Sonetos
A fermosura desta fresca serra (1668 - soneto 136)
Ah! Fortuna cruel! Ah! duros Fados! (1685-1668 - soneto 114)
Ah! Minha Dinamene! Assi deixaste (1685-1668 - soneto 101)
Alegres campos, verdes arvoredos (1595 - soneto 013)
Alma minha gentil, que te partiste (1595 - soneto 080)
Amor, co a esperança perdida (1595 - soneto 083)
Amor é um fogo que arde sem se ver (soneto 005)
Amor, que o gesto humano n'alma escreve (1598 - soneto 042)
A morte, que da vida o no desata (1616 - soneto 058)
Apartava-se Nise de Montano (1595 - soneto 068)
Apolo e as nove Musas, discantando (1595 - soneto 051)
Aquela fera humana, que enriquece (1598 - soneto 041)
Aquela que, de pura castidade (1598 - soneto 098)
Aquela triste e leda madrugada (1595 - soneto 091)
Aqueles claros olhos que chorando(1860 - soneto 116)
Árvore, cujo pomo, belo e brando (1616 - soneto 038)
A sepultura del-Rei dom João Terceiro (soneto 160)
*A ti, Senhor, a quem as sacras Musas (soneto 001)
Bem sei, Amor, que é certo o quereceio (1598 - soneto 096)
Busque Amor novas artes, novo engenho (l595 - soneto 003)
Cá nesta Babilônia? donde mana (1616 - soneto 120)
Cantando estava um dia bem seguro (1616 - soneto 103)
Cara minha inimiga, em cuja mão (1595 - soneto 086)
Chorai, Ninfas, os fados poderosos (1668 - soneto 159)
Como fizeste, Pórcia, tal ferida? (1595 - soneto 071)
Como quando do mar tempestuoso (1598 - soneto 043)
Correm turvas as águas deste rio (1616 - soneto 104)
Conversação doméstica afeiçoa (1598 - soneto 093)
Dai-me üa lei, Senhora, de querer-vos (1595 - soneto 052)
Debaixo desta pedra esta metido (1595 - soneto 150)
1 Depois que quis Amor que eu só passasse (1598 - sonet o 094)
Despois que viu C
ibel e o corpo humano (1616 – sonet o 152)
De tão divino acento e voz humana (1595 - soneto 153)
De um t ão fel ice engenho produzido (1668 - sonet o 151)
De vos m e apart o, ó vida! Em t a l mudança (1595 - sonet o 057)
"Di ana prateada, esclarecia (1668 - sonet o 137)
Di t oso seja aquel e que som ente (1598 - sonet o 044)
Diversos does reparte o C
éu benino (1616 - sonet o 056)
Dizei, Senhora, da beleza ideia (1668 - soneto 121)
Doce content a m ento já passado (1663 - sonet o 122)
Doce sonho, suave e soberano (1668 - sonet o 123)
Doces águas e claras do Mondego (1616 - sonet o 006)
Doces l e mbranças da passada glori a (1595 - sonet o 082)
Dos i l ustres ant igos que dei xaram (1598 - sonet o 154)
El vaso rel ucient e y cri s t a l ino (1668)
Em fermosa Let e i a se confi a (1595 - sonet o 072)
Em flor vos arrancou, de ent ão crecida(1595 - sonet o 149)
Em pri sões bai xas fui um t e mpo atado (1598 - sonet o 085)
Enquanto FeLo os montes acendia (1668 - soneto 124)
Enquanto quis Fortuna que t i vesse (1595 - sonet o 001)
Erros m eus, m a fortuna, amor ardente (1 616 - sonet o 108)
Esforço grande, igual ao pensament o (1598 - sonet o 155)
Est a l ascivo e doce passarinho (1595 - sonet o 014)
Est â-se a Pri mavera t rasl adando (1595 - sonet o 024)
Est e amor que vos t enho, l i mpo e puro(1668 - sonet o 125)
Est e amor que vos t enho, l i mpo e puro(1668 - sonet o 125)
Eu cant arei de amor t ao docement e (1595 - sonet o 109)
* Eu cant e i l a, e agora vou chorando (1616 - sonet o 000)
Eu vivia de l agri mas i sent o (1668 - sonet o 111)
Ferido sem t er cura parecia (1598 - sonet o 065)
Fermosos olhos, que na i dade nossa (1595 - sonet o 091)
Fiou-se o coração, de muito isento (1598 - soneto 066)
Foi já; num t e mpo doce cousa amar (1598 - sonet o 087)
Fortuna em m i m guardando seu direi t o (1685-1668 - sonet o 126)
Grão t e mpo ha já que soube da Ventura (1595 - sonet o 026)
Ilust re o dino ram o dos M
eneses (1598 - sonet o 162)
Indo o t r i s t e pastor todo embebido (1668 - sonet o 112)
Já a saudosa Aurora destoucava (1598 - sonet o 078)
Já não sinto, Senhora, os desenganou (1668 - sonet o 127)
Jul ga-m e a gente toda por perdido (1616 - sonet o 105)
Leda serenidade del e i t osa (1598 - sonet o 045)
Lembranças que l e mbrai s o m eu bem passado(1685-1668 - sonet o 113)
Lembranças saudosos, se cui dais (1595 - sonet o 015)
Lindo e sutil trancado, que ficaste (1595 - soneto 023) Males, que contra mim vos con jurastes (1595 - soneto 084) Memória de meu bem, cortado em flores (1860 - soneto 128) Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (1595 - soneto 092)
Na desesperação já repousava (1616 - soneto 110)
Nái ades, vos, que os rios habi t a i s (1595 - sonet o 073)
Na m etade do Céu subido ardia (1598 - soneto 077)
Não passes, cam inhante! Quem m e chama (1595 - sonet o 156)
No mundo poucos anos, e cansados (1598 - sonet o 57)
No mundo quis um t e mpo que se achasse (1598 - sonet o 046)
No t e mpo que de Amor viver soí a (1598 - sonet o 099)
Num bosque que dos Ninfas se habi t ava (1595 - sonet o 074)
Num jardi m adornado de verdura (1595 - sonet o 022)
Num t ão al t o lugar, de t anto preço (1668 - sonet o 130)
O C
éu, a t erra, o vento sossegado (1616 - sonet o 106)
* O cisne, quando sente ser chegada (1595 - sonet o 000)
Oh com o se m e alonga, de ano em ano (sonet o 025)
O cul t o divinal se celebrava (1598 - sonet o 039)
O dia em que eu nasci, moura e pereça (1860 - v)
O fi lho de Latona esclarecido (1616 - sonet o 079)
2 O fogo que na branda cera ardia (1595 - sonet o 007)
Olhos fermosos, em quem quis Natura (1668 - sonet o 132)
Ondados fios d'ouro rel uzent e (1598 - sonet o 095)
Óh quão caro m e custa o ent ender-te (1598 - sonet o 047)
O rai o cri s t a l ino s'est endia (1598 - sonet o 067)
Os reinos e os i mpérios poderosos (1595 - sonet o 161)
Os vest idos El i sa revolvia (1598 - sonet o 064)
O tempo acaba o ano, o m ês e a hora (1668 - soneto 133)
Passo por m eus t rabalhos t ão i sent o(1595 - sonet o 021)
Pede o desejo, Dam a, que vos veja (1595 - sonet o 008)
Pel os ext remos raros que m ostrou (1595 - sonet o 076)
Pensament os, que agora novam ente (1598 - sonet o 031)
Poi s m eus olhos não cansam de chorar (1595 - sonet o 089)
Por ci m a destas águas, forte e firme (1616 - sonet o 037)
Porque quereis, Senhora, que ofereça (1595 - soneto 027)
Por sua Ninfa, C
éfal o dei xava (1616 - sonet o 062)
Posto m e t e m Fortuna em t a l est ado (1668 – sonet o 134)
Presença bel a, angél ica figura (1616 - sonet o 036)
Pues l ágri mas t ratáis, m is ojos t r i s t es (1685-1668 - sonet o 147)
Quando a suprema dor mu i t o m e apert a (1685-1668 - sonet o 138)
Quando cuido no t e mpo que, content e (1668 - sonet o 117)
Quando da bel a vista e doce riso (1595 - sonet o 009)
Quando de m inhas m ágoas a comprida (sonet o 100)
Quando o sol encoberto vai m ostrando (1595- sonet o 018)
Quando, Senhora, quis Amor que amasse (1668 - sonet o 139)
Quando se vir com água o fogo arder (1 685-1668 - sonet o 135)
Quando vejo que m eu dest ino ordena (1595 - sonet o 028)
Quantas vezes do fuso s'esquecia (1595 - soneto 070)
- Que l evas, cruel M
orte? - Um claro dia (1598 - sonet o 158)
Que m e querei s, perpétuas saudades (1598 - sonet o 107)
Quem fosse acompanhando juntament e (sonet o 102)
* - Quem jaz no grão sepulcro, que des creve (1595 - sonet o 000)
Que modo tão sutil da natureza (1616 - soneto 035)
Quem pode livre ser, gentil Senhora (1595 - soneto 010)
Quem presum i r, Senhora, de louvar-vos (1685-1668 - sonet o 141)
Quem quiser ver d’amor üa excelência (1598 - sonet o 048)
Quem vê Senhora, claro e m anifesto (1595 - sonet o 017)
Quem vos l evou de m i m , saudoso est ado (1668 - sonet o 118)
Que pode já fazer m inha ventura (1668 - soneto 140)
Que poderei do mundo já querer (1598 - sonet o 088)
Que vençais no Ori ente t antos t e i s (1595 - sonet o 164)
Se a Fortuna inquieta e m a l olhada (1668 - sonet o 148)
Se algüa hora em vos a piedade (1595 - sonet o 029)
Se as penas com que Amor t ão m a l m e t rata (1595 - sonet o 016)
Se, despois d'esperança t ão perdi da (1598 - sonet o 049)
Se de vosso fermoso e l indo gesto (1668 - sonet o 142)
Seguia aquel e fogo, que o guiava (1616 - sonet o 061)
Sempre a Razão vencida foi de Amor (1616 - soneto 055)
Sempre, cruel Senhora, receei (1668 - soneto 143).
Senhor João Lopes, o m eu baixo est ado (1616 - sonet o 050)
Senhora já dest '
a l ma, perdoai (1668 - sonet o 119)
Sent indo-se t o m ada a bel a esposa (1616 - sonet o 063)
Se pena por amar-vos se m erece (1598 - soneto 034)
Se t anta pena t enho m erecida (1595 - sonet o 053)
Set e anos de pastor Jacob servi a (1595 - sonet o 030)
Se t o m ar m inha pena em peni t ênci a (1598 - sonet o 033)
Suspi ros i nflamados, que cant a i s (1598 - sonet o 059)
Sustent a m eu viver ua esperança (1668 - sonet o 144)
Tal m ostra dá de si vossa figura (1616 - sonet o 075)
Tanto de m eu est ado m e acho i ncert o (1595 - sonet o 004)
Tempo é já que m inha confi ança (1595 - sonet o 019)
Todo o ani mal da cal m a repousava (1595 - sonet o 060)
Tom ava Dal i ana por vingança (1595 - sonet o 069)
3 Tomou-me vossa vista soberana (1595 - soneto 011)
Transforma-se o amador na cousa amada (1595 - soneto 020)
Um mover d'ollos, brando e piadoso (1595 - soneto 090)
Vencido está de amor meu pensamento (1685-1668 - soneto 145)
Verdade, Amor, Razão, Merecimento (1598 - soneto 166)
Vôs, Ninfas da gangética espessura (1598 - soneto 163)
Vôs outros, que buscais repouso certo (1616 - soneto 165)
Vôs, que d'olhos suaves e serenos (1598 - soneto 032)
Vossos olhos, Senhora, que competem (1595 - soneto 012)
136 A fermosura fresca serra, e a sombra dos verdes castanheiros, o manso caminhar destes ribeiros, donde toda a tristeza se desterra;
o rouco som do mar, a estranha terra, o esconder do sol pelos outeiros, o recolher dos gados derradeiros, das nuvens pelo ar a branda guerra;
enfim, tudo o que a rara natureza com tanta variedade nos ofrece, me está (se não te vejo) magoando.
Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
sem ti, perpetuamente estou passando nas mores alegrias, mor tristeza.
