Sarças de Fogo
O JULGAMENTO DE FRINÉIA
Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia, Comparece ante a austera e rígida assembléia Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira Aquela formosura original, que inspira E dá vida ao genial cinzel de Praxíteles, De Hiperides à voz e à palheta de Apeles.
Quando os vinhos, na orgia, os convivas exaltam E das roupas, enfim, livres os corpos saltam, Nenhuma hetera sabe a primorosa taça, Transbordante de Cós, erguer com maior graça, Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio, Mais formoso quadril, nem mais nevado seio.
Estremecem no altar, ao contempla-la, os deuses, Nua, entre aclamações, nos festivais de Elêusis...
Basta um rápido olhar provocante e lascivo:
Quem na fronte o sentiu curva a fronte, cativo...
Nada iguala o poder de suas mãos pequenas:
Basta um gesto, - e a seus pés roja-se humilde Atenas...
Vai ser julgada. Um véu, tornando inda mais bela Sua oculta nudez, mal os encantos vela, Mal a nudez oculta e sensual disfarça.
Cai-lhe, espáduas abaixo, a cabeleira esparsa...
Queda-se a multidão. Ergue-se Eutias. Fala, E incita o tribunal severo a condena-la:
“Elêusis profanou! É falsa e dissoluta, Leva ao lar a cizânia e as famílias enluta!
Dos deuses zomba! É ímpia! é má!” (E o pranto ardente Corre nas faces dela, em fios, lentamente...)
“Por onde os passos move a corrupção se espraia, E estende-se a discórdia! Heliastes! condenai-a!”
Vacila o tribunal, ouvindo a voz que o doma...
Mas, de pronto, entre a turba Hiperides assoma, Defende-lhe a inocência, exclama, exora, pede, Suplica, ordena, exige... O Areópago não cede.
“Pois condenai-a agora!” E à ré, que treme, a branca Túnica despedaça, e o véu, que a encobre, arranca...
Pasmam subitamente os juízes deslumbrados, - Leões pelo calmo olhar de um domador curvados:
Nua e branca, de pé, patente à luz do dia Todo o corpo ideal, Frinéia aparecia Diante da multidão atônita e surpresa, No triunfo imortal da Carne e da Beleza.
MARINHA
Sobre as ondas oscila o batel docemente...
Sopra o vento a gemer. Treme enfunada a vela.
Na água mansa do mar passam tremulamente Áureos traços de luz, brilhando esparsos nela.
Lá desponta o luar. Tu, palpitante e bela, Canta! Chega-te a mim! Dá-me essa boca ardente!
Sobre as ondas oscila o batel docemente...
Sopra o vento a gemer. Treme enfunada a vela.
Vagas azuis, parai! Curvo céu transparente, Nuvens de prata, ouvi! - Ouça na altura a estrela, Ouça de baixo o oceano, ouça o luar albente:
Ela canta! - e, embalado ao som do canto dela, Sobre as ondas oscila o batel docemente.
SOBRE AS BODAS DE UM SEXAGENÁRIO
Amar. Um novo sol apontou no horizonte, E ofuscou-te a pupila e iluminou-te a fronte...
Lívido, o olhar sem luz, roto o manto, caída Sobre o peito, a tremer, a barba encanecida, Descias, cambaleando, a encosta pedregosa Da velhice. Que mão te ofereceu, piedosa, Um piedoso bordão para amparar teus passos?
Que te estendeu a vida, estendendo-te os braços?
Ias desamparado, em sangue os pés, sozinho...
E era horrendo o arredor, torvo o espaço, o caminho Sinistro, acidentado... Uivava perto o vento E rodavam bulcões no torvo firmamento.
Entrado de terror, a cada passo o rosto Voltavas, perscrutando o caminho transposto, E volvias o olhar: e o olhar alucinado Via de um lado a treva, a treva de outro lado, E assombrosas visões, vultos extraordinários, Desdobrando a correr os trêmulos sudários.
E ouvias o rumor de uma enxada, cavando Longe a terra... E paraste exânime.
Foi quando Te pareceu ouvir, pelo caminho escuro, Soar de instante a instante um passo mal seguro Como o teu. E atentando, entre alegria e espanto, Viste que vinha alguém compartindo o teu pranto, Trilhando a mesma estrada horrível que trilhavas, E ensangüentando os pés onde os ensangüentavas.
