Só
A MINHA MAE AO
MEU PAI
Aquele que partiu no brigue Boa Nova E na barca Oliveira, anos depois, voltou ;
Aquele santo (que ê velhinho e já corcova)
Uma vez, uma vez, linda menina amou :
Tempos depois, por uma certa lua-nova, Nasci eu ... O velhinho ainda cá ficou, Mas ela disse : —« Vou, ali adiante, à Cova, António, e volto já ... » E ainda não voltou !
António é vosso. Tomai lá a vossa obra !
« Só» é o poeta-nato, o lua, o santo, a cobra !
Trouxe-o dum ventre : não fiz mais do que o escrever...
Lede-o e vereis surgir do Poente as idas mágoas, Como quem vê o Sol sumir-se, pelas águas, E sobe aos alcantis para o tornar a ver !
Só MEMÓRIA
Ora isto, Senhores, deu-se em Trás-osMontes, Em terras de Borba, com torres e pontes.
Português antigo, do tempo da guerra, Levou-o o Destino pra longe da terra.
Passaram os anos, a Borba voltou, Que linda menina que, um dia, encontrou !
Que linhas fidalgas e que olhos castanhos !
E, um dia, na Igreja correram os banhos.
Mais tarde, debaixo dum signo mofino, Pela lua-nova, nasceu um menino.
Õ mães dos Poetas ! sorrindo em seu quarto, Que são virgens antes e depois do parto !
Num berço de prata, dormia deitado, Três moiras vieram dizer-lhe o seu fado ( E abria o menino seus olhos tão doces ) :
« Serás um Príncipe ! mas antes ... não fosses. »
Sucede, no entanto, que o Outono veio E, um dia, ela resolve ir dar um passeio.
Calçou as sandálias, toucou-se de flores, Vestiu-se de Nossa Senhora das Dores : « Vou ali adiante, à Cova, em berlinda, António, e já volto ...» E não voltou ainda ! Vai o Esposo, vendo que ela não voltava, Vai lá ter com ela, por lá se quedava. Õ homem egrégio ! de estirpe divina, De alma de bronze e coração de menina! Em vão corri mundos, não vos encontrei Por vales que fora, por eles voltei. E assim se criou um anjo, o Diabo, o lua ; Ai corre o seu fado ! a culpa não ê sua ! Sempre é agradável ter um filho Virgílio, Ouvi estes carmes que eu compus no exílio, Ouvi-os vós todos, meus bons Portugueses! Pelo cair das folhas, o melhor dos meses, Mas, tende cautela, não vos faça mal... Que é o livro mais triste que há em Portugal !
António ANTÓNIO
Que noite de Inverno ! Que frio, que frio !
Gelou meu carvão : Mas boto-o à lareira, tal qual pelo Estio, Faz sol de Verão !
Nasci, num reino de Oiro e amores, À beira-mar.
Ó velha Carlota ! tivesse-te ao lado, Contavas-me histórias :
Assim ... desenterro, do Vale do Passado, As minhas memórias.
Sou neto de Navegadores, Heróis, Lobos-d'água, Senhores Da Índia, de Aquém e de Além-Mar I
Moreno coveiro, tocando viola, A rir e a cantar ! Empresta, bom homem, a tua sachola, Eu quero cavar :
E o Vento mia 1 e o Vento mia I
Que irá no Mar!
Erguei-vos, defuntas ! da tumba que alveja Qual Lua, a distância ! Visões enterradas no adro da Igreja Branquinha, da Infância.
Que noite ! ó minha Irmã Maria Acende um círio ã Virgem pia, Pelos que andam no alto Mar.
Lá vem a Carlota que embala uma aurora Nos braços, e diz : «Meu lindo Menino, que Nossa Senhora O faça feliz ! »
Ao Mundo vim em terça-feira Um sino ouvia-se dobrar!
E António crescendo, sãozinho e perfeito, Feliz que vivia ! ( E a Dor, que morava com ele no peito, Com ele crescia ... )
Vim a subir pela ladeira E, numa certa terça-feira, Estive já pra me matar...
Mas foi a uma festa, vestido de anjinho, Que fado cruel ! E a António calhou-lhe levar, coitadinho !
A Esponja do Fel...
Ides gelar, água das fontes Ides gelar !
A tia Delfina, velhinha tão pura, Dormia a meu lado E sempre rezava por minha ventura ...
E sou desgraçado !
Águas do rio! Aguas dos montes!
Cantigas de água pelos montes, Que sois como amas a cantar...
E eu ia às novenas, em tarde de Maio, Pedir ao Senhor : E, ouvindo esses cantos, tremia em desmaio, Mudava de cor !
Passam na rua os estudantes A vadrulhar ...
E a Mãe-Madrinha, do tempo da guerra A mailos Franceses, Quando ia ao confesso, à ermida da serra, Levava-me, às vezes.
Assim como eles era eu dantes ! Meus camaradas! estudantes ! Deixai o Poeta trabalhar.
Santinho como ia, santinho voltava :
Pecados ? Nem um ! E a instâncias do padre dizia ( e chorava ) :
« Não tenho nenhum ...»
Ó Job, coberto de gangrenas, Meu avatar !
Às noites, rezava ( e rezo ainda agora )
Ao pé da lareira. ( A
chuva gemente caía lá fora, Fervia a chaleira ... )
Conservo as mesmas tuas penas, Mais tuas chagas e gangrenas, Que não me farto de coçar !
— Que Deus se amercie das almas do Inferno !
— Amém ! Oxalá ...
E o moço rosnava, transido de inverno :
— Que bom lá está !
E a neve cai, como farinha, Lá desse moinho a moer, no Ar:
O sino da Igreja tocava, à tardinha :
Que tristes seus dobres ! Era a hora em que eu ia provar, à cozinha, O caldo dos Pobres ...
Ó bom Moleiro, cautelinha ! Não desperdices a farinha Que tanto custa a germinar ...
Ó velhas criadas ! na roca fiando, Nos lentos serões :
Corujas piando, Farrusca ladrando Com medo aos ladrões !
Andais, à neve, sem sapatos, Vós que não tendes que calçar!
O Zé do Telhado morara, ali perto :
A triste Viúva A nossa casa ia pedir, era certo, Em noites de chuva ...
Corpos ao léu, vesti meus fatos ! Pés nus ! levai esses sapatos ... Basta-me um par.
Ó feira das uvas ! em tardes de calma ...
( O tempo voou ! ) Pediam-me os Pobres «esmola pela alma Que Deus lhe levou ! »
Quando eu morrer, hirto de mágoa, Deitem-me ao Mar!
E havia-os com gota, e havia-os herpéticos, Mostrando a gangrena ! E mais, e ceguinhos, mas era dos hécticos Que eu tinha mais pena ...
Irei indo de frágua em frágua, Até que, enfim, desfeito em água, Heide fazer parte do Mar !
Chegou uma carta tarjada : a estampilha Bastou-me enxergar ... Coitados daqueles que perdem a filha, Sobre águas do Mar !
| No Panthéon, trágico, o sino Dá meia-noite, devagar :
Ó tardes de Outono, com fontes carpindo Entre erva sedenta ! Os cravos a abrirem, a Lua aspergindo Luar, água benta ...
É o Vítor, outra vez menino, A
compor um alexandrino, Pelos seus dedos a contar!
Ao dar meia-noite no cuco da sala, Batiam : « truz ! truz ! », E o Avô que dormia, quietinho na vala, Entrava, Jesus !
Que olhos tristes tem meu vizinho ! Vême comer e põe-se a ougar :
Nas sachas de Junho, ninguém se batia Com nosso caseiro : Que espanto, pudera ! se da freguesia Ele era o coveiro ...
Sobe ao meu quarto, bom velhinho !
Que eu dou-te um copo deste vinho E
metade do meu jantar.
Morria o mais velho dos nossos criados, Que pena ! que dó ! Pedilhe, tremendo, fizesse recados à alminha da Avó ...
Bairro Latino ! dorme um pouco, Faze, meu Deus, por sossegar !
Ó banzas dos rios, gemendo descantes E
fados do Mundo !
Õ águas falantes ! ó rios andantes, Com eiras no fundo !
Cala-te, Georges 1 estás já rouco !
Deixa-me em paz! Cala-te, louco.
Ó boulevard !
Trepava às figueiras cheiinhas de figos Como astros no céu : E em baixo, aparando-os, erguiam mendigos O roto chapéu ...
Boas almas, vinde ao meu seio!
Espíritos errantes no Ar!
Ó Lua encantada no fundo do poço, Moirinha da Mágoa ! O
balde descia, quimeras de Moço !
Trazia só água ...
Sou médio: evoco-os, noite em meio!
Vós não acreditais, eu sei-o... Deixálo não acreditar.
Meus versos primeiros estão no adro, ainda, Escritos na cal : Cantavam Aquela que é a rosa mais linda Que tem Portugal !
Se eu vos pudesse dar a vista, Ceguinhos que ides a tactear...
A Lua é ceifeira que, às noites, ensaia Bailados na Terra ! Luar é caleiro que, pálido, caia Ermidas da serra ...
Quanto essa sorte me contrista ! Mas ah ! mais vale não ter vista Que um mundo destes ter de olhar ...
O conde da Lixa sabia o Horácio, Tintim por tintim ! E dava-me, à noite, passeando em palácio, Lição de latim.
A Morte, agora, é a minha Ama Que bem que sabe acalentar 1 E entrei para a escola, meu Deus ! quem me dera Nessa hora da Vida ! Usava uma blusa, que linda que era !
E trança comprida ...
À noite, quando estou na cama :
«Nana, nana, que a tua Ama Vem já, não tarda ! foi cavar ...»
Os outros rapazes furtavam os ninhos Com ovos a abrir ; Mas eu mercavalhes os bons passarinhos, Deixava-os fugir ...
Camões ! Ó Poeta do Mar-Bravo !
Vem-me ajudar ...
Os Presos, às grades da triste cadeia, Olhavam-me em face ! E eu ia à pousada do guarda da aldeia Pedir que os soltasse ...
Tenho o nome do teu escravo : Em nome dele e do Mar-Bravo Vem-me ajudar !
E quando um malvado moía a chibata Um filho, ou assim, Corria a seus braços, gritando : «Não bata !
Bata antes em mim ...»
E o Vento geme ! e o Vento geme ! Que irá no Mar !
E quando dobrava na terra algum sino Por velho, ou donzela, A meu Pai rogavam «deixasse o Menino Pegar a uma vela ...»
Lobos-dágua, que ides ao leme Tende cuidado ! a lancha treme. Orçar ! orçar !
Enterros de anjinhos ! Õ dores que trazem Aos tristes casais ! Há doces, há vinho, senhores que fazem Saúdes aos pais ...
Meu velho Cão, meu grande amigo, Porque me estás assim a olhar ?
A Prima doidinha por montes andava, À lua, em vigília ! Olhai-me, Doutores ! há doidos, há lava, Na minha família...
Quando eu choro, choras comigo Meu velho Cão ! és meu amigo ... Tu nunca me hás-de abandonar.
E os anos correram, e os anos cresceram, Com eles cresci : Os sonhos que tinha, meus sonhos ... morreram, Só eu não morri ...
Frades do Monte de Crestelo ! Abri-me as portas! quero entrar .
Fui vendo que as almas não eram no Mundo Singelas e francas : A minha, que o era, ficou num segundo Cheiinha de brancas !
Cortai-me as barbas e o cabelo, Vestime esse hábito singelo ... Deixai-me entrar !
Fiquei pobrezinho, fiquei sem quimeras, Tal qual Pedro Sem, Que teve fragatas, que teve galeras, Que teve e não tem ...
Moço Lusíada ! criança ! Porque estás triste, a meditar 7 Vieram as rugas, nevou-me o cabelo Qual musgo na rocha ... Fiquei para sempre sequinho, amarelo, Que nem uma tocha !
Vês teu pais sem esperança, Que todo alui, à semelhança Dos castelos que ergueste no Ar ?
E a velha Carlota, revendo-me agora Tão pálido, diz : «Meu pobre Menino ! que Nossa Senhora Fez tão infeliz ...»
Paris, I89I.
Lusitânia no Bairro Latino LUSITÂNIA NO BAIRRO LATINO 1 .......................................Só!
Ai do Lusíada, coitado, Que vem de tão longe, coberto de pó, Que não ama, nem é amado, Lúgubre Outono, no mês de Abril !
Que triste foi o seu fado !
Antes fosse pra soldado, Antes fosse prò Brasil ...
Menino e moço, tive uma Torre de leite, Torre sem par !
Oliveiras que davam azeite, Searas que davam linho de fiar, Moinhos de velas, como latinas, Que São Lourenço fazia andar ...
Formosas cabras, ainda pequeninas, E loiras vacas de maternas ancas Que me davam o leite de manhã, Lindo rebanho de ovelhas brancas ;
Meus bibes eram da sua lã.
António era o Pastor desse rebanho :
Com elas ia para os Montes, a pastar.
E tinha pouco mais ou menos seu tamanho, E o pasto delas era o meu jantar ...
E a serra a toalha, o covilhete e a sala.
Passava a noite, passava o dia Naquela doce companhia.
Eram minhas Irmãs e todas puras E só lhes minguava a fala Pra serem perfeitas criaturas ...
E quando na Igreja das Alvas Saudades ( Que era da minha Torre a freguesia )
Batiam as Trindades, Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me, Eu persignava-me, rezava «Ave, Maria ...»
E as doces ovelhinhas imitavam-me.
Menino e moço, tive uma Torre de leite, Torre sem par !
Oliveiras que davam azeite ...
Um dia, os castelos caíram do Ar !
As oliveiras secaram, Morreram as vacas, perdi as ovelhas, Saíram-me os Ladrões, só me deixaram As velas do moinho ... mas rotas e velhas !
Que triste fado ! Antes fosse aleijadinho, Antes doido, antes cego ...
Ai do Lusíada, coitado !
Veio da terra, mailo seu moinho :
Lá, faziam-no andar as águas do Mondego, Hoje, fazem-no andar águas do Sena ...
É negra a sua farinha !
Orai por ele ! tende pena !
Pobre Moleiro da Saudade ...
Ó minha Terra encantada, cheia de sol, Õ campanários, ó Luas-Cheias, Lavadeira que lavas o lençol, Ermidas, sinos das aldeias, Ó ceifeira que segas cantando, Ó moleiro das estradas, Carros de bois, chiando ...
Flores dos campos, beiços de fadas, Poentes de Julho, poentes minerais, Ó choupos, ó luar, ó regas de Verão !
Que é feito de vocês ? Onde estais, onde estais ?
Ó padeirinhas a amassar o pão, Velhinhas na roca a fiar, Cabelo todo em caracóis !
Pescadores a pescar Com a linha cheia de anzóis !
Zumbidos das vespas, ferrões das abelhas, Ó bandeiras ! ó sol ! foguetes ! ó toirada !
Ó boi negro entre as capas vermelhas !
Ó pregões de água fresca e limonada ! Õ romaria do Senhor do Viandante ! Procissões com música e anjinhos ! Srs. Abades de Amarante, Com três ninhadas de sobrinhos !
Onde estais ? onde estais ?
Ó minha capa de estudante, às ventanias !
Cidade triste agasalhada entre choupais !
Ó dobres dos poentes às Ave-Marias !
Ó Cabo do Mundo ! Moreira da Maia !
Estrada de Santiago ! Sete-Estrelo !
Casas dos pobres que o luar, à noite, caia ...
Fortalezas de Lipp ! Ó fosso do Castelo, Amortalhado em perrexil e trepadeiras, Onde se enroscam como esposos as lagartas !
Sr. Governador a podar as roseiras !
Ó Bruxa do Padre, que botas as cartas !
Joaquim da Teresa ! Francisco da Hora !
Que é feito de vós ?
Faláveis aos barcos que andavam, lá fora, Pelo porta-voz ...
Arrabalde ! marítimo da França, Conta-me a história da Fermosa Magalona, E do Senhor de Calais, Mais o naufrágio do vapor Perseverança, Cujos cadáveres ainda vejo à tona...
Ó farolim da Barra, lindo, de bandeiras, Para os vapores a fazer sinais, Verdes, vermelhas, azuis, brancas, estrangeiras, Dicionário magnífico de Cores ! Alvas espumas, espumando a frágua, Ou rebentando à noite, como flores ! Ondas do Mar ! Serras da Estrela de água, Cheias de brigues como pinhais ...
Morenos mareantes, trigueiros pastores !
Onde estais ? onde estais ?
Convento de águas do Mar, ó verde Convento, Cuja Abadessa secular é a Lua E cujo Padre-capelão é o Vento ...
Água salgada desses verdes poços, Que nenhum balde, por maior, escua !
Ó Mar jazigo de paquetes, de ossos, Que o sul, às vezes, arrola à praia :
Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos !
Corpo de Virgem, que ainda veste a saia, Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos !
Noiva cadáver ainda com véu ...
Ossadas ainda com os mesmos fatos !
Cabeça roxa ainda de chapéu !
Pés de defunto que ainda traz sapatos !
Boquinha linda que já não canta...
Bocas abertas que ainda soltam ais ...
Noivos em núpcias, ainda, aos beijos, abraçados !
Corpo intacto, a boiar (talvez alguma Santa ... )
Õ defuntos do Mar ! ó roxos arrolados !
Onde estais ? onde estais ?
Õ Boa Nova, ermida à beira-mar, Única flor, nessa vivalma de areais !
Na cal, meu nome ainda lá deve estar, Ã chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios !
Õ altar da Senhora, coberto de luzes !
Õ poentes da Barra, que fazem desmaios ...
Õ Santana, ao luar, cheia de cruzes !
Ó lugar de Roldão ! vila de Perafita !
Aldeia de Gonçalves ! Mesticosa !
Engenheiros, medindo a estrada com a fita ...
Água fresquinha da Amorosa!
Rebolos pela areia ! Ó praia da Memória !
Onde o Sr. Dom Pedro, Rei-Soldado, Atracou, diz a História, No dia ... não estou lembrado ;
Õ capelinha do Senhor da Areia, Onde o Senhor apareceu a uma velhinha ...
Algas ! farrapos do vestido da Sereia !
Lanchas da Póvoa, que ides à sardinha, Poveiros, que ides para as vinte braças, Sol-pôr, entre pinhais ...
Capelas onde o sol faz mortes, nas vidraças !
Onde estais ?
2 Georges ! anda ver meu país de Marinheiros, O meu país das Naus, de esquadras e de frotas !
Oh as lanchas dos poveiros A saírem a barra, entre ondas e gaivotas !
Que estranho é !
Fincam o remo na água, até que o remo torça, Ã espera da maré, Que não tarda aí, avista-se lá fora !
E quando a onda vem, fincando-o a toda a força, Clamam todas à uma : « Agora ! agôra ! agôra !»
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo ( Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar ... )
Que vista admirável ! Que lindo ! que lindo !
Içam a vela, quando já têm mar :
Dá-lhes o Vento e todas, à porfia, Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas, Rosário de velas, que o vento desfia, A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas :
Senhora Nagonia !
Olha acolá !
Que linda vai com seu erro de ortografia ...
Quem me dera ir lá !
Senhora Daguarda!
(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor ) Parece uma gaivota : aponta-lhe a espingarda O caçador !
Senhora d'ajuda! Ora pro nobis ! Caluda !
Sêmos probes !
Senhor dos ramos Istrela do mar! Cá bamos !
Parecem Nossa Senhora, a andar.
Senhora da Luz!
Parece o Farol...
Maim de Jesus!
É tal qual ela, se lhe dá o sol !
Senhor dos Passos !
Sinhora da Ora !
Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços Parecem ermidas caiadas por fora ...
Senhor dos Navegantes !
Senhor de Matusinhos !