114 Ah! Fortuna cruel! Ah! duros Fados!
Quão asinha em meu dano vos mudastes!
Passou o tempo que me descansastes, agora descansais com meus cuidados.
Deixastes-me sentir os bens passados, para mor dor da dor que me ordenastes;
então nü'hora juntos mos levastes, deixando em seu lugar males dobrados.
Ah! quanto milhor fora não vos ver, gostos, que assi passais tão de corrida, que fico duvidoso se vos vi:
4 sem vós já me não fica que perder, se não se for esta cansada vida, que por mor perda minha não perdi.
101 Ah! minha Dinamene! Assi deixaste quem não deixara nunca de querer-te?
Ah! Ninfa minha! Já não posso ver-te, tão asinha esta vida desprezaste!
Como já para sempre te apartaste de quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te, que não visses quem tanto magoaste?
Nem falar-te somente a dura morte me deixou, que tão cedo o negro manto em teus olhos deitado consentiste!
Ó mar, ó Céu, ó minha escura sorte!
Que pena sentirei, que valha tanto, que inda tenho por pouco o viver triste?
013 Alegres campos, verdes arvoredos, claras e frescas águas de cristal, que em vós os debuxais ao natural, discorrendo da altura dos rochedos;
Silvestres montes, ásperos penedos, compostos em concerto desigual, sabei que, sem licença de meu mal, já não podeis fazer meus olhos ledos.
E, pois me já não vedes como vistes, não me alegrem verduras deleitosas, nem águas que correndo alegres vêm.
Semearei em vós lembranças tristes, regando-vos com lágrimas saudosas, e nascerão saudades de meu bem.
080 Alma minha gentil, que te partiste tão cedo desta vida descontente, repousa lá no Céu eternamente, e viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste, memória desta vida se consente, não te esqueças daquele amor ardente que já nos olhos meus tão puro viste.
5 E se vires que pode merecer te algüa causa a dor que me ficou da mágoa, sem remédio, de perder te, roga a Deus, que teus anos encurtou, que tão cedo de cá me leve a ver te, quão cedo de meus olhos te levou.
083 Amor, co a esperança já perdida, teu soberano templo visitei;
por sinal do naufrágio que passei, em lugar dos vestidos, pus a vida.
Que queres mais de mim, que destruída me tens a glória toda que alcancei?
Não cuides de forçar me, que não sei tornar a entrar onde não há saída.
Vês aqui alma, vida e esperança, despojos doces de meu bem passado, enquanto quis aquela que eu adoro:
nelas podes tomar de mim vingança;
e se inda não estás de mim vingado, contenta te com as lágrimas que choro.
005 Amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor?
042 Amor, que o gesto humano n'alma escreve, vivas faíscas me mostrou um dia, donde um puro cristal se derretia por entre vivas rosas e alva neve.
6 A vista, que em si mesma não se atreve, por se certificar do que ali via, foi convertida em fonte, que fazia a dor ao sofrimento doce e leve.
Jura Amor que brandura de vontade causa o primeiro efeito; o pensamento endoudece, se cuida que é verdade.
Olhai como Amor gera num momento, de lágrimas de honesta piedade lágrimas de imortal contentamento.
058 A Morte, que da vida o nó desata, os nós, que dá o Amor, cortar quisera na Ausência, que é contr' ele espada fera, e co Tempo, que tudo desbarata.
Duas contrárias, que üa a outra mata, a Morte contra o Amor ajunta e altera:
üa é Razão contra a Fortuna austera, outra, contra a Razão, Fortuna ingrata.
Mas mostre a sua imperial potência a Morte em apartar dum corpo a alma, duas num corpo o Amor ajunte e una;
porque assi leve triunfante a palma, Amor da Morte, apesar da Ausência, do Tempo, da Razão e da Fortuna.
068 Apartava se Nise de Montano, em cuja alma partindo se ficava;
que o pastor na memória a debuxava, por poder sustentar se deste engano.
Pelas praias do Índico Oceano sobre o curvo cajado s'encostava, e os olhos pelas águas alongava, que pouco se doíam de seu dano.
Pois com tamanha mágoa e saudade (dezia) quis deixar me a que eu adoro, por testemunhas tomo Céu e estrelas.
Mas se em vós, ondas, mora piedade, levai também as lágrimas que choro, pois assi me levais a causa delas!
051 Apolo e as nove Musas, discantando 7 com a dourada lira, me influíam na suave harmonia que faziam, quando tomei a pena, começando:
— Ditoso seja o dia e hora, quando tão delicados olhos me feriam!
Ditosos os sentidos que sentiam estar se em seu desejo traspassando!
Assi cantava, quando Amor virou a roda à esperança, que corria tão ligeira que quase era invisível.
Converteu se me em noite o claro dia;
e, se algüa esperança me ficou, será de maior mal, se for possível.
041 Aquela fera humana que enriquece sua presuntuosa tirania destas minhas entranhas, onde cria Amor um mal que falta quando crece;
Se nela o Céu mostrou (como parece)
quanto mostrar ao mundo pretendia, porque de minha vida se injuria?
Porque de minha morte s'enobrece?
Ora, enfim, sublimai vossa vitória, Senhora, com vencer me e cativar me:
fazei disto no mundo larga história.
Que, por mais que vos veja maltratar me, já me fico logrando desta glória de ver que tendes tanta de matar me.
098 Aquela que, de pura castidade, de si mesma tomou cruel vingança por üa breve e súbita mudança, contrária a sua honra e qualidade (venceu à fermosura a honestidade, venceu no fim da vida a esperança porque ficasse viva tal lembrança, tal amor, tanta fé, tanta verdade!), de si, da gente e do mundo esquecida, feriu com duro ferro o brando peito, banhando em sangue a força do tirano.
[Oh!] estranha ousadia ! estranho feito !
Que, dando breve morte ao corpo humano, tenha sua memória larga vida!
8 091 Fermosos olhos que na idade nossa mostrais do Céu certissimos sinais, se quereis conhecer quanto possais, olhai me a mim, que sou feitura vossa.
Vereis que de viver me desapossa aquele riso com que a vida dais;
vereis como de Amor não quero mais, por mais que o tempo corra e o dano possa.
E se dentro nest'alma ver quiserdes, como num claro espelho, ali vereis também a vossa, angélica e serena.
Mas eu cuido que só por não me verdes, ver vos em mim, Senhora, não quereis:
tanto gosto levais de minha pena!
116 Aqueles claros olhos que chorando ficavam quando deles me partia, agora que farão? Quem mo diria?
Se porventura estarão em mim cuidando?
Se terão na memória, como ou quando deles me vim tão longe de alegria?
Ou s'estarão aquele alegre dia que torne a vê-los, n'alma figurando?
Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
Se falarão co as aves e cos ventos?
Oh! bem-aventurados fingimentos, que, nesta ausência, tão doces enganos sabeis fazer aos tristes pensamentos!
038 Arvore, cujo pomo, belo e brando, natureza de leite e sangue pinta, onde a pureza, de vergonha tinta, está virgíneas faces imitando;
nunca da ira e do vento, que arrancando os troncos vão, o teu injúria sinta;
nem por malícia de ar te seja extinta a cor, que está teu fruto debuxando;
que, pois me emprestas doce e idóneo abrigo a meu contentamento, e favoreces com teu suave cheiro minha glória, se não te celebrar como mereces, 9 cantando te, sequer farei contigo doce, nos casos tristes, a memória.
160 À sepultura de del-Rei dom João Terceiro Quem jaz no grão sepulcro, que descreve tão ilustres sinais no forte escudo?
- Ninguém; que nisso, enfim, se toma tudo mas foi quem tudo pôde e tudo teve.
Foi Rei?- Fez tudo quanto a Rei se deve;
pôs na guerra e na paz devido estudo;
mas quão pesado foi ao Mouro rudo tanto lhe seja agora a terra leve.
Alexandre será?- Ninguém se engane;
que sustentar, mais que adquirir se estima.
- Será Adriano, grão senhor do mundo?
Mais observante foi da Lei de cima.
- E Numa?- Numa, não; mas é Joane:
de Portugal terceiro, sem segundo.
*001 A ti, Senhor, a quem as sacras musas Este soneto não foi disponibilizado pela FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional ,
que realizou a edição digital desta obra.
Agradecemos sua compreensão.
096 Bem sei, Amor, que é certo o que receio;
mas tu, porque com isso mais te apuras, de manhoso mo negas, e mo juras no teu dourado arco; e eu to creio.
A mão tenho metida no teu seio, e não vejo meus danos às escuras;
e tu contudo tanto me asseguras, que me digo que minto, e que me enleio.
Não somente consinto neste engano, mas inda to agradeço, e a mim me nego tudo o que vejo e sinto de meu dano.
Oh! poderoso mal a que me entrego!
Que, no meio do justo desengano, me possa inda cegar um Moço cego!
10 003 Busque Amor novas artes, novo engenho, para matar me, e novas esquivanças;
que não pode tirar me as esperanças, que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças, andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto onde esperança falta, lá me esconde Amor um mal, que mata e não se vê.
Que dias há que n'alma me tem posto um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê.
120 Cá nesta Babilónia, donde mana matéria a quanto mal o mundo cria;
cá onde o puro Amor não tem valia, que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
cá, onde o mal se afina, e o bem se dana, e pode mais que a honra a tirania;
cá, onde a errada e cega Monarquia cuida que um nome vão a desengana;
cá, neste labirinto, onde a nobreza com esforço e saber pedindo vão às portas da cobiça e da vileza;
cá neste escuro caos de confusão, cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
103 Cantando estava um dia bem seguro quando, passando, Sílvio me dizia (Sílvio, pastor antigo, que sabia pelo canto das aves o futuro):
—Méris, quando quiser o fado escuro, oprimir-te virão em um só dia dous lobos; logo a voz e a melodia te fugirão, e o som suave e puro.
Bem foi assi: porque um me degolou quanto gado vacum pastava e tinha, de que grandes soldadas esperava;
E outro por meu dano me matou 11 a cordeira gentil que eu tanto amava, perpétua saudade da alma minha!
086 Cara minha inimiga, em cuja mão pôs meus contentamentos a ventura, faltou te a ti na terra sepultura, porque me falte a mim consolação.
Eternamente as águas lograrão a tua peregrina fermosura;
mas, enquanto me a mim a vida dura, sempre viva em minh'alma te acharão.
E se meus rudos versos podem tanto que possam prometer te longa história daquele amor tão puro e verdadeiro, celebrada serás sempre em meu canto;
porque enquanto no mundo houver memória, será minha escritura teu letreiro.
159 Chorai, Ninfas, os fados poderosos daquela soberana fermosura!
Onde foram parar na sepultura aqueles reais olhos graciosos?
Ó bens do mundo, falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura jaza sem resplandor na terra dura, com tal rosto e cabelos tão fermosos!
Das outras que será, pois poder teve a morte sobre cousa tanto bela que ela eclipsava a luz do claro dia?
Mas o mundo não era dino dela, por isso mais na terra não esteve;
ao Céu subiu, que já *se* lhe devia.
097 Com grandes esperanças já cantei, com que os deuses no Olimpo conquistara;
despois vim a chorar porque cantara e agora choro já porque chorei.
Se cuido nas passadas que já dei, custa me esta lembrança só tão cara que a dor de ver as mágoas que passara tenho pola mor mágoa que passei.
Pois logo, se está claro que um tormento dá causa que outro n'alma se acrescente, 12 já nunca posso ter contentamento.
Mas esta fantasia se me mente?
Oh! ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente?
071 Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
Foi voluntária, ou foi por inocência?
—Mas foi fazer Amor experiência se podia sofrer tirar me a vida.
—E com teu próprio sangue te convida a não pores à vida resistência?
—Ando me acostumando à paciência, porque o temor a morte não impida.
—Pois porque comes, logo, fogo ardente, se a ferro te costumas?—Porque ordena Amor que morra e pene juntamente.
E tens a dor do ferro por pequena?
—Si: que a dor costumada não se sente;
e eu não quero a morte sem a pena.