E sorriste. No céu fulgurava uma estrela...
E sentiste falar subitamente, ao vê-la, Teu velho coração dentro do peito, como Desperto muita vez, no derradeiro assomo Da bravura, - sem voz, decrépito, impotente, Trôpego, sem vigor, sem vista, - de repente Rica a juba, e, abalando a solidão noturna, Urra um velho leão numa apartada furna.
ABYSSUS
Bela e traidora! Beijas e assassinas...
Quem te vê não tem forças que te oponha:
Ama-te, e dorme no teu seio, e sonha, E, quando acorda, acorda feito em ruínas...
Seduzes, e convidas, e fascinas, Como o abismo que, pérfido, a medonha Fauce apresenta Flórida e risonha, Tapetada de rosas e boninas.
O viajor, vendo as flores, fatigado Foge o sol, e, deixando a estrada poenta, Avança incauto... Súbito, esbroado, Falta-lhe o solo aos pés: recua e corre, Vacila e grita, luta e se ensangüenta, E rola, e tomba, e se espedaça, e morre...
PANTUM
Quando passaste, ao declinar do dia, Soava na altura indefinido arpejo:
Pálido, o sol do céu se despedia, Enviando à terra o derradeiro beijo.
Soava na altura indefinido arpejo...
Cantava perto um pássaro, em segredo;
E, enviando à terra o derradeiro beijo, Esbatia-se a luz pelo arvoredo.
Cantava perto um pássaro em segredo;
Cortavam fitas de ouro o firmamento...
Esbatia-se a luz pelo arvoredo:
Caíra a tarde; sossegara o vento.
Cortavam fitas de ouro o firmamento...
Quedava imoto o coqueiral tranqüilo...
Caíra a tarde. Sossegara o vento.
Que mágoa derramada em tudo aquilo!
Quedava imoto o coqueiral tranqüilo...
Pisando a areia, que a teus pés falava, (Que mágoa derramada em tudo aquilo!)
Vi lá embaixo o teu vulto que passava.
Pisando a areia, que a teus pés falava, Entre as ramadas floridas seguiste.
Vi lá embaixo o teu vulto que passava...
Tão distraída! - nem sequer me viste!
Entre as ramadas floridas seguiste, E eu tinha a vista de teu vulto cheia.
Tão distraída! – nem sequer me viste!
E eu contava os teus passos sobre a areia.
Eu tinha a vista de teu vulto cheia.
E, quando te sumiste ao fim da estrada, Eu contava os teus passos sobre a areia:
Vinha a noite a descer, muda e pausada...
E, quando te sumiste ao fim da estrada, Olhou-me do alto uma pequena estrela.
Vinha a noite, a descer, muda e pausada, E outras estrelas se acendiam nela.
Olhou-me do alto uma pequena estrela, Abrindo as áureas pálpebras luzentes:
E outras estrelas se acendiam nela, Como pequenas lâmpadas trementes.
Abrindo as áureas pálpebras luzentes, Clarearam a extensão dos largos campos;
Como pequenas lâmpadas trementes Fosforeavam na relva os pirilampos.
Clarearam a extensão dos largos campos...
Vinha, entre nuvens, o luar nascendo...
Fosforeavam na relva os pirilampos...
E eu inda estava a tua imagem vendo.
Vinha, entre nuvens, o luar nascendo:
A terra toda em derredor dormia...
E eu inda estava a tua imagem vendo, Quando passaste ao declinar do dia!
NA TEBAIDA
Chegar, com os olhos úmidos, tremente A voz, os seios nus, - como a rainha Que ao ermo frio da Tebaida vinha Trazer a tentação do amor ardente.
Luto: porém teu corpo se avizinha Do meu, e o enlaça como uma serpente...
Fujo: porém a boca prendes, quente, Cheia de beijos, palpitante, à minha...
Beija mais, que o teu beijo me incendeia!
Aperta os braços mais! que eu tenha a morte, Preso nos laços de prisão tão doce!
Aperta os braços mais, - frágil cadeia Que tanta força tem não sendo forte, E prende mais que se de ferro fosse!
