz de meus olhos, únicos amores Desta alma, e seu prazer, sua ventura;
Que reclinada, amarrotando as flores, Descansas em meu peito a face pura, Ouve-me os ais, e as queixas de outro amante.
Que ao teu no ardente extremo é semelhante.
"Céus! (assim começou, e eu escondido Entre as copadas árvores o ouvia)
Por vós em duras mágoas convertido Vejo enfim todo o bem, que possuía:
À cândida Filena estar unido Julgastes que um pastor não merecia:
A mais doce prisão de Amor partistes.
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Mal haja a lei dos fados inclemente!
O seu poder, o seu rigor praguejo:
Morte! Geral verdugo! Estás contente?
Já saciaste o sôfrego desejo?...
Mas Filena inda é viva, inda me sente Suspirar nos seus braços: inda a beijo!...
Ah meus olhos, morreu: sem alma a vistes.
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Em ti, cara Filena, a sepultura Tem de Amor, tem das Graças o tesouro;
Ali te arranca a morte acerba, e dura Da mimosa cabeça as tranças de ouro:
Eis terra, eis cinza, eis nada a formosura...
Ah! Que não pude perceber o agouro Com que esta perda, oh fados, me advertistes!
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Um dia, há tempos, Lénia, a feiticeira, Me disse: 'Grande mal te está guardado!'
Não mo quis declarar, e ave agoureira De noite me piou sobre o telhado:
Cuidei que perderia a sementeira, O rebanho, o rafeiro... ah desgraçado!
Perdeste mais, e a tanto inda resistes!
Ajuda, triste lira, os versos tristes. A tua meiga voz, o teu carinho Maior falta me faz, minha Filena, Que lá no bosque ao rouxinol sôzinho Da presa amiga a doce cantilena:
O teu branco, amoroso cordeirinho, Mal que se viu sem ti, morreu de pena:
Balar saudoso, á montes, vós o ouvistes.
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
O meu rebanho definhou de sorte, Depois que te perdi, que anda caindo;
Seca estes campos o hálito da Morte Desde que ela sumiu teu gesto lindo:
Rogo-lhe vezes mil, que me transporte Lá onde, como estrela, estás luzindo, Lá onde alegre para sempre existes.
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
A roseira também, que tu plantaste, Teu prazer, e prazer da Natureza, Murchou-se logo assim que te murchaste, Oh flor na duração, flor na beleza!
A pequenina rola, que apanhaste, Não comeu mais, finou-se de fraqueza:
Porque blasfémia, ó deuses, me punistes?
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Já pelas selvas, ao raiar da aurora, Caçando, as tenras aves não persigo;
Tudo me anseia, me enfastia agora, Nem sofro os que por dó vêm ter comigo:
Figura-me a saudade a toda a hora Ternas delícias, que logrei contigo.
Ah! Quão depressa, gostos meus, fugistes!
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Como as formigas pelo chão, no Estio, Ou como as folhas pelo chão, de Inverno, No aflito coração, que em ais te envio, Jazem penas cruéis, quais as do Inferno:
Ora me sinto arder, outr'hora esfrio, Desfaz-me em ânsias um veneno interno:
Talvez meus pés, oh víboras, feristes!
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Nos troncos, e nos mármores gravemos Memórias de Filena idolatrada, Tão digna de suspiros, e de extremos, De tantos corações tão cobiçada:
Amor! Amor! Seu nome eternizemos...
Ai, que me falta a voz! Socorro, amada;
Conforta-me dos Céus, aonde assistes!
Não mais, á triste lira, ó versos tristes."
QUEIXUMES DO PASTOR ELMANO
CONTRA A FALSIDADE DA PASTORA
URSELINA Metido tenho a mão na consciência.
E não falo senão verdades puras.
Que me ensinou a viva experiência.
Camões, Soneto LXXXVII
Seu manto desdobrava a noite escura, E a rã no charco, o lobo na espessura Vociferando, os ares atroavam;
Do trabalho diurno já cessavam Os rudes, vigorosos camponeses:
O vaqueiro, cantando atrás das teses, Após as cabras o pastor cantando, Iam para as malhadas caminhando;
Tudo jazia em paz, menos o triste, O desgraçado Elmano, a quem feriste, Ó pernicioso Amor, cruel deidade, Flagelo da infeliz humanidade:
Tudo enfim descansava, excepto Elmano, Que a mão do Fado, universal tirano, Sentia sobre si descarregada;
Que, longe da paterna choça amada, Dependente vivia em lar, estranho Sendo os desgostos seus o seu rebanho.
Honrados maiorais o ser lhe deram Lá junto ao Sado ameno, e lhe fizeram Das artes cortesãs prezar o estudo:
As Musas o encantaram mais que tudo, Ateando-lhe n'alma o fogo santo, Que estúpidos mortais desdenham tanto.
Inflamado com ele, ao som da lira Quebrava dos tufões a força, a ira, E o venerando Tejo sossegado, A cuja fresca praia o trouxe o Fado, Mil vezes, para ouvir-lhe as ternas mágoas, A limosa cabeça ergueu das águas.
Cego, convulso, pálido, e sem tino Entrava na cabana de Francino O desditoso Elmano. Entre os pastores Geral estimação, gerais louvores Francino com justiça desfrutava:
Alto saber o espírito lhe ornava, Na vasta capital fora criado, E por expertos mestres cultivado.
Doce nó de amizade os dois unia, Concorrendo a razão, e a simpatia Para tão bela, e plácida aliança.
Notando, pois, a fúnebre mudança, Que no aspecto do amigo aparecia, Assim Francino a causa lhe inquiria:
FRANCINO
Que tens, Elmano? Que fatal desgosto Banha de tristes lágrimas teu rosto?