Os mestres ainda são os mesmos dantes : Lá vai o Bernardo da Silva do Mar, A mailos quatro filhinhos, Vascos da Gama, que andam a ensaiar ...
Senhora dos aflitos ! Martir São Sebastião ! Ouvi os nossos gritos ! Deus nos leve pela mão ! Bamos em paz!
Ó lanchas, Deus vos leve pela mão !
Ide em paz !
Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados, O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes, E das vagas, aos ritmos cadenciados, As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes, « As armas e os varões assinalados...»
Lá sai a derradeira !
Ainda agarra as que vão na dianteira ...
Como ela corre ! com que força o Vento a impele :
Bamos com Deus !
Lanchas, ide com Deus ! ide e voltai com Ele Por esse mar de Cristo ...
Adeus ! adeus ! adeus !
3 Georges ! anda ver meu país de romarias E procissões !
Olha essas moças, olha estas Marias !
Caramba ! dá-lhes beliscões !
Os corpos delas, vê ! são ourivesarias, Gula e luxúria dos Manéis !
Têm nas orelhas grossas arrecadas, Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis, Ao pescoço serpentes de cordões, E sobre os seios entre cruzes, como espadas, Além dos seus, mais trinta corações!
Vá ! Georges, faze-te Manei ! viola ao peito, Toca a bailar !
Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito, Que hão-de gostar !
Tira o chapéu, silêncio !
Passa a procissão Estralejam foguetes e morteiros. Lá vem o Pálio e pegam ao cordão Honestos e morenos cavalheiros. Altos, tão altos e enfeitados, os andores, Parecem Torres de David, na amplidão !
Que linda e asseada vem a Senhora das Dores !
Olha o Mordomo, à frente, o Sr. Conde.
Contempla ! Que tristes os Nossos Senhores, Olhos leais fitos no vago ... não sei onde !
Os anjinhos !
Vêm a suar :
Infantes de três anos, coitadinhos !
Mãos invisíveis levam-nos de rastros Que eles mal sabem andar.
Esta que passa é a Noite cheia de astros !
(Assim estava, em certo dia, na Judeia)
Aquele é o Sol! (Que bom o Sol de olhos pintados!)
E aquela outra é a Lua-Cheia !
Seus doces olhos fazem luar ...
Essa, acolá, leva na mão os Dados, Mas perde tudo se vai jogar.
E esta que passa, toda de arminhos, ( Vê ! dentro o povo em êxtase, olha-a a Mãe )
Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos, Criança em flor que ainda os não tem.
E que bonita vai a Esponja de Fel!
Mal ela sabe, a inocentinha, Nas suas mãos, a Esponja deita mel :
Abelhas de oiro tomam-lhe a dianteira.
Lá vem a Lança! A bainha Traz ainda o sangue da Sexta-Feira ...
Passa o último, o Sudário !
O Corpo de Jesus, Nosso Senhor ...
Oh que vermelho extraordinário !
Parece o sol-pôr ...
Que pena faz vê-lo passar em Portugal ! Ai que feridas ! e não cheiram mal...
E a procissão passa. Preia-mar de povo !
Maré-cheia do Oceano Atlântico !
O bom povinho de fato novo, Nas violas de arame soluça, romântico, Fadinhos chorosos da su'alma beata.
Trazem imagens da Função nos seus chapéus.
Poeira opaca. Abafa-se. E, no céu, ferro e oiro, O Sol em glória brilha olímpico, e de prata, Como a velha cabeça aureolada de Deus !
Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro. Passam as chocas, boas mães ! passam capinhas.
Pregões. Laranjas ! Ricas cavaquinhas !
Pão-de-ló de Margaride! Aguinha fresca da Moirama ! Vinho verde a escorrer da vide !
À porta dum casal, um tísico na cama, Olha tudo isto com seus olhos de Outro-Mundo, E uma netinha com um ramo de loireiro Enxota as moscas do moribundo.
Dança de roda mailas moças o coveiro.
Clama um ceguinho :
« Não há maior desgraça nesta vida, que ser ceguinho ! »
Outro moreno, mostra uma perna partida !
Mas fede tanto, coitadinho ...
Este, sem braços, diz «que os deixou na pedreira ...»
E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga, Labareda de cancros em fogueira, Que o sol atiça e que a gangrena apaga, Ó Georges, vê ! que excepcional cravina ...
Que lindos cravos para pôr na botoeira !
Tísicos ! Doidos ! Nus ! Velhos a ler a sina ! Etnas de carne ! Jobes ! Flores ! Lázaros ! Cristos ! Mártires !
Cães ! Dálias de pus ! Olhos-fechados ! Reumáticos !
Anões ! Delíriums-trémens ! Quistos ! Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados, Talvez lá dentro com perfeitos corações : Todos, à uma, mugem roucas ladainhas, Trágicos, uivam « uma esmolinha plas alminhas Das suas obrigações ! » Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho ! E, coitadinhos ! fedem tanto : é de arrasar...
Qu'é dos Pintores do meu país estranho, Onde estão eles que não vêm pintar ?
Paris. 1891-1892.
Entre Douro e Minho PURINHA
O Espírito, a Nuvem, a Sombra, a Quimera, Que ( aonde ainda não sei) neste Mundo me espera ;
Aquela que, um dia, mais leve que a bruma, Toda cheia de véus, como uma Espuma, O Senhor Padre me dará pra mim E a seus pés me dirá, toda corada : Sim !
Há-de ser alta como a Torre de David, Magrinha como um choupo onde se enlaça a vide E seu cabelo em cachos, cachos de uvas, E negro como a capa das viúvas ...
( À maneira o trará das virgens de Belém Que a Nossa Senhora ficava tão bem ! )
E será uma espada a sua mão, E branca como a neve do Marão, E seus dedos serão como punhais, Fusos de prata onde fiarei meus ais !
E os seus seios serão como dois ninhos, E os seus sonhos serão os passarinhos, E será sua boca uma romã, Seus olhos duas Estrelinhas da Manhã !
Seu corpo ligeiro, tão leve, tão leve, Como um sonho, como a neve, Que hei-de supor estar a ver, ao vê-la, Cabrinhas-montesas da serra da Estrela ...
E há-de ser natural como as ervas dos montes E as rolas das serras e as águas das fontes, E há-de ser boa, excepcional, quase divina, Mais pura, mais simples, que moça e menina.
Deus, pela voz dos rouxinóis há-de gabá-la E os rios ao passar hão-de cantá-la.
Seu virgem coração há-de ser tão branquinho, Que não há neste Mundo a que igualá-lo : o linho Que, em roca de cristal, fiava a minha Avó Parecerá de crepe, e a neve ... far-me-á dó, Mais a farinha do moleiro e a violeta, E a Lua para mim será como uma Preta !
Mas em que Pátria, em que Nação é que me espera Esta Torre, esta Lua, esta Quimera ?
Fui ter com minha Fada e disse-lhe : « Madrinha !
Onde haverá na Terra assim uma Rainha ?»
E a minha Fada, com sua vara de encantar, Um reino me apontou, lá baixo, ao pé do mar ...
Meninas, lindas meninas ! Qual de vós é o meu Ideal ? Meninas, lindas meninas Do Reino de Portugal !
E no dia do meu recebimento ! Manhã cedo, com luar ainda no Firmamento, Quando ainda no céu não bole uma asa, A minha Noiva sairá de casa Maila sua Mãe, mailos seus Irmãos.
E há-de sorrir, e hão-de tremer-lhe as mãos ...
E a sua Ama há-de segui-la até à porta, E ficará, coitada ! como morta !
E há-de ser triste vê-la, ao longe, ainda ... olhando, Com o avental seus olhos enxugando ...
E hão-de cercá-la sete Madrinhas, Que hão-de ser sete virgens pobrezinhas, Todas contentes por estrear vestido novo !
E, ao vê-las, suas mães sorrirão dentre o Povo ...
E o povo da freguesia Esperará mais eu, no adro de Santa Iria.
E hão-de mirar-me com seu ar curioso, E hão-de cercar-me, num silêncio respeitoso, E eu hei-de falar-lhes das colheitas, da chuva, E dir-me-ão « que já vai pintando a uva ...»
E animados então ( o Povo é uma criança ! )
Porque o Sr. Doutor lhes deu confiança, «Que Deus o ajude» dirá um, e o Regedor :
«Vá coa Graça de Nosso Senhor !»
E eu hei-de agradecer, sorrir, gostar.
Mas o Anjo, no entanto, não deve tardar...
E dentre o grupo exclamará um Velho, então :
« Já nasce o dia ! » eu olharei... mas não :
É a minha Noiva que parece dia, Luzente como a cal de Santa Iria!
E ao vê-la tão branca, de branco vestida, Ao longe, ao longe, hei-de cuidar ver uma Ermida !
E dirá o Pastor, com espanto tamanho, Que é uma Ovelha que fugiu do seu rebanho !
E o João Maluco dirá que é o Luar de Janeiro !
E o Pescador explicará ao bom Moleiro Que é talqualzinha a sua Lancha pelo Mar !
E o Moleiro dirá que é o seu Moinho a andar !
Que assim já foram as velhinhas cismarão, E as netas, coitadas ! que, um dia, o serão ...
Mas o Anjo assomará, à porta da capela, E eu branco e trémulo hei-de ir ter com ela.
E a Estrela deitar-me-á a bênção dos seus olhos E uma aldeã deitar-lhe-á violetas, aos molhos !
E a Bem-Amada entrar na igreja há-de ...
E há-de casar-nos o Senhor Abade.
E, em seguida, será a nossa boda, E festas haverá, na aldeia toda.
E as mais raparigas do sítio, solteiras, Hão-de bailar bailados sobre as eiras, Com trinta moedas de oiro sobre o peito !
E cantigas dirão a seu respeito.
E a Noiva em glória, perpassando nas janelas, Sorrirá com simplicidade para elas.
E a noite, pouco e pouco, descerá ...
E tudo acabará.
E depois e depois, o Anjo há-de-se ir deitar, E a sua Mãe há-de-a abraçar ... E hão-de chorar !
E a sua alcova deitará sobre o jardim, Onde uma fonte correrá, entre alecrim :
E, ao ouvi-la cantar, deitadinha na cama, O Anjo adormecerá, cuidando que é a sua Ama ...
Mas qual a vila, qual a aldeia, qual a serra Que este Palácio de Ventura encerra ?
Fui ter com minha Fada e disse-lhe : «Madrinha !
Acaso nunca te mentiu tua varinha ?»
E a minha Fada com sua vara de condão Nos ares escreveu com três estrelas : « Não !»
Meninas, lindas meninas ! Qual de vós é o meu Ideal ? Meninas, lindas meninas Do Reino de Portugal !
O nosso Lar !
Minha Madrinha, ajuda-me a sonhar !
Que a nossa casa se erga dentre uma eminência, Que seja tal qual uma residência, Alegre, branca, rústica, por fora.
Que digam : « É o Sr. Abade que ali mora.»
Mas no interior ela há-de ser sombria, Como eu com esta melancolia :
E salas escuras, chorando saudades ...
E velhos os móveis, de antigas idades ...
(E, assim, me iluda e, assim, cuide viver Noutro século em que eu deveria nascer. )
E nas paredes telas de Parentes ...
E janelas abertas sobre os poentes ...
( E a Quimera lerá o seu livro de rezas ... )
E cravos vermelhos por cima das mesas...
E o relógio dará as horas devagar, Como as palpitações de quem se vai finar ...
E, o dia todo, neste claustro e solidão, Passarei a esquecer, ao canto do fogão ;
E a cismar e a cismar sem que me veja alguém Na Dor, na Vida, em Deus, nos mistérios do Além ?
E eu o Astrólogo, o Bruxo, o Aflito, o Médio, Rogarei aos Espíritos remédio E um bom Espírito virá tratar do Doente E há-de fugir com susto a outra gente.
E a Noite descerá, pouco e pouco, no entanto, E a Noite embrulhará o Aflito no seu manto !
Mas a Purinha, então, vindo da rua, Toda de branco surgirá, como uma Lua !
E, ao vê-la, acordarei, meu Deus de França !
E pela mão me levará, como uma criança.
E eu pálido ! e eu tremendo ! e o Anjo pelo caminho, « Não te aflijas ...» dirá, baixinho ...
E, assim, será piedosa para os mais :
E há-de entrar na miséria dos casais, Nos montes mais altos, nos sítios mais ermos, E será a Saúde dos Enfermos !
E, quando pela estrada encontrar um velhinho Todo suado, carregadinho, ( Louvado seja Nosso Senhor ! )
Há-de tirar seu lenço e ir enxugar-lhe o suor !
E às aves, em prisão, abrirá as gaiolas.
E, aos sábados, o dia das esmolas, A Santa descerá ao patamar da escada, (Envolta, sem saber, numa capa estrelada)
Esmolas, distribuindo a este e àquele : e aos ceguinhos E mais aos aleijadinhos, Mais aos que deitam sangue pela boca, Mais aos que vêm cantar, numa rabeca rouca, Amores, Naufrágios e A Nau Catrineta, Mais aos Aflitos que andam no Planeta, Mais às viúvas dos Degredados ...
E tudo seja pelos meus pecados !
E há-de coser ( serão os remendos de flores )
As velas rotas dos pescadores E a luz do seu olhar benzerá essas velas E nunca mais hão-de rasgar-lhas as procelas !
E acenderá os círios ao Senhor, ( Que sejam como ela no talhe e na cor )
Quando houver temporal... e eu virei prà sacada Ver os relâmpagos, ouvir a trovoada !
E nisto só resumir-se-á a sua vida :
Vestir os Nus, aos Pobres dar guarida, Falar à alma que na angústia se consome, Dar de comer a quem tem fome, E, lá, do Alto, Jesus dirá aos Homens : « Vede ... »
Dar de beber a quem tem sede ...
E eu hei-de em minhas obras imitá-la E amá-la como à Virgem e adorá-la.
E a Virgem há-de encher com a mesma paixão As marés-vazas deste pobre coração Que tanto teve e que hoje nada tem, Nem mesmo aquilo que vós tendes, Mãe.
E será a Mamã que me há-de vir criar, Admirável Joaninha d'Arc, Meu novo berço duma Vida nova !
E há-de ir comigo para a mesma cova, Pois que no dia em que eu morrer Veneno tomará numa colher ...
Mas em que sítio, aonde ? aonde é que se esconde Esta Bandeira, esta Índia, este Castelo, aonde ? aonde ?
Fui ter com minha Fada, e disse-lhe : «Madrinha !
Mas pode haver, assim, na Terra uma Purinha ? »
4 E a minha Fada com sua vara de marfim Nos ares escreveu com três estrelas : « Sim ! »
Meninas, lindas meninas ! Qual de vós é o meu Ideal ? Meninas, lindas meninas Do Reino de Portugal !
Paris, I89I.
CANÇÃO DA FELICIDADE
IDEAL DUM PARISIENSE
Felicidade ! Felicidade ! Ai quem ma dera na minha mão ! Não passar nunca da mesma idade, Dos 25, do quarteirão.
Morar, mui simples, nalguma casa Toda caiada, defronte o Mar ; No lume, ao menos, ter uma brasa E uma sardinha pra nela assar ...
Não ter fortuna, não ter dinheiro, Papéis no Banco, nada a render :
Guardar, podendo, num mealheiro Economias prò que vier.
Ir, pelas tardes, até à fonte Ver as pequenas a encher e a rir, E ver entre elas o Zé da Ponte Um pouco torto, quase a cair.
Não ter quimeras, não ter cuidados E
contentar-se com o que é seu, Não ter torturas, não ter pecados, Que, em se morrendo, vai-se prò Céu !
Não ter talento ; suficiente Para na Vida saber andar, E quanto a estudos saber sòmente ( Mas ai sòmente ! ) ler e contar.
Mulher e filhos ! A Mulherzinha Tão loira e alegre, Jesus ! Jesus ! E, em nove meses, vê-la choquinha Como uma pomba, dar outra à luz.
Oh ! grande vida, valha a verdade ! Oh !
grande vida, mas que ilusão !
Felicidade ! Felicidade ! Ai quem ma dera na minha mão !
Paris, I892.
PARA AS RAPARIGAS DE COIMBRA
1 Tristezas têm-nas os montes Tristezas tem-nas o Céu, Tristezas têm-nas as fontes, Tristezas tenho-as eu !
2 Ó choupo magro e velhinho, Corcundinha, todo aos nós, És tal qual meu Avôzinho : Falta-te apenas a voz.
3 Minha capa vos acoite Que é pra vos agasalhar : Se por fora é cor da noite, Por dentro é cor do luar ...
4 Õ sinos de Santa Clara, Por quem dobrais, quem morreu ? Ah, foi-se a mais linda cara Que houve debaixo do céu !
5 A sereia é muito arisca, Pescador, que estás ao sol : Não cai, tolinho, a essa isca... Só pondo uma flor no anzol !
6 A Lua é a hóstia branquinha, Onde está Nosso Senhor : É duma certa farinha Que não apanha bolor.
7 Vou encher a bilha e trago-a Vazia como a levei ! Mondego, qu'é da tua água, Qu'é dos prantos que eu chorei ?
8 No Inverno não tens fadigas, E tens água para leões ! Mondego das raparigas, Estudantes e violões !
9 —É só porque o mundo zomba Que pões luto ? Importa lá ! Antes te vistas de pomba ...
—Pombas pretas também há !
10 Teresinhas ! Ursulinas ! Tardes de novena, adeus ! Os corações às batinas Que diriam ? Sabe-o Deus ...
11 Ó boca dos meus desejos, Onde o padre não pôs sal, São morangos os teus beijos, Melhores que os do Choupal !
12 Manuel no Pio repoisa.
Todas as tardes, lá vou Ver se quer alguma coisa, Perguntar como passou.
13 Agora, são tudo amores À roda de mim, no Cais, E, mal se apanham doutores, Partem e não voltam mais ...
14 Aos olhos da minha fronte Vinde os cântaros encher : Não há, assim, segunda fonte Com duas bicas a correr.
15 Os teus peitos são dois ninhos Muito brancos, muito novos, Meus beijos os passarinhos Mortinhos por porem ovos.
16 Nossa Senhora faz meia Com linha branca de luz : O novelo é a Lua-Cheia, As meias são pra Jesus.
17 Meu violão é um cortiço, Tem por abelhas os sons, Que fabricam, valha-me isso, Fadinhos de mel, tão bons.
18 Ó Fogueiras, ó cantigas, Saudades ! recordações !
Bailai, bailai, raparigas !
Batei, batei, corações !
Coimbra. I890.
CARTA A MANUEL
Manuel, tens razão. Venho tarde. Desculpa.
Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa, Foi Coimbra. Foi esta paisagem triste, triste, A cuja influência a minha alma não resiste.
Queres notícias ? Queres que os meus nervos falem ?
Vá ! dize aos choupos do Mondego que se calem E pede ao Vento que não uive e gema tanto :
Que, enfim, se sofre, abafe as torturas em pranto, Mas que me deixe em paz ! Ah tu não imaginas Quanto isto me faz mal ! Pior que as sabatinas Dos ursos na aula, pior que beatas correrias De velhas magras, galopando Ave-Marias, Pior que um diamante a riscar na vidraça, Pior eu sei lá, Manuel, pior que uma desgraça !
Histeriza-me o Vento, absorve-me a alma toda, Tal a menina pelas vésperas da boda, Atarefada maila ama, a arrumar ...
O Vento afoga o meu espírito num mar Verde, azul, branco, negro, cujos vagalhões São todos feitos de luar, recordações.
à noite, quando estou, aqui, na minha toca, O grande evocador do Vento evoca, evoca O meu doido Verão, este ano passado, ( E a um canto bate, ali, cardíaco, apressado, O tiquetaque do relógio do fogão ... )
Bons tempos, Manuel, esses que já lá vão !