MILAGRE
É nestas noites sossegadas, Em que o luar aponta, e a fina, Móbil e trêmula cortina Rompe das nuvens espalhadas;
Em que no azul espaço, vago, Cindindo o céu, o alado bando, Vai das estrelas caminhando Aves de prata à flor de um lago;
É nestas noites – que, perdida, Louca de amor, minh’alma voa Para teu lado, e te abençoa, Ó minha aurora! ó minha vida!
No horrendo pântano profundo Em que vivemos, és o cisne Que o cruza, sem que a alvura tisne Da asa no limo infecto e imundo.
Anjo exilado das risonhas Regiões sagradas das alturas, Que passas puro, entre as impuras Humanas cóleras medonhas!
Estrela de ouro calma e bela, Que, abrindo a lúcida pupila, Brilhas assim clara e tranqüila Nas torvas nuvens da procela!
Raio de sol dourando a esfera Entre as neblinas deste inverno, E nas regiões do gelo eterno Fazendo rir a primavera!
Lírio de pétalas formosas, Erguendo à luz o níveo seio, Entre estes cardos, e no meio Destas eufórbias venenosas!
Oásis vende no deserto!
Pássaro voando descuidado Por sobre um solo ensangüentado E de cadáveres coberto!
Eu que homem sou, eu que a miséria Dos homens tenho, - eu, verme obscuro, Amei-te, flor! E, lodo impuro, Tentei roubar-te a luz sidérea...
Vaidade insana! Amar ao dia A treva horrenda que negreja!
Pedir a serpe, que rasteja, Amor à nuvem fugidia!
Insano amor! vaidade insana!
Unir num beijo o aroma à peste!
Vazar, num jorro, a luz celeste Na escuridão da noite humana!
Mas, ah! quiseste a ponta da asa, De pluma trêmula de neve Descer a mim, roçar de leve A superfície desta vasa...
E tanto pôde essa piedade, E tanto pôde o amor, que o lodo Agora é céu, é flores todo, E a noite escura é claridade!
NUMA CONCHA
Pudesse eu ser a concha nacarada, Que, entre os corais e as algas, a infinita Mansão do oceano habita, E dorme reclinada No fofo leito das areias de ouro...
Fosse eu a concha e, ó pérola marinha!
Tu fosses o meu único tesouro, Minha, somente minha!
Ah! com que amor, no ondeante Regaço de água transparente e clara, Com que volúpia, filha, com que anseio Eu as valvas de nácar apertara, Para guardar-te toda palpitante No fundo de meu seio!
SÚPLICA
Falava o sol. Dizia:
“Acorda! Que alegria Pelos ridentes céus se espalha agora!
Foge a neblina fria...
Pede-te a luz do dia, Pedem-te as chamas e o sorrir da aurora!”
Dizia o rio, cheio De amor, abrindo o seio:
“Quero abraçar-te as formas primorosas!
Vem tu, que embalde veio O sol: somente anseio Por teu corpo, formosa entre as formosas!
Quero-te inteiramente Nua! quero, tremente, Cingir de beijos tuas róseas pomas, Cobrir teu corpo ardente, E na água transparente Guardar teus vivos, sensuais aromas!”
E prosseguia o vento:
“Escuta o meu lamento!
Vem! não quero a folhagem perfumada;
Com a flor não me contento!
Mais alto é o meu intento:
Quero embalar-te a coma desnastrada!”
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Tudo a exigia... Entanto, Alguém, oculto a um canto Do jardim, a chorar, dizia: “Ó bela!
Já te não peço tanto:
Secara-se o meu pranto Se visse a tua sombra na janela!”
CANÇÃO
Dá-me as pétalas de rosa Dessa boca pequenina:
Vem com teu riso, formosa!
Vem com teu beijo, divina!
Transforma num paraíso O inferno do meu desejo...
Formosa, vem com teu riso!
Divina, vem com teu beijo!
Oh! tu, que tornas radiosa Minh’alma, que a dor domina, Só com teu riso, formosa, Só com teu beijo, divina!
Tenho frio, e não diviso Luz na treva em que me vejo:
Dá-me o clarão do teu riso!
Dá-me fogo do teu beijo!
RIO ABAIXO
Treme o rio, a rolar, de vaga em vaga...
Quase noite. Ao sabor do curso lento Da água, que as margens em redor alaga, Seguimos. Curva os bambuais o vento.
Vivo há pouco, de púrpura, sangrento, Desmaia agora o ocaso. A noite apaga A derradeira luz do firmamento...