Tu, que ainda há brevíssimos instantes, Te aclamavas feliz entre os amantes, Logrando mil carinhos, mil favores De Urselina gentil, dos teus amores, Vens tão choroso, tão aflito agora!
Ah! Conta-me a paixão que te devora, Das ânsias tuas o motivo explica:
Comunicado o mal, mais brando fica.
ELMANO
Ai de mim! Venho louco, estou perdido.
Oh peito ingrato! Coração fingido!
Oh desumana, oh bárbara pastora!
Fementida mulher enganadora!...
E tiveste valor para a mais feia Traição, que pode conceber a ideia?
É possível! É certo! Oh céus! Socorro!...
Eu pasmo, eu desespero, eu ardo, eu morro.
FRANCINO
Amigo, torna em ti, recobra alento, Declara-me o teu íntimo tormento.
Do cego frenesi, que te domina, Quem é causa, pastor? É Urselina?
ELMANO
Quem, senão ela (oh céus!) me obrigaria A tão pasmoso extremo? A Sorte impia Com todo o seu poder nunca tem feito Desmaiar a constância de meu peito;
Quem me abate é Amor, não o Destino.
Eu te conto o meu mal, eu vou, Francino, Retratar-te a mais negra, a mais horrível De todas as traições. Não é possível Nos ermos encontrar da Líbia ardente Monstro, seja leão, seja serpente, Que possa comparar-se à fera humana,
Que com tanto rigor me desengana.
Quantas vezes notaste, honrado amigo, Finezas, que a traidora obrou comigo!
Quantas vezes daqui presenciaste Seus gestos, seus afagos, e julgaste, Que o mais ardente amor, a fé mais pura Pagavam minha cândida ternura!
Ouve, e conhecerás (ai de mim triste!)
Que foi sonho, ilusão tudo o que viste.
Já sabes, que no dia em que ligado A Márcio Jónio foi pelo sagrado, Indissolúvel nó, cantei louvores A tão ditosos, tão fiéis amores, E o número aumentei dos convidados;
Já sabes as meiguices, e os agrados, Com que a minha infiel me fez ditoso;
Ali traçando um baile harmonioso, Por parceiro me quis; ali sentada Junto a mim, vezes mil a refalsada Protestou, que em sua alma eu só vivia, Que eu era dos seus olhos a alegria, Dando-me a bela mão furtivamente, Que, ardendo de paixão, beijei contente. Pediu-me a desleal, que ali tornasse, Que tão doce prazer lhe não roubasse:
Guiado por Amor, fui inda agora Seu desejo cumprir, que antes não fora, Porque não sentiria este martírio, Este ardor, esta raiva, este delírio.
Jónio, que estava à porta da cabana, Me veio receber.., ah! Quanto engana Uma aparencia alegre, e carinhosa!
Entrei, pus logo os olhos n'aleivosa, Que, em vez de me tratar com meigo agrado, Tinha nas faces o desdém pintado.
Pasmado da mudança repentina, Lhe disse: "Amado bem, cara Urselina, Tu comigo tão áspera? Eu ignoro Em que pude agravar quem tanto adoro."
Isto dizendo, avizinhei-me a ela, Que estava ao pé da rústica janela, E da terna pergunta não fez caso, Nem o rosto voltou, e olhando acaso A próxima cabana de Nigela, Vi encostado Inálio à porta dela Olhar para Urselina, adeus dizer-lhe, E sem pejo a cruel corresponder-lhe Cum doce riso, um gesto namorado, De amantes expressões acompanhado.
Fervendo no peito o amor, e a ira, Logo, logo em pedaços fiz a lira, E em mil imprecaçôes, em mil queixumes O furor exalei dos meus ciúmes, Ameaçando a infiel, que eu me vingava No odioso rival, que me afrontava, Se uma satisfação, que Inálio visse, Logo o meu pundonor não ressarcisse.
Prometeu-me que sim, mas de repente A meus olhos se esconde, e vai contente O lerdo, o baixo amante encher de glória, Que não cabia em si pela vitória, Que a pior das traições lhe tinha dado.
Fiquei louco, fiquei desesperado, Contemplando este assombro nunca visto Nem na imaginação. Não pára nisto Daquela ingrata a pérfida baixeza:
De novas fúrias cruelmente acesa, Procura Aónio, inerte pegureiro, Que é o riso da gente no terreiro Quando sai a bailar, e a cada passo Se esquece da harmonia, e do compasso, Sendo falto de prendas, e de siso Como o louco Magálio, o rude Anfriso.
Urselina lhe diz, que me incitasse, A que a choça de Jónio abandonasse, Persuadindo-me, enfim, que não devia Presenciar a afronta, que sofria.
Acreditei o indigno conselheiro E saí da cabana, onde primeiro Tinha logrado os mimos da perjura, Que assim desenganou minha ternura.
Ah génio desleal, falaz perverso!
Ai! Não me alucinava o meu ciúme, Era mais do que justo o meu queixume, Quando (triste de mim!) quando julgava Que Inálio, inda que simples, te agradava!
Acusei-te mil vezes de fingida, De que a ele querias ver-te unida Em laços de Himeneu; mas tu negaste Sempre o que hoje sem pejo declaraste.
Traidora! Eu não dizia, eu não jurava, Que o meu sossego ao teu sacrificava!
Ah! Porque me não deste o desengano, Que eu te pedia, coração tirano?
Se Inálio, porque tem campos, e gados, Numerosos casais, amplos montados, Atrai esse teu génio interesseiro'
E eu, posto que leal, que verdadeiro, De clara geração, de sangue honrado, Caducos, frágeis bens não devo ao fado, E por isso não posso no teu peito Produzir da ternura o doce efeito;
Que razão te obrigou a acarinhar-me, E de um fingido amor capacitar-me?