043 Como quando do mar tempestuoso o marinheiro, lasso e trabalhado, d'um naufrágio cruel já salvo a nado, só ouvir falar nele o faz medroso;
e jura que em que veja bonançoso o violento mar, e sossegado não entre nele mais, mas vai, forçado pelo muito interesse cobiçoso;
Assi, Senhora eu, que da tormenta, de vossa vista fujo, por salvar me, jurando de não mais em outra ver me;
minh'alma que de vós nunca se ausenta, dá me por preço ver vos, faz tornar me donde fugi tão perto de perder me.
093 Conversação doméstica afeiçoa, ora em forma de boa e sã vontade, ora de üa amorosa piedade, sem olhar qualidade de pessoa.
Se despois, porventura, vos magoa com desamor e pouca lealdade, logo vos faz mentira da verdade 13 o brando Amor, que tudo em si perdoa.
Não são isto que falo conjecturas, que o pensamento julga na aparência, por fazer delicadas escrituras.
Metido tenho a mão na consciência, e não falo senão verdades puras que me ensinou a viva experiência.
104 Correm turvas as águas deste rio, que as do Céu e as do monte as enturbaram;
os campos florecidos se secaram, intratável se fez o vale, e frio.
Passou o Verão, passou o ardente Estio, üas cousas por outras se trocaram;
os fementidos Fados já deixaram do mundo o regimento, ou desvario.
Tem o tempo sua ordem já sabida;
o mundo, não; mas anda tão confuso, que parece que dele Deus se esquece.
Casos, opiniões, natura e uso fazem que nos pareça desta vida que não há nela mais que o que parece.
052 Dai me üa lei, Senhora, de querer vos, que a guarde, sô pena de enojar vos;
que a fé que me obriga a tanto amar vos fará que fique em lei de obedecer vos.
Tudo me defendei, senão só ver vos, e dentro na minh'alma contemplar vos;
que, se assi não chegar a contentar vos, ao menos que não chegue [a] aborrecer vos.
E, se essa condição cruel e esquiva, que me dois lei de vida não consente, dai ma, Senhora, já, seja de morte.
Se nem essa me dais, é bem que viva, sem saber como vivo, tristemente, mas contente porém de minha sorte.
150 À sepultura de D. Fernando de Castro Debaixo desta pedra está metido, das sanguinosas armas descansado, 14 o capitão ilustre, assinalado, Dom Fernando de Castro esclarecido.
Por todo o Oriente tão temido, e da enveja da fama tão cantado, este, pois, só agora sepultado, está aqui já em terra convertido.
Alegra-te, ó guerreira Lusitânia por este Viriato que criaste, e chora-o, perdido, eternamente.
Exemplo toma nisto de Dardânia;
que, se a Roma co ele aniquilaste, nem por isso Cartago está contente.
094 Despois que quis Amor que eu só passasse quanto mal já por muitos repartiu, entregou me à Fortuna, porque viu que não tinha mais mal que em mim mostrasse.
Ela, porque do Amor se avantajasse no tormento que o Céu me permitiu, o que para ninguém se consentiu, para mim só mandou que se inventasse.
Eis me aqui vou com vário som gritando, copioso exemplário para a gente que destes dous tiranos é sujeita, desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita, que deste tão pequeno está contente!
152 Despois que viu Cibele o corpo humano do fermoso Átis seu verde pinheiro, em piedade o vão furar primeiro convertido, chorou seu grave dano.
E, fazendo a sua dor ilustre engano, a Júpiter pediu que o verdadeiro preço da nova palma e do loureiro, ao seu pinheiro desse, soberano.
Mais lhe concede o filho poderoso que, as estrelas, subindo, tocar possa, vendo os segredos lá do Céu superno.
Oh! ditoso Pinheiro! Oh! mais ditoso quem se vir coroar da folha vossa, cantando à vossa sombra verso eterno!
153 15 De tão divino acento e voz humana, de tão doces palavras peregrinas, bem sei que minhas obras não são dinas, que o rudo engenho meu me desengana.
Mas de vossos escritos corre e mana licor que vence as águas cabalinas;
e convosco do Tejo as flores finas farão enveja à cópia mantuana.
E pois, a vós de si não sendo avaras, as filhas de Mnemósine fermosa partes dadas vos tem, ao mundo caras, a minha Musa e a vossa tão famosa, ambas posso chamar ao mundo raras:
a vossa d'alta, a minha d'envejosa.
151 De um tão felice engenho, produzido de outro, que o claro Sol não viu maior, é trazer cousas altas no sentido, todas dinas de espanto e de louvor.
Museu foi antiquíssimo escritor, filósofo e poeta conhecido, discípulo do Músico amador que co som teve o Inferno suspendido.
Este pôde abalar o monte mudo, cantando aquele mal, que eu já passei, do mancebo de Abido mal sisudo.
Agora contam já (segundo achei), Passo, e o nosso Boscão, que disse tudo dos segredos que move o cego Rei.
057 De vós me aparto, ó vida! Em tal mudança, sinto vivo da morte o sentimento.
Não sei para que é ter contentamento, se mais há de perder quem mais alcança.
Mas dou vos esta firme segurança que, posto que me mate meu tormento, pelas águas do eterno esquecimento segura passará minha lembrança.
Antes sem vós meus olhos se entristeçam, que com qualquer cous' outra se contentem;
antes os esqueçais, que vos esqueçam.
Antes nesta lembrança se atormentem, que com esquecimento desmereçam a glória que em sofrer tal pena sentem.
16 137 Diana prateada, esclarecia com a luz que do claro Febo ardente, por ser de natureza transparente, em si, como em espelho, reluzia.
Cem mil milhões de graças lhe influía, quando me apareceu o excelente raio de vosso aspecto, diferente em graça e em amor do que soía.
Eu, vendo-me tão cheio de favores, e tão propínquo a ser de todo vosso, louvei a hora clara, e a noite escura, Sois nela destes cor a meus amores;
donde colijo claro que não posso de dia para vós já ter ventura.
044 Ditoso seja aquele que somente se queixa de amorosas esquivanças;
pois por elas não perde as esperanças de poder n'algum tempo ser contente.
Ditoso seja quem, estando ausente, não sente mais que a pena das lembranças;
porqu', inda que se tema de mudanças, menos se teme a dor quando se sente.
Ditoso seja, enfim, qualquer estado onde enganos, desprezos e isenção trazem o coração atormentado.
Mas triste quem se sente magoado d'erros em que não pode haver perdão, sem ficar n'alma a mágoa do pecado.
056 Diversos dões reparte o Céu benino, e quer que cada üa um só possua;
assi, ornou de casto peito a Lüa, ornamento do assento cristalino.
De graça, a Mãe fermosa do Minino, que nessa vista tem perdido a sua;
Palas, de discrição, que imite a tua;
do valor, Juno, só de império dino.
Mas junto agora o mesmo Céu derrama em ti o mais que tinha, e foi o menos, em respeito do Autor da natureza;
que, a seu pesar, te dão, fermosa Dama, 17 Diana, honestidade, e graça, Vénus, Palas o aviso seu, Juno a nobreza.
121 Dizei, Senhora, da Beleza ideia:
para fazerdes esse áureo crino, onde fostes buscar esse ouro fino?
de que escondida mina ou de que veia?
Dos vossos olhos essa luz Febeia, esse respeito, de um império dino?
Se o alcançastes com saber divino, se com encantamentos de Medeia?
De que escondidas conchas escolhestes as perlas preciosas orientais que, falando, mostrais no doce riso?
Pois vos formastes tal, como quisestes, vigiai-vos de vós, não vos vejais, fugi das fontes: lembre-vos Narciso.
122 Doce contentamento já passado, em que todo meu bem já consistia, quem vos levou de minha companhia e me deixou de vós tão apartado?
Quem cuidou que se visse neste estado naquelas breves horas de alegria, quando minha ventura consentia que de enganos vivesse meu cuidado?
Fortuna minha foi, cruel e dura, aquela que causou meu perdimento, com a qual ninguém pode ter cautela.
Nem se engane nenhüa criatura, que não pode nenhum impedimento fugir do que [lhe] ordena sua estrela.
123 Doce sonho, suave e soberano, se por mais longo tempo me durara!
Ah! quem de sonho tal nunca acordara, pois havia de ver tal desengano!
Ah! deleitoso bem! ah! doce engano!
Se por mais largo espaço me enganara!
Se então a vida mísera acabara, de alegria e prazer morrera ufano.
Ditoso, não estando em mim, pois tive, 18 dormindo, o que acordado ter quisera.
Olhai com que me paga meu destino!
Enfim, fora de mim, ditoso estive.
Em mentiras ter dita razão era, pois sempre nas verdades fui mofino.
006 Doces águas e claras do Mondego, doce repouso de minha lembrança, onde a comprida e pérfida esperança longo tempo após si me trouxe cego;
de vós me aparto; mas, porém, não nego que inda a memória longa, que me alcança, me não deixa de vós fazer mudança, mas quanto mais me alongo, mais me achego.
Bem pudera Fortuna este instrumento d'alma levar por terra nova e estranha, oferecido ao mar remoto e vento;
mas alma, que de cá vos acompanha, nas asas do ligeiro pensamento, para vós, águas, voa, e em vós se banha.
082 Doces lembranças da passada glória, que me tirou Fortuna roubadora, deixai me repousar em paz ü'hora, que comigo ganhais pouca vitória.
Impressa tenho n'alma larga história deste passado bem que nunca fora;
ou fora, e não passara; mas já agora em mim não pode haver mais que a memória.
Vivo em lembranças, mouro d'esquecido, de quem sempre devera ser lembrado, se lhe lembrara estado tão contente.
Oh! quem tornar pudera a ser nascido!
Soubera me lograr do bem passado, se conhecer soubera o mal presente.
154 Dos ilustres antigos que deixaram tal nome, que igualou fama à memória, ficou por luz do tempo a larga história dos feitos em que mais se assinalaram.
Se se com cousas destes cotejaram mil vossas, cada üa tão notória, 19 vencera a menor delas a mor glória que eles em tantos anos alcançaram.
A glória sua foi; ninguém lha tome.
Seguindo cada um vários caminhos, estátuas levantando no seu Templo.
Vós, honra portuguesa e dos Coutinhos, ilustre Dom João, com melhor nome a vós encheis de glória e a nós de exemplo.
146 El vaso reluciente y cristalino, de Ángeles agua clara y olorosa, de blancas e da ornado y fresca rosa ligado con cabellos de oro fino;
bien claro parecía el don divino labrado por la mano artificiosa de aquella blanca Ninfa, graciosa más que el rubio lucero matutino.
Nel vaso vuestro cuerpo se afigura, raxado de los blandos miembros bellos, y en el agua vuestra ánima pura;
la seda es la blancura, e los cabellos son las prisiones, y la ligadura con que mi libertad fue asida dellos.
072 Em fermosa Leteia se confia, por onde vaïdade tanta alcança, que, tornada em soberba a confiança, com os deuses celestes competia.
Porque não fosse avante esta ousadia (que nascem muitos erros da tardança), em efeito puseram a vingança, que tamanha doudice merecia.
Mas Oleno, perdido por Leteia, não lhe sofrendo Amor que suportasse castigo duro tanta fermosura, quis padecer em si a pena alheia;
mas, porque a morte Amor não apartasse, ambos tornados são em pedra dura.
149 [À morte de D. António de Noronha]
20 Em flor vos arrancou, de então crecida (Ah! senhor dom António!), a dura sorte, donde fazendo andava o braço forte a fama dos Antigos esquecida.
üa só razão tenho conhecida com que tamanha mágoa se conforte:
que, pois no mundo havia honrada morte, que não podíeis ter mais larga a vida.
Se meus humildes versos podem tanto que co desejo meu se iguale a arte, especial matéria me sereis.
E, celebrado em triste e longo canto, se morrestes nas mãos do fero Marte, na memória das gentes vivereis.
085 Em prisões baixas fui um tempo atado, vergonhoso castigo de meus erros;
inda agora arrojando levo os ferros que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.
Sacrifiquei a vida a meu cuidado, que Amor não quer cordeiros, nem bezerros;
vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
parece me que estava assi ordenado.
Contentei me com pouco, conhecendo que era o contentamento vergonhoso, só por ver que cousa era viver ledo.
Mas minha estrela, que eu já'gora entendo, a Morte cega, e o Caso duvidoso, me fizeram de gostos haver medo.
124 Enquanto Febo os montes acendia do Céu com luminosa claridade, por evitar do ócio a castidade na caça o tempo Délia despendia.