Isto, tu sabes ? faz vontade de chorar.
E, pela noite em claro, eu fico-me a cismar, Triste, ao clarão da lamparina que desmaia, Na existência que tive este Verão na praia, Quando, mal na amplidão vinha arraiando a aurora, Ia por esse mar de Jesus Cristo fora, No barco à vela do moreno Gabriel !
Vejo passar de negro, envoltos em burel, Quantos sonhos, meu Deus ! quantas recordações !
Fantasmas do passado, ofélicas visões, Que, embora estejam lá, no seu país distante, Oiço-as falar na minha alcova de estudante.
Minhas visões ! entrai, entrai, não tenhais medo ! Ó Rio Doce ! túnel de água e de arvoredo ! Por onde Anto vogava em o vagão dum bote ... E, ao sol do meio-dia, os banhos em pelote Quando íamos nadar, à Ponte de Tavares ! Tudo se foi ! Espuma em flocos pelos ares ! Tudo se foi ...
Hoje, mais nada tenho que esta Vida claustral, bacharelática, funesta, Numa cidade assim, cheirando, essa indecente, Por toda a parte, desde a Alta à Baixa, a lente ! E ao pôr do Sol, no Cais, contemplando o Mondego, Honestos bacharéis são postos em sossego E mal a cabra bala aos Ventos os seus ais, « Speech » de quarto de hora em palavras iguais, Os tristes bacharéis recolhem às herdades, Como na sua aldeia, ao baterem Trindades.
Bem me dizias tu, como que adivinhando O que isto para mim seria, Manuel, quando O ano passado, vim contra tua vontade Matricular-me, aí, nessa Universidade :
« Anto não vás ...» dizias tu. Eu, fraco, vim.
Mas, certamente, é natural, não chego ao fim.
Ah quanto fora bem melhor a formatura, Na Escola Livre da Natureza, Mãe pura !
Que óptimas prelecções as prelecções modernas, Cheias de observação e verdades eternas, Que faz diàriamente o Prof. Oceano !
Já tinha dado todo o Coração Humano, Manuel, faltava um ano só para acabar Meu curso de Psicologia com o Mar.
Porque troquei pela Coimbra de avelã Essa Escola sem par, cujo Reitor é Pã ?
Talvez ... preguiça, eu sei ... A cabra é a cotovia :
As aulas lá, começam, mal aponta o dia !
Que tédio o meu, Manuel ! Antes de vir, gostava.
Era a distância, o além, que me impressionava : Tinha o mistério do sol-pôr, duma esperança. Mas, mal cheguei ( que espanto ! eu era uma criança ) Tudo rolou no solo !
A Tasca das Camelas Para mim era um sonho, o céu cheio de estrelas : Nossa Senhora a dar de cear aos estudantes Por 6 e 5 ! Mas ah !
foi-se a Virgem dantes Tia Camela ... só ficou a camelice.
Contudo, em meio desta fútil coimbrice, Que lindas coisas a lendária Coimbra encerra ! Que paisagem lunar que é a mais doce da Terra ! Que extraordinárias e medievas raparigas ! E o rio ? e as fontes ? e as fogueiras ? e as cantigas ? As cantigas ! Que encanto !
Uma diz-te respeito, Manuel, é um sonho, é um beijo, é um amor-perfeito Onde o luar gelou : « Manuel ! tão lindas moças ! Manuel ! tão lindas são ...»
Que pena que não ouças !
O que, ainda mais, nesta Coimbra de salgueiros Me vale, são os meus alegres companheiros De casa. Ao pé deles é sempre meio-dia : Para isso basta entrar o Mário da Anadia. Até a Morte é branca e a Tristeza vermelha E
riem-se os rasgões desta batina velha ! Conheces o Fernando ? a Graça que ele tem ! Dá ainda uns ares de Fr.
Gil de Santarém ... Pálido e loiro, em si toda uma Holanda canta Com algum Portugal ... E o doce Misco ?
Santa Teresa de Jesus vestida de rapaz ... Porque não vens, Manuel, ungir-te desta Paz ?
Vem a Coimbra. Hás-de gostar, sim, meu Amigo.
Vamos ! Dá-me o teu braço e vem daí comigo :
Olha ... São os Gerais, no intervalo das aulas.
Bateu o quarto. Vê ! Vêm saindo das jaulas Os estudantes, sob o olhar pardo dos lentes.
Ao vê-los, quem dirá que são os descendentes Dos Navegantes do século XVI ?
Curvam a espinha, como os áulicos aos Reis !
E magros ! tristes ! de cabeça derreada !
Ah ! como hão-de, amanhã, pegar em uma espada !
— E os Doutores ? — Aí os tens, graves, à porta.
Porque te ris ? Olha-los tanto ... Que te importa ?
Há duas excepções : o mais, são todos um.
Quaresma de Alma, sexta-feira de jejum...
Não quero entanto, meu Manuel, que te vás embora Sem ver aquele amor que a minha alma adora :
Olha, acolá. Gigante, altivo como um cedro, Olhando para mim com ternura : é o meu Pedro Penedo !
Ó Pedro da minh'alma ! meu Amigo ! Que feliz sou, bom velho, em estudar contigo ! Mal diria eu em pequenito, quando a ama Para eu me calar, vinha fazer-me susto à cama, Por ti chamava : Pedro ! e eu sossegava logo, Que eras tu o Papão ! A ama, de olhos em fogo, Imitava-te o andar, que não era bem de homem ... Eu tinha birras ? — Aí vem o Lobisomem ! Dizia ela.
— Bate à porta ! Truz ! truz ! truz ! E tu entravas, Pedro, eu via ! Horror ! Jesus !
Meu velho Pedro ! meu fantasma de criança ! Quero-te bem, tanto que tenho na lembrança, Quando morreres, Pedro ! ( o Pedro nunca morre ) Hei-de pegar em ti, encher de álcool a Torre Com todo o meu esmero e ... zás ! meter-te dentro ! Pedro ! assim ficas enfrascado, ao alto e ao centro, E eternamente, para espanto dos vindoiros :
No rótulo porei : Ali-Bed, Rei dos Moiros.
Mas ... toca a recolher. Dou uma falta : embora !
Saiamos...
Manuel, vamos por aí fora Lavar a alma, furtar beijos, colher flores, Por esses doces, religiosos arredores, Que vistos uma vez, ah ! não se esquecem mais : Torres, Condeixa, Santo António de Olivais, Lorvão, Cernache, Nazaré, Tentúgal, Celas ! Sítios sem par ! onde há paisagens como aquelas ? Santos Lugares, onde jaz meu coração, Cada um é para mim uma recordação ...
Condeixa ?
Vamos ao arraial que, ali, há. — Sol, poeira, tanta gente! — É o mesmo, vamos lá !
Olha ! Estudantes, dando o braço às raparigas, Caras de leite, olhos de luar, tranças de estrigas ; Arrancam-lhes do seio arfando, as violetas, Aos ombros delas põem suas capas pretas :
Que deliciosos estudantes que elas ficam !
Velhos aldeões que tudo vêem, mas não implicam, Porque, em suma, que mal pode fazer um beijo ?
Vêm até nós, sorrindo, aproveitando o ensejo, Com o chapéu na mão, simples e bons e honrados ;
Vêm consultar-nos, porque «somos advogados E sabemos das leis ...» O que devem fazer Aí numa questão, numa questão qualquer De águas com um vizinho : é tal a cheia delas Que estraga as plantações! — Que hão-de fazer ? Bebê-las !
E vão-se, assim, jurando aviar nossos conselhos...
Ai de vós ! ai das vossas águas, pobres velhos !
Tentúgal ?
Que manhã ! E não queres vir ... Pega nas luvas, no chapéu. Vamos partir. É logo ali : quinze quilómetros, é perto. Espera-nos o Toy, extasia-se o Alberto, Pela janela desse Mundo amplo e rasgado ! Que belo dia ! ó Sol, obrigado, obrigado ! Paisagem outonal, alegra-te também ! Hoje, não quero ver ninguém triste, ninguém !
Outono, vá ! melancolia, faze tréguas ! Peço paz, rendo-me !
Haja paz, nestas três léguas ! Choupos, então ? que é isso ?
erguei a fronte, vamos ! Ó verdilhões, ide cantar-lhes sobre os ramos ! Aves por folhas ! animai-os ! animai-os ! Aplicalhe, ó Sol ! uma ducha de raios ! Almas tristes e sós ( não é mais triste a minha )
5 Aqui estais, meu Deus ! desde a aurora à tardinha.
O Vento leva-vos a folha, a pele ; o Vento Leva-vos o orvalho, a água, o presigo, o sustento !
E dobra-vos ao chão, faz-vos tossir, coitados !
Estais aqui, estais prontos, amortalhados.
Fazeis lembrar-me, assim, postos nestes lugares, Uma colónia de tísicos, a ares ...
Não vos verei, talvez, quando voltar ; contudo Ver-vos-ei, lá, um dia, onde se encontra tudo :
A alma dos choupos, como a do Homem, sobe aos Céus Ó choupos, até lá ... Adeus ! adeus ! adeus !
Foi-se a paisagem triste : agora, são colinas ; Vê-se currais, eiras, crianças pequeninas, Bois a pastar ao longe, aves dizendo missa À Natureza e o Sol a semear Justiça ! Vão pela estrada aleijadinhos de muletas ;
Atiro-lhes vinténs : vêm pegar-lhes as netas. Mas o trem voa à desfilada ... — Olá ! arreda ! ( Ia-o apanhando : foi por um fio de seda ... ) E assim neste galope, a charrete rodando, Já de Tentúgal se vai quase aproximando ; São João do Campo já nos fica muito atrás ... Assim, Malhado ! puxa ! Bravo, meu rapaz !
Que estamos quase lá ! mexe-me essas ancas ! Enfim !
Tentúgal toda a rir de casas brancas ! A boa aldeia ! Venho cá todos os meses E contrariado vou de todas essas vezes.
Venho ao convento visitar a linda freira, Nunca lhe falo : talvez, hoje, a vez primeira ...
Vou lá comprar um pastelinho, que eu bem sei Que ele trará dentro um bilhete, isto sonhei :
Assim o pastelinho, ó ventura sonhada !
Tem de recheio o coração da minha Amada.
Abro o envelope ideal. Vamos a ver ... — Traz ? — Não !
Regresso a Coimbra só com o meu coração.
Coimbra, 1888-89-90.
SAUDADE
Saudade, saudade ! palavra tão triste, E ouvi-la faz bem : Meu caro Garrett, tu bem na sentiste, Melhor que ninguém !
Saudades da virgem de ao pé do Mondego, Saudades de tudo : Ouvi-las caindo da boca dum Cego, Dos olhos dum Mudo !
Saudades de Aquela que, cheia de linhas, De agulha e dedal, Eu vejo bordando Galeões e andorinhas No seu enxoval.
Saudades ! e canta, na Torre deu a hora Da sua novena : Olhai-a ! dá ares de Nossa Senhora, Quando era pequena.
Saudades, saudades ! E ouvide que canta ( E sempre a bordar ) Que linda ! «
Quem canta seus males espanta E eu vou-me a cantar ...
«Virgílio é estudante, levou-o o seu fado A terras de França ! Mais leve que espuma, não tenho pecado, Que o diga a balança.
« Separam-me dele cem rios, cem pontes, Mas isso que faz ? Atrás desses montes, ainda há outros montes, E ainda outros, atrás !
« Não tarda que volte por montes e praias, Formado que esteja ; E iremos juntinhos, ah tem-te-não-caias !
Casar-nos à Igreja.
«Virgílio é um anjo, não tem um defeito, É altinho como eu ; Os lábios com lábios, o peito com peito ...
Ah, Virgem do Céu !
« O Amor, ai que enigma ! consolo no Tédio, Estrela do Norte ! O Amor é doença, que tem por remédio Um beijo, ou a Morte.
« Às vezes, eu quero dizer-lhe que o amo, Mas, vou-lho a dizer, Irene não fala ( Irene me chamo )
E fica a tremer ...
«Quando ia ao postigo falar-lhe, tão cedo, ( Tu, Lua, bem viste ) Ai que olhos aqueles ! metiam-me medo ....
E sempre tão triste !
« Perfil de Teresa, velado na capa, Lá passa por mim : Ó noites da Estrada, tardinhas da Lapa, Choupal! e Jardim !
« Cabelos caídos, a cara de cera, Os olhos ao fundo ! E a voz de Virgílio, docinha que ela era, Não é deste Mundo !
« Saudades, saudades ! Que valem as rezas, Que serve pedir ! No altar continuam as velas acesas, Mas ele sem vir !
« Já choupos nasceram, já choupos cresceram, Estou tão crescida ! Já choupos morreram, já outros nasceram ...
Como é curta a Vida !
«Ó rio de amores, que vens da Portela Prò mar do Senhor, Ah vê se na costa se avista uma vela, Se vem o Vapor ...
« Meu santo Mondego, que voas e corres, Não tenhas vagares ! Mondego dos Choupos, Mondego das Torres, Mondego dos Mares !
«Mas ai ! o Mondego ( Senhora da Graça, Sou tão infeliz ! ) Já foi e já volta, lá passa que passa, E nada me diz ... »
Paris, I894.
VIAGENS NA MINHA TERRA
As vezes, passo horas inteiras Olhos fitos nestas braseiras, Sonhando o tempo que lá vai ; E
jornadeio em fantasia Essas jornadas que eu fazia Ao velho Douro, mais meu Pai.
Que pitoresca era a jornada ! Logo, ao subir da madrugada, Prontos os dois para partir : —-Adeus ! adeus ! é curta a ausência, Adeus ! — rodava a diligência Com campainhas a tinir !
E, dia e noite, aurora a aurora, Por essa doida terra fora, Cheia de Cor, de Luz, de Som, Habituado à minha alcova Em tudo eu via coisa nova, Que bom era, meu Deus ! que bom !
Moinhos ao vento ! Eiras ! Solares !
Antepassados ! Rios ! Luares ! Tudo isso eu guardo, aqui ficou : Õ paisagem etérea e doce, Depois do Ventre que me trouxe, A ti devo eu tudo que sou !
No arame oscilante do Fio, Amavam ( era o mês do cio ) Lavandiscas e tentilhões ... Águas do rio vão passando Muito mansinhas, mas, chegando Ao Mar, transformam-se em leões !
Ao sol, fulgura o Oiro dos milhos !
Os lavradores mailos filhos A terra estrumam, e depois Os bois atrelam ao arado E ouve-se além no descampado Num ímpeto aos berros : — Eh ! bois !
E, enquanto a velha mala-posta, A
custo vai subindo a encosta Em mira ao lar dos meus Avós, Os aldeões, de longe, alerta, Olham pasmados, boca aberta ... A gente segue e deixa-os sós.
Que pena faz ver os que ficam !
Pobres, humildes, não implicam, Tiram com respeito o chapéu : Outros, passando a nosso lado Diziam : «
Deus seja louvado ! » « Louvado seja ! » dizia eu.
E, meiga, tombava a tardinha ... No chão, jogando a vermelhinha, Outros vejo a discutir. Carpiam, místicas, as fontes ... Água fria de Trás-os-Montes Que faz sede só de se ouvir !
E, na subida de Novelas, O rubro e gordo Cabanelas Dava-me as guias para a mão : Isso ... queriam os cavalos ! Que eu não podia chicoteálos ... Era uma dor de coração.
Depois, cansados da viagem, Repoisávamos na estalagem ( Que era em Casais, mesmo ao dobrar ... )
Vinha a Sr.
a Ana das Dores « Que hão-de querer os meus Senhores ?
Há pão e carne para assar ...»
Oh ! ingénuas mesas, honradas !
Toalhas brancas, marmeladas, Vinho virgem no copo a rir ...
O cuco da sala, cantando ...
( Mas o Cabanelas, entrando, Vendo a hora : « É preciso partir ». )
Caía a noite. Eu ia fora, Vendo uma estrela que lá mora, No Firmamento português : E ela traça-me o meu fado Serás Poeta e desgraçado ! » Assim se disse, assim se fez.
Meu pobre Infante, em que cismavas, Porque é que os olhos profundavas No céu sem par do teu País ? Ias, talvez, moço troveiro, A cismar num amor primeiro : Por primeiro, logo infeliz ...
E o carro ia aos solavancos. Os passageiros, todos brancos, Ressonavam nos seus gabões : E eu ia alerta, olhando a estrada, Que em certo sítio, na Trovoada, Costumavam sair ladrões.
Ladrões ! Ó sonho ! Ó maravilha !
Fazer parte duma quadrilha, Rondar, à lua, entre pinhais !
Ser Capitão ! trazer pistolas, Mas não roubando, — dando esmolas Dependuradas dos punhais ...
E a mala-posta ia indo, ia indo, O
luar, cada vez mais lindo, Caía em lágrimas, — e, enfim, Tão pontual, às onze e meia, Entrava, soberba, na aldeia Cheia de guizos, tlim, tlim, tlim !
Lá vejo ainda a nossa Casa Toda de lume, cor de brasa, Altiva, entre árvores, tão só ! Lá se abrem os portões gradeados, Lá vêm com velas os criados, Lá vem, sorrindo, a minha Avó.
E então, Jesus ! quantos abraços !
— Qu'é dos teus olhos, dos teus braços, Valha-me Deus ! como ele vem !
E admirada, com as mãos juntas, Toda me enchia de perguntas, Como se eu viesse de Belém !
E os teus estudos, tens-me andado ?
Tomara eu ver-te formado ! Livre de Coimbra, minha flor ! Mas vens tão magro, tão sumido ... Trazes tu no peito escondido, E que eu não saiba, algum amor ?
No entanto entrava no meu quarto : Tudo tão bom, tudo tão farto ! Que leito aquele !
e a água, Jesus ! E os lençóis ! rico cheiro a linho ! — Vá, dorme, que vens cansadinho.
Não adormeças com a luz !
E eu deitava-me, mudo e triste.
( — Reza também o Terço, ouviste ? )
Versos, bailando dentro em mim ...
Não tinha tempo de ir na sala, De novo : — Apaga a luz ! — Que rala !
Descansa, minha Avó, que sim !
Ora, às ocultas, eu trazia, No seio, um livro e lia, lia, Garrett da minha paixão ...
Daí a pouco a mesma reza :
— Não vás dormir de luz acesa, Apaga a luz ! ... ( E eu ainda ... não ! )
E continuava, lendo, lendo ... O dia vinha já rompendo, De novo : — Já dormes, diz ? — Bff ! ... e dormia com a ideia Naquela tia Doroteia, De que fala Júlio Dinis.
Ó Portugal da minha infância, Não sei que é, amo-te a distância, Amo-te mais, quando estou só ... Qual de vós não teve na Vida Uma jornada parecida, Ou assim, como eu, uma Avó ?
Paris, I892.
OS FIGOS PRETOS
— Verdes figueiras soluçantes nos caminhos ! Vós sois odiadas desde os séculos avós : Em vossos galhos nunca as aves fazem ninho, Os Noivos fogem de se amar ao pé de vós !
— Ó verdes figueiras, ó verdes figueiras, Deixai-o falar ! À vossa sombrinha, nas tardes fagueiras, Que bom que é amar !
— O mundo odeia-vos. Ninguém vos quer, vos ama : Os pais transmitem pelo sangue esse ódio aos moços. No sítio onde medrais, há quase sempre lama E debruçais-vos sobre abismos, sobre poços.
— Quando eu for defunta para os esqueletos Ponde uma ao meu lado:
Tristinha, chorando, dará figos pretos... De luto pesado !
— Os aldeões para evitar vosso perfume Sua respiração suspendem, ao passar ...