Coração em perfídias atolado, Impia, se o não tivesse inda criado A vingadora mão de Jove eterno, Devia para ti criar o Inferno!
FRANCINO
Consola-te, pastor; essa perjura Não deve motivar tua amargura;
Castiga-lhe a traição, e o fingimento Lançando-a num profundo esquecimento.
Que mais satisfação, que mais vingança Queres da vil, da súbita mudança, Que ver exposta a pérfida pastora Ao ludíbrio geral? Uma traidora, Uma fera, uma ingrata, inda que bela, Não merece a paixão, que tens por ela.
Pondera, que não foste injuriado De seu duro desprezo inesperado;
Que o feminil capricho extravagante Não te deslustra o mérito brilhante.
Nenhum, nenhum pastor n'aldeia ignora, Que essa, que te deixou, foi até'gora Carinhosa contigo, e fez patente Sua correspondência a toda a gente:
Demonstrações em público te dava De amorosa paixão, mas não te amava:
Baixo costume, natural fraqueza É que a fez parecer de amor acesa;
Aquela alma não arde, não se inflama, A todos corresponde, a ninguém ama.
Bem se viu com Bersálio, e com Laurénio Seu inconstante, seu volúvel génio:
Té no mais desprezível dos pastores -
É capaz de empregar seus vis amores:
Nunca soube escolher, tudo lhe agrada, E inda que astutamente infatuada Faça crer aos amantes o contrário, É sabido seu carácter vário. Isto em teu coração gravado fique, E não queiras, pastor, maior despique:
Se até'gora calei quanto te digo, Foi por não te afligir, prezado amigo.
Pouco importa perder quem nada vale.
Contente-te, que toda a aldeia fale Contra a sua imprudente aleivosia;
Que, se pensasse bem no que fazia, Jamais o falso monstro, que te deixa, Fechara a tudo os olhos como fecha.
Deveria lembrar-se a fementida De que a sua afeição foi conhecida, De que inda em tuas mãos tens os penhores De seus furtivos, tácitos favores, Para não te obrigar com tal injúria A que dos zelos a violenta fúria Despedaçasse um véu misterioso, Um véu tão necessário como honroso.
Mas verás se mais hora menos hora Não é punida a infiel pastora:
Douradas esperanças lisonjeiras Nutrem-lhe ideias vãs, e interesseiras;
Mas Inálio é como ela ambicioso, E só deseja um himeneu lucroso, Que lhe farte a cobiça, os bens lhe aumente:
Ele próprio mo disse, ele não mente, Que a sua natural simplicidade Não pode mascarar a sã verdade.
Eia, pois, cesse o pranto, enxuga o rosto, Adora a Providência em teu desgosto;
Não delires, pastor, não desesperes, Que és feliz em saber quem são mulheres.
ELMANO
Sim, meu amado, meu leal Francino, Eu dou mil graças ao poder divino Por me livrar do engano em que vivia:
Eu lutarei coa terna simpatia, Que me fez adorar uma inconstante, Aos falsos crocodilos semelhante.
Embora logre Inálio os seus agrados Fingidos, mentirosos, estudados.
O sórdido interesse é quem a inspira:
Se da fortuna o meu rival sentira A triste, perniciosa variedade;
Se a violência de horrível tempestade Lhe derribasse as férteis oliveiras, Se o fogo lhe engolisse as sementeiras, Se a cheia lhe afogasse os nédios gados, Verias os desdéns, e em desagrados Mudar-se logo o amor, que finge a astuta, Que de negra cobiça a voz escuta:
Tu a verias outra vez comigo As chamas assoprar do afecto antigo, Mendigando razões para aplacar-me, Para me convencer, para enganar-me.
Mas ah paixão! Teu ímpeto reprime, E busque-se vingança igual ao crime.
Ritália bela, encanto dos pastores, Merece meus suspiros, meus amores:
Com ela fui mil vezes desatento, Negando-lhe o devido acatamento Por cumprir o preceito rigoroso De Urselina infiel, que no enganoso, No detestável peito encerra, e nutre Da venenosa inveja o feio abutre, Porque a meiga Ritália é mais do que ela Branda, risonha, delicada, e bela, Quanto é mais agradável, mais formosa Que as outras flores a punícea rosa.
Ritália desde agora o lindo objecto Será do meu fiel, constante afecto:
Arrebatado em êxtases de gosto, Louvores de seus olhos, de seu rosto Farei voar nas asas da ternura, E assim me vingarei duma perjura.
Ela, por timbre meu, o escute, o saiba, E o coração no peito lhe não caiba De inveja, de furor: eu, entretanto, Troque em plácido riso o triste pranto, E a fria indif'rença, com que intento Recompensar-lhe o torpe fingimento, Até tão alto grau nesta alma cresça Que eu veja a desleal, e a não conheça.
CANTATA
À MORTE DE INÊS DE CASTRO
As filhas do Mondego a morte escura Longo tempo, chorando, memoraram.
Camões, Lusíadas Longe do caro esposo Inês formosa Na margem do Mondego As amorosas faces aljofrava De mavioso pranto.
Os melindrosos, cândidos penhores Do tálamo furtivo Os filhinhos gentis, imagens dela, No regaço da mãe serenos gozam O sono da inocência.
Coro subtil de alígeros Favónios Que os ares embrandece, Ora enlevado afaga Com as plumas azuis o par mimoso, Ora solto, inquieto Em leda travessura, em doce brinco, Pela amante saudosa, Pelos tenros meninos se reparte, E com ténue murmúrio vai prender-se Das áureas tranças nos anéis brilhantes.