Vénus, que então de furto descendia, por cativar de Anquises a vontade, vendo Diana em tanta honestidade, quase zombando dela, lhe dizia:
-Tu vás com tuas redes na espessura os fugitivos cervos enredando, mas as minhas enredam o sentido.
21 —Melhor é (respondia a deusa pura)
nas redes leves cervos ir tomando que tomar-te a ti nelas teu marido.
001 Enquanto quis Fortuna que tivesse esperança de algum contentamento, o gosto de um suave pensamento me fez que seus efeitos escrevesse.
Porém, temendo Amor que aviso desse minha escritura a algum juízo isento, escureceu-me o engenho co tormento, para que seus enganos não dissesse.
Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos a diversas vontades! Quando lerdes num breve livro casos tão diversos, verdades puras são, e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes, tereis o entendimento de meus versos!
108 Erros meus, má fortuna, amor ardente em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram, que para mim bastava o amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente a grande dor das cousas que passaram, que as magoadas iras me ensinaram a nao querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa que a Fortuna castigasse as minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse que fartasse este meu duro génio de vinganças!
155 Esforço grande, igual ao pensamento;
pensamentos em obras divulgados, e não em peito timido encerrados e desfeitos despois em chuva e vento;
animo da cobiça baixa isento, dino por isso só de altos estados, fero açoute dos nunca bem domados povos do Malabar sanguinolento;
22 gentileza de membros corporais, ornados de pudica continência, obra por certo rara de natura:
estas virtudes e outras muitas mais, dinas todas da homérica eloquência, jazem debaixo desta sepultura 014 Está o lascivo e doce passarinho com o biquinho as penas ordenando;
o verso sem medida, alegre e brando, espedindo no rústico raminho;
o cruel caçador (que do caminho se vem calado e manso desviando)
na pronta vista a seta endireitando, lhe dá no Estígio lago eterno ninho.
Dest' arte o coração, que livre andava, (posto que já de longe destinado)
onde menos temia, foi ferido.
Porque o Frecheiro cego me esperava, para que me tomasse descuidado, em vossos claros olhos escondido.
024 Está se a Primavera trasladando em vossa vista deleitosa e honesta;
nas lindas faces, olhos, boca e testa, boninas, lírios, rosas debuxando.
De sorte, vosso gesto matizando, Natura quanto pode manifesta que o monte, o campo, o rio e a floresta se estão de vós, Senhora, namorando.
Se agora não quereis que quem vos ama possa colher o fruito destas flores, perderão toda a graça vossos olhos.
Porque pouco aproveita, linda Dama, que semeasse Amor em vós amores, se vossa condição produze abrolhos.
125 Este amor que vos tenho, limpo e puro, de pensamento vil nunca tocado, em minha tenra idade começado, tê-lo dentro nesta alma só procuro.
De haver nele mudança estou seguro, 23 sem temer nenhum caso ou duro Fado, nem o supremo bem ou baixo estado, nem o tempo presente nem futuro.
A bonina e a flor asinha passa;
tudo por terra o Inverno e Estio deita, só para meu amor é sempre Maio.
Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa, e que essa ingratidão tudo me enjeita, traz este meu amor sempre em desmaio.
109 Eu cantei já, e agora vou chorando o tempo que cantei tão confiado;
parece que no canto já passado se estavam minhas lágrimas criando.
Cantei; mas se me alguém pergunta: —Quando?
—Não sei; que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado que o passado, por ledo, estou julgando.
Fizeram-me cantar, manhosamente, contentamentos não, mas confianças;
cantava, mas já era ao som dos ferros.
De quem me queixarei, que tudo mente?
Mas eu que culpa ponho às esperanças onde a Fortuna injusta é mais que os erros?
000 Este soneto não foi disponibilizado pela FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional ,
que realizou a edição digital desta obra.
Agradecemos sua compreensão.
111 Eu vivia de lágrimas isento, num engano tão doce e deleitoso que em que outro amante fosse mais ditoso, não valiam mil glórias um tormento.
Vendo-me possuir tal pensamento, de nenhüa riqueza era envejoso;
vivia bem, de nada receoso, com doce amor e doce sentimento.
Cobiçosa, a Fortuna me tirou deste meu tão contente e alegre estado, e passou-me este bem, que nunca fora:
24 em troco do qual bem só me deixou lembranças, que me matam cada hora, trazendo-me à memória o bem passado.
065 O Ferido sem ter cura perecia o forte e duro Télefo temido, por aquele que n'água foi metido, a quem ferro nenhum cortar podia.
Ao Apolíneo Oráculo pedia conselho para ser restituído;
respondeu que tornasse a ser ferido por quem o já ferira, e sararia.
Assi, Senhora, quer minha ventura que, ferido de ver vos, claramente com vos tornar a ver Amor me cura.
Mas é tão doce vossa fermosura, que fico como hidrópico doente, que co beber lhe cresce mor secura.
091 Fermosos olhos que na idade nossa mostrais do Céu certissimos sinais, se quereis conhecer quanto possais, olhai me a mim, que sou feitura vossa.
Vereis que de viver me desapossa aquele riso com que a vida dais;
vereis como de Amor não quero mais, por mais que o tempo corra e o dano possa.
E se dentro nest'alma ver quiserdes, como num claro espelho, ali vereis também a vossa, angélica e serena.
Mas eu cuido que só por não me verdes, ver vos em mim, Senhora, não quereis:
tanto gosto levais de minha pena!
066 Fiou se o coração, de muito isento, de si cuidando mal, que tomaria tão ilícito amor tal ousadia, tal modo nunca visto de tormento.
Mas os olhos pintaram tão a tento outros que visto tem na fantasia, que a razão, temerosa do que via, fugiu, deixando o campo ao pensamento.
Ó Hipólito casto, que, de jeito, de Fedra, tua madrasta, foste amado, que não sabia ter nenhum respeito:
25 em mim vingou o amor teu casto peito;
mas está desse agravo tão vingado, que se arrepende já do que tem feito.
087 Foi já num tempo doce cousa amar, enquanto m'enganava a esperança;
O coração, com esta confiança, todo se desfazia em desejar.
Ó vão, caduco e débil esperar!
Como se desengana üa mudança!
Que, quanto é mor a bem aventurança, tanto menos se crê que há de durar!
Quem já se viu contente e prosperado, vendo se em breve tempo em pena tanta, razão tem de viver bem magoado.
Porém quem tem o mundo exprimentado, não o magoa a pena nem o espanta, que mal se estranhará o costumado.
126 Fortuna em mim guardando seu direito em verde derrubou minha alegria.
Oh! quanto se acabou naquele dia, cuja triste lembrança arde em meu peito!
Quando contemplo tudo, bem suspeito que a tal bem, tal descanso se devia, por não dizer o mundo que podia achar-se em seu engano bem perfeito.
Mas se a Fortuna o fez por descontar-me tamanho gosto, em cujo sentimento a memória não faz senão matar-me , que culpa pode dar-me o sofrimento, se a causa que ele tem de atormentar-me, eu tenho de sofrer o seu tormento?
026 Grão tempo há já que soube da Ventura a vida que me tinha destinada;
que a longa experiência da passada me dava claro indício da futura.
Amor fero, cruel, Fortuna dura, bem tendes vossa força exprimentada:
assolai, destruí, não fique nada;
vingai vos desta vida, qu'inda dura.
26 Soube Amor da Ventura, que a não tinha, e, por que mais sentisse a falta dela, de imagens impossíveis me mantinha.
Mas vós, Senhora, pois que minha estrela não foi milhor, vivei nesta alma minha, que não tem a Fortuna poder nela.
162 Ilustre o dino ramo dos Meneses, aos quais o prudente e largo Céu (que errar não sabe), em dote concedeu rompesse os maométicos arneses;
desprezando a Fortuna e seus reveses, ide para onde o Fado vos moveu;
erguei flamas no Mar alto Eritreu, e sereis nova luz aos Portugueses.
Oprimi com tão firme e forte peito o Pirata insolente, que se espante e trema Taprobana e Gedrosia.
Dai nova causa à cor do Arabo estreito:
assi que o roxo mar, daqui em diante, o seja só co sangue de Turquia!
112 Indo o triste pastor todo embebido na sombra de seu doce pensamento, tais queixas espalhava ao leve vento cum brando suspirar da alma saído:
—A quem me queixarei, cego, perdido, pois nas pedras não acho sentimento?
Com quem falo? A quem digo meu tormento que onde mais chamo, sou menos ouvido?
Oh! bela Ninfa, porque não respondes?
Porque o olhar-me tanto me encareces?
Porque queres que sempre me querele?
Eu quanto mais te vejo, mais te escondes!
Quanto mais mal me vês, mais te endureces!
Assi que co mal cresce a causa dele.
078 Lá a saudosa Aurora destoucava os seus cabelos d'ouro delicados, e as flores, nos campos esmaltados, do cristalino orvalho borrifava;
quando o fermoso gado se espalhava 27 de Sílvio e de Laurente pelos prados;
pastores ambos, e ambos apartados, de quem o mesmo Amor não se apartava.
Com verdadeiras lágrimas, Laurente, —Não sei (dizia) ó Ninfa delicada, porque não morre já quem vive ausente, pois a vida sem ti não presta nada?
Responde Sílvio:—Amor não o consente, que ofende as esperanças da tornada.
127 Já não sinto, Senhora, os desenganas com que minha afeição sempre tratastes, nem ver o galardão que me negastes, merecido por fé, há tantos anos.
A mágoa choro só, só choro os danos de ver por quem, Senhora, me trocastes;
mas em tal caso vós só me vingastes de vossa ingratidão, vossos enganos.
Dobrada glória dá qualquer vingança, que o ofendido toma do culpado, quando se satisfaz com cousa justa;
mas eu de vossos males e esquivança, de que agora me vejo bem vingado, não o quisera eu tanto à vossa custa.
105 Julga-me a gente toda por perdido, vendo-me, tão entregue a meu cuidado, andar sempre dos homens apartado, e dos tratos humanos esquecido.
Mas eu, que tenho o mundo conhecido, e quase que sobre ele ando dobrado, tenho por baixo, rústico, enganado, quem não é com meu mal engrandecido.
Vão revolvendo a terra, o mar e o vento, busquem riquezas, honras a outra gente, vencendo ferro, fogo, frio e calma;
que eu só em humilde estado me contento, de trazer esculpido eternamente vosso fermoso gesto dentro n'alma.
045 Leda serenidade deleitosa, que representa em terra um paraíso;
28 entre rubis e perlas doce riso;
debaixo de ouro e neve, cor-de-rosa;
presença moderada e graciosa, onde ensinando estão despejo e siso que se pode por arte e por aviso, como por natureza, ser fermosa;
fala, de quem a morte e a vida pende, rara, suave; enfim, Senhora, vossa;
repouso, nela, alegre e comedido;
estas as armas são com que me rende e me cativa Amor; mas não que possa despojar me da glória de rendido.
113 Lembranças que lembrais meu bem passado para que sinta mais o mal presente, deixai-me (se quereis) viver contente, não me deixeis morrer em tal estado.
Mas se também de tudo está ordenado viver (como se vê) tão descontente, venha (se vier) o bem por acidente, e dê a morte fim a meu cuidado.
Que muito milhor é perder a vida, perdendo-se as lembranças da memória, pois fazem tanto dano ao pensamento.
Assi que nada perde, quem perdida a esperança traz de sua glória, se esta vida há-de ser sempre em tormento.
015 Lembranças saudosas, se cuidais de me acabar a vida neste estado, não vivo com meu mal tão enganado, que não espere dele muito mais.
De muito longe já me costumais a viver de algum bem desesperado;
já tenho co a Fortuna concertado de sofrer os trabalhos que me dais.
Atado ao remo tenho a paciência, para quantos desgostos der a vida, cuide em quanto quiser o pensamento;
que, pois não há i outra resistência para tão certa queda da caída, aparar-lhe hei debaixo o sofrimento.
29 023 Lindo e sutil trançado, que ficaste em penhor do remédio que mereço, se só contigo, vendo te, endoudeço, que fora cos cabelos que apertaste?
Aquelas tranças d'ouro, que ligaste, que os raios do Sol têm em pouco preço, não sei se para engano do que peço se para me atar, os desataste.