Com vossa lenha não se acende, à noite, o lume, Os carpinteiros não vos querem aplainar.
— Oh ! cheiro de figos, melhor que o do incenso Que incensa o Senhor !
Pudesse eu, quem dera ! deitá-lo no lenço Para o meu amor ...
— As outras árvores não são vossas amigas ...
Mãos espalmadas, estendidas, suplicantes ;
Com essas folhas, sois como velhas mendigas Numa estrada, pedindo esmola aos caminhantes !
— Mendigas de estrada ! mendigas de estrada 1 cheias de figos ! Os ricos lá passam e não vos dão nada, Vós dais aos mendigos ...
— Ai de ti ! ai de ti ! ó figueiral gemente !
O goivo é mais feliz, todo amarelo, lá.
Ninguém te quer : tua madeira é unicamente Utilizada para as forcas, onde as há ...
— Que más criaturas ! que injustas sois todas !
Que injustas que sois ! Será de figueira meu leito de boda ... ! E os berços, depois.
— Trágicas, nuas, esqueléticas, sem pele, Por trás de vós, a Lua é bem uma caveira ! ...
Ó figos pretos, sois as lágrimas daquele Que, em certo dia, se enforcou numa figueira !
— Também era negro, de negro cegava O
pranto, o rosário, Que, em certa tardinha, desfiava, desfiava, Alguém, no Calvário ...
— E, assim, ao ver no Outono uma figueira nua, Se os figos caem de maduros, pelo chão :
Cuido que é a ossada do Traidor, à luz da Lua, A chorar, a chorar sua alta traição !
— Ó minhas figueiras, ó minhas figueiras, Deixai-o falar ! Oh ! vinde de i ver-nos, a arder nas fogueiras Cantar e bailar ...
•
Coimbra, I889.
05 SINOS
1 Os sinos tocam a noivado, No Ar lavado ! Os sinos tocam, no Ar lavado, A noivado !
Que linda menina que assoma na rua !
Que linda, a andar ! Em êxtase, o Povo comenta « que é a Lua, Que vem a andar ...»
Também, algum dia, o Povo na rua, Quando eu casar, Ao ver minha Noiva, dirá « que é a Lua Que vai casar ...»
2 E o sino toca a baptizado Um outro fado ! E o sino toca um outro fado, A baptizado !
E banham o anjinho na água de neve, Para o lavar, E banham o anjinho na água de neve, Para o sujar.
Õ boa Madrinha, que o enxugas de leve, Tem dó desses gritos ! compreende esses ais : Antes o enxugue a Velha ! antes Deus to leve ! Não sofre mais...
3 Os sinos dobram por anjinho, Lá no Minho ! Os sinos dobram, lá no Minho, Por anjinho !
Que asseada que vai prà cova !
Olhai ! olhai !
Sapatinhos de sola nova, Olhai ! olhai !
Ó ricos sapatos de solinha nova, Bailai ! bailai ! Nas eiras que rodam debaixo da cova...
Bailai ! bailai !
4 O sino toca prà novena, Gratiae plena, E o sino toca, gratiae plena, Prà novena.
Ide, Meninas, à ladainha, Ide rezar ! Pensai nas almas como a minha ...
Ide rezar !
Se, um dia, me deres alguma filhinha, Õ Mãe dos Aflitos ! ela há-de ir, também : Há-de ir às novenas, assim à tardinha, Com sua Mãe ...
5 E o sino chama ao Senhor-fora, A esta hora ! Os sinos clamam, a esta hora, Ao Senhor-fora !
Acendei, Vizinhos, as velas, Alumiai ! Velas de cera nas janelas !
Alumiai !
E Luas e Estrelas também põem velas, A alumiar ! E a alminha, a esta hora, já está entre elas, A alumiar !
6 E os sinos dobram a defuntos, Todos juntos ! E os sinos dobram, todos juntos, A defuntos !
Que triste ver amortalhados !
Senhor ! Senhor ! Que triste ver olhos fechados !
Senhor ! Senhor !
Que pena me fazem os amortalhados, Vestidos de preto, deitados de costas... E de olhos fechados ! e de olhos fechados ! E de mãos postas !
E os sinos dobram a defuntos, Dlim ! dlão ! dlim ! dlom ! E os sinos dobram, todos juntos, Dlom ! dlim ! dlim ! dlom !
Paris, I89I.
Lua-Cheia DA INFLUÊNCIA DA LUA
Outono. O Sol, qual brigue em chamas, morre Nos longes de água ... Ó tardes de novena ! Tardes de sonho em que a poesia escorre E os bardos, a cismar, molham a pena !
Ao longe, os rios de águas prateadas, Por entre os verdes canaviais, esguios, São como estradas líquidas, e as estradas, Ao luar, parecem verdadeiros rios !
Os choupos nus, tremendo, arripiadinhos, O xale pedem a quem vai passando ... E nos seus leitos nupciais, os ninhos, As lavandiscas noivam piando, piando !
O orvalho cai do céu, como um unguento.
Abrem as bocas, aparando-o, os goivos ; E a laranjeira, aos repelões do Vento, Deixa cair por terra a flor dos noivos.
E o orvalho cai ... E, à falta de água, rega O
vale sem fruto, a terra árida e nua ! E o Padre-Oceano, lá de longe, prega O seu Sermão de Lágrimas, à Lua !
A Lua ! Ela não tarda aí, espera ! O mágico poder que ela possui ! Sobre as sementes, sobre o Oceano impera, Sobre as mulheres grávidas influi ...
Ai os meus nervos, quando a Lua é cheia ! Da Arte novas concepções descubro, Todo me aflijo, fazem lá ideia ! Ai a ascensão da Lua, pelo Outubro !
Tardes de Outubro ! ó tardes de novena !
Outono ! Mês de Maio, na lareira ! Tardes ...
Lá vem a Lua, gratiae plena, Do convento dos céus, a eterna freira !
Porto, I886, D. ENGUIÇO
O bom Amigo que vou cantando, Neto de Santos, irmão de Aflitos, Nasceu chorando, nasceu gritando, Nasceu aos gritos ! nasceu aos gritos !
Já pressentia, menino estranho, O que no Mundo cá o esperava, E assim pedia, num dó tamanho, Não no tirassem lá donde estava.
Mas a parteira pouco se importa : — Oh que rabugem ! Ai Credo ! Cruzes ! Esta eu vos juro que não vem morta ... (No altar da Virgem ardem as luzes. )
E foi crescendo. Mas como via Quanto era inútil a sua queixa, Ai caiu nessa melancolia, Que não o deixa, que não o deixa !
O Amor precoce feriu-lhe o peito. Que paixão doida não era a sua ! «Se a vir, dizia, no Mar me deito» E até promessas fazia à Lua ...
Mais tarde, em Coimbra, nalguma ceia Com mais rapazes, no Zé Magrinho, Diante dum copo, duma lampreia, Só debicava, cheirava o vinho.
Não tinha sede, não tinha fome, Nunca dormia, sempre em vigília : Ele é o herdeiro dum grande nome. Assim são todos nessa família.
Ia às batotas ( que mal faz isso ? ) Ver seus amigos se lá estavam, E, mal no viam : « Lá vem o enguiço !» E era verdade, — que não ganhavam ...
Um dia, em Maio, no mês das flores, Chamou-o a Pátria pra tê-lo ao lado : Vieram vê-lo cinco doutores, Não no quiseram para soldado !
Farto de dores com que o matavam, Foi em viagens por esse Mundo : Mas os comboios descarrilavam, Mas os paquetes iam ao fundo !
Saía a salvo nalguma lancha, Que uma onda amiga trazia à praia : Podem prová-lo o canal da Mancha E o Sr. Golfo de la Biscaia ...
Nos seus exames, ou num concurso, Maior que todos, e era vencido ! Assim, tornou-se bisonho e urso, Tinha delírio de perseguido.
Há, por exemplo, querem ouvi-la ? Uma anedota, que é engraçadíssima : Todos os homens de aldeia, ou vila, Querem matálo, Virgem Santíssima !
Mas, como é inútil toda a armadilha Pelos cuidados que sempre toma, Vêm, alta noite, na água da bilha Deitar veneno, tal como em Roma.
Que faz, portanto ? Pobre pequeno ! Pega em três peixes, deita-os no centro, E diz, se bebe : «
Não tem veneno, Porque os peixinhos nadam lá dentro...»
Ingenuidades encantadoras ! Tão bom, tão simples, e dele rio ... Seríeis capazes, minhas Senhoras, De amar um homem deste feitio ?
Tem graça sempre, tem imprevisto : Anda ele agora, na Terra Santa, Pra achar os ossos de Jesus Cristo ... Vede-o, bons Sábios ! tirando a planta.
Olá, Senhoras, que ides na frota, Que ides às Ásias, enquanto eu fico, — Boa viagem ! ... e tomai nota, Dai lá saudades ao compatriota ... Meu pobre Chico ! meu pobre Chico !
Paris, I893.
O MEU CACHIMBO
O meu cachimbo ! Amo-te imenso ! Tu, meu turíbulo sagrado ! Com que, Sr. Abade, incenso A Abadia do meu passado.
Fumo ? E ocorre-me à lembrança Todo esse tempo que lá vai, Quando fumava, ainda criança, Às escondidas de meu Pai.
Vejo passar a minha vida, Como num grande Cosmorama : Homem feito, pálida Ermida, Infante, pela mão da ama.
Por alta noite, às horas mortas, Quando não se ouve pio, ou voz, Fecho os meus livros, fecho as portas Para falar contigo a sós.
7 E a noite perde-se em cavaco, Na Torre de Anto, aonde eu moro !
Ali, metido no buraco, Fumo e, a fumar, às vezes ... choro.
Chorando ( penso e não o digo ) Os olhos fitos neste chão, Que tu és leal, és meu amigo... Os meus Amigos onde estão ?
Não sei. Trá-los-á o « nevoeiro » ... Os três, os íntimos, Aqueles, Estão na Morte, no estrangeiro ... Dos mais não sei, perdi-me deles.
Morreram-me uns. Por esses peço A
Deus, se Ele está de maré : E, às noites, quando eu adormeço, Fantasmas, vêm, pé ante pé ...
Tristes, nostálgicos da cova, Entram.
Sorrio-lhes e falo. Deixam-se estar na minha alcova, Até se ouvir cantar o galo.
Outros, por esses cinco Oceanos, Por esse Mundo erram, talvez : Não me escreveis, há tantos anos ! Que será feito de Vocês ?
Hoje, delícias do abandono ! Vivo na Paz, vivo no limbo : Os meus Amigos são o Outono, O Mar e tu, ó meu Cachimbo !
Ah ! quando for do meu enterro, Quando partir gelado, enfim, Nalgum caixão de mogno e ferro, Quero que vás ao pé de mim.
Santa mulher que me tratares, Quando em teus braços desfaleça, Caso meus olhos não cerrares, Embora ! que isto não te esqueça :
Coloca, sob a travesseira, O meu cachimbo singular E enche-o, solícita Enfermeira, Com Gold-Fly para eu fumar ...
Como passar a noite, Amigo ! No Hotel da Cova sem conforto ? Assim levandote comigo, Esquecer-me-ei de que estou morto...
Coimbra, I889.
BALADA DO CAIXÃO
O meu vizinho é carpinteiro, Algibebe de Dona Morte, Ponteia e cose, o dia inteiro, Fatos de pau de toda a sorte :
Mogno, debruados de veludo, Flandres gentil, pinho do Norte ... Ora eu que trago um sobretudo Que já me vai a aborrecer, Fui-me lá, ontem : ( era Entrudo, Havia imenso que fazer ... )
—Olá, bom homem ! quero um fato, Tem que me sirva ? — Vamos ver ...
Olhou, mexeu na casa toda.
—Eis aqui um e bem barato.
—Está na moda ? — Está na moda.
( Gostei e nem quis apreçá-lo : Muito justinho, pouca roda ... )
—Quando posso mandar buscá-lo ?
— Ao pôr do Sol. Vou dá-lo a ferro :
( Pôs-se o bom homem a aplainá-lo ... )
Ó meus Amigos ! salvo erro, Juro-o pela alma, pelo Céu : Nenhum de vós, ao meu enterro, Irá mais dândi, olhai !
do que eu !
Paris, I89I
FEBRE VERMELHA
Rosas de vinho ! abri o cálice avinhado, Para que em vosso seio o lábio meu se atole : Beber até cair, bêbado, para o lado, Quero beber, beber até o último gole !
Rosas de sangue ! abri o vosso peito, abri-o !
Montanhas alagai ! deixai-as trasbordar ! Às ondas como o Oceano, ou antes como um rio Levando na corrente Ofélias de luar...
Camélias ! entreabri os lábios de Eleonora, Desabrochai, à lua, a ânsia do vosso cálix ! Dáme o teu génio, dá ! ó túlipa de aurora ! E dá-me o teu veneno, ó rubra digitális !
Papoilas ! descerrai essas bocas vermelhas, Apagaime esta sede estonteadora e cruel : Õ favos rubros !
os meus lábios são abelhas, E eu ando a construir meu cortiço de mel.
Rainúnculos ! corai minhas faces de terra !
Que seja sangue o leite e rubins as opalas !
Tal se vêem pelo campo, em seguida a uma guerra, Tintos da mesma cor os corações e as balas !
Chagas de Cristo ! abri as pétalas chagadas, Numa raiva de cor, numa erupção de luz !
Escancarai a boca, às vermelhas risadas, Cancros de Lázaro ! Feridas de Jesus ...
Flores em brasa ! Órgãos da cor ! Tirava Óperas de oiro, pudesse eu, das vossas teclas. Vulcões de Maio ! ungi minha pele de lava ! Dai-me energia, audácia, ó pequeninos Heclas !
Dai-me do vosso sangue, ó flores ! entornai-o Nas veias do meu corpo estragado e sem cor Que vida negra ! Foi escrito, à luz do raio, O triste fado que me deu Nosso Senhor.
Cismo já farto de velar minha alma doente, Não dura um mês sequer, minhas amigas, vede ! Mas, mal vos vejo, então, pulo alegre e contente A uivar, como os leões quando os ataca a sede !
Corto o estrelado Céu, voo através do Espaço, Cruzo o Infinito e vou rolar aos pés de Deus, Como se acaso fosse, em catapultas de aço, Por um Titã de bronze atirado a esses Céus !
Amo o Vermelho. Amo-te, ó hóstia do sol-posto !
Fascina-me o escarlate, os meus tédios estanca : E
apesar disso, ó cruel histeria do Gosto, Miss Charlotte, a flor que eu amo, é branca...
Leça, 1886.
POENTES DE FRANÇA
—O Sol ! ó Sol ! ó Sol ! poente de vinho velho ! Enche meu copo de S. Graal ( deu-mo a balada ... ) Ó Sol de Normandia ! Ocidente vermelho, Tal o circo andaluz depois de uma toirada !
— Vós sois estrangeiros, vós sois estrangeiros, Ó poentes de França ! não vos amo, não !
— Õ Sol, cautela ! já a noite se avizinha, O Padre-Oceano vai, em breve, comungar :
Õ hóstia vesperal de vermelha farinha, Que o bom Moleiro mói, no seu moinho do Ar !
Ó Sol, às Trindades, atrás dos pinheiros, À hora em que passam branquinhos moleiros, Levando farinha pra cozer o pão!
Ó forca do sol-pôr ! ó Inferno de Dante !
Açougue de astros ! ó sabat de feiticeiras !
Ó Sol ensanguentado ! ó cabeça falante, Que o funâmbulo Poente anda a mostrar nas feiras ...
— Que paz pelo Mundo, nessa hora ditosa !
Ó poentes de França ! não vos amo, não!
— Arco-da-velha, a rir risos de sete cores !
Ó Lua na ascensão ! ó Sol! ó Sol! ó Sol !
Cabeça de Iscariote, entre águias e condores !
Ó cabeça de Cristo, impressa no lençol !
Que paz pelo Mundo, nessa hora saudosa Quando fecha a lojinha a Sr.* Rosa, Quando vem das sachas o Sr. João ...
— Ó Sol ! ó Sol ! Titã deste bloco da Terra !
Ó Sol em sangue que ainda pula e arde e cintila ! Ó bala de canhão, tu vens dalguma guerra : Varaste os corações dum exército em fila !
— Ó hora em que as águas rebentam das minas...
Ó poentes de França ! não vos amo, não !
— Ó poente verde-mar ! ó pôr do Sol de azeite !
Õ longes de trovoada ! ó céu dos ventos suis !
Vaca do Ar, a mugir crepúsculos de leite E roxos e cardeais e amarelos e azuis !
Ó hora em que passam moças e meninas Que, em tardes de Maio, vão às Ursulinas, Com rosas nos seios e um livro na mão !
— Ó Sol ! ó Sol ! Trágico, aflito, doido, venho À tua saúde erguer a minha taça ardente !
Meus grandes olhos são dois bêbedos e tenho Delírium-trémens já, Sir Falstaff do Poente !
— Eu amo os poentes, mas sem agonias, Ó poentes de França ! não vos amo, não 1 — Adeus, ó Sol ! chegou a Noite na fragata, À tua porta os Marinheiros vão bater : Lá vejo os astros pôr seus cálices de prata, Na Taverna do Ocaso, a beber, a beber ...
Ó céus tísicos, cuspindo em bacias !
Ó céus como escarros, às Ave-Marías!
Ó poentes de França ! não vos amo, não!
Paris, I89I.
à TOA
O PRIMEIRO HOMEM
Que grande é o Mundo ! E eu só ! Que tortura tamanha !
Ninguém ! Meu pai é o Céu. Minha mãe é a Montanha.
A MONTANHA
Os meus cabelos são os pinheirais sombrios E
veias do meu corpo os azulados Rios.
OS RIOS
Nós somos o suor que o Estio asperge e sua, Nós somos, em Janeiro, a água benta da Lua !
A LUA
Eu sou a bala, no Ar detida, dessa guerra Que teve contra Deus, em seu princípio, a Terra ...
A TERRA
E eu uma das maçãs, entre outras a primeira, Que certa Virgem viu cair duma macieira !
A MACIEIRA
Tantas ainda por cair ! Vinde colhê-las, Abanai a macieira e cairão estrelas !
AS ESTRELAS
No Mar, à noite, reflectimo-nos, a olhar, E
formamos, assim, as Estrelas-do-Mar ...
O MAR
Sou padre. São de água meus Santos Evangelhos :
Acendei meu altar, relâmpagos vermelhos !
OS RELÂMPAGOS
Nós somos (o contrário, embora, seja escrito ) Os fogos-fátuos desta cova do Infinito.
O INFINITO
Sou o mar sem borrasca, onde enfim se descansa.
Aqui, vem desaguar o rio da Esperança...
A ESPERANÇA
Morri, irmãos ! mas lá ficaram minhas vestes, No vosso mundo : dei-as dadas aos ciprestes.
OS CIPRESTES
Para apontar os Céus, como dedos funéreos, Plantaram-nos no pó dos mudos Cemitérios ...
OS CEMITÉRIOS
Porão, beliches, tudo cheio !... Os Céus absortos! Não cabe em Josafat esta leva de mortos !
OS MORTOS
Séculos tombam uns sobre os outros, como blocos, E nós dormindo sempre, eternos dorminhocos !
Porto, 1885.
AO CANTO DO LUME
Novembro. Só ! Meu Deus, que insuportável Mundo !
Ninguém, vivalma ... O que farão os mais ?
Senhor ! a Vida não é um rápido segundo : Que longas estas horas ! Que profundo Spleen o destas noites imortais !
Faz tanto frio. ( Só de a ver, me gela, a cama ... ) Que frio ! Olá, Joseph ! Deita mais carvão ! E quando todo se extinguir na áurea chama, Eu deitarei ( para que serve ? já não ama ) Às cinzas brancas, o meu pobre coração !