Primavera louçã, quadra macia Da ternura, e das flores, Que à bela Natureza o seio esmaltas, Que no prazer de Amor ao mundo apuras Prazer da existência, Tu de Inês lacrimosa As mágoas não distrais com teus encantos.
Debalde o rouxinol, cantor de amores, Nos versos naturais os sons varia;
O límpido Mondego em vão serpeia Cum benigno sussurro, entre boninas De lustroso matiz, alvo perfume;
Em vão se doura o Sol de luz mais viva, Os céus de mais pureza em vão se adornam Por divertir-te, oh Castro!
Objectos de alegria Amor enjoam Se Amor é desgraçado.
A meiga voz dos Zéfiros, do rio, Não te convida o sono:
Só de já fatigada Na luta de amargosos pensamentos Cerras, mísera, os olhos;
Mas não há para ti, para os amantes Sono plácido, e mudo:
Não dorme a fantasia, Amor não dorme:
Ou gratas ilusões, ou negros sonhos Assomando na ideia espertam, rompem O silêncio da morte.
Ah! Que fausta visão de Inês se apossa!
Que cena, que espectáculo assombroso A paixão lhe afigura aos olhos d'alma!
Em marmóreo salão de altas colunas, A sólio majestoso, e rutilante Junto ao régio amador se crê subida:
Graças de neve a púrpura lhe envolve, Pende augusto dossel do tecto de ouro;
Rico diadema de radioso esmalte Lhe cobre as tranças, mais formosas que ele;
Nos luzentes degraus do trono excelso Pomposos cortesãos o orgulho acurvam;
A lisonja sagaz lhe adoça os lábios, O monstro da política se aterra, E se Inês perseguia, Inês adora.
Ela escuta os extremos, Os vivas populares; vê o amante Nos olhos estudar-lhe as leis que dita;
O prazer a transporta, amor a encanta:
Prémios, dádivas mil ao justo, ao sábio Magnânima confere, Rainha esquece o que sofreu vassala:
De sublimes acções orna a grandeza, Felicita os mortais, do ceptro é digna, Impera em corações... Mas, céus!... Que estrondo O sonho encantador lhe desvanece!
Inês sobressaltada Desperta e de repente aos olhos turvos Da vistosa ilusão lhe foge o quadro.
Ministros do Furor, três vis algozes, De buídos punhais a dextra armada, Contra a bela infeliz bramindo avançam.
Ela grita, ela treme, ela descora, Os frutos da ternura ao seio aperta, Invocando a piedade, os Céus, o amante; Mas de mármore aos ais, de bronze ao pranto, À suave atracção da formosura, Vós, brutos assassinos, No peito lhe enterrais os ímpios ferros.
Cai nas sombras da morte A vítima de Amor lavada em sangue:
As rosas, os jasmins da face amena Para sempre desbotam;
Dos olhos se lhe some o doce lume, E no fatal momento Balbucia arquejando: - "Esposo! Esposo'
Os tristes inocentes À triste mãe se abraçam, E soltam de agonia inútil choro.
Ao suspiro exalado, Final suspiro da formosa extinta, Os Amores acodem.
Mostra a prole de Inês, e tua, ó Vénus, Igual consternação, e igual beleza:
Uns dos outros os cândidos meninos Só nas asas diferem (Que jazem pelo campo em mil pedaços Carcases de marfim, virotes de ouro)
Súbito voam dois do coro alado;
Este, raivoso, a demandar vingança No tribunal de Jove, Aquele a conduzir o infausto anúncio Ao descuidado amante.
Nas cem tubas da Fama o grão desastre Irá pelo universo:
Hão-de chorar-te, Inês, na Hircânia os tigres, No torrado sertão da Líbia fera As serpes, os leões hão-de chorar-te.
Do Mondego, que atónito recua, Do sentido Mondego as alvas filhas Em tropel doloroso Das urnas de cristal eis vêm surgindo;
Eis, atentas no horror do caso infando, Terríveis maldições dos lábios vibram Aos monstros infernais, que vão fugindo.
Já c'roam de cipreste a malfadada, E, arrepelando as nítidas madeixas, Lhe urdem saudosas, lúgubres endeichas.
Tu, Eco, as decoraste;
E cortadas dos ais, assim ressoam Nos côncavos penedos, que magoam:
"Toldam-se os ares, Murcham-se as flores;
Morrei, Amores, Que Inês morreu.
Mísero esposo, Desata o pranto, Que o teu encanto Já não é teu.
Sua alma pura Nos Céus se encerra;
Triste da Terra, Porque a perdeu.
Contra a cruenta Raiva ferina Face divina Não lhe valeu.
Tem roto o seio, Tesouro oculto, Bárbaro insulto Se lhe atreveu.
De dor e espanto No carro de ouro O númen louro Desfaleceu.
Aves sinistras Aqui piaram, Lobos uivaram, O chão tremeu.
Toldam-se os ares, Murcham-se as flores;
Morrei, Amores, Que Inês morreu.
Toldam-se os ares, Murcham-se as flores;
Morrei, Amores, Que Inês morreu."
EPÍSTOLA
PENA DE TALIÂO
(Ao padre José Agostinho de Macedo)
Tu nihil invita dices, faciesve Minerva2. (2TU NIHIL ... MINERVA Nada digas ou faças sem o benep1ácito de Minerva.
Horácio, Arte Poét., V. 385 Invidia rumpantur ut ilia Codro3.( 3INVIDIA CODRO Para que se rompam de inveja os flancos de Codro.)
Virg., Éclogas, Sátiras prestam, sátiras se estimam Quando nelas Calúnia o fel não verte, Quando voz de censor, não voz de zoilo O vício nota, o mérito gradua;
Quando forçado epíteto afrontoso (Tal, que nem cabe a ti) não cabe àqueles Que já na infância consultavam Febo.