Rola o rio, a tremer, de vaga em vaga.
Um silêncio tristíssimo por tudo Se espalha. Mas a lua lentamente Surge na fímbria do horizonte mudo:
E o seu reflexo pálido, embebido Como um gládio de prata na corrente, Rasga o seio do rio adormecido.
SATÂNIA
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Nua, de pé, solto o cabelo às costas, Sorri. Na alcova perfumada e quente, Pela janela, como um rio enorme De áureas ondas tranqüilas e impalpáveis, Profusamente a luz do meio-dia Entra e se espalha palpitante e viva.
Entra, parte-se em feixes rutilantes, Aviva as cores das tapeçarias, Doura os espelhos e os cristais inflama.
Depois, tremendo, como a arfar, desliza Pelo chão, desenrola-se, e, mais leve, Como uma vaga preguiçosa e lenta, Vem lhe beijar a pequenina ponta Do pequenino pé macio e branco.
Sobe ... cinge-lhe a perna longamente;
Sobe ... – e que volta sensual descreve Para abranger todo o quadril! – prossegue.
Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura, Morde-lhe os bicos túmidos dos seios, Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo Da axila, acende-lhe o coral da boca, E antes de se ir perder na escura noite, Na densa noite dos cabelos negros, Pára confusa, a palpitar, diante Da luz mais bela dos seus grandes olhos.
E aos mornos beijos, às carícias ternas Da luz, cerrando levemente os cílios, Satânia os lábios úmidos encurva, E da boca na púrpura sangrenta Abre um curto sorriso de volúpia...
Corre-lhe à flor da pele um calefrio;
Todo o seu sangue, alvoroçado, o curso Apressa; e os olhos, pela fenda estreita Das abaixadas pálpebras radiando, Turvos, que brados, lânguidos, contemplam, Fitos no vácuo, uma visão querida...
Talvez ante eles, cintilando ao vivo Fogo do ocaso, o mar se desenrole:
Tingem-se as águas de um rubor de sangue, Uma canoa passa... Ao largo oscilam Mastros enormes, sacudindo as flâmulas...
E, alva e sonora, a murmurar, a espuma Pelas areias se insinua, o limo Dos grosseiros cascalhos prateando...
Talvez ante eles, rígidas e imóveis, Vicem, abrindo os leques, as palmeiras:
Calma em tudo. Nem serpe sorrateira Silva, nem ave inquieta agita as asas.
E a terra dorme num torpor, debaixo De um céu de bronze que a comprime e estreita...
Talvez as noites tropicais se estendam Ante eles: infinito firmamento, Milhões de estrelas sobre as crespas águas De torrentes caudais, que, esbravejando, Entre altas serras surdamente rolam...
Ou talvez, em países apartados, Fitem seus olhos uma cena antiga:
Tarde de outono. Uma tristeza imensa Por tudo. A um lado, à sombra deleitosa Das tamareiras, meio adormecido, Fuma um árabe. A fonte rumoreja Perto. À cabeça o cântaro repleto, Com as mãos morenas suspendendo a saia, Uma mulher afasta-se, cantando...
E o árabe dorme numa densa nuvem De fumo... E o canto perde-se à distância...
E a noite chega, tépida e estrelada...
Certo, bem doce deve ser a cena Que os seus olhos estáticos ao longe, Turvos, quebrados, lânguidos, contemplam.
Há pela alcova, entanto, um murmúrio De vozes. A princípio é um sopro escasso, Um sussurrar baixinho... Aumenta logo:
É uma prece, um clamor, um coro imenso De ardentes vozes, de convulsos gritos.
É a voz da Carne, é a voz da Mocidade, - Canto vivo de força e de beleza, Que sobe desse corpo iluminado...
Dizem os braços: “-Quando o instante doce Há de chegar, em que, à pressão ansiosa Destes laços de músculos sadios, Um corpo amado vibrará de gozo?-“
E os seios dizem: “- Que sedentos lábios, Que ávidos lábios sorverão o vinho Rubro, que temos nestas cheias taças?
Para essa boca que esperamos, pulsa Nestas carnes o sangue, enche estas veias, E entesa e apruma estes rosados bicos...-“
E a boca: “- Eu tenho nesta fina concha Pérolas níveas do mais alto preço, E corais mais brilhantes e mais puros Que a rubra selva que de um tírio manto Cobre o fundo dos mares da Abissínia...