Lindo trançado, em minhas mãos te vejo, e por satisfação de minhas dores como quem não tem outra, hei de tomar te.
E se não for contente meu desejo, dir lhe hei que, nesta regra dos amores, pelo todo também se toma a parte.
084 Males, que contra mim vos conjurastes, quanto há de durar tão duro intento?
Se dura porque dura meu tormento, baste vos quanto já me atormentastes.
Mas se assi perfiais porque cuidastes derrubar meu tão alto pensamento, mais pode a causa dele, em que o sustento, que vós, que dela mesma o ser tomastes.
E, pois vossa tenção, com minha morte, há de acabar o mal destes amores, dai já fim a um tormento tão comprido, porque d'ambos contente seja a sorte:
vós, porque me acabastes, vencedores;
e eu, porque acabei de vós vencido.
128 Memória de meu bem, cortado em flores por ordem de meus tristes e maus Fados, deixai-me descansar com meus cuidados nesta inquietação de meus amores.
Basta-me o mal presente, e os temores dos sucessos que espero infortunados, sem que venham, de novo, bens passados afrontar meu repouso com suas dores.
Perdi nua hora quanto em termos tão vagarosos e largos alcancei;
leixai-me, pois, lembranças desta glória.
Cumpre acabe a vida nestes ermos, porque neles com meu mal acabarei 30 mil vidas, não ua só, dura memória!
092 Mudam se os tempos, mudam se as vontades, muda se o ser, muda se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades, diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança, e do bem (se algum houve), as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto, que já coberto foi de neve fria, e, enfim, converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar se cada dia, outra mudança faz de mor espanto, que não se muda já como soía.
110 Na desesperação já repousava o peito longamente magoado, e, com seu dano eterno concertado, já não temia, já não desejava;
quando üa sombra vã me assegurava que algum bem me podia estar guardado em tão fermosa imagem que o treslado n'alma ficou, que nela se enlevava.
Que crédito que dá tão facilmente o coração áquilo que deseja, quando lhe esquece o fero seu destino!
Oh! deixem-me enganar, que eu sou contente; que, posto que maior meu dano seja, fica-me a glória já do que imagino.
073 Náiades, vós, que os rios habitais que os saudosos campos vão regando, de meus olhos vereis estar manando outros, que quase aos vossos são iguais.
Dríades, vós, que as setas atirais, os fugitivos cervos derrubando, outros olhos vereis que triunfando derrubam corações, que valem mais.
Deixai as aljavas logo, e as águas frias, e vinde, Ninfas minhas, se quereis 31 saber como de uns olhos nascem mágoas;
vereis como se passam em vão os dias;
mas não vireis em vão, que cá achareis nos seus as setas, e nos meus as águas.
077 Na metade do Céu subido ardia o claro, almo Pastor, quando deixavam o verde pasto as cabras, e buscavam a frescura suave da água fria.
Co a folha da árvore sombria, do raio ardente as aves s'emparavam;
o módulo cantar, de que cessavam, só nas roucas cigarras se sentia;
quando Liso pastor, num campo verde Natércia, crua Ninfa, só buscava com mil suspiros tristes que derrama.
Porque te vás de quem por ti se perde, para quem pouco te ama? (suspirava).
[E] o Eco lhe responde: Pouco te ama.
156 Não passes, caminhante! Quem me chama ?
—üa memória nova e nunca ouvida, de um que trocou finita e humana vida, por divina, infinita e clara fama.
Quem é que tão gentil louvor derrama?
—Quem derramar seu sangue não duvida por seguir a bandeira esclarecida de um capitão de Cristo, que mais ama.
Ditoso fim, ditoso sacrificio, que a Deus se fez e ao mundo juntamente, apregoando direi tão alta sorte.
Mais poderás contar a toda a gente, que sempre deu sua vida claro indício de vir a merecer tão santa morte.
129 Na ribeira do Eufrates assentado, discorrendo me achei pela memória aquele breve bem, aquela glória, que em ti, doce Sião, tinha passado.
Da causa de meus males perguntado me foi: Como não cantas a história de teu passado bem, e da vitória que sempre de teu mal hás alcançado?
32 Não sabes, que a quem canta se lhe esquece o mal, inda que grave e rigoroso?
Canta, pois, e não chores dessa sorte.
Respondo com suspiros: Quando crece a muita saudade, o piadoso remédio é não cantar senso a morte.
157 No mundo poucos anos, e cansados, vivi, cheios de vil miséria dura;
foi-me tão cedo a luz do dia escura, que não vi cinco lustros acabados.
Corri terras e mares apartados buscando à vida algum remédio ou cura;
mas aquilo que, enfim, não quer ventura, não o alcançam trabalhos arriscados.
Criou-me Portugal na verde e cara pátria minha Alenquer; mas ar corruto que neste meu terreno vaso tinha, me fez manjar de peixes em ti, bruto mar, que bates na Abássia fera e avara, tão longe da ditosa pátria minha!
046 No mundo quis um tempo que se achasse o bem que por acerto ou sorte vinha;
e, por exprimentar que dita tinha, quis que a Fortuna em mim se exprimentasse.
Mas, por que meu destino me mostrasse que nem ter esperanças me convinha, nunca nesta tão longa vida minha cousa me deixou ver que desejasse.
Mudando andei costume, terra e estado, por ver se se mudava a sorte dura;
a vida pus nas mãos de um leve lenho.
Mas (segundo o que o Céu me tem mostrado)
já sei que deste meu buscar ventura, achado tenho já, que não a tenho.
099 No tempo que de Amor viver soía, nem sempre andava ao remo ferrolhado;
antes agora livre, agora atado, em várias flamas variamente ardia.
33 Que ardesse num só fogo, não queria O Céu, porque tivesse exprimentado que nem mudar as causas ao cuidado mudança na ventura me faria.
E se algum pouco tempo andava isento, foi como quem co peso descansou, por tornar a cansar com mais alento.
Louvado seja Amor em meu tormento, pois para passatempo seu tomou este meu tão cansado sofrimento!
074 Num bosque que das Ninfas se habitava Sílvia, Ninfa linda, andava um dia;
subida nüa árvore sombria, as amarelas flores apanhava.
Cupido, que ali sempre costumava a vir passar a sesta à sombra fria, num ramo o arco e setas que trazia, antes que adormecesse, pendurava.
A Ninfa, como idóneo tempo vira para tamanha empresa, não dilata, mas com as armas foge ao Moço esquivo.
As setas traz nos olhos, com que tira:
—Ó pastores! fugi, que a todos mata, senão a mim, que de matar me vivo.
022 Num jardim adornado de verdura, a que esmaltam por cima várias flores, entrou um dia a deusa dos amores, com a deusa da caça e da espessura.
Diana tomou logo üa rosa pura, Vénus um roxo lírio, dos milhores;
mas excediam muito às outras flores as violas, na graça e fermosura.
Perguntam a Cupido, que ali estava, qual daquelas três flores tomaria, por mais suave, pura e mais fermosa?
Sorrindo se, o Minino lhe tornava:
todas fermosas são, mas eu queria V i o l 'a n t e s que lírio, nem que rosa.
130 Num tão alto lugar, de tanto preço, 34 este meu pensamento posto vejo, que desfalece nele inda o desejo, vendo quanto por mim o desmereço.
Quando esta tal baixesa em mim conheço, acho que cuidar nele é grão despejo, e que morrer por ele me é sobejo e mor bem para mim, do que mereço.
O mais que natural merecimento de quem me causa um mal tão duro e forte, o faz que vá crecendo de hora em hora.
Mas eu não deixarei meu pensamento, porque inda que este mal me causa a morte, Un bel morir tutta la vita onora.
106 O céu, a terra, o vento sossegado...
As ondas, que se estendem pela areia...
Os peixes, que no mar o sono enfreia...
O nocturno silêncio repousado...
O pescador Aónio, que, deitado onde co vento a água se meneia, chorando, o nome amado em vão nomeia, que não pode ser mais que nomeado:
Ondas (dezia), antes que Amor me mate, torna-me a minha Ninfa, que tão cedo me fizestes à morte estar sujeita.
Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
move-se brandamente o arvoredo;
leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
*000 Este soneto não foi disponibilizado pela FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional ,
que realizou a edição digital desta obra.
Agradecemos sua compreensão.
025 Oh! como se me alonga, de ano em ano, a peregrinação cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha este meu breve e vão discurso humano!
Vai se gastando a idade e cresce o dano;
perde se me um remédio, que inda tinha;
se por experiência se adivinha, qualquer grande esperança é grande engano.
Corro após este bem que não se alcança;
35 no meio do caminho me falece, mil vezes caio, e perco a confiança.
Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança, se os olhos ergo a ver se inda parece, da vista se me perde, e da esperança 039 O culto divinal se celebrava no templo donde toda a criatura louva o Feitor divino, que a feitura com seu sagrado sangue restaurava.
Ali Amor, que o tempo me aguardava onde a vontade tinha mais segura, nüa celeste e angélica figura a vista da razão me salteava.
Eu, crendo que o lugar me defendia, e seu livre costume não sabendo que nenhum confiado lhe fugia, deixei me cativar; mas já que entendo, Senhora, que por vosso me queria, do tempo que fui livre me arrependo.
131 O dia em que eu nasci, moura e pereça, não o queira jamais o tempo dar, não torne mais ao mundo, e, se tornar, eclipse nesse passo o sol padeça.
luz lhe falte, o sol se [lhe] escureça, mostre o mundo sinais de se acabar, nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, a mãe ao próprio filho não conheça.
as pessoas pasmadas de ignorantes, as lágrimas no rosto, a cor perdida, cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes, que este dia deitou ao mundo a vida mais desgraçada que jamais se viu!
079 O filho de Latona esclarecido, que com seu raio alegra a humana gente, o hórrido Piton, brava serpente, matou, sendo das gentes tão temido.
Feriu com arco, e de arco foi ferido, com ponta aguda d'ouro reluzente;
nas tessálicas praias, docemente, 36 pela Ninfa Peneia andou perdido.
Não lhe pôde valer, para seu dano, ciência, diligências, nem respeito de ser alto, celeste e soberano.
Se este nunca alcançou nem um engano de quem era tão pouco em seu respeito, eu que espero de um ser que é mais que humano?
007 O fogo que na branda cera ardia, vendo o rosto gentil que eu n'alma vejo, se acendeu de outro fogo do desejo, por alcançar a luz que vence o dia.
Como de dous ardores se encendia, da grande impaciência fez despejo, e remetendo com furor sobejo vos foi beijar na parte onde se via.
Ditosa aquela flama, que se atreve [a] apagar seus ardores e tormentos na vista de que o mundo tremer deve.
Namoram se, Senhora, os Elementos de vós, e queima o fogo aquela neve que queima corações e pensamentos.
132 Olhos fermosos, em quem quis Natura mostrar do seu poder altos sinais, se quiserdes saber quanto possais, vede-me a mim, que sou vossa feitura.
Pintada em mim se vê vossa figura, no que eu padeço retratada estais;
que, se eu passo tormentos desiguais, muito mais pode vossa fermosura.
De mim não quero mais que o meu desejo:
ser vosso; e só de ser vosso me arreio, porque o vosso penhor em mim se assele.
!Tão me lembro de mim quando vos vejo, nem do mundo; e não erro, porque creio, que, em lembrar-me de vós, cumpro com ele.
095 Ondados fios d'ouro reluzente, que, agora da mão bela recolhidos, agora sobre as rosas estendidos, fazeis que sua beleza se acrecente;
37 Olhos, que vos moveis tão docemente, em mil divinos raios entendidos, se de cá me levais alma e sentidos, que fora, se de vós não fora ausente?
Honesto riso, que entre a mor fineza de perlas e corais nasce e parece, se n'alma em doces ecos não o ouvisse!
Se imaginando só tanta beleza de si, em nova glória, a alma se esquece, que fará quando a vir? Ah! quem a visse!
047 Oh! quão caro me custa o entender te, molesto Amor, que, só por alcançar te, de dor em dor me tens trazido a parte onde em ti ódio e ira se converte!
Cuidei que para em tudo conhecer te, me não faltasse experiência e arte;
agora vejo n'alma acrecentar te aquilo que era causa de perder te.