Elmiros de Paris, Cotins, são vivos No metro de Boileau, mordaz, mas pulcro; Codros, Crispinos, Cluvienos soam No latido feroz do cão de Aquino, Desse cuja moral, mordendo, imitas, E cuja fantasia em vão rastejas, Nos ígneos versos, que Venusa ilustram, Nos que de fama eterna honraram Mântua, Envoltos no ludíbrio existem Bávios, Mévios existem, e a existência deles, Se pudesses durar, seria a tua.
Refalsado animal, das trevas sócio, Depõe, não vistas de cordeiro a pele!
Da razão, da moral o tom, que arrogas, Jamais purificou teus lábios torpes, Torpes do lodaçal, donde zunindo (Nuvens de insectos vis) te sobem trovas À mente erma de ideias, nua de arte.
Como hás-de, ó Zoilo, eternizar meu nome, Se os Fados permanência ao teu vedaram?
Se a ponte, que atravessa o mudo rio, Que os vates, que os heróis transpõem seguros, Tem fatal boqueirão, por onde absorto Irás ao vilipêndio, irás ao nada, Ficando em cima ileso, honrado o nome, Que em ditérios plebeus, em chulas frases Debalde intentas submergir contigo?
Empraza-te a Razão; responde... e treme!
Do filósofo a tez, a tez do amante, Meditativo aspecto, imagem d'alma, Em que fundas paixões a essência minam (Paixões da natureza, e não das tuas)
O que aparece em mim, à vista abjecto, A mesta palidez, o olhar sombrio, O que preterição desengenhosa Dos sujos trívios na linguagem aponta, Que importa, ó Zoilo, ao literário mundo?
Que importa descarnado, e macilento Não ter meu rosto o que alicia os olhos, Enquanto nédio, e rechonchudo, à custa De vão festeiro, estúpida irmandade, Repimpado nos púlpitos, que aviltas, Afofas teus sermões, venais fazendas (Cujos credores nos elísios fervem), Trovejas, enrouqueces, não comoves, Gelas a contrição no centro d'alma;
Ostentas férreo númen, céus de bronze, E, a cada berro minorando a turba, Compras n'aldeia do barbeiro o voto, Ali triunfas, e a cidade enjoas?
Tu, de cérebro pingue, e pingue face Farisaica ironia em vão rebuças Com que a penúria ao desvalido exprobras:
Que tem coa Natureza o que é da Sorte?
Ou dá-me o plano de atrair-lhe as graças (Mas sem que roje escravo) ou não profanes Indigência e moral, quais tu não citas.
Pões-me de inútil, de vadio a tacha, Tu, que vadio, errante, obeso, inútil, As praças de Ulisseia à toa oprimes, Ou do bom Daniel na térrea estância Peçonhas de invectiva espremes d'alma, Que entre negros chapéus também negreja, E ante o caixeiro boquiaberto arrotas, Arrotas ante o vulgo a enciclopédia;
Fadas, agouras o esplendor, que invejas, Arranhas mortos, atassalhas vivos, Insultas a grandeza, a imunidade Do eterno Mantuano, e dás a Estácio Um grau, que entregue ao deus, que ardendo em estro De Tebas o cantor tentar não ousa, Quando a Musa da morte enfreia os voos, E quer que a Eneida cá de longe adore.
Da preferência atroz inda não pago Das Graças ao cultor, de Amor ao vate, De Nasónia elegia aos sons piedosos, Que o Ponto ouviu com dor, com mágoa o Tibre, Versos prepões, sarmático-latinos, Versos, que inda ao burel, e ao claustro cheiram, E que, afrontoso a ti, de aplausos c'roas, Só por distarem de teus versos pouco.
Sanguessuga de pútridos autores, Que vais com cobre vil remir das tendas, Enquanto palavroso impões aos néscios, E a crédulo tropel roncando afirmas Que revolveste o que roçaste apenas;
(Falo das artes, das ciências falo):
Enquanto a estátua da Ignorância elevas, Os dias eu consumo, eu velo as noites Nos desornados, indigentes lares;
Submisso aos fados meus ali componho À pesada existência honesto arrimo, Coa mão, que Febo estende aos seus, a poucos.
Ali deveres, que não tens nem prezas;
Com fraternal piedade acato, exerço, Cultivo afectos à tua alma estranhos, Dando à virtude quanto dás ao vício;
Não me envilece ali de um frade o soldo:
Ali me esforça ao génio as ígneas asas Coração benfazejo, e tanto, e tanto Que a ti, seu depressor, protege, acolhe;
Que em redondo carácter te propaga A rapsódia servil, poema intruso, Pilhagem, que fizeste em mil volumes, Atulhado armazém de alheios fardos, Onde a Monotonia os mexe, os volve, E onde a teimosa apóstrofe se esfalfa, Já cos céus entendendo, e já coa terra.
Inda não me elevei do Pindo ao cume Com fama, que assoberbe os sumos vates;
Porém, graças ao dom, que não desdouras Coa birra estulta de emperradas trovas, Vou sobranceiro a ti, de longe te olho, E na pública voz, que se não merca, Elmano a cisne aspira, Elmiro é ganso, É ganso que patinha, e se enlameia Em podres lodaçais, pauis do Letes.
A círculos pueris, a vãos Narcisos, A Lucrécias na sala, e Lais na alcova, E inda às sérias do tempo os "bravos" poupo;
Insulso ritmador de facho e setas, Nugas não douro, não mendigo aplausos De vácuas frontes, plagiárias línguas;
Não sou, nem de improviso, o que és de espaço!