Lá fora o Vento como um gato bufa e mia ...
Ó pescadores, vai tão bravo o Mar ! Cautela... Orçai!
Largai a escota! Ave, Maria! Cheia de Graça ... Horror !
Mortos ! E a água tão fria ! .. .
Que triste ver os Mortos a nadar !
Spleen ! Que hei-de eu fazer ? Dormir, não tenho sono, Leva-me a carne a Dor, desgasta-me o perfil. Nada há pior que este sonâmbulo abandono ! Ó meus Castelos-emEspanha ! Ó meu Outono De Alma ! Ó meu cair-das-folhas, em Abril !
A Vida ! Horror ! Ó vós que estais no último alento !
Que felizes, sois prestes a partir ! Ó Morte, quero entrar no teu Recolhimento ! ... Oiço bater. Quem é ?
Ninguém : um rato ... o Vento...
Coitado ! é o Georges, tísico, a tossir ...
Mês de Novembro ! Mês dos tísicos ! Suando Quantos a esta hora, não se estorcem a morrer ! Vê-se os Padres as mãos, contentes, esfregando ... Mês em que a cera dá mais e a botica, e quando Os carpinteiros têm mais obra pra fazer ...
Oiço um apito. O trem que se vai ... Engatar-te Quem me dera o vagão dos sonhos meus ! Lá passa, ao longe.
Adeus ! Quisera acompanhar-te ...
— Boa viagem ! Feliz de quem vai, de quem parte !
Coitado de quem fica ... Adeus ! adeus !
Que ilusão, viajar ! Todo o Planeta é zero.
Por toda a parte é mau o Homem e bom o Céu.
— Américas ! Japão ! Índias ! Calvário ! ... Quero Mas é ir à Ilha orar sobre a cova do Antero E a Águeda beber água do Botaréu ...
Vi a Ilha loira, o Mar ! Pisei terras de Espanha, Países raros, Neves, Areais ; Cantando, ao luar, errei nas ruas da Alemanha, Armei na França minha tenda de campanha ...
E tédio, tédio, tédio e nada mais !
Que hei-de eu fazer ! Calai essas canções imundas, Cervejarias do Quartier ! Rezai, rezai ! Paisagem, onde estás ? Ó luar, águas profundas ! Õ choupos, à tardinha, altivos, mas corcundas, Tal como aspirações irrealizáveis, ai !
Não me tortura mais a Dor. Sou feliz. Creio Em Deus, numa Outra-Vida, além do Ar.
Vendi meus livros, meu Filósofo queimei-o.
Agora, trago uma medalha sobre o seio Com a qual falo, às noites, ao deitar.
( E a chuva cai... ) Meu Deus ! Que insuportável Mundo !
Vivalma ! ( O Vento geme ... ) O que farão os mais ? Senhor ! A
Vida não é um rápido segundo : Que longas horas estas horas !
Que profundo Spleen mortal o destas noites imortais !
Paris. I890-9I.
Lua Quarto-Minguante 05 CAVALEIROS
— Onde vais tu, cavaleiro, Pela noite sem luar ?
Diz o vento viageiro, Ao lado dele a ventar. Não responde o cavaleiro, Que vai absorto a cismar.
— Onde vais tu, torna o Vento, Nesse doido galopar ?
Vais bater a algum convento ? Eu ensino-te a rezar. E a Lua surge, um momento, A Lua, convento do Ar.
— Vais levar uma mensagem, Dá-ma que eu vou-ta entregar :
Irás em meia viagem E eu já de volta hei-de estar. E o cavaleiro, à passagem, Faz as árvores vergar.
— Vais escalar um mosteiro ?
Eu ajudo-to a escalar :
Não há no Mundo pedreiro Que a mim se possa igualar ! Não responde o cavaleiro E o Vento torna a falar :
—Dize, dize ! vais prà guerra Monta em mim, vou-te levar : Não há cavalo na Terra Que tenha tão bom andar ... E os trovões rolam na serra Como vagas a arrolar !
—E as guerras hás-de ganhá-las, Que por ti hei-de velar : Ponho-me à frente das balas Para a força lhes tirar !
E as árvores formam alas Para os guerreiros passar.
— Vais guiar as caravelas Por sobre as águas do Mar ?
Guiarei as tuas velas À feição hei-de assoprar. E os astros vêm às janelas E a Lua vem espreitar ...
— Onde vais na galopada, À tua infância, ao teu Lar ?
Conheço a tua pousada :
Já lá tenho ido ficar. E
vai longe a trovoada, Vai de todo a aliviar.
— Vais ver tua velha Tia, Na roca de oiro a fiar ?
Loiro linho que ela fia, Ajudei-lho eu a secar !
E o luar é a Virgem Maria ... Que lindo vai o luar !
—Vais ver a tua Mãezinha ? Coitada !
vi-a expirar : Tinha a alma tão levezinha, Que voou sem eu lhe tocar !
... E o cavaleiro caminha, Caminha sem se importar !
—Vais ver tua Irmã ? Ao peito Traz um menino a criar :
Ai com que bom, lindo jeito Ela o sabe acalentar ! E o Vento embala no peito Uma nuvem, pra imitar !
— Vais ver teus Irmãos distantes ?
Vejo-os sempre a trabalhar :
Andais pelo Mundo, errantes, A Morte há-de-vos juntar ...
Canaviais, como estudantes, Batem-se em duelo, ao luar !
— Vais ver ( se os tens ) teus Amigos, Que levas para lhes dar ?
Quando a figueira tem figos, Tudo nela é de gabar. Que perfil e olhos antigos, Que nobreza a desse olhar !
— Onde vais tu ? Aonde, aonde ?
Fantasma ! vais-te casar ?
Eu sei da filha dum Conde Que por ti vive a penar ... E o fantasma não responde, Sempre, sempre, sempre a andar.
— Vais à cata da Ventura Que anda os homens a tentar ? ( Ai daquele que a procura Que eu nunca a pude encontrar ! ) Nisto, pára a criatura, Faz seu cavalo estacar :
— Vento, sim ! Espera, espera !
Que estrada devo tomar ?
( É um Menino, é uma quimera E
todo lhe ri o olhar... ) E o Vento com voz austera, Dor, querendo disfarçar :
— Toma todas as estradas, Todas, de aquém e além-Mar :
Serão inúteis jornadas, Nunca lá hás-de chegar ...
Palavras foram facadas Que é vê-lo, todo a sangrar ... E seus cabelos trigueiros Começam de branquear, E olham-se os dois cavaleiros, Quedam-se ambos a cismar. Brilha o oriente entre os pinheiros, Ouvem-se os galos cantar.
— Adeus, adeus ! nasce a aurora, Adeus ! vamos trabalhar !
Adeus, adeus ! vou-me embora, Chamam-me as velas, no Mar.
E o Vento vai por i fora, No seu cavalo, a ventar ...
Paris, I89I.
A VIDA
O grandes olhos outonais ! místicas luzes !
Mais tristes do que o Amor, solenes como as cruzes !
Ó olhos pretos ! olhos pretos ! olhos cor Da capa de Hamlet, das gangrenas do Senhor !
Õ olhos negros como noites, como poços !
Ó fontes de luar, num corpo todo ossos !
Ó puros como o Céu ! ó tristes como levas De degredados !
Ó Quarta-Feira de Trevas !
Vossa luz é maior, que a de três Luas-Cheias Sois vós que alumiais os Presos, nas cadeias, Ó velas do Perdão ! candeias da Desgraça !
Õ grandes olhos outonais, cheios de Graça !
Olhos acesos como altares de novena !
Olhos de génio, aonde o Bardo molha a pena !
Ó carvões que acendeis o lume das velhinhas, Lume dos que no Mar andam botando as linhas ...
Õ farolim da barra a guiar os Navegantes !
Ó pirilampos a alumiar os caminhantes, Mais os que vão na diligência pela serra !
Ó Extrema-Unção final dos que se vão da Terra !
Õ janelas de treva, abertas no teu rosto !
Turíbulos de luar ! Luas-Cheias de Agosto !
Luas de Estio ! Luas negras de veludo !
Ó Luas negras, cujo luar é tudo, tudo Quanto há de branco : véus de noivas, cal Da ermida, velas do iate, sol de Portugal, Linho de fiar, leite de nossas Mães, mãos juntas Que têm erguidas entre círios, as defuntas !
Consoladores dos Aflitos ! Õ olhos, Portas Do Céu ! Ó olhos sem bulir como águas mortas Olhos ofélicos ! Dois sóis, que dão sombrinha ...
Que são em preto os olhos verdes de Joaninha...
Olhos tranquilos e serenos como pias !
Olhos cristãos a orar, a orar Ave-Marias Cheias de Luz ! Olhos sem par e sem irmãos, Aos quais estendo, toda a hora, as frias mãos !
Estrelas do Pastor ! Olhos silenciosos, E milagrosos, e misericordiosos, Com os teus olhos nunca há noites sem luar, Mesmo no Inverno, com chuva e a relampejar !
Olhos negros ! vós sois duas noites fechadas, Ó olhos negros ! como o céu das trovoadas ...
Mas dize, meu Amor ! ó Dona de olhos tais ! De que te serve ter uns astros sem iguais ? Olha em redor, poisa os teus olhos ! O que vês ? O Tédio, o Tédio, oh sobretudo o Tédio ! O mês Em que estamos, igual ao mês passado e ao que há-de Vir. Ódios, Ambições, faltas de Honra, Vaidade, ( Quase todos a têm, isso é o menos ) o Orgulho Insuportável tal o meu, e o sol de Julho !
Jesus ! Jesus ! quantos doentinhos sem botica !
Quantos lares sem lume e quanta gente rica !
Quanto reis em palácio e quanta alma sem férias !
Quantas torturas ! Quantas Londres de misérias !
Quanta injustiça ! quanta dor ! quantas desgraças !
Quantos suores sem proveito ! quantas taças A trasbordar veneno em espumantes bocas !
Quantos martírios, ai ! quantas cabeças loucas, No manicómio do Planeta ! E as Orfandades !
E os vapores no Mar, doidos, às tempestades !
E os defuntos, meu Deus ! que o Vento traz à praia !
E aquela que não sai por ter usada a saia !
E os que soçobram entre a vaidade e o dever !
E os que têm, amanhã, uma letra a vencer !
Olha essa procissão que passa : um torturado De infinito ! Um rapaz que ama sem ser amado, E para ser feliz fez todos os esforços ...
Olha as insónias duma noite de remorsos, Como dez anos de prisão maior celular !
Olha esse tísico a tossir, à beira-mar ...
Olha o bebé que teve Torre de coral De imensas ilusões, mas que uma águia, afinal, Devorou, pois, ao vê-la ao longe, avermelhada, Cuidou, ingénua ! que era carne ensanguentada !
Quantos são, hoje ! Horror ! A lembrança das datas...
Olha essas rugas que têm certos diplomatas !
Olha esse olhar que têm os homens da Política !
Olha um artista a ler, soluçando, uma crítica ...
Olha esse que não tem talento e o julga ter E aquele outro que o tem ... mas não sabe escrever !
Olha, acolá, tantos Estúpidos, meu Deus !
( Morrendo, diz-se, vão para o Reino dos Céus ... )
Olha um filho a espancar o pai que tem cem anos !
Olha um moço a chorar seus cruéis desenganos !
Olha o nome de Deus, cuspido num jornal !
Olha aquele que habita uma Torre de sal, Muros e andaimes feitos, não de ondas coalhadas, Mas de outras que chorou, de lágrimas salgadas !
Olha um velhinho a carregar com a farinha E o filho no arraial, jogando a vermelhinha !
Olha, lá vai saindo o paquete Dom Gil Com os nossos irmãos que vão para o Brasil...
Olha, acolá, no cais uma mulher como chora Ê o marido, um ladrão, que vai « pla barra fora » !
Olha esta noiva amortalhada, num caixão ...
Jesus ! Jesus ! Jesus ! o que i vai de aflição !
Õ meu Amor ! é para ver tantos abrolhos, Ó flor sem eles ! que tu tens tão lindos olhos ! Ah ! foi para isto que te deu leite a tua ama, Foi para ver, coitada ! essa bola de lama Que pelo Espaço vai, leve como a andorinha, A Terra !
Ó meu Amor ! antes fosses ceguinha ...
Paris, I89I.
ADEUS!
(POR UMA TEMPESTADE NA COSTA DE INGLATERRA)
Adeus ! Eu parto, mas volto, breve, Ã tua casa que deixei lá ! Leva-me o Outono ( não tarda a neve ) Leva-me o Outono ( não tarda a neve ) No meu regresso, que Sol fará !
Adeus ! Na ausência meses são anos, Dias são meses, que aí são ais ; Ah tu tens sonhos, eu tenho enganos, Eu sou sòzinho, tu tens teus Pais.
Adeus ! Nas velas o Vento toca « Aves » e « Paters » de imensa dor. Enquanto rezas, fia na roca Enquanto rezas, fia na roca O linho branco do nosso amor.
Adeus ! Paquete, que vais fugido Com um Poeta lá dentro a orar ! Ai que destino tão parecido, Andar aos ventos, ó Mar ! ó Mar !
Adeus ! Mar, quero que me respondas, Águas tão altas ! dizei, dizei : Quais mais salgadas ? as vossas ondas Quais mais salgadas ? as vossas ondas Ou as que eu choro, que eu chorarei ?
Adeus ! (Que é isto ? treme o Paquete ! )
Fiel me seja teu Coração :
Não que eu fechei-o num aloquete E a chave é de oiro, trago-a na mão !
Adeus ! O Vento soluça e geme, O Mar é negro, mas « lá » é azul ... Francês tão moço, que vais ao leme, Francês tão moço, que vais ao leme, Ah se pudesses voltar ao Sul !
Adeus ! ( Piloto, que nuvens essas Façamos juntos o « plo-sinal ! » ) Menina e Moça, nunca me esqueças, Que eu tenho os olhos em Portugal !
Adeus. Um brigue de pano roto Vede que passa, faz-nos sinais :
Tenha piedade, Sr. Piloto, Tenha piedade, Sr. Piloto, Seja pela alma dos nossos Pais ...
Adeus! «St. Jacques», vai depressinha... Meu Anjo, a esta hora, tu que farás ? O Mar faz medo ( Salve, Rainha ... ) E tu, meu Anjo, tão longe estás !
Adeus ! Tão longe, tão longe a terra ! Longe de tudo, longe de ti ! A trinta milhas, fica a Inglaterra, A trinta milhas, fica a Inglaterra, A uma ( ou menos ) a Morte, ali...
Adeus ! Na hora de me deixares, Já pressentias o meu porvir :
« Meu Deus ! » disseste, mostrando os ares ...
Mas era urgente partir ! partir !
Adeus ! Já faltam os mantimentos, Falta-nos água, falta-nos luz ! Morrer, à lua, sem sacramentos, Morrer, à lua, sem sacramentos, Morrer tão novo, Jesus ! Jesus !
Adeus ! E os dias nascem e morrem ;
Tanta água e falta para beber ! E já puseram ( rumores correm ) Sola de molho para comer.
Adeus ! — Bons dias, meu Comandante, A
nossa sorte ... morrer, talvez ... E o rude velho segue pra diante : E o rude velho segue pra diante : — Morrer, meu Amo, só uma vez !
Adeus ! — Gajeiro ! — boa criança ! Que vais em cima no mastaréu, Vê lá se avistas terras de França ... — Ah nada avisto, só água e céu !
Adeus ! ó Lua, Lua dos Meses, Lua dos Mares, ora por nós ! ... Ó Mar antigo dos Portugueses, Ó Mar antigo dos Portugueses, Ó Mar antigo dos meus Avós !
Adeus ! Ai triste de quem embarca Sem ver a sorte que o espera ao fim ! Façamos vela prà Dinamarca, Que Hamlet espera no Cais por mim.
Adeus ! Ã Vida sinto-me preso, (Morrer não custa) pelas paixões... Vamos ao fundo, meu Anjo, ao peso Vamos ao fundo, meu Anjo, ao peso Das minhas trinta desilusões !
Adeus ! Que estranha Visão é aquela Que vem andando por sobre o mar ? Todos exclamam de mãos para ela : « Nossa Senhora ! que vens a andar ! »
Adeus ! A Virgem com um afago, Pôs manso o Oceano, que assim o quis :
O Mar agora parece um lago, O Mar agora parece um lago, O rio Lima do meu País !
Adeus ! Menina, que estás rezando, Desceu a Virgem e já te ouviu : Agora, quero ver-te cantando, A Santa Virgem já me acudiu.
Adeus ! Os Ventos são meigas brisas E
brilha a Lua como um farol ! Ponde nas vergas vossas camisas, Ponde nas vergas vossas camisas, Ó Marinheiros, que a Lua é o Sol !
Adeus ! « St. Jacques» lá entra a barra, Nossa Senhora vai indo a pé : Com seu cabelo fez uma amarra, Lá vai puxando, que boa ela é !
Adeus ! Eu parto, mas volto, breve, À tua casa que deixei lá ! Leva-me o Outono (não tarda a neve) Leva-me o Outono (não tarda a neve) No meu regresso, que Sol fará !
Paris. I893.
LADAINHA
Teu coração dentro do meu descansa, Teu coração, desde que lá entrou : E tem tão bom dormir essa criança, Deitou-se, ali caiu, ali ficou.
Dorme, menino ! dorme, dorme, dorme ! O que te importa o que no Mundo vai ? Ao acordares desse sono enorme Tu julgarás que se passou num ai.
Dorme, criança ! dorme, sossegada, Teus sonos brancos ainda por abrir : Depois, a Morte não te custa nada, Porque a ela habituaste-te a dormir ...
Dorme, meu Anjo ! ( a Noite é tão comprida ! ) Que doces sonhos tu não hás-de ter ! Assim, com o hábito de os ter na Vida Continuarás depois de falecer ...
Dorme, meu filho ! cheio de sossego, Esquecete de tudo e até de mim. Depois ... de olhos fechados, és um cego, Tu nada vês, meu filho !
e antes assim.
Dorme os teus sonhos, dorme e não mos digas, Dorme, filhinho ! dorme, dorme, «oó» ... Dorme, minha alma canta-te cantigas, Que ela é velhinha como a tua Avó !
Nenhuma ama tem um pequenino Tão bom, tão meigo ; que feliz eu sou ! E tem tão bom dormir esse menino ... Deitou-se, ali caiu, ali ficou.
Paris, I894.
FALA AO CORAÇÃO
Meu Coração, não batas, pára ! Meu Coração, vai-te deitar ! A nossa dor, bem sei, é amara, A nossa dor, bem sei, é amara : Meu coração, vamos sonhar ... Ao Mundo, vim, mas enganado. Sinto-me farto de viver :
Vi o que ele era, estou maçado, Vi o que ele era, estou maçado, Não batas mais ! vamos morrer ... Bati à porta da Ventura Ninguém ma abriu, bati em vão : Vamos a ver se a sepultura, Vamos a ver se a sepultura, Nos faz o mesmo, Coração ! Adeus, Planeta !
adeus, ó Lama ! Que a ambos nós vais digerir. Meu Coração, a Velha chama, Meu Coração, a Velha chama : Basta, por Deus ! vamos dormir ...
Coimbra, I888.
MENINO E MOÇO
Tombou da haste a flor da minha infância alada. Murchou na jarra de oiro o púdico jasmim : Voou aos altos Céus a pomba enamorada Que dantes estendia as asas sobre mim.
Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada, E que era sempre dia, e nunca tinha fim Essa visão de luar que vivia encantada, Num castelo com torres de marfim !
Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância, Que me enchiam de lua o coração, outrora, Partiram e no Céu evolam-se, a distância !
Debalde clamo e choro, erguendo aos Céus meus ais:
Voltam na asa do Vento os ais que a alma chora, Elas, porém, Senhor ! elas não voltam mais...
Leça, I885.
O SONO DE JOÃO
O João dorme ... ( Ó Maria, Dize àquela cotovia Que fale mais devagar: Não vá, o João, acordar ... )
Tem só um palmo de altura E
nem meio de largura: Para o amigo orangotango O João seria ... um morango ! Podia engoli-lo um leão Quando nasce ! As pombas são Um poucochinho maiores ... Mas os astros são menores !
O João dorme ... Que regalo !
Deixá-lo dormir, deixá-lo !
Calai-vos, águas do moinho ! Õ Mar ! fala mais baixinho ... E tu, Mãe ! e tu, Maria ! Pede àquela cotovia Que fale mais devagar:
Não vá, o João, acordar ...
O João dorme, o Inocente ! Dorme, dorme eternamente, Teu calmo sono profundo ! Não acordes para o Mundo, Pode levar-te a maré : Tu mal sabes o que isto é ...
Ó Mãe ! canta-lhe a canção, Os versos do teu Irmão :
« Na Vida que a Dor povoa, Há só uma coisa boa, Que é dormir, dormir, dormir ...
Tudo vai sem se sentir».
Deixa-o dormir, até ser Um velhinho ... até morrer !
E tu vê-lo-ás crescendo A teu lado (
estou-o vendo João ! que rapaz tão lindo ! ) Mas sempre, sempre dormindo ...
Depois, um dia virá Que ( dormindo ) passará Do berço, onde agora dorme, Para outro, grande, enorme : E as pombas que eram maiores Que João ... ficarão menores !
Mas para isso, ó Maria !
Dize àquela cotovia Que fale mais devagar : Não vá, o João, acordar ...
E os anos irão passando.
Depois, já velhinho, quando ( Serás velhinha também )
Perder a cor que, hoje, tem, Perder as cores vermelhas E for cheiinho de engelhas, Morrerá sem o sentir, Isto é, deixa de dormir :
Acorda e regressa ao seio De Deus, que é donde ele veio ...
Mas para isso, ó Maria !
Pede àquela cotovia Que fale mais devagar :
Não vá, o João, acordar ...
Paris, I89I.
Sonetos 1 Em horas que lá vão, molhei a pena Na chaga aberta desse corpo amado, Mas numa chaga a supurar gangrena, Cheia de pus, de sangue já coalhado !
E depois, com a mão firme e serena, Compus este Missal dum Torturado : Talvez choreis, talvez vos faça pena ... Chorai ! que imenso tenho eu já chorado.
Abri-o ! Orai com devoção sincera ! E, à leitura final duma oração, Vereis cair no solo uma quimera :
Moços do meu País ! vereis então O que é esta Vida, o que é que vos espera ...
Toda uma Sexta-Feira de Paixão !
Coimbra 1889.
2 Em certo Reino, à esquina do Planeta, Onde nasceram meus Avós, meus Pais, Há quatro lustros, viu a luz um poeta Que melhor fora não a ver jamais.
Mal despontava para a vida inquieta, Logo ao nascer, mataram-lhe os ideais, À falsa fé, numa traição abjecta, Como os bandidos nas estradas reais !
E, embora eu seja descendente, um ramo Dessa árvore de Heróis que, entre perigos E
guerras, se esforçaram pelo Ideal :
Nada me importas, País ! seja meu Amo O
Carlos ou o Zé da T'resa ... Amigos, Que desgraça nascer em Portugal !
Coimbra, I889.
3 Na praia lá da Boa Nova, um dia, Edifiquei ( foi esse o grande mal ) Alto Castelo, o que é a fantasia, Todo de lápislazúli e coral !
Naquelas redondezas, não havia Quem se gabasse dum domínio igual : Oh Castelo tão alto ! parecia O território dum Senhor feudal !
Um dia ( não sei quando, nem sei donde)
Um vento seco de Deserto e spleen Deitou por terra, ao pó que tudo esconde, O meu condado, o meu condado, sim ! Porque eu já fui um poderoso Conde, Naquela idade em que se é conde assim ...
Porto, I887.
4 O Virgens que passais, ao sol-poente, Pelas estradas ermas, a cantar ! Eu quero ouvir uma canção ardente, Que me transporte ao meu perdido Lar.
Cantai-me, nessa voz omnipotente, O Sol que tomba, aureolando o Mar, A fartura da seara reluzente, O vinho, a Graça, a formosura, o luar !
Cantai ! cantai as límpidas cantigas !
Das ruínas do meu Lar desaterrai Todas aquelas ilusões antigas Que eu vi morrer num sonho, como um ai ... Õ suaves e frescas raparigas, Adormecei-me nessa voz ... Cantai !
Porto. I886.
5 Íamos sós pela floresta amiga, Sob o incenso da Lua que se evola, Olhos no céu, modesta rapariga ! Como as crianças ao sair da escola.
Em teus olhos já meigos de fadiga, Semicerrados como o olhar da rola, Eu ia lendo essa balada antiga Duns noivos mortos ao cingir da estola...
A Lua-a-Branca, que é tua Avòzinha, Cobria com os seus os teus cabelos E
dava-te um aspecto de velhinha !
Que linda eras, o luar que o diga !
E eu compondo estes versos, tu a lê-los, E ambos cismando na floresta amiga ...
Porto, I884.
6 Os meus pecados, Anjo ! os meus pecados ! Contartos para quê, se não têm fim ? Sou santo ao pé dos outros desgraçados, Mas tu és mais que santa ao pé de mim.
A ti acendo círios perfumados, Faço novenas, queimo-te alecrim, Quando sofro, me vejo com cuidados ... Nas tuas rezas, lembra-te de mim !
Que eu seja puro de alma e pensamento ! E que, em dia do grande Julgamento, Minhas culpas não sejam de maior :
Pois tenho (que o Céu tudo aponta e marca ) Um processo a correr nessa comarca, Cujo delegado é Nosso Senhor ...
Hamburgo. I89I.
7 Meus dias de rapaz, de adolescente, Abrem a boca a bocejar, sombrios : Deslizam vagarosos, como os Rios, Sucedem-se uns aos outros, igualmente.
Nunca desperto de manhã, contente. Pálido sempre com os lábios frios, Oro, desfiando os meus rosários pios ... Fora melhor dormir, eternamente !
Mas não ter eu aspirações vivazes, E não ter, como têm os mais rapazes, Olhos boiando em sol, lábio vermelho !
Quero viver, eu sinto-o, mas não posso : E
não sei, sendo assim enquanto moço, O
que serei, então, depois de velho.
Belos Ares, 1889.
8 Poveirinhos ! meus velhos Pescadores ! Na Água quisera com Vocês morar : Trazer o grande gorro de três cores, Mestre da lancha Deixem-Nos Passar !
Far-me-ia outro, que os vossos interiores, De há tantos tempos, devem já estar Calafetados pelo breu das Dores, Como esses pongos em que andais no Mar !
Ó meu Pai, não ser eu dos poveirinhos ! Não seres tu, para eu o ser, poveiro, Mail'Irmão do «Senhor de Matosinhos ! »
No alto mar, às trovoadas, entre gritos, Prometermos, si o barco fôri intieiro, Nossa bela à Sinhora dos Aflitos !
Leça, I889.
9 Quando vem Junho e deixo esta cidade, Batina, Cais, tuberculosos céus, Vou para o Seixo, para a minha herdade : Adeus, cavaco e luar !
choupos, adeus !
Tomo o regime do Sr. Abade, E faço as pazes, ele o quer, com Deus. No seu direito olhar vejo a bondade, E às capelinhas vou ver os Judeus.
Que homem sem par ! Ignora o que são dores ! Para ele uma ramada é o pálio verde, Os cachos de uvas são as suas flores !
Ao seu passal chama ele o Mundo todo ... Sr.
Abade ! olhe que nada perde : Viva na Paz, aí, longe do lodo.
Coimbra, I890.
10 Longe de ti, na cela do meu quarto, Meu copo cheio de agoirentas fezes, Sinto que rezas do Outro-Mundo, harto, Pelo teu filho, Minha Mãe, não rezes !
Para falar, assim, vê tu ! já farto, Para me ouvires blasfemar, às vezes, Sofres por mim as dores cruéis do parto E trazes-me no ventre nove meses !
Nunca me houvesses dado à luz, Senhora !
Nunca eu mamasse o leite aureolado Que me fez homem, mágica bebida !
Fora melhor não ter nascido, fora, Do que andar, como eu ando, degredado Por esta Costa de África da Vida.
Coimbra. I889.
11 Altos pinheiros septuagenários E ainda empertigados sobre a serra !
Sois os enviados extraordinários, E embaixadores de El-Rei Pã, na Terra.
à noite, sob aqueles lampadários, Conferenciais com ele ... Há paz ? Há guerra ? E tomam notas vossos secretários, Que o Livro Verde secular encerra.
Hirtos e altos, Tayllerands dos montes !
Tendes a linha, não vergais as frontes Na exigência da Corte, ou beija-mão !
Voltais aos Homens com desdém a face ... Ai oxalá ! que Pã me despachasse Adido à vossa estranha Legação !
Coimbra. I888.
12 Não repararam nunca ? Pela aldeia, Nos fios telegráficos da estrada, Cantam as aves, desde que o Sol nada, E, à noite, se faz Sol a LuaCheia.
No entanto, pelo arame que as tenteia, Quanta tortura vai, numa ânsia alada ! O Ministro que joga uma cartada, Alma que, às vezes, de alémmar anseia :
—Revolução ! — Inútil. — Cem feridos, Setenta mortos. — Beijo-te ! — Perdidos !
—Enfim, feliz ! — ? — ! — Desesperado. — Vem.
E as boas aves, bem se importam elas !
Continuam cantando, tagarelas : Assim, António ! deves ser também.
Colónia, I89I.
13 Falhe i na Vida. Zut ! Ideais caídos ! Torres por terra ! As árvores sem ramos ! Ó meus Amigos ! todos nós falhámos ... Nada nos resta.
Somos uns perdidos.
Choremos, abracemo-nos, unidos ! Que fazer ?
Porque não nos suicidamos ? Jesus ! Jesus !
Resignação ... Formamos No Mundo, o claustro-pleno dos Vencidos.
Troquemos o burel por esta capa ! Ao longe, os sinos místicos da Trapa Clamam por nós, convidam-nos a entrar :
Vamos semear o pão, podar as uvas, Pegai na enxada, descalçai as luvas, Tendes bom corpo, Irmãos ! Vamos cavar !
Coimbra, I889.
14 Vou sobre o Oceano ( o luar, de doce, enleva ! ) Por este mar de Glória, em plena paz. Terras da Pátria somem-se na treva, Águas de Portugal ficam, atrás.
Onde vou eu ? Meu fado onde me leva ? António, onde vais tu, doido rapaz ? Não sei. Mas o Vapor, quando se eleva, Lembra o meu coração, na ânsia em que jaz.
Ó Lusitânia que te vais à vela !
Adeus ! que eu parto (rezarei por ela)
Na minha Nau Catarineta, adeus !
Paquete, meu Paquete, anda ligeiro, Sobe depressa à gávea, Marinheiro, E grita, França ! pelo amor de Deus !
Oceano Atlântico. I890.
15 O meu beliche é tal qual o bercinho Onde dormi horas que não vêm mais. Dos seus embalos já estou cheiinho : Minha velha Ama são os vendavais !
Uivam os Ventos ! Fumo, bebo vinho. O Vapor treme ! Abraço a Bíblia, aos ais ... Covarde !
Que dirão ( eu adivinho ) Os Portugueses ?
Que dirão teus Pais ?
Coragem ! Considera o que hás sofrido, O
que sofres e o que ainda sofrerás, E vê, depois, se acaso é permitido Tal medo à Morte, tanto apego ao Mundo : Ah !
fora bem melhor, vás onde vás, António, que o Paquete fosse ao fundo !
Golfo de Biscaia, I89I.
11 16 Aqui, sobre estas águas cor de azeite, Cismo em meu Lar, na paz que lá havia : Carlota, à noite, ia ver se eu dormia E vinha, de manhã, trazerme o leite.
Aqui, não tenho um único deleite ! Talvez ...
baixando, em breve, à Água fria, Sem um beijo, sem uma Ave-Maria, Sem uma flor, sem o menor enfeite !
Ah pudesse eu voltar à minha infância ! Lar adorado, em fumos, a distância, Ao pé de minha Irmã, vendo-a bordar :
Minha velha Aia ! conta-me essa história Que principiava, tenho-a na memória, « Era uma vez ... ».
Ah deixem-me chorar !
Canal da Mancha, I89I.
17 Vaidade, meu Amor, tudo Vaidade ! Ouve :
quando eu, um dia, for alguém, Tuas amigas terte-ão amizade, (Se isso é amizade ) mais do que, hoje, têm.
Vaidade é o Luxo, a Glória, a Caridade, Tudo Vaidade ! E, se pensares bem, Verás, perdoa-me esta crueldade, Que é uma vaidade o amor de tua Mãe.
Vaidade ! Um dia, foi-se-me a Fortuna E eu vi-me só no Mar com minha escuna, E ninguém me valeu na tempestade !
Hoje, já voltam com seu ar composto, Mas, eu, vê lá ! eu volto-lhes o rosto ... E isto em mim não será uma vaidade ?
Mar do Norte, I89I.
18 E a Vida foi, e é assim, e não melhora. Esforço inútil.
Tudo é ilusão. Quantos não cismam nisso mesmo a esta hora Com uma taça, ou um punhal na mão !
Mas a Arte, o Lar, um filho, António ? Embora !
Quimeras, sonhos, bolas de sabão.
E a tortura do Além e quem lá mora !
Isso é, talvez, minha única aflição.
Toda a dor pode suportar-se, toda ! Mesmo a da noiva morta em plena boda, Que por mortalha leva ... essa que traz.
Mas uma não : é a dor do pensamento !
Ai quem me dera entrar nesse convento Que há além da Morte e que se chama A Paz !
Paris, I89I.
Elegia s A SOMBRA
Não tarda a sombra, aí. Vai alto o Sete-Estrelo São horas dela vir. Minha alma, atende ! Que já a Lua, a sentinela, rende Na esplanada do céu, às portas do Castelo ...
Oiço um rumor : talvez ... Ei-la, é ela : ao longe, avisto Seu vulto em flor : postas as mãos no seio, Com o cabelo separado ao meio, Todo caído para trás, como o de Cristo !
Sorri. Que linda vem, Jesus ! Que bem vestida !
Quantas lembranças deste peito arranco !
Foi assim que primeiro a vi, de branco, Foi nesse traje que ela sempre andou, em vida !
Que luz projecta ! Que esplendor ! Parece dia !
Os galos cantam, anunciando a aurora...
Ide deitar-vos que ainda não é a hora, Dorme teu sono, sossegada, ó cotovia !
Mas vós, ó pedras, afastai-vos, que ela passa !
Silêncio, rouxinóis, eu quero ouvi-la ...
Terá ainda a mesma voz tranquila ? Ah ! ainda é o mesmo o seu andar, cheio de Graça ...
Mas ao passar por mim, como dalgum perigo, Foge.
( Talvez, já seja tarde ... ) Ó Clara ! Nuvem !
Fantasma ! Ouve-me ! Pára ! ...
E oiço a voz dela num murmúrio :
« Anda comigo ...»
Coimbra, I888.
POBRE TÍSICA
Quando ela passa à minha porta, Magra, lívida, quase morta, E vai até à beira-mar, Lábios brancos, olhos pisados :
Meu coração dobra a finados, Meu coração põe-se a chorar.
Perpassa leve como a folha, E, suspirando, às vezes, olha Para as gaivotas, para o Ar : E, assim, as suas pupilas negras Parecem duas toutinegras, Tentando as asas para voar !
Veste um hábito cor de leite, Sainha lisa, sem enfeite, Boina maruja, toda luar : Por isso, mal na praia alveja, As mais suspiram com inveja :
«Noiva feliz, que vais casar ...»
Triste acompanha-a um Terra Nova Que, dentro em pouco, à fria cova A irá de vez acompanhar ... O chão desnuda com cautela, Que Boy conhece o estado dela : Quando ela tosse, põe-se a uivar !
E, assim, sòzinha com a aia, Ao sol, se assenta sobre a praia, Entre os bebés, que é o seu lugar. E o Oceano, trémulo Avôzinho, Cofiando as barbas cor de linho, Vem ter com ela a conversar.
Falam de sonhos, de anjos, e ele Fala de amor, fala daquele Que tanto e tanto a faz penar ... E o coração parte-se todo, Quando a sorrir, com tão bom modo, O
Mar lhe diz : « Há-de sarar ...»
Sarar ? Misérrima esperança ! Padres !
ungi essa criança, Podeis sua alma encomendar : Corpinho de anjo, casto e inerme, Vais ser amada pelo Verme, Os bichos vão-na desfrutar.
Sarar ? Da cor dos alvos linhos, Parecem fusos seus dedinhos, Seu corpo é roca de fiar ... E, ao ouvir-lhe a tosse seca e fina, Eu julgo ouvir numa oficina Tábuas do seu caixão pregar !
Sarar ? Magrita como o junco, O seu nariz (que é grego e adunco )
Começa aos poucos de afilar, Seus olhos lançam ígneas chamas :
Ó pobre Mãe, que tanto a amas, Cautela ! O Outono está a chegar ...
Leça, 1889.
SANTA IRIA
(QUE FLORESCEU EM NABÂNCIA
NO SÉCULO VII)
Num rio virginal de águas claras e mansas, Pequenino baixel, a Santa vai boiando. Pouco e pouco, dilui-se o oiro das suas tranças E, diluído, vêse as águas aloirando.
Circunda-a um esplendor de verdes Esperanças. Unge-lhe a fronte o luar ( os Santos Óleos) brando. E, com a Graça etérea e meiga das crianças, Formosa Iria vai boiando, vai boiando ...
Os cravos e os jasmins abrem-se à luz da Lua, E, ao verem-na passar, fantástica barquinha, Murmuram entre si : «É um mármore que flutua ! »
Ele entra, enfim, no Oceano ... E escuta-se, ao luar, A mãe do Pescador, rezando a ladainha Pelos que andam, Senhor ! sobre as águas do Mar ...
Leça, I885.
ENTERRO DE OFÉLIA
Morreu. Vai a dormir, vai a sonhar ... Deixá-la ! ( Falai baixinho : agora mesmo se ficou ... ) Como Padres orando, os choupos formam ala, Nas margens do ribeiro onde ela se afogou.
Toda de branco vai, nesse hábito de opala, Para um convento : não o que Hamlet lhe indicou, Mas para um outro, olhai ! que tem por nome Vala, Donde jamais saiu quem, lá, uma vez entrou !
O doce pôr do Sol, que era doido por ela, Que a perseguia sempre, em palácio e na rua, Vede-o, coitado ! mal pode suster a vela ...
Como damas de honor, Ninfas seguem-lhe os rastros, E, assomando no céu, sua Madrinha, a Lua, Por ela vai desfiando as suas contas, Astros !
Leça, I888.
NA ESTRADA DA BEIRA
V ai em seis meses que deixei a minha terra E tu ficaste lá, metida numa serra, Boa velhinha ! que eras mais uma criança. Mas tão longe de ti, neste país de França, Onde mal viste, então, que eu viesse parar, Vejo-te, quanta vez ! por esta sala a andar. Bates.
Entreabres de mansinho a minha porta. Virás tratar de mim, ainda depois de morta ? Vens de tão longe ! E fazes, só, essa jornada !