Estavas tão secreto no meu peito que eu mesmo, que te tinha, não sabia que me senhoreavas deste jeito.
Descobriste t'agora; e foi por via que teu descobrimento e meu defeito, um me envergonha e outro m'injuria.
067 O raio cristalino s'estendia pelo mundo, da Aurora marchetada, quando Nise, pastora delicada, donde a vida deixava, se partia.
Dos olhos, com que o Sol escurecia, levando a vista em lágrimas banhada, de si, do Fado e Tempo magoada, pondo os olhos no Céu, assi dezia:
—Nasce, sereno Sol, puro e luzente;
resplandece, fermosa e roxa Aurora, qualquer alma alegrando descontente;
que a minha, sabe tu que, desd'agora, jamais na vida a podes ver contente, nem tão triste nenhüa outra pastora.
161 Os reinos e os impérios poderosos 38 que em grandeza no mundo mais cresceram, ou por valor de esforço floreceram ou por varões nas letras espantosos.
Teve Grécia Temístocles famosos;
os Cipiões a Roma engrandeceram;
doze pares a França glória deram;
Cides a Espanha, e Laras belicosas.
Ao nosso Portugal (que agora vemos tão diferente de seu ser primeiro), os vossos deram honra e liberdade.
E em vós, grão sucessor e novo herdeiro do braganção estado, há mil extremos iguais ao sangue, e mores que a idade.
064 Os vestidos Elisa revolvia que lh'Eneias deixara por memória:
doces despojos da passada glória, doces, quando seu Fado o consentia.
Entr'eles a fermosa espada via que instrumento foi da triste história;
e, como quem de si tinha a vitória, falando só com ela, assi dezia:
—Fermosa e nova espada, se ficaste só para executares os enganos de quem te quis deixar, em minha vida, Sabe que tu comigo t'enganaste;
que, para me tirar de tantos danos, sobeja me a tristeza da partida.
133 O tempo acaba o ano, o mês e a hora, a força, a arte, a manha, a fortaleza;
o tempo acaba a fama e a riqueza, o tempo o mesmo tempo de si chora.
tempo busca e acaba o onde mora qualquer ingratidão, qualquer dureza;
mas neo pode acabar minha tristeza, enquanto não quiserdes vós, Senhora.
O tempo o claro dia torna escuro, e o mais ledo prazer em choro triste;
o tempo a tempestade em grã bonança.
Mas de abrandar o tempo estou seguro o peito de diamante, onde consiste a pena e o prazer desta esperança.
39 021 Passo por meus trabalhos tão isento de sentimento grande nem pequeno, que só pola vontade com que peno me fica Amor devendo mais tormento.
Mas vai me Amor matando tanto a tento, temperando a triaga co veneno, que do penar a ordem desordeno, porque não mo consente o sofrimento.
Porém, se esta fineza o Amor sente, e pagar me meu mal com mal pretende, torna me com prazer como ao Sol neve.
Mas se me vês cos males tão contente, faz se avaro da pena, porque entende que quanto mais me paga, mais me deve.
008 Pede o desejo, Dama, que vos veja, não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado, que quem o tem não sabe o que deseja.
Não há cousa a qual natural seja que não queira perpétuo seu estado;
não quer logo o desejo o desejado, porque não falte nunca onde sobeja.
Mas este puro afeito em mim se dana;
que, como a grave pedra tem por arte o centro desejar da natureza, assi o pensamento (pola parte que vai tomar de mim, terreste [e] humana)
foi, Senhora, pedir esta baixeza.
076 Pelos extremos raros que mostrou em saber, Palas, Vénus em fermosa, Diana em casta, Juno em animosa, África, Europa e Asia as adorou.
Aquele saber grande que ajuntou esprito e corpo em liga generosa, esta mundana máquina lustrosa, de só quatro Elementos fabricou.
Mas mor milagre fez a natureza em vós, Senhoras, pondo em cada üa o que por todas quatro repartiu.
A vós seu resplandor deu Sol e Lüa, 40 a vós com viva luz, graça e pureza, Ar, Fogo, Terra e Água vos serviu.
031 Pensamentos, que agora novamente cuidados vãos em mim ressuscitais, dizei me: ainda não vos contentais de terdes, quem vos tem, tão descontente?
Que fantasia é esta, que presente cad'hora ante meus olhos me mostrais?
Com sonhos e com sombras atentais quem nem por sonhos pode ser contente?
Vejo vos, pensamentos, alterados e não quereis, d'esquivos, declarar me que é isto que vos traz tão enleados?
Não me negueis, se andais para negar me;
que, se contra mim estais alevantados, eu vos ajudarei mesmo a matar me.
089 Pois meus olhos não cansam de chorar tristezas, que não cansam de cansar me;
pois não abranda o fogo em que abrasar me pôde quem eu jamais pude abrandar;
não canse o cego Amor de me guiar a parte donde não saiba tornar me;
nem deixe o mundo todo de escutar me, enquanto me a voz fraca não deixar.
E se nos montes, rios, ou em vales, piedade mora, ou dentro mora Amor em feras, aves, plantas, pedras, águas, ouçam a longa história de meus males e curem sua dor com minha dor;
que grandes mágoas podem curar mágoas.
037 Por cima destas águas, forte e firme, irei por onde as sortes ordenaram, pois, por cima de quantas me choraram aqueles claros olhos, pude vir me.
Já chegado era o fim de despedir me, já mil impedimentos se acabaram, quando rios de amor se atravessaram a me impedir o passo de partir me.
Passei os eu com ânimo obstinado, 41 com que a morte forçada e gloriosa faz o vencido já desesperado.
Em que figura, ou gesto desusado, pode já fazer medo a morte irosa, a quem tem a seus pés rendido e atado?
027 Porque quereis, Senhora, que ofereça a vida a tanto mal como padeço?
Se vos nasce do pouco que mereço, bem por nascer está quem vos mereça.
Sabei que, enfim, por muito que vos peça, que posso merecer quanto vos peço;
que não consente Amor que em baixo preço tão alto pensamento se conheça.
Assi que a paga igual de minhas dores, com nada se restaura, mas deveis ma, por ser capaz de tantos disfavores.
E se o valor de vossos servidores houver de ser igual convosco mesma, vós só convosco mesma andai d'amores.
062 Por sua Ninfa, Céfalo deixava Aurora, que por ele se perdia, posto que dá princípio ao claro dia, posto que as roxas flores imitava.
Ele, que a bela Prócris tanto amava que só por ela tudo enjeitaria, deseja de atentar se lhe acharia tão firme fé como nele achava.
Mudado o trajo, tece o duro engano:
outro se finge, preço põe diante, quebra se a fé mudável, e consente.
Ó engenho sutil para seu dano!
Vede que manhas busca um cego amante para que sempre seja descontente!
134 Posto me tem Fortuna em tal estado, e tanto a seus pés me tem rendido!
Não tenho que perder já, de perdido, não tenho que mudar já, de mudado.
Todo o bem para mim é acabado;
daqui dou o viver já por vivido;
que, aonde o mal é tão conhecido, 42 também o viver mais será escusado.
Se me basta querer, a morte quero, que bem outra esperança não convém, e curarei um mal com outro mal E, pois do bem tão pouco bem espero, já que o mel este só remédio tem, não me culpem em querer remédio tal.
036 Presença bela, angélica figura, em quem, quanto o Céu tinha, nos tem dado;
gesto alegre, de rosas semeado, entre as quais se está rindo a Fermosura;
olhos, onde tem feito tal mistura em cristal branco o preto marchetado, que vemos já no verde delicado não esperança, mas enveja escura;
brandura, aviso e graça, que aumentando a natural beleza cum desprezo, com que, mais desprezada, mais se aumenta;
são as prisões de um coração que, preso, seu mal ao som dos ferros vai cantando, como faz a sereia na tormenta.
147 Pues lágrimas tratáis, mis ojos tristes, y en lágrimas pasáis la noche y día, mirad si es llanto este que os envia aquella por quien vos tantas vertistes Sentid, mis ojos, bien esta que vistes, y si ella lo es, oh gran ventura mia!
por muy bien empleadas las habría mil cuentas que por esta sola distes.
Mas una cosa mucho deseada, aunque se vea cierta, no es creída, cuanto más esta, que me es enviada.
Pero digo que aunque sea fingida, que basta que por lágrima sea dada, porque sea por lágrima tenida.
138 Quando a suprema dor muito me aperta, se digo que desejo esquecimento, é força que se faz ao pensamento, de que a vontade livre desconserta.
43 Assi, de erro tão grave me desperta a luz do bem regido entendimento, que mostra ser engano ou fingimento dizer que em tal descanso mais se acerta.
Porque essa própria imagem, que na mente me representa o bem de que careço, faz-mo de um certo modo ser presente.
Ditosa é, logo, a pena que padeço, pois que da causa dela em mim se sente um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.
117 Quando cuido no tempo que, contente, vi as pérolas, neve, rosa e ouro, como quem vê por sonhos um tesouro, parece tenho tudo aqui presente.
Mas tanto que se passa este acidente, e vejo o quão distante de vós mouro, temo quanto imagino por agouro, porque d'imaginar também me ausente.
Já foram dias em que por ventura vos vi, Senhora (se, assi dizendo, posso co coração seguro estar sem medo);
Agora, em tanto mal não mo assegura a própria fantasia e nojo vosso:
eu não posso entender este segredo!
009 Quando da bela vista e doce riso, tomando estão meus olhos mantimento, tão enlevado sinto o pensamento que me faz ver na terra o Paraíso.
Tanto do bem humano estou diviso, que qualquer outro bem julgo por vento;
assi, que em caso tal, segundo sento, assaz de pouco faz quem perde o siso.
Em vos louvar, Senhora, não me fundo, porque quem vossas cousas claro sente, sentirá que não pode merecê las.
Que de tanta estranheza sois ao mundo, que não é de estranhar, Dama excelente, que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas.
100 44 Quando de minhas mágoas a comprida maginação os olhos me adormece, em sonhos aquela alma me aparece que para mim foi sonho nesta vida.
Lá nüa soïdade, onde estendida a vista pelo campo desfalece, corro par'ela; e ela então parece que mais de mim se alonga, compelida.
Brado: Não me fujais, sombra benina!
Ela (os olhos em mim cum brando pejo, como quem diz que já não pode ser), torna a fugir-me; e eu, gritando: Dina...
antes que diga mene, alardo, e vejo que nem um breve engano posso ter.
018 Quando o Sol encoberto vai mostrando ao mundo a luz quieta e duvidosa, ao longo de üa praia deleitosa, vou na minha inimiga imaginando.
Aqui a vi, os cabelos concertando;
ali, co a mão na face tão fermosa;
aqui, falando alegre, ali cuidosa;
agora estando queda, agora andando.
aqui esteve sentada, ali me viu, erguendo aqueles olhos tão isentos;
aqui movida um pouco, ali segura;
qui se entristeceu, ali se riu;
enfim, nestes cansados pensamentos passo esta vida vã, que sempre dura.
139 Quando, Senhora, quis Amor que amasse essa grã perfeição e gentileza, logo deu por sentença que a crueza em vosso peito amor acrescentasse.
Determinou que nada me apartasse, nem desfavor cruel, nem aspereza;
mas que em minha raríssima firmeza vossa isenção cruel se executasse.
E, pois tendes aqui oferecida e sta alma vossa a vosso sacrifício, acabai de fartar vossa vontade.
Não lhe alargueis, Senhora, mais a vida;
acabará morrendo em seu oficio, sua fé defendendo e lealdade.
45 135 Quando se vir com água o fogo arder, e misturar co dia a noite escura, e a terra se vir naquela altura em que se vem os Céus prevalecer;
o Amor por razão mandado ser, e a todos ser igual nossa ventura, com tal mudança, vossa formosura então a poderei deixar de ver.
Porém não sendo vista esta mudança no mundo (como claro está não ver-se), não se espere de mim deixar de ver-vos.
Que basta estar em vós minha esperança, o ganho de minha alma, e o perder-se, para não deixar nunca de querer-vos.
028 Quando vejo que meu destino ordena que por me exprimentar de vós me aparte, deixando de meu bem tão grande parte que a mesma culpa fica grave pena;
o duro disfavor que me condena, quando pela memória se reparte, endurece os sentidos de tal arte que a dor da ausência fica mais pequena.