Claro auditório meu, vingai-me a glória!
Vós, que em versos altíssonos mil vezes Me vistes ir voando às fontes do Estro, Dizei, se me surgiram Grécia, Roma Nas prontas explosões do entusiasmo.
Se a razão, se a moral, se as leis, se a pátria Do metro destemido objectos foram, Ou das Marílias de hoje o riso ensosso, Dos olhos o comércio, e não das almas, O melindre sagaz, lição materna, E a mercantil firmeza, a cem votada?
Dizei... Mas contra ti sobeja Elmano;
Teus uivos, teus latidos não me aterram;
Sou do novo trifauce Alcides novo;
Inda não farto de arrancá-lo às sombras As três gargantas levarei de um golpe;
E se a canina espuma, ou sangue infecto Monstros gerar, que multiplique a morte, Das Fúrias o tição lhes torre as frontes.
Braveja, detractor, braveja, insano!...
Arde, blasfema em vão, de algoz te sirva Tenaz verdade, que te rói por dentro.
Na voz deprimes o que admiras n'alma;
Se provas queres, eu te exibo as provas Do que teu coração desdiz dos lábios.
Traz à mente o lugar, e a vez primeira Em que, dado à tristeza, e curvo aos ferros, Olhaste, ouviste Elmano, e grande o creste, Quando inda os voos tímido soltava Na imensidade azul, que aos astros guia;
Quando (não como por sistema o finges, Mas só da Natureza endereçado)
Seguia o rasto de amorosos cisnes, Pousando muito aquém do grau que ocupa: Ainda carecente da ígnea força Que à pátria deu Leandro, Inês, Medeia, O Antro dos zelos, de Areneu e Argira A história, que o sabor colheu de Ovídio, Na dicção narrativa experta, idónea, E o mais, às Musas grato, e grato a Lísia.
Da estância, onde nem sempre habita o crime, Epístola sem sal por ti guisada, Em tais louvores incluiu meu nome:
Versos escuta, que negar não podes;
Estilo é teu, monotonia é tua;
O que neles se envolve, escuta, em prémio Da empresa, que tomei, de os pôr na mente:
"Do centro desta gruta triste, e muda, Fecundo Elmano, pelas Musas dado, O prisioneiro Elmiro te saúda, De teus áureos talentos encantado;
De ti só fala, só por ti suspira, Em teu divino canto arrebatado...
Quem "fértil" nomeaste, e quem "divino"
Hoje é servil, monótono, infecundo, De texto opimo intérprete engoiado?
Coa idade e estudo o géílio em todos cresce, E em mim desfaleceu coa idade, e estudo?
Responde ao teu juiz, ao são critério, Réu de lesa-razão! Trazer à pátria Nova fertilidade em plantas novas, Manter-lhe as flores, conservar lhe os frutos, Quais eram no sabor, na tez, na forma, Sendo o tronco, a raiz, a copa os mesmos, Sem que os estranhe, os desconheça o dono, É fadiga vulgar? Não tem mais preço Do que esse, que os carretos galardoa Do galego boçal nos férreos ombros?
Verter com melodia, ardor, pureza O metro peregrino em luso metro, Dos idiotismos aplanando o estorvo, De um, doutro idioma discernindo os génios, O carácter do texto expor na glosa, Próprio tornando, e natural o alheio, É ser bugio, ou papagaio, Elmiro?
Confronta originais, e as cópias deles;
Verás se a Musa, que de rastos pintas, No voo altivo o Sulmonense atinge, Castel transcende, e com Delille ombreia.
Citas um verso mau, mil bons não citas?
Citas um verso mau, que não transforma Em matos os jardins? É natureza Estarem par a par espinhos, flores.
E não sabes, malévolo, que a regra Une a ténues objectos simples frases?
Se imparcial, se crítico escrevesses, Centenas de áureos versos apontaras, Sem de um só deduzir sentença iníqua.
De Ausónia o quadro, ou venerando, ou belo, Com justa, sábia mão presentarias; Idades cento blasonando ao longe Coa ruína imortal da excelsa Roma;
Ante as aras carpindo Amor, Saudade, E ao Céu medrosas lágrimas furtando;
Aos amigos dos homens, e aos dos numes Na terra verdejando elísios novos;
correntes sem rumor, como as do Letes, os males na memória adormecendo, em mármores coríntios alvejantes o grande Fénelon, e o grande Henrique.
Se o rival de Virgílio (o que proclamas, Porque de Gália é filho, e não de Lísia, A cujo seio, em que borbulham génios, Chamas com língua audaz estéril deles)
Se o rival de Virgflio ouvisse os versos De intérprete fiel, não rude escravo, Honrara cum sorriso úteis suores.
Pede ao mole Belmiro, anão de Febo, Ao que ergues uma vez, e mil derrubas;
Pede ao vampiro, que a ti mesmo há pouco Nas tendas, nos cafés deveu sarcasmos;
Pede ao bom Melizeu, d'Arcádia Fauno, De avelada existência, e mente exausta, Que afectas lamentar, e astuto abates, Que por alféloa troca os sons de Euterpe (Os sons da sua Euterpe, e não da minha), Diz ao teu coro, de garganta indócil (Sem que esqueça o Pigmeu no corpo, e n'alma).
Dize dos corvos de Ulisseia ao bando Que, intérpretes qual fui, de exímios vates, Não pagos de ir no rasto o voo alteiem:
Ou tu mesmo apresenta, of'rece à crise De gordo original versão mirrada, Sulcado o Estácio teu de unhadas minhas, De muitas, que sofreste, e que aproveitas;
Nele (oh mágoa! Oh labéu!) por ti mudados A pompa na indigência, o luto em riso;
Mostra em teus versos as imagens suas Tíbias, informes, encolhidas, mortas:
Desdentado leão, leão sem garras, Que à longa idade sucumbiu, rugindo;
Mas leão, que de perto inda é terrível, E que no quadro teu vale um cordeiro.