Ajuda-te o bordão que te empresta uma fada. Altas horas, enquanto o bom coveiro dorme, Escapas-te da cova e vens, Bondade enorme !
Através do Marão que a Lua-Cheia banha, Atravessas, sorrindo, a misteriosa Espanha, Perguntas ao pastor que anda guardando o gado, (E as fontes cantam e o céu é todo estrelado ) Para que banda fica a França, e ele, a apontar, Diz : « Vá seguindo sempre a minha estrela, no Ar !» E há-de ficar cismando, ao ver-te assim, velhinha, Que és tu a Virgem disfarçada em pobrezinha. Mas tu, sorrindo sempre, olhando sempre os céus, Deixando atrás de ti, os negros Pirenéus, Sob os quais rola a Humanidade, nos Expressos, 12 Em certo dia ao fim de tantos ( conto-os, meço-os ! )
Vindo de vila em vila, e mais de serra em serra, Chegas !
E cai e cai no soalho alguma terra : Tua cova que vem pegada aos teus vestidos !
Ó Lua do Ceguinho ! Amparo dos vencidos ! Alpendre do Perdão ! ó Piedade ! ó Clemência ! Singular fado o nosso, estranha coincidência : Deixamos nossa Pátria ao mesmo tempo : tu, Adentro dum caixão, que era também baú, Onde levavas as desgraças desta Vida ; Eu, num paquete sobre a vaga enraivecida ( Sob a qual, entretanto, havia a paz das loisas) E nele o esquife do meu Lar, as minhas coisas, E mais tu sabes, Santa ! um saco de Misérias ! Mas a Existência é um dia, esta vida são férias E, mal acabem, te verei de novo ... em breve ! E tu de novo me verás ...
Ah ! como deve Ser frio esse teu lar debaixo da terra Que teu cadáver de oiro ainda intacto encerra : Ainda intacto e sempre :
disse-me o coveiro Que a tua cova era a única sem cheiro ... E assim te deixo, Santa ! Santa ! ao abandono, Só, aos cuidados das corujas e do Outono ! Com este frio, horror ! Senhora da Piedade ! Sem uma mão amiga e cheia de bondade Que te agasalhe e faça a dobra do lençol, Que abra a janela para tu veres o Sol, Que, logo de manhã, venha trazer-te o leite E, à noite, a lamparina-esmalte com azeite ! Sem uma voz que vá ao pé da tua loisa, Ansiosa, perguntar se queres alguma coisa, Cobrir-te, dar-te as boas noites ... Sem ninguém ! Ai de ti ! ai de ti ! minha segunda Mãe !
Dobra em meu coração o sino da Saudade.
Aqui, no meio desta fria soledade, Evoco a Coimbra triste, em seu aspecto moiro :
Entro, chapéu na mão, em tua Casa de Oiro, Em frente a um canavial, cheio de rouxinóis, Que era nervoso de mistério, ao pôr-dos-sóis, Vejo o teu Lar e a ti, tão pura, tão singela, E vejo-te a sorrir, e vejo-te à janela, Quando eu seguia para as aulas, manhã cedo, Ansiosa, olhando dentre as folhas do arvoredo, Olhando sempre até eu me sumir, a olhar, Que às vezes não me fosse um carro atropelar.
Vejo o meu quarto de dormir, todo caiado, Donde ouvia arrulhar as pombas no telhado ;
Oiço o relógio a dar as horas vagamente, Devagar, devagar, como os ais dum doente ;
Vejo-te à noite, pelas noites de Janeiro, Na sala a trabalhar, à luz do candeeiro, Mais vejo o Emílio, indo a tactear, quase sem vista, Mas que lembrava com seus olhos de ametista, Meio cerrados, como ao sol uma janela, Que lindos olhos ! uma pomba de Ramela!
E andava à solta pela casa, não fugia, Que aos livres ares o casulo preferia.
Mais vejo Aquela, cujo olhar são pirilampos, Que tem o nome da mais linda flor dos campos, Que tem o nome que tiveste ... Vejo-a, ainda, Como se ontem fosse, a Margareth, tão linda ! Vejo-a passar, sorrindo, e faz-me assim lembrar No seu vestido rubro, uma papoila a andar. Mais te vejo ainda ungir de afagos minhas penas, Mais te vejo voltar, à tarde, das novenas ; Mais oiço os sinos a dobrar, em Santa Clara, E tu encomendando a alminha que voara ... Mais vejo os meus Contemporâneos, pela Estrada, As capas destraçando, ao verem-te à sacada ; Mais vejo o Rui, na sua farda de artilheiro, E tu mirando-o ( o que são mães ! ) o dia inteiro ! Mais vejo o Sol, áurea cabeça do Senhor, Mais vejo os cravos, notas de clarim em flor ! Mais vejo no quintal as papoilas vermelhas, Mais vejo o lar das andorinhas, sob as telhas, Mais oiço o tanque a soluçar soluços de água, Mais oiço as rãs, coaxando à noite a sua Mágoa, Mais vejo o figueiral todo cheio de figos, Mais vejo a tua mão a dá-los aos mendigos ; Mais oiço os guizos, ao passar da mala-posta, Mais vejo a sala de jantar, a mesa posta, E tu, Senhora ! presidindo, à cabeceira, E ( o que a distância faz ! ) vejo-te na cadeira, Com uma touca preta a cobrir-te os cabelos, Que eram de neve, aos caracóis, estou a vê-los ! ( Heide ir cortar-tos, alta noite, ao cemitério ) Mais vejo o Vasco, sempre triste, sempre sério, Dum lado e eu de outro ...
Que abençoado refeitório !
Mas tudo passa neste Mundo transitório.
E tudo passa e tudo fica ! A Vida é assim E sê-lo-á sempre pelos séculos sem fim !
Ainda vejo a tua casa, e oiço os teus gritos ( Mas nas janelas e na porta vejo escritos. )
O Vasco é ainda sempre triste, sempre sério ( Mas mais ainda quando vem do cemitério. )
Meu quarto de dormir vejo-o no mesmo estado ( Mas não sei que é, não me parece tão caiado.)
A janela ainda tem o mesmo parapeito ( Mas já não sou « o estudantinho de Direito ». )
Na sala de jantar ainda se estende a mesa ( Mas já não tem a mesa posta, a sobremesa. )
Vejo o relógio na parede como outrora ( Mas o ponteiro marca ainda a mesma hora. )
O candeeiro ainda tem o petróleo e a torcida ( Mas apagou-se a luz a quando a tua vida. )
A diligência passa, à tardinha, a tinir, ( Mas já não tem os olhos teus para a seguir ... )
Passam ainda pela Estrada os estudantes ( Mas não destraçam suas capas, como dantes. )
Vêm da novena ainda as moças e as donzelas ( Mas procuro-te em vão, já não te vejo entre elas. )
As andorinhas ainda têm o mesmo fito ( Mas já fizeram três jornadas ao Egipto. )
Ainda dobra por defuntos e defuntas ( Mas não te vejo a ti a rezar de mãos juntas. )
Ainda lá está o figueiral com figos, ( Mas não a tua mão a dá-los aos mendigos... )
O Rui ainda traz a farda de soldado ( Mas, agora, já põe mais divisas, ao lado. )
As rãs coaxam ainda à noite, à beira de água, ( Mas já não têm quem peça a Deus por essa Mágoa. )
O Emílio tem ainda esse olhar que maravilha, ( Mas com seus olhos de hoje, é uma pombinha da Ilha. )
Ainda lá estão os cravos, no jardim, ( Mas já não são as mesmas notas de clarim. )
Ainda oiço o tanque a soluçar a sua mágoa ( Mas já não acho tão branquinha a sua água. )
A Margareth ainda é a papoila de outrora ( Mas a papoila ... já está uma senhora ! )
Ainda lá estão as papoilas em flor ( Mas a Velhinha já não vai de regador ... )
Meu coração é ainda o Vale de Gangrenas ( Mas já não tenho quem lhe plante as açucenas. )
Vive ainda o Sol, vivo eu ainda... ( mas tu morreste !)
Tudo ficou, tudo passou ...
Que mundo este !
Paris, I89I.
CA (RO) DA (TA) VER (MIBUS)
Memória a J. de Oliveira Macedo Eduardo Coimbra, António Fogaça As horas do crepúsculo, ao Bendito, Quando a Lua, formosa leiteirinha, Vai dar o leite às casas do Infinito ;
Às horas das Trindades, à noitinha, Quando há milagres e sublimes Cousas E concebe seus filhos a andorinha...
Quando, em convento, as leais Religiosas, Tristes, se envolvem num burel de mágoa E
os cravos noivam com as suas Rosas ;
Quando o luar do céu azula a frágua, E o céu sem fim, a abóbada estrelada, Como que tem os olhos rasos de água ;
Nessa hora indecisa, angustiada, Em que o Universo está, meio às escuras, Que não se sabe se é antes a alvorada ;
Eu pude ver, erguendo-se às alturas, Aquela benta lágrima de pranto Que despendem, morrendo, as criaturas.
E ao vir da noite, com nervoso e espanto Vi uma estrela a mais no azul do céu : É que um poeta, que era justo e santo, Às horas do crepúsculo ... morreu ! O
simples coração de Julieta Dentro da alma virgem de Romeu !
Uma criação de Deus, mas incompleta :
Águia que tinha um coração de pomba, Cedro que dava folhas de violeta !
Ah, quando vejo alguma flor que tomba Meu coração não pode e em sua dor, Escarnece do Bem, de tudo zomba !
Eulália, que era o seu primeiro amor, Aos Ventos, aos relâmpagos, ficou Neste Vale de Lágrimas, Senhor !
Quem lhe dera a mortalha que levou Toda bordada de cabelo loiro Da mística Menina que ele amou !
Vede-a, acolá, chorando o seu Tesoiro, Na janela que deita para o Mar, Soltas ao Vento as suas tranças de oiro !
Ó meu amado Sete-Estrelo, e, ó Luar, Vinde pôr velas, vinde daí connosco, Õ boas Ursas !
ó Trapézio do Ar !
Õ aves, que trazeis Março convosco, São núpcias ! enfeitai o vosso ninho, Com as ervas do seu túmulo tosco !
Vós, pombas de marfim, aves de linho, Que ides tão alto, divagando errantes, Quase mortas, perdidas no caminho :
Do Vento sobre as velas almirantes Prendei a asa e, assim, acompanhai O cantador que vos cantava dantes !
Ele percorre vitorioso, olhai !
Entre imensas espumas de andorinhas O Outro-Mundo, e que ligeiro vai !
Dizem-lhe adeus da Terra as criancinhas, Coas tranças a acenar, mandam-lhe abraços E beijos com as pálidas mãozinhas.
Mas ele lá vai indo nos Espaços, Sendo a sua alma uma subtil galera Com leves remos de marfim (tem braços. )
— Onde vai ele ? a que ditosa esfera Velhinha Morte a sua alma guia ? ... Que vida imensa, lá no Céu o espera !
Para ganhar o pão de cada dia Cuidará da lavoira, mais das flores, Lavrando as terras da Virgem Maria !
Longe dos homens maus, dos pecadores, Numa herdade do Céu, entre charruas, A cavar entre simples lavradores, Semeando Estrelas e plantando Luas ... E
ainda o choram, que feliz desgosto ! O
Vento passa a uivar por essas ruas ...
E um óleo que sem química é composto Tomba de Cima : é a Extrema-Unção da Morte Que lhe unge as magras mãos e mais o rosto.
E chorais ! Quem vos dera a sua sorte ! Porque é que vos carpis, águas da fonte ? Não chores, cala a boca, vento Norte !
Calai-vos vós também, canas do Monte, Não sei para que estais com essas falas, Nem tu, ó Mar, com tais rugas na fronte !
Vê lá, fazes favor, vê se te calas : Basta que chore Eulália ... a Mãe doente E os seus amigos ... aos cantos das salas ...
Formoso, branco, meigo, ainda inocente, Vaiste a dormir na tua casa nova Cem séculos ou mais ... provavelmente.
Que funda te fizeram essa cova !
E tão pequeno és, minha criança !
Têm medo que tu fujas ... é o que prova.
Dorme o teu sono na última esperança Eterna como os séculos e as flores, Pra todo o sempre, minha flor ! descansa ...
Ah, nem tigres, nem águias, nem condores, Abrem as campas, lúgubres cavernas : O
coveiro é o melhor dos construtores ! As suas covas são casas eternas.
Leça, I885.
CERTA VELHINHA
1 Além, na tapada das Catorze Cruzes, Que triste velhinha que vai a passar !
Não leva candeia ; hoje, o céu não tem luzes ...
Cautela, Velhinha, não vás tropeçar !
Os Ventos entoam cantigas funestas, Relâmpagos tingem de vermelho o Azul !
Aonde irá ela, numa noite destas, Com Vento da Barra puxado do Sul ?
Aonde irá ela, pastores ! boieiras ! Aonde irá ela, numa noite assim ? Se for um Fantasma, fazei-lhe fogueiras, Se for uma Bruxa, queimailhe alecrim !
Contava-me Aquela que a tumba já cerra, Que Nossa Senhora, quando a chama alguém, Escolhe estas noites pra descer à Terra, Porque em noites destas não anda ninguém ...
Além, na tapada das Catorze Cruzes, Que linda velhinha que vem a passar ! E que olhos aqueles que parecem luzes ! Quais velas acesas que a vêm a guiar ...
Que pobre capinha que leva de rastros, Tão velha, tão rota ! que triste viuvez !
Mas se lhe dá vento, meu Deus ; tantos astros !
É o céu estrelado vestido do invés ...
Seu alvo cabelo, molhado das chuvas, Parece uma vinha de luar em flor : Oh cabelos em cachos, como cachos de uvas ! Só no Céu há uvas com aquela cor.
A luz dos seus olhos é uma luz tamanha Que ao redor espalha perfeito clarão ! Parece que chove luar na montanha ... Que noite de Inverno que parece Verão !
Além, na tapada das Catorze Cruzes, Velhinha tão alta que vem a chegar ! Parece uma torre coada de luzes ! Ou antes a Torre de Marfim, a andar !
Não ! Não é uma Torre coada de luzes Nem antes a Torre de Marfim, a andar, Que pela tapada das Catorze Cruzes, Numa noite destas, eu vejo passar.
Também não é, ouve, minha velha ama ! Como tu contavas, a Virgem de Luz : Digo-te ao ouvido como ela se chama, Mas guarda segredo, que é ...
— Jesus ! Jesus !
2 Além, na tapada das Catorze Cruzes, Já não é a Velhinha que vai a passar : Um grande cortejo cheiinho de luzes, Aninhas da Eira que vai a enterrar.
UM PASTOR FALA :
« Aninhas da Eira ! Aninhas da Eira ! Cantai, raparigas, cantai e chorai ! Morreu, coitadinha !
sorrindo, trigueira, Como um passarinho, sem soltar um ai.
«Quando era pequeno, levava-me à escola, E
quando, mais tarde, cresci e medrei, Oh danças nas eiras, ao som da viola ! Nas danças de roda, que beijos lhe dei !
« Os anos vieram, os anos passaram, Meu fado arrastou-me, da aldeia saí : Nunca mais meus olhos seus olhos tocaram, Perdi-a de todo, nunca mais a vi.
«E além, na tapada das Catorze Cruzes, Numa noite destas com vento a ventar, Ó meu Deus ! é ela que vai entre luzes ! Õ meu Deus ! é a Aninhas que vai a enterrar !
« Olá ! bons senhores, vestidos de preto, Deixai a defunta, que a levarei eu ! O suor alaga-vos, eu levo o carreto ... O caixão de Aninhas é também o meu !
«Tenho os relâmpagos, deixai-me sem velas A rezar por ela, sob o temporal ! Caí-me no peito, cravaimas, procelas ! Cruzes da tapada, em forma de punhal ! »
Mas os bons senhores, de preto vestidos, Cigarros acesos, e velas na mão, Lá passam ao Vento, com sete sentidos.
Com medo que, às vezes, não seja um ladrão ...
«Mãos das ventanias ! mãos das ventanias ! Tirailhes a Aninhas e levai-a a Deus ! Com suas mãozinhas, agora tão frias, Irá na viagem a dizer-me adeus...
« Ó Vento que passas ! corcel de rajada ! Assenta-nos ambos no mesmo selim : Quero ir mais ela na longa jornada ... Quero ir com Aninhas pelo Céu sem fim !
«Ó Leste, que trazes as rolas, às costas, Quais rolas, leva-nos aos pés do Senhor ! Quero ir com ela, assim de mãos postas... Quero ir com Aninhas para onde ela for !
« Ó Norte dos Marços ! ó Sul das procelas, Levai-nos quais brigues, como asas, levai ! Levai-nos como águias, levai-nos quais velas ... Quero ir com Aninhas para onde ela vai!»
3 Além, na tapada das Catorze Cruzes, Que triste velhinha que vai a passar !
E que olhos aqueles que parecem luzes ... Aonde irá ela ? Quem irá buscar ?
Paris, I89I.
13 Males de Anto MALES DE ANTO
1 A ARES NUMA ALDEIA
Quando cheguei, aqui, Santo Deus ! como eu vinha !
Nem mesmo sei dizer que doença era a minha, Porque eram todas, eu sei lá ! desde o Ódio ao Tédio.
Moléstias de Alma para as quais não há remédio.
Nada compunha ! Nada, nada. Que tormento !
Dir-se-ia acaso que perdera o meu talento :
No entanto, às vezes, os meus nervos gastos, velhos, Convulsionavam-nos relâmpagos vermelhos, Que eram, bem o sentia, instantes de Camões !
Sei de cor e salteado as minhas aflições :
Quis partir, professar num convento de Itália, Ir pelo Mundo, com os pés numa sandália ...
Comia terra, embebedava-me com luz !
Êxtases, espasmos da Teresa de Jesus !
Contei naquele dia um cento de desgraças.
Andava, à noite, só, bebia a Noite às taças.
O meu cavaco era o dos Mortos, o das Loisas.
Odiava os Homens ainda mais, odiava as Coisas.
Nojo de tudo, horror ! Trazia, sempre luvas ( Na aldeia, sim ! ) para pegar num cacho de uvas, Ou numa flor. Por causa dessas mãos ... Perdoai-me, Aldeões ! eu sei que vós sois puros. Desculpai-me.
Mas, através da minha dor, da tempestade, Sentia renascer minha antiga bondade Nesta alma que a perdera. Achava-me melhor.
Aos pobrezinhos enxugava-lhes o suor.
A minha bolsa pequenina, de estudante, Era pròs pobres ( E é e sê-lo-á doravante. )
E ao vir das tardes, ao passar por um atalho, Eu ia olhando o chão, embora com trabalho, Pois os meus olhos não podiam de fadigas, Pra não pisar os carreirinhos das formigas Que andam, coitadas ! noite e dia, a carregar.
E com vergonha, para ninguém me ver chorar, Lívido, magro, como um espeto, uma tocha, Costumava esconder-me em uma certa rocha, Que, por sinal, tinha o feitio dum gabão, E punha-me a chorar, a chorar como um leão !
Tinha as vozes do Mar, pregando em seu convento, E a gesticulação dos pinheirais ao Vento !
Õ Dor ! ó Dor ! ó Dor ! Cala, ó Job, os teus ais, Que os tem maiores este filho de seus Pais !
Ó Cristo ! Cala os ais na tua ígnea garganta, Ó Cristo ! que outra dor mais alta se alevanta !
Meu pobre coração toda a noite gemia Como num hospital ...
Entrai na enfermaria !
Vede ! Quistos da Dor ! Furo-os com uma lança :
Que nojo, olhai ! são as gangrenas da Esperança !
Lanceto mais : que lindas cores ! um Oceano !