Pois como pode ser que na mudança daquilo que mais quero estê tão fora de me não apartar também da vida?
Eu refrearei tão áspera esquivança;
porque mais sentirei partir, Senhora, sem sentir muito a pena da partida.
070 Quantas vezes do fuso s'esquecia Daliana, banhando o lindo seio, tantas vezes de um áspero receio salteado, Laurénio a cor perdia.
Ela, que a Sílvio mais que a si queria, para podê lo ver não tinha meio:
ora, como curara o mal alheio quem o seu mal tão mal curar sabia?
Ele, que viu tão clara esta verdade, com soluços, dezia (que a espessura comovia, de mágoa, a piedade):
46 —Como pode a desordem da Natura fazer tão diferentes na vontade a quem fez tão conformes na ventura?
158 Que levas, cruel Morte?- Um claro dia.
- A que horas o tomaste?- Amanhecendo.
- Entendes o que levas?- Não o entendo.
- Pois quem to faz levar?- Quem o entendia.
Seu corpo quem o goza?- A terra fria.
- Como ficou sua luz?- Anoitecendo.
- Lusitânia que diz?- Fica dizendo:
Enfim, não mereci Dona Maria.
Mataste quem a viu?- Já morto estava.
- Que diz o cru Amor?- Falar não ousa.
- E quem o faz calar?- Minha vontade.
Na corte que ficou?- Saudade brava.
- Que fica lá que ver?- Nenhüa cousa;
mas fica que chorar sua beldade.
107 Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança ainda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais, e se torna, não tornam as idades.
Razão é já, ó anos!, que vos vades, porque estes tão ligeiros que passais, nem todos para um gosto são iguais, nem sempre são conformes as vontades.
Aquilo a que já quis é tão mudado que quase é outra causa: porque os dias têm o primeiro gosto já danado.
Esperanças de novas alegrias não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado, que do contentamento são espias.
102 Quem fosse acompanhando juntamente por esses verdes campos a avezinha que, despois de perder um bem que tinha, não sabe mais que cousa é ser contente!
[E] quem fosse apartando-se da gente, ela, por companheira e por vizinha, me ajudasse a chorar a pena minha, 47 eu a ela o pesar que tanto sente!
Ditosa ave! que, ao menos, se a Natura a seu primeiro bem não dá segundo, dá-lhe o ser triste a seu contentamento.
Mas triste quem de longe quis ventura, que, para respirar, lhe falte o vento, e, para tudo, enfim, lhe falte o mundo!
*000 * Quem jaz no grão sepulcro, que des creve Este soneto não foi disponibilizado pela FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional ,
que realizou a edição digital desta obra.
Agradecemos sua compreensão.
035 Que modo tão sutil da natureza, para fugir ao mundo, e seus enganos, permite que se esconda em tenros anos, debaixo de um burel tanta beleza!
Mas esconder se não pode aquela alteza e gravidade de olhos soberanos, a cujo resplandor entre os humanos resistência não sinto, ou fortaleza.
Quem quer livre ficar de dor e pena, vendo a ou trazendo a na memória, da mesma razão sua se condena.
Porque quem mereceu ver tanta glória, cativo há de ficar; que Amor ordena que de juro tenha ela esta vitória.
010 Quem pode livre ser, gentil Senhora, vendo-vos com juízo sossegado, se o Minino que de olhos é privado, nas mininas dos vossos olhos mora?
Ali manda, ali reina, ali namora, ali vive das gentes venerado;
que o vivo lume e o rosto delicado, imagens são, nas quais o Amor se adora.
Quem vê que em branca neve nascem rosas que fios crespos de ouro vão cercando, se por entre esta luz a vista passa, raios de ouro verá, que as duvidosas almas estão no peito traspassando, assi como um cristal o Sol traspassa...
48 141 Quem presumir, Senhora, de louvar-vos com humano saber, e não divino, ficará de tamanha culpa dino quamanha ficais tendo em contemplar-vos.
Não pretenda ninguém de louvar dar-vos, por mais que raro seja e peregrino:
que vossa fermosura eu imagino que Deus a Ele só quis comparar-vos.
Ditosa esta alma vossa, que quisestes em posse pôr de prenda tão subida, como, Senhora, foi a que me destes.
Melhor a guardarei que a própria vida;
que, pois mercê tamanha me fizestes, de mim será jamais nunca esquecida.
048 Quem quiser ver d'Amor üa excelência onde sua fineza mais se apura, atente onde me põe minha ventura, por ter de minha fé experiência.
Onde lembranças mata a longa ausência, em temeroso mar, em guerra dura, ali a saudade está segura, quando mor risco corre a paciência.
Mas ponha me Fortuna e o duro Fado em nojo, morte, dano e perdição, ou em sublime e próspera ventura;
Ponha me, enfim, em baixo ou alto estado;
que até na dura morte me acharão na língua o nome, n'alma a vista pura.
017 Quem vê, Senhora, claro e manifesto o lindo ser de vossos olhos belos, se não perder a vista só em vê los, já não paga o que deve a vosso gesto.
Este me parecia preço honesto;
mas eu, por de vantagem merecê los, dei mais a vida e alma por querê los, donde já me não fica mais de resto.
Assi que a vida e alma e esperança e tudo quanto tenho, tudo é vosso, e o proveito disso eu só o levo.
Porque é tamanha bem aventurança o dar vos quanto tenho e quanto posso que, quanto mais vos pago, mais vos devo.
49 118 Quem vos levou de mim, saudoso estado, que tanta sem-razão comigo usastes?
Quem foi, por quem tão presto me negastes, esquecido de todo o bem passado?
Trocastes-me um descanso em um cuidado tão duro, tão cruel, qual m'ordenastes;
a fé, que tínheis dado, me negastes, quando mais nela estava confiado.
Vivia sem receio deste mal;
Fortuna, que tem tudo a sua mercê, amor com desamor me revolveu.
Bem sei que neste caso nada val, que quem naceu chorando, justo é que pague com chorar o que perdeu.
140 Que pode já fazer minha ventura que seja para meu contentamento., Ou como fazer devo fundamento de cousa que o não tem, nem é segura?
Que pena pode ser tão certa e dura que possa ser maior que meu tormento?
Ou como receará meu pensamento os males, se com eles mais se apura?
Como quem se costuma de pequeno com peçonha criar por mão ciente, da qual o uso já o tem seguro;
assi de acostumado co veneno, o uso de sofrer meu mal presente me faz não sentir já nada o futuro.
088 Que poderei do mundo já querer, que naquilo em que pus tamanho amor, não vi senão `desgosto e desamor, e morte, enfim, que mais não pode ser!
Pois vida me não farta de viver, pois já sei que não mata grande dor, se cousa há que mágoa dê maior, eu a verei; que tudo posso ver.
A morte, a meu pesar, me assegurou de quanto mal me vinha; já perdi o que perder o medo me ensinou.
50 Na vida desamor somente vi, na morte a grande dor que me ficou:
parece que para isto só nasci!
164 A D. Luís de Ataíde, Vizo-Rei Que vençais no Oriente tantos Reis, que de novo nos deis da Índia o Estado, que escureceis a fama que ganhado tinham os que a ganharam a infiéis;
que do tempo tenhais vencido as leis, que tudo, enfim, vençais co tempo armado, mais é vencer na pátria, desarmado, os monstros e as Quimeras que venceis.
E assi, sobre vencerdes tanto imigo, e por armas fazer que, sem segundo, vosso nome no mundo ouvido seja, o que vos dá mais nome inda no mundo, é vencerdes, Senhor, no Reino amigo, tantas ingratidões, tão grande enveja!
148 Se a Fortuna inquieta e mal olhada, que a justa lei do Céu consigo infama, a vida quieta, que ela mais desama, me concedera, honesta e repousada;
pudera ser que a Musa, alevantada com luz de mais ardente e viva flama.
fizera ao Tejo lá na pátria cama adormecer co som da lira amada.
Porém, pois o destino trabalhoso, que me escurece a Musa fraca e lassa, louvor de tanto preço não sustenta;
a vossa de louvar-me pouco escassa, outro sujeito busque valeroso, tal qual em vós ao mundo se apresenta.
029 Se algü'hora em vós a piedade de tão longo tormento se sentira, não consentira Amor que me partira de vossos olhos, minha saüdade.
Apartei me de vós, mas a vontade, que pelo natural n'alma vos tira, me faz crer que esta ausência é de mentira;
mas inda mal, porém, porque é verdade.
51 Ir me hei, Senhora; e, neste apartamento, tomarão tristes lágrimas vingança nos olhos de quem fostes mantimento.
E assi darei vida a meu tormento;
que, enfim, cá me achará minha lembrança sepultado no vosso esquecimento.
016 Se as penas com que Amor tão mal me trata quiser que tanto tempo viva delas que veja escuro o lume das estrelas em cuja vista o meu se acende e mata;
e se o tempo, que tudo desbarata, secar as frescas rosas sem colhê-las, mostrando a linda cor das tranças belas mudada de ouro fino em bela prata;
vereis, Senhora, então também mudado o pensamento e aspereza vossa, quando não sirva já sua mudança.
Suspirareis então pelo passado, em tempo quando executar-se possa em vosso arrepender minha vingança.
049 [À morte de D. António de Noronha]
Em flor vos arrancou, de então crecida (Ah! senhor dom António!), a dura sorte, donde fazendo andava o braço forte a fama dos Antigos esquecida.
üa só razão tenho conhecida com que tamanha mágoa se conforte:
que, pois no mundo havia honrada morte, que não podíeis ter mais larga a vida.
Se meus humildes versos podem tanto que co desejo meu se iguale a arte, especial matéria me sereis.
E, celebrado em triste e longo canto, se morrestes nas mãos do fero Marte, na memória das gentes vivereis.
142 Se de vosso fermoso e lindo gesto nasceram lindas flores para os olhos, que para o peito são duros abrolhos, em mim se vê mui claro e manifesto:
52 pois vossa fermosura e vulto honesto em os ver, de boninas vi mil molhos;
mas se meu coração tivera antolhos, não vira em vós seu dano o mal funesto.
Um mal visto por bem, um bem tristonho, que me traz elevado o pensamento em mil, porém diversas, fantasias, nas quais eu sempre ando, e sempre sonho;
e vós não cuidais mais que em meu tormento, em que fundais as vossas alegrias.
061 Seguia aquele fogo, que o guiava, Leandro, contra o mar e contra o vento;
as forças lhe faltavam já e o alento, Amor lhas refazia e renovava.
Despois que viu que a alma lhe faltava, não esmorece; mas, no pensamento, (que a língua já não pode) seu intento ao mar que lho cumprisse, encomendava.
Ó mar (dezia o moço só consigo), já te não peço a vida; só queria que a de Hero me salves; não me veja...
Este meu corpo morto, lá o desvia daquela torre. Sê me nisto amigo, pois no meu maior bem me houveste enveja!
055 Sempre a Razão vencida foi de Amor;
mas, porque assi o pedia o coração, quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pode haver maior!
Novo modo de morte, e nova dor!
Estranheza de grande admiração, que perde suas forças a afeição, porque não perca a pena o seu rigor.
Pois nunca houve fraqueza no querer, mas antes muito mais se esforça assim um contrário com outro por vencer.
Mas a Razão, que a luta vence, enfim, não creio que é razão; mas há de ser inclinação que eu tenho contra mim.
143 Sempre, cruel Senhora, receei, medindo vossa grã desconfiança, 53 que desse em desamor vossa tardança, e que me perdesse eu, pois vos amei.
Perca-se, enfim, já tudo o que esperei, pois noutro amor já tendes esperança.
Tão patente será vossa mudança, quanto eu encobri sempre o que vos dei.
Dei-vos a alma, a vida e o sentido;
de tudo o que em mim há vos fiz s enhora. Prometeis e negais o mesmo Amor.
Agora tal estou que, de perdido, não sei por onde vou, mas algü'hora vos dará tal lembrança grande dor.
050 Senhor João Lopes, o meu baixo estado ontem vi posto em grau tão excelente, que vós, que sois enveja a toda a gente, só por mim vos quiséreis ver trocado.
Vi o gesto suave e delicado que já vos fez, contente e descontente, lançar ao vento a voz tão docemente que fez o ar sereno e sossegado.