Ousa mais: - a Lusíada não sumas, Que o número de versos fez poema, Tal que seu mesmo pai sem dor o enterra.
Expõe no tribunal da Eternidade Monumentos de audácia, e não de engenho;
O prólogo alteroso, em que abocanhas Do luso Homero as veneráveis cinzas, E não de inepto, de apoucado arguas Quem, porque teme a queda, encolhe as asas;
Quem, de efémeros "vivas" não contente, Chegando a mais que tu, se atreve a menos.
Nem sômente Melpómene dispensa Grão nome, nem Calíope sômente.
Como os Voltaires na memória vivem, La Fontaines, Chaulieus subsistem nela:
Todos têm nome, e grau: tu mesmo o dizes, Contraditório, túmido versista. Tema, que escolhes, género, que abraças, Não te honra, nem desluz: no desempenho O lustre, a glória estão. Tem jus à fama O vate, ou cante heróis, ou cante amores, Contanto que de Febo as leis não torça, Aos mui vários assuntos ajustadas.
Coa matéria convém casar o estilo:
Levante-se a expressão, se é grande a ideia, Se a ideia é negra, a locução negreje, E ténue sendo, se atenue a frase.
Segue o que tens de cor, mas não praticas, Serás o que não és, o que não foste, Quando das "Musas no Almanaque" (ai triste!)
Que a par de seus irmãos morreu de traça, Forjaste de uma freira equórea ninfa, Jacinta de um Tritão fingiste acesa:
Chamaste grande, harmónico a Lereno, Ao fusco trovador, que em papagaio Converteste depois, havendo impado Com tabernal chanfana, alarve almoço, A expensas do coitado orangotango, Que uma serpe engordou, cevando Elmiro, Os teus vícios em rosto aos mais não lances, Tu, Fúria, tu, dragão, que entornas peste, Por sistema, por hábito, e por génio.
Os sete, que detrais, em que te agravam?
Querias par a par subir com eles, Nas asas do louvor a ignotos climas?
Que disseras, mordaz, quando a mimosa, Quando a celeste Catalani exala Milagres de ternura, e de harmonia, Sim, que disseras, se, ultrajando a cena, De rouquenha bandurra um biltre armado Ante a assembleia extática impingisse Solfa, mazomba, hispânico bolero?
Pois isto, ó Zoilo, tão impróprio fora Como anexar teu nome aos sete, e a outros, Que do silêncio meu não colhem manchas, Nem carecem de mim, por si famosos, E há muito em lira eterna ao pólo erguidos.
Verdade! rectidão! Vós sois meus numes!
Vê se as adoro, ó Zoilo: eu amo Alcino, Filinto, Córidon, Elpino eu louvo;
Todo me apraz Dorindo, Alfeno em parte;
Nas trevas para mim reluz Tomino;
Nos génios transcendentes me arrebato, Prezo alunos febeus, desprezo Elmiros.
De alta justiça quê mais prova exiges?
Tu, que de iníquo e parcial me increpas, Tu, que em vez de razões opróbrios vibras Perante um mundo, que te sabe a história!
Tu, que afeito à moral dos Tupinambas, Tens ampla consciência, onde Amizade, Onde Amor, e outros vínculos sagrados São nomes vãos, fantásticos direitos;
Tu... mas língua de bronze, e voz de ferro Mal de teus vícios a expressão dariam.
Indómito molosso, ardido ex-frade, É contigo a razão qual é coas ondas Arte, e saber de náufrago piloto:
Serás qual és, e morrerás qual vives.
Prossegue em detrair-me, em praguejar-me, Porque Délio dos "prólogos" te exclui;
Pregoa, espalha em sátiras, em lojes Que Zoilos não mereço, e sê meu Zoilo;
Chama-me de Tisífone enteado, Porque em fêmeo-belmírico falsete Não pinto os zelos, não descrevo a morte:
Erra versos, e versos sentenceia;
Condena-me a cantar de Ulina, e de anos;
Agrega o magro Elmano ao fulo Esbarra;
Ignora o "baquear" que é verbo antigo, Dos Sousas, dos Arrais sàmente usado;
Metonímias, sinédoques dispensa;
Da-me as pueris antíteses, que odeio;
De estafador de anáforas me encoima;
Faz (entre insânias) um prodígio, faz Qual anda o caranguejo andar meus versos;
Supõe-me entre barris, entre marujos;
(Dalguns talvez teu sangue as veias honre!)
Mas não desmaies na carreira; avante, Eia, ardor, coração... vaidade, ao menos.
As oitavas ao "Gama" esconde embora, Nisso não perdes tu, nem perde o mundo;
Mas venha o mais! Epístolas, sonetos, Odes, canções, metamorfoses, tudo...
Na frente põe teu nome, e estou vingado.
GLOSAS
Que eu fosse enfim desgraçado Escreveu do Fado a mão;
Lei do Fado não se muda;
Triste do meu coração !
GLOSA
Três vezes sobre meus lares Vozeou, quando eu nascia, Ave, que aborrece o dia, Que prevê cruéis azares:
Amor dividira os ares De seus tormentos cercado;
À funda estância do Fado O voo havia abatido, E ambos tinham resolvido Que eu fosse enfim desgraçado.