Ó mornos vagalhões do Coração humano, Amarelos, azuis, negros, cor de sol-posto !
Ó preia-mar de pus ! maré viva de Agosto !
Oceano ! ó vagalhões ! qual é a vossa Lua ?
A que horas é a baixa-mar, quem vos escua ?
Lanceto mais ainda : as ilusões sombrias !
Cancros do Tédio a supurar Melancolias !
Gangrenas verdes, outonais, cor de folhagem !
O pus do Ódio a escorrer nesta alma sem lavagem !
Tristezas cor de chumbo ! Spleen ! Perdidos sonos !
Prantos, soluços, ais, ( o Mar pelos Outonos )
A febre do Oiro ! O Amor calcado aos pés ! Génio ! Ânsia !
Medievalite ! O Sonho ! As saudades da Infância !
Quantos males, Senhor ! Que Hospital ! Quantas doenças Filosofias vãs ! Perda das minhas crenças !
Neurastenia ! O Susto ! Incoerências ! Desmaios !
Sede de imensa luz como a dos pára-raios !
Entusiasmos ! Lesão cardíaca da Raiva !
Mágoas sem fim, prantos sem fim ! Chuva, saraiva De insultos ! Aflições e Desesperos ! Gota De Cóleras ! Horror ...
Deixei fugir a escota, Perdi-me no alto mar, quando ia na galera À Índia da Ilusão, ao Brasil da Quimera ! Ó Bancos do Remorso ! ó rainhas Macbeths Da Ambição ! ó Reis Lears da Loucura ! ó Hamlets Da minha Vingança ! ó Ofélias do Perdão ...
( Sossega ! Faze por dormir, meu coração ! Vai alta a noite ... ) E o sangue arde-me nestas veias ! Febre a cem graus ! Delírio : o céu de Luas-Cheias Desde o oriente ao sol-pôr, de Norte a Sul coberto : O mundo jovial de guarda-sol aberto ! Mar de esmeralda fluida, praias de oiro em pó ! Ó esquadras das quais era almirante eu só !
Ó clarins a soar entre balas, na guerra ! E vencer pela Pátria ! E ser Conde da Terra E do Mar ! El-Rei ! Ser senhor feudal do Mundo ! Encher a trasbordar a Vida, mar sem fundo, Com palácios, Amor, glórias, Luxo, batalhas, E reis e generais envoltos nas mortalhas ! ... Pra contar tanta coisa a encher tantos abismos, Homens ! criai outro sistema de algarismos ! Meu Deus ! Que pesadelo !
Ah tanta febre assusta ... Struggle-for-life ! Õ velho Darwin, tanto custa ! Antes não ter nascido. Ó morte, vem buscar-me... Um lenço branco Adeus! nos longes, a acenar-me : Adeus, meu lar ! adeus, minha taça de leite !
E foi o dia treze ... E os corcundas e o azeite Que eu entornei, Pretas que eu vi, uivos de cães ! ... Choras ?
Porquê, por quem, Anto ? Pelos Alguéns ...
Chorar é bom. Ainda te resta esse prazer. Lágrimas : suor da alma ! Cansado ? Vais morrer, Vais dormir ... Ainda não ! mais febre, suores frios, Tremuras, convulsões, nevroses, arrepios ! Unhas de leão, raspando cal numa parede ! Corpos Divinos, nus, ao léu ! Luxúrias, sede De amor místico ! Amar freiras de hábito branco, Morrer com elas despenhado num barranco, Sob relâmpagos ! ...
Jesus ! Jesus ! Jesus !
Ah quanto foi bem pior que a tua a minha cruz ! Quanto sofri, meu Deus ! Ah quanto eu sofro ainda ! E isto num mês de paz, nesta época tão linda, Solstício de Verão, quando nos sabe a Vida, Quando aparece o cravo, a minha flor querida, Quando os sóis-postos são uma delícia, quando Os aldeões andam a podar, cantarolando, E, ali, ao pé dos milheirais, as lindas netas Ceifam curvadas, como na haste as violetas ! Médico ? Para quê ... A doença era de Alma.
Saía, apenas, à tardinha, pela calma, Sorvendo aos haustos a resina dos pinheiros. Tomava quase sempre a estrada dos Malheiros. A nossa casa é ao virar mesmo da estrada, Onde perpassam os aldeões na caminhada E a mala-posta a rir, cheia de campainhas ! Ora havia lá ( e há ainda ) umas Alminhas Com um painel antigo sob um oratório, Que são as almas a penar no Purgatório.
E têm esta legenda : «Ó vós que ides passando Não esqueçais a nós neste lume penando !»
Deitava-lhes dez réis, mas ficava a cismar Que mais penava eu ... se elas quisessem trocar !
E mais adiante ( ainda me lembro : num atalho, Ao pé da fonte ) havia um monte de cascalho Com uma Cruz de pau, braços ao Sul e ao Norte, Para mostrar que, ali, se fizera uma morte :
Ora ( é um costume ) quando alguém vai de longada, Ao ver aquela Cruz, que parece uma espada, Deita uma pedra : cada pedra é uma oração.
Oh raras orações ! nunca se calam, não !
Perpètuamente, lá ficam os Padres-Nossos, Rezas de pedra, a orar, a orar por esses ossos ! ...
Eu, como os mais, deitava uma pedra, também, Dizendo para mim : « se me matasse alguém ...»
Mas eu seguia o meu passeio, estrada fora, E ninguém me matava ...
Ah ! vinham a essa hora As moças da lavoura a cantar, a cantar, ( Faziam-me, Senhor ! vontade de chorar ... ) Mas quando, perto já, eu me ia aproximando, Paravam de cantar e ficavam-me olhando ... E, que eu não fosse ouvir, murmuravam, baixinho, Com dó, a olhar : « Como ele vai acabadinho !
»
Mais adiante, encontrava a mulher do moleiro, Que ia o cântaro encher à Fonte do Salgueiro, Lindos cabelos empoeirados de farinha : Era uma flor, mas parecia uma velhinha ...
—Vai melhorzinho? — Assim... vou indo, vou melhor...
—Pois seja pelas Cinco Chagas do Senhor ...
E um pouco mais além, no lugar do Casal, Numa casa de colmo, assentado ao portal, Estava um cego, e a fiar ao lado estava a mãe, E mal sentia, ao longe, as passadas de alguém, Clamava em sua voz vibrante de ceguinho : « Meu nobre Senhor ! olhe este desgraçadinho ! » Ai de mim ! ai de mim ! como não vê quem passa, É que chama a atenção para a sua desgraça !
E, para bem coroar o meu trágico fado, Dizia-me, ao passar, o Dr. Delegado : «Vá para casa, fuja aos orvalhos da Noute.» E, grave, para si :
« A Ciência abandonou-te ! »
Horror ! horror ! horror ! Que miserável sorte ! Em tudo via a Velha, em tudo via a Morte : Um berço que dormia era um caixão prà cova ! Via a Foice no céu, quando era Lua-Nova ... Se ia à tapada ver ceifar as raparigas, Via-a entre elas a cortar também espigas ! E ao ver as terras estrumadas, como lume, Quedava-me a cismar no meu destino ... estrume. A
pomba que passava era a minha alma a voar ... E era a minha agonia um pinhal a ulular ! E, ao ver meadas de linho a corarem, ao sol, Pensava ... se estaria, ali, o meu lençol ...
E o que eu cismava ao ver passar os carpinteiros, Cantando alegres e fumando, galhofeiros, A tiracolo a serra, o martelo e o formão ... Vinham, quem sabe ! de acabar o meu caixão ! Deitava-me no chão de ventre para o Ar, Cismava : se morrer, é assim que hei-de ficar ...
Como me tinha em pé, não sei. Siquer um músculo ! Ã hora cristã, entre as nevroses do Crepúsculo, Entre os sussurros da tardinha, ao sol-poente, Quando cantam na sombra as fontes, vagamente, Quando na estrada vão as mulinhas, a trote, Que o alvo moleiro faz marchar sem o chicote, Ó Natureza ! tão amigos são os dois ! ... E se ouvem expirar os chocalhos dos bois, Ao longe, ao longe, entre as carvalhas do caminho ... Quando na ermida dão Trindades, de mansinho, E os cravos dão à luz o fruto do seu ventre ... Quando se vê os céus doidos, místicos, entre Soluços e ais a desmaiar, como num flato : Ali, na encosta aonde bebem num regato Os Animais, também bebia. Ora uma vez (Sim, faz agora, pelo São Martinho, um mês )
Quando para beber me debrucei na pia, No fundo de água, vi uma fotografia ... Jesus ! Um velho ! O seu cabelo assim ao lado, O mesmo era que o meu, todo encaracolado ! O rosto ebúrneo ! o olhar era tal qual o meu ! E o lábio ... Horror ! Fugi ! Esse velhinho era eu !
Fugi !
E, desde então, não mais saí de casa. Há muito, que não vejo uma flor, uma asa, Há muito já, que não sorvi o mel dum beijo : Do meu cortiço voou a abelha do Desejo. As duas filhas do caseiro, ao vir da escola, Dantes vinham-me ver, eu dava-lhes esmola. Cantavam, riam e saltavam, um demónio ! E tão lindas, Jesus ! tão amigas do António ... E, agora, mal me vêem, tremem todas, coitadas ! Eu chamo-as da janela e fogem, assustadas ! E, ao vê-las na fugida, eu quase que desmaio ... Jesus, tão lindas ! são duas Tardes de Maio !
Um doente faz medo. Por isso fogem dele. Estou, aqui, estou ido. Só tenho pele. Nada me salva, nada ! É impossível salvar-me. E o que eu tenho a fazer é, apenas, resignar-me E já me resignei... Mas Carlota, esse amor, Quis por força chamar o bom Sr.
Doutor. E eu consenti, enfim. E lá mandou o criado Buscar o cirurgião. Ele é o mais afamado Nestas três léguas, o Doutor da Presa Velha. Ei-lo que chega ...
— Olá ! ... ( Vê-me a língua vermelha, Toma-me o pulso ... ) —Está bom, isso não é nada, Beba-lhe bem, vá aos domingos à toirada, E, sobretudo, veja lá... nada de versos... Mas o doutor mais eu, nós somos tão diversos !
Certo, ele é sábio, mas não tem prática alguma Destas moléstias e o que eu tenho é, apenas, uma Tísica de Alma. Enfim ...
A Carlota ! A Carlota ! Boa velhinha, como ela é meiga e devota ! Já estaria bem, se me valessem rezas. E, no Oratório, tem duas velas acesas Noite e dia, a clamar à Senhora das Dores ! E queima-lhe alecrim, põe-lhe jarras com flores E sei, até, que prometeu uma novena, Se eu escapar ... Como tudo isso me faz pena ! E trata-me tão bem, tão bem ! como se eu fosse Seu filho. Dá-me, olhai, pratinhos de arroz doce Com as iniciais do meu nome em canela, E traz-me o caldo, como exijo, na tigela Por onde come o seu. E dá-me o vinho fino, Onde me molha o pão-de-ló « prò seu menino » Que é assim que eu gosto, pelo Cálix do Senhor, Que pertenceu, outrora, ao meu Tio Reitor. Carlota é um beijo.
Faz-me todas as vontades. Quando me sinto pior, ao bater das Trindades, E me apetece comer terra, algumas vezes ( Assim, são nossas mães, perto dos Nove Meses ) Sai a buscar uma mão-cheia. Vem molhada : Foi ela que chorou... mas diz que «é da orvalhada...» E quando, enfim, sombrio, agoniado, farto, Me vou deitar, a santa acompanha-me ao quarto : Ajuda-me a despir e mete-me na cama. E com um mimo que só sabe ter uma ama Cobre-me bem, « durma, não cisme », dá-me um beijo, E
sai. Finge que sai, ela cuida que eu não vejo, Mas fica à porta, à escuta, a ouvir-me falar só, E não se vai deitar ...
Onde há, assim, uma Avó ?
A todo o instante, se ouve à porta : «Tlim, tlim, tlim !» Três léguas em redor manda saber de mim : ( Aqui, lhes deixo minha eterna gratidão. ) Toca o sino e lá vai a Carlota ao portão, Muito baixinha, atarefada ; espreita à grade, — Quem é ? ... E, então, olhai !
«É o Sr. Abade Que manda esta perdiz, mortinha de manhã ;» Mais o Sr. D.
Sebastião de Vila Meã — O bom Senhor ! pra que se está a incomodar !
« Que manda este salmão do Tâmega, a saltar ;»
Mais o Sr. Doutor de Linhares «que manda Os cravos mais lindos que tinha na varanda ;» Mais « o da Igreja que oferece a codorniz Que matou, hoje, na Tapada de Dom Luís;» Mais o Sr. Miguel das Alminhas de Pulpa «
Que manda este peru e que pede desculpa ;» Mais ( as fidalgas de Raimonda e de Tuias : Mandam os livros e cá vêm, um destes dias ...» E, até, o Astrónomo, coitado ! e o Zé dos Lodos Mandam coisas : sei lá ... o que podem. E
todos Mandam também saber como vai o Menino ...» E, então, Carlota, bom Deus ! é tal qual o sino Na noite a badalar as suas badaladas ! Põe-se a contar, carpindo, a minha doença às criadas. Tudo o que eu digo, quanto faço, quanto quero :
— Olhe, Sr.
a Júlia, às vezes, desespero ...
Mas, eu quero-lhe tanto ! ajudei-o a criar ... Em pequenino era tão bom de aturar ... E depois era tão alegre, tão esperto ! E então que lindo ! era mesmo um cravo aberto ! Mas, hoje, é aquilo : tem os olhinhos sumidos, Tão faltinho de cor, os cabelos compridos, E
tosse tanta vez ! já arqueia das costas ... Só falta vê-lo deitadinho, de mãos postas ! E ele é tão bom, tem tão bons modos ...
— Coitadinho !
— Olhe, Sr.
a Júlia, nunca viu o linho Que a gente deita ao sol, quando é para secar, E que se põem assim a esticar, a esticar ? Assim é o meu Menino ...
— Ó Senhora Carlota E
se eu falasse à Ana Coruja, essa que bota As cartas ?
Foi talvez malzinho que lhe deu ...
— Nunca foi assim : foi depois que se meteu A fumar, a beber e lá com as po'sias.
Aquilo para mim foram as companhias.
Vinha para casa à meia-noite, noite morta, E eu fazia serão para lhe abrir a porta.
E nunca ia à lição, ficava sempre mal Nos seus exames, escrevia no jornal ;
E o Pai ( que é um santo, como há poucos ) que não via Nem vê mais nada, então nunca o repreendia Com medo de o afligir ... mas depois, quando estava Metido à noite, só, no seu quarto ... cismava.
— O Povo diz por i que foi paixão que trouxe Lá dos estudos, de Coimbra ...
— Antes fosse, Porque o remédio estava, ali, na Igreja ... Adei ...
—Mas se a menina não quisesse... eu sei, eu sei...
—Sr.
a Júlia ! Não havia de querer !
Não que ele é mesmo alguém i para se perder, Para deitar à rua : um senhor tão prendado ! Depois, está aqui, está quase formado ...
Ai valha-me, Jesus ! eu perco a ideia, faço A minha perdição ... Às vezes, ergue o braço E vai por i fora, por todas essas salas, A pregar, a pregar, e tem mesmo umas falas Que não enxergo bem, mas que fazem tremer :
Ontem, à noite, quando se ia recolher, ( Quando faz lindo luar, quer deitar-se sem vela)
Entrou na alcova, eu tinha ainda aberta a janela, E diz-me, assim, tão mau : «pra que veio entornar Água no quarto ?» e vai-se a ver ... era o luar !
E quando foi para chamar o cirurgião ?
Jesus ! quanto custou ! Que não, que não, que não !
Não tinha fé nenhuma « em um doutor humano »
Que só a tinha no Sr. Dr. Oceano.
Mas uma coisa que lhe faz ainda pior, Que o faz saltar e lhe enche a testa de suor, É um grande livro que ele traz sempre consigo, E nunca o larga : diz que é o seu melhor amigo, E lê, lê, chama-me : «Carlota, anda ouvir !» Mas ... nada oiço. Diz que é o Sr. Shakespeare.
14 E, às vezes, bota versos, diz coisas tão más !
Nada lhe digo, mas aquilo não se faz.
Ainda, esta manhã : eu estava a pôr flores E as velas acendia à Senhora das Dores, ( Que tem dó dele, coitadinha ! chora tanto ... )
Vai o Menino a olhar, a olhar, sai-me dum canto E uiva-lhe, assim :
«Antes as tuas Sete Espadas !»
E o que à Sr.ª Júlia diz, diz às mais criadas.
2 MESES DEPOIS, NUM CEMITÉRIO
ANTO
Olá, bom velho ! é aqui o Hotel da Cova, Tens algum quarto ainda para alugar ? Simples que seja, basta-me uma alcova... ( Como eu estou molhado ! é do luar ... )
O POVO
O luar averte as orvalhadas sobre as ruas !
Jesus ! que lindo ...
Vamos ! depressa ! Vem, faze-me a cama, Que eu tenho sono, quero-me deitar ! Ó velha Morte, minha outra ama ! Para eu dormir, vem dar-me de mamar...
A SR.* JÚLIA
São as Janeiras da Lua !
O COVEIRO
Os quartos, meu Senhor, estão tomados, Mas se quiser na vala ( que é de graça ... )
Dormem, ali, sòmente os desgraçados :
Têm bom dormir... bom sítio... ninguém passa...
O ZÉ DOS LODOS
A Lua é a nossa vaca, ó Maria, Mugindo ...
Ainda lá, ontem, hospedei um moço E não se queixa ... E há-de poupá-lo a traça, Porque esses hóspedes só trazem osso, E a carne em si, valha a verdade, é escassa.
O DR. DELEGADO A
noite parece dia !
ANTO
Escassa, sim ! mas tenho ossada ainda, Enquanto que a Alma, ai de mim ! nada tem ... Guia-me ao quarto ...
(a Lua vai tão linda ! ) Dize-me : quantos anos me dás ? Cem ?
O SR. ABADE
E esta ? Em vez de trazer a opa, que é de lugar.
Trouxe a de anjinho !
A MULHER DO MOLEIRO
É o luar, Sr. Abade, é o luar !
Oh cem ! E os que eu não mostro e o peito guarda ... Os teus mortinhos, sim ! dormem tão bem : « Dormi, dormi !
que vossa Mãe não tarda, Foi lavar à Fontinha de Belém ...»
O ASTRÓNOMO
Isto luar assim ! Isto é o Verão De São Martinho !
O COVEIRO
Aqui. Fica melhor do que em 1." : Colchão assim não acha em parte alguma ! Os outros são de chumbo, de madeira, Mas este, veja bem, é sumaúma ...
O CEGO DO CASAL
Faz solzinho, que horas são ?
Cantando :
« Colchão de raízes e de folhas, liso, Lençóis de terra, brandos como espuma, Dá-los-ei ao rol, no Dia de Juízo ...» Pronto. Quer mais alguma coisa ? fuma ?
CARLOTA
Ó luar, anda mais devagarinho! Deixa dormir o meu menino ...
Coitadinho !
ANTO
Mais nada. Boas noites. Fecha a porta : ( Que linda noite ! Os cravos vão a abrir ... Faz tanto frio ! ) Apaga a luz ! ( Que importa ? A roupa chega para me cobrir ...
)
A MÃE DE ANTO
Aqui, espero-te, há que tempo enorme I Tens o lugar quentinho ...
Toma lá para ti, guarda. E ouve : na hora Final, quando a Trombeta além se ouvir, Tu não me venhas acordar, embora Chamem ... Ah deixame dormir, dormir !
DEUS
Dorme, dorme.
Paris, I89I.