Vi lhe em poucas palavras dizer, quanto ninguém diria em muitas; eu só, cego, magoado fiquei na doce fala.
Mas mal haja a Fortuna, e o Moço cego!
Um, porque os corações obriga a tanto;
outra, porque os estados desiguala.
119 Senhora já dest'alma, perdoai de um vencido de Amor os desatinos, e sejam vossos olhos tão beninos com este puro amor, que d'alma sai.
A minha pura fé somente olhai, e vede meus extremos se são finos;
e se de algüa pena forem dinos, em mim, Senhora minha, vos vingai.
Não seja a dor que abrasa o triste peito causa por onde pene o coração, que tanto em firme amor vos é sujeito.
Guardai-vos do que alguns, Dama, dirão, que, sendo raro em tudo vosso objeito, possa morar em vós ingratidão.
54 040 Senhora minha, se a Fortuna imiga, que em minha fim com todo o Céu conspira, os olhos meus de ver os vossos tira, porque em mais graves casos me persiga;
comigo levo esta alma, que se obriga, na mor pressa de mar, de fogo, de ira, a dar vos a memória, que suspira, só por fazer convosco eterna liga.
Nest'alma, onde a Fortuna pode pouco, tão viva vos terei, que frio e fome vos não possam tirar, nem vãos perigos.
Antes co som da voz, trémulo e rouco, bradando por vós, só com vosso nome farei fugir os ventos e os imigos.
063 Sentindo se tomada a bela esposa de Céfalo, no crime consentido, para os montes fugia do marido;
e não sei se de astuta, ou vergonhosa.
Porque ele, enfim, sofrendo a dor ciosa, de amor cego e forçoso compelido, após ela se vai como perdido, já perdoando a culpa criminosa.
Deita se aos pés da Ninfa endurecida, que do cioso engano está agravada;
já lhe pede perdão, já pede a vida.
Ó força de afeição desatinada!
Que da culpa contra ele cometida, perdão pedia à parte que é culpada!
034 Se pena por amar vos se merece, quem dela livre está? Ou quem isento?
Que alma, que razão, qu'entendimento, em ver vos se não rende e obedece?
Que mor glória na vida s'oferece que ocupar se em vós o pensamento?
Toda a pena cruel, todo o tormento em ver vos se não sente, mas esquece.
Mas se merece pena quem amando contino vos está, se vos ofende, o mundo matareis, que todo é vosso.
Em mim podeis, Senhora, ir começando, que claro se conhece e bem se entende amar vos quanto devo e quanto posso.
55 053 Se tanta pena tenho merecida em pago de sofrer tantas durezas, provai, Senhora, em mim vossas cruezas, que aqui tendes ua alma oferecida.
Nela experimental, se sois servida, desprezos, disfavores e asperezas;
que mores sofrimentos e firmezas sustentarei na guerra desta vida.
Mas contra vossos olhos quais serão?
Forçado é que tudo se lhe renda;
mas porei por escudo o coração.
Porque em tão dura e áspera contenda, é bem que, pois não acho defensão, com me meter nas lanças me defenda.
030 Sete anos de pastor Jacob servia Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela, e a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia, passava, contentando se com vê la;
porém o pai, usando de cautela, em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos lhe fora assi negada a sua pastora, como se a não tivera merecida;
começa de servir outros sete anos, dizendo: —Mais servira, se não fora para tão longo amor tão curta a vida.
033 Se tomar minha pena em penitência do erro em que caiu o pensamento, não abranda, mas dobra meu tormento, a isto, e a mais, obriga a paciência.
E se üa cor de morto na aparência, um espalhar suspiros vãos ao vento, em vós não faz, Senhora, movimento, fique meu mal em vossa consciência.
E se de qualquer áspera mudança toda a vontade isenta Amor castiga (como eu vi bem no mal que me condena);
56 e se em vós não s'entende haver vingança, será forçado (pois Amor me obriga)
que eu só de vossa culpa pague a pena.
059 Suspiros inflamados, que cantais a tristeza com que eu vivi tão ledo!
Eu mouro e não vos levo, porque hei medo que ao passar do Lete vos percais.
Escritos para sempre já ficais onde vos mostrarão todos co dedo como exemplo de males; que eu concedo que para aviso d'outros estejais.
Em quem, pois, virdes falsas esperanças d'Amor e da Fortuna, cujos danos alguns terão por bem aventuranças, dizei lhe que os servistes muitos anos, e que em Fortuna tudo são mudanças, e que em Amor não há senão enganos.
144 Sustenta meu viver üa esperança derivada de um bem tão desejado que, quando nela estou mais confiado, mor dúvida me põe qualquer mudança.
E quando inda este bem na mor pujança de seus gostos me tem mais enlevado, me atormenta então ver eu que, alcançado será por quem de vós não tem lembrança.
Assi, que nestas redes enlaçado, a penas dou a vida , sustentando üa nova matéria a meu cuidado .
Suspiros d'alma tristes arrancando, dos silvos de ua pedra acompanhado, estou matérias tristes lamentando.
075 Tal mostra dá de si vossa figura, Sibela, clara luz da redondeza, que as forças e o poder da natureza com sua claridade mais apura.
Quem viu üa confiança tão segura, tão singular esmalte da beleza, que não padeça mais, se ter defesa contra vossa gentil vista procura?
57 Eu, pois, por escusar essa esquivança, a razão sujeitei ao pensamento, que, rendida, os sentidos lhe entregaram.
Se vos ofende o meu atrevimento, inda podeis tomar nova vingança nas relíquias da vida, que escaparam.
004 Tanto de meu estado me acho incerto, que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio, o mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio, agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando, num'hora acho mil anos, e é de jeito que em mil anos não posso achar ü'hora.
Se me pergunta alguém porque assi ando, respondo que não sei; porém suspeito que só porque vos vi, minha Senhora.
019 Tempo é já que minha confiança se desça de üa falsa opinião;
mas Amor não se rege por razão;
não posso perder, logo, a esperança.
A vida, si; que üa áspera mudança não deixa viver tanto um coração.
E eu na morte tenho a salvação?
Si, mas quem a deseja não a alcança.
Forçado é logo que eu espere e viva.
Ah! dura lei de Amor, que não consente quietação nüa alma que é cativa!
Se hei de viver, enfim, forçadamente, para que quero a glória fugitiva de üa esperança vã que me atormente?
060 Todo o animal da calma repousava, só Liso o ardor dela não sentia;
que o repouso do fogo em que ardia consistia na Ninfa que buscava.
58 Os montes parecia que abalava o triste som das mágoas que dezia;
mas nada o duro peito comovia, que na vontade d'outrem posto estava.
Cansado já de andar pela espessura, no tronco d'üa faia, por lembrança, escreveu estas palavras de tristeza:
«Nunca ponha ninguém sua esperança em peito feminil, que, de natura, somente em ser mudável tem firmeza».
069 Tomava Daliana por vingança da culpa do pastor que tanto amava, casar com Gil vaqueiro; e em si vingava o erro alheio e pérfida esquivança.
A discrição segura, a confiança, as rosas que seu rosto debuxava, o descontentamento lhas secava, que tudo muda üa áspera mudança.
Gentil planta disposta em seca terra, lindo fruito de dura mão colhido, lembranças d'outro amor, e fé perjura, tornaram verde prado em dura serra;
interesse enganoso, amor fingido, fizeram desditosa a fermosura.
011 Tomou-me vossa vista soberana adonde tinha armas mais à mão, por mostrar que quem busca defensão contra esses belos olhos, que se engana.
Por ficar da vitória mais ufana, deixou-me armar primeiro da Razão;
cuidei de me salvar, mas foi em vão, que contra o Céu não val defensa humana.
Mas porém se vos tinha prometido o vosso alto destino esta vitória, ser-vos tudo bem pouco está sabido.
Que, posto que estivesse apercebido, não levais de vencer-me grande glória:
maior a levo eu de ser vencido.
020 Transforma se o amador na cousa amada, 59 por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar, pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada, que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si sòmente pode descansar, pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia, que, como um acidente em seu sujeito, assi co a alma minha se conforma, está no pensamento como ideia:
[e] o vivo e puro amor de que sou feito, como a matéria simples busca a forma.
090 Um mover d'olhos, brando e piadoso, sem ver de quê; um riso brando e honesto, quase forçado; um doce e humilde gesto, de qualquer alegria duvidoso;
um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
üa pura bondade, manifesto indício da alma, limpo e gracioso;
um encolhido ousar; üa brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento;
esta foi a celeste fermosura da minha Circe, e o mágico veneno que pôde transformar meu pensamento.
145 Vencido está de Amor o mais que pode sujeita a vos servir oferecendo tudo Contente deste bem, ou hora em que se viu mil vezes desejando outra vez renovar Com essa pretensão a causa que me guia tão estranha, tão doce, Jurando não seguir votando só por vós ou ser no vosso amor meu pensamento vencida a vida, instituída, a vosso intento.
louva o momento, tão bem perdida;
a tal ferida, seu perdimento.
está segura nesta empresa, honrosa e alta.
outra ventura, rara firmeza, achado em falta.
60 166 Verdade, Amor, Razão, Merecimento, qualquer alma farão segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte, têm do confuso mundo o regimento.
Efeitos mil revolve o pensamento e nao sa ~e a que causa se reporte;
mas sabe que o que é mais que vida e morte, que não o alcança humano entendimento.
Doctos varões darão razões subidas, mas são experiências mais provadas, e por isso é melhor ter muito visto.
Cousas há i que passam sem ser cridas e cousas cridas há sem ser passadas, mas o melhor de tudo é crer em Cristo.
163 A D. Leonis Pereira Vós, Ninfas da gangética espessura, cantai suavemente, em vez sonora, um grande Capitão, que a roxa Aurora dos filhos defendeu da noite escura.
Ajuntou-se a caterva negra e dura, que na Áurea Quersoneso afouta mora, para lançar do caro ninho fora aqueles que mais podem que a ventura.
Mas um forte Leão, com pouca gente, a multidão tão fera como nécia destruindo castiga e torna fraca.
Pois, ó Ninfas, cantai! que claramente mais do que Leonidas fez em Grécia, o nobre Leonis fez em Malaca.
165 Vós outros, que buscais repouso certo na vida, com diversos exercícios;
a quem, vendo do mundo os benefícios, o regimento seu está encoberto;
dedicai, se quereis, ao desconcerto novas hontas e cegos sacrifícios;
que, por castigo igual de antigos vícios, quer Deus que andem as cousas por acerto.
Não caiu neste modo de castigo quem pôs culpa à Fortuna, quem sòmente crê que acontecimentos há no mundo.
61 A grande experiência é grão perigo;
mas o que a Deus é justo e evidente parece injusto aos homens e profundo.
032 Vós que, d'olhos suaves e serenos, com justa causa a vida cativais, e que os outros cuidados condenais por indevidos, baixos e pequenos;
se ainda do Amor domésticos venenos nunca provastes, quero que saibais que é tanto mais o amor despois que amais, quanto são mais as causas de ser menos.
E não cuide ninguém que algum defeito, quando na cousa amada s'apresenta, possa deminuir o amor perfeito;
antes o dobra mais; e se atormenta, pouco e pouco o desculpa o brando peito;
que Amor com seus contrairos s'acrescenta.
012 Vossos olhos, Senhora, que competem co Sol em fermosura e claridade, enchem os meus de tal suavidade que em lágrimas, de vê-los, se derretem.
Meus sentidos vencidos se sometem assi cegos a tanta majestade;
e da triste prisão, da escuridade, cheios de medo, por fugir remetem.
Mas se nisto me vedes por acerto, o áspero desprezo com que olhais torna a espertar a alma enfraquecida.
Ó gentil cura e estranho desconcerto!
Que fará o favor que vós não dais, quando o vosso desprezo torna a vida?
Texto-base:
CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas de Luís Camões. Direção Literária Dr. Álvaro Júlio da Costa
Pimpão.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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Agradecimentos especiais à Dra. Maria Teresa Perdigão Costa Bettencourt d'Ávila, herdeira do
Dr. Álvaro Júlio da Costa Pimpão (responsável pela direção literária da obra-base), que gentilmente
autorizou-nos a publicação desta obra.
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações
acima sejam mantidas.