- Esse, que os primeiros ais Vai soltar triste, e choroso, Seja à Fortuna odioso, Seja pesado aos mortais:
Dos mimos de Amor jamais Desfrute a consolação;
Ame, porém ame em vão, Ferva-lhe n'alma o ciúme -Isto no horrendo volume Escreveu do Fado a mão Cresci, cresceram comigo Meus danos, e num transporte Curva maga a ler-me a sorte Com roucas preces obrigo:
Eis que toma um livro antigo, Abre, vê, folheia, estuda, Té que me diz carrancuda:
"Nos caracteres que olhei Fim ao teu mal não achei;
Lei do Fado não se muda"
Absorto, convulso, e frio, Deixo de erriçada grenha A Fúria em côncava penha, Seu lar medonho, e sombrio:
Debalde luto, e porfio Contra a Sorte desde então;
Céus! Não achar compaixão!
Céus! Amar sem ser amado!
Bárbara lei do meu fado!
Triste do meu coração !
A minha Lília morreu.
GLOSA
Assim como as flores vivem A minha Lília viveu;
Assim como as flores morrem A minha Lilia morreu.
Assomando o negro dia, Ave sinistra gemeu;
Cumpriu-se o funesto agouro:
A minha Lilia morreu Desfalece, ó Natureza, Acelera o fado teu;
Esta voz te guie ao nada:
A minha Lilia morreu.
Fadou-me o caso medonho Vate, que nos astros leu;
Os vates são como os numes:
A minha Lilia morreu.
Que é do Sol? Que é do Universo?
Tudo desapareceu;
Foi-se toda a Natureza: A minha Lilia morreu.
A minha ventura, e Lília Num só laço Amor prendeu:
Morreu a minha ventura, A minha Lilia morreu.
Em parte da minha essência Minha essência pereceu;
Não vivo senão metade:
A minha Lilia morreu.
Oh quanto ganhava o mundo!
Oh quanto o mundo perdeu!
Doce lucro, e triste perda!
A minha Lilia morreu.
Para exultar o Universo A minha Lília nasceu;
Para os numes exultarem A minha Lilia morreu.
Meu coração desgraçado, Desgraçado porque és meu, Evapora-te em suspiros:
A minha Lilia morreu.
As estrelas se apagaram, A Natureza tremeu, Os promontórios gemeram, A minha Lilia morreu.
Disse, ao ver sereno eflúvio, Que o puro Olimpo correu:
Aquela é a alma de Lília, A minha Lilia morreu.
APÔLOGO
OS DOIS GATOS
D ois bichanos se encontraram Sobre uma trapeira um dia:
(Creio que não foi no tempo Da amorosa gritaria).
De um deles todo o conchego Era dormir no borralho;
O outro em leito de senhora Tinha mimoso agasalho.
Ao primeiro o dono humilde Espinhas apenas dava;
Com esquisitos manjares O segundo se engordava.
Miou, e lambeu-o aquele Por o ver da sua casta;
Eis que o brutinho orgulhoso De si com desdém o afasta. Aguda unha vibrando Lhe diz: "Gato vil e pobre, Tens semelhante ousadia Comigo, opulento, e nobre?
Cuidas que sou como tu?
Asneirão, quanto te enganas!
Entendes que me sustento De espinhas, ou barbatanas?
Logro tudo o que desejo, Dão-me de comer na mão;
Tu lazeras, e dormimos Eu na cama, e tu no chão.
Poderás dizer-me a isto Que nunca te conheci;
Mas para ver que não minto Basta-me olhar para ti."
"Ui! (responde-lhe o gatorro, Mostrando um ar de estranheza)
És mais que eu? Que distinção Pôs em nós a Natureza?
Tens mais valor? Eis aqui A ocasião de o provar."
"Nada (acode o cavalheiro)
Eu não costumo brigar."
"Então (torna-lhe enfadado O nosso vilão ruim)
Se tu não és mais valente, Em que és sup'rior a mim?
Tu não mias?" - "Mio. - E sentes Gosto em pilhar algum rato?"
"Sim." - "E o comes?" - "Oh! Se o como ! "
"Logo não passas de um gato.
Abate, pois, esse orgulho, Intratável criatura:
Não tens mais nobreza que eu;
O que tens é mais ventura. "
EPIGRAMAS
Para curar febres podres Um doutor se foi chamar, Que, feitas as cerimónias, Começou a receitar.
A cada penada sua O enfermo arrancava um ai.
"Não se assuste (diz o Galeno)
Que inda desta se não vai.
"Ah senhor! (torna o coitado, Como quem seu fado espreita)
Da moléstia não me assusto, Assusto-me da receita."
Um escrivão fez um roubo;
Diz-lhe o juiz: "Que razão Teve para fazer isto?"
Responde: - "Ser escrivão."
Rechonchudo franciscano Desenrolava um sermão;
E defronte por acaso Lhe ficara um beberrão.
Tratava dos bens celestes, Proferindo: "Ouvintes meus, Que ditas, que imensa glória Para os justos guarda um Deus!
Falsos, momentâneos gostos Há neste mundo mesquinho:
Mas no Céu há bens sem conto...
Pergunta o bêbado: - "E vinho?"
Uma terra dizem que há, Onde a fome acerba e dura, Cabo dos médicos dá:
Porque é isto? É porque lá Pagam sômente a quem cura.
Homem de génio impaciente, Tendo uma dor infernal, Pedia para matar-se Um veneno, ou um punhal.
"Não há (lhe disse um vizinho Velho, que pensava bem)
Não há punhal, nem veneno;
Mas o médico ai vem.
EPITÁFIO
De Elmano eis sobre o mármore sagrado A lira, em que chorava, ou ria Amores;
Ser deles, ser das Musas foi seu fado:
Honrem-lhe a lira vates, e amadores.
Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Soneto e outros poemas. [São Paulo] : FTD, 1994. (Grandes
Leituras).
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Antonio Luiz Lopes – Guarulhos/SP
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