Ardo e suspiro! Como o dia tarda Em que meus lábios possam ser beijados, Mais que beijados: possam ser mordidos-“
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Mas, quando, enfim, das regiões descendo Que, errante, em sonhos percorreu, Satânia Olha-se, e vê-se nua, e, estremecendo, Veste-se, e aos olhos ávidos do dia Vela os encantos, - essa voz declina Lenta, abafada, trêmula...
Um barulho De linhos frescos, de brilhantes sedas Amarrotadas pelas mãos nervosas, Enche a alcova, derrama-se nos ares...
E, sob as roupas que a sufocam, inda Por largo tempo, a soluçar, se escuta Num longo choro a entrecortada queixa Das deslumbrantes carnes escondidas...
QUARENTA ANOS
Sim! Como um dia de verão, de acesa Luz, de acesos e cálidos fulgores, Como os sorrisos da estação das flores, Foi passando também tua beleza.
Hoje, das garras da descrença presa, Perdes as ilusões. Vão-se-te as cores Da face. E entram-te n’alma os dissabores, Nublam-te o olhar as sombras da tristeza.
Expira a primavera. O sol fulgura Com o brilho extremo... E aí vêm as noites frias, Aí vem o inverno da velhice escura...
Ah! Pudesse eu fazer, novo Ezequias, Que o sol poente dessa formosura Volvesse à aurora dos primeiros dias!
VESTÍGIOS
Foram-te os anos consumindo aquela Beleza outrora viva e hoje perdida...
Porém teu rosto da passada vida Inda uns vestígios trêmulos revela.
Assim, dos rudes furacões batida, Velha, exposta aos furores da procela, Uma árvore de pé, serena e bela, Inda se ostenta, na floresta erguida.
Raivoso o raio a lasca, e a estala, e a fende...
Racha-lhe o tronco anoso... Mas, em cima, Verde folhagem triunfal se estende.
Mal segura no chão, vacila... Embora!
Inda os ninhos conserva, e se reanima Ao chilrear dos pássaros de outrora...
UM TRECHO DE TH. GAUTIER
(Mlle. De Maupin)
É porque eu sou assim que o mundo me repele, E é por isso também que eu nada quero dele:
Minh’alma é uma região ridente e esplendorosa, Na aparência: porém pútrida e pantanosa, Cheia de emanações mefíticas, repleta De imundos vibriões, como a região infecta Da Batávia, de um ar pestífero e nocivo.
Olha a vegetação: tulipas de ouro vivo, Fulvos nagassaris de ampla coroa, flores De angsoka, pompeando a opulência das cores, Viçam; viçam rosais de púrpura, sorrindo Sob o límpido azul de um céu sereno e infindo...
Mas a flórea cortina entreabre, e vê: - no fundo, Sobre os trôpegos pés movendo o corpo imundo, Vai de rastos um sapo hidrópico e nojento...
Olha esta fonte agora: o claro firmamento Traz no puro cristal, puro como um diamante.
Viajor! De longe vens, ardendo em sede? Adiante!
Segue! Fora melhor, ao cabo da jornada, De um pântano beber a água que, estagnada Entre os podres juncais, em meio da floresta Dorme... Fora melhor beber dessa água! Nesta Se acaso a incauta mão mergulha um dia a gente, Ao sentir-lhe a frescura ao mesmo tempo sente As picadas mortais das peçonhentas cobra, Que coleiam, torcendo e destorcendo as dobras Da escama, e da atra boca expelindo o veneno...
Segue! Porque é maldito e ingrato este terreno:
Quando, cheio de fé na colheita futura, Antegozando o bem da próxima fartura, Na terra, que fecunda e boa te parece, Semeares trigo, - em vez da ambicionada messe, Em vez da espiga de ouro a cintilar, - apenas Colherás o meimendro, e as cabeludas penas Que, como serpes, brande a mandrágora bruta,, Entre vegetações de asfódelo e cicuta...
Ninguém logrou jamais atravessar em vida A floresta sem fim, negra e desconhecida, Que eu tenho dentro d’alma. É uma floresta enorme, Onde, virgem intacta, a natureza dorme, Como nos matagais da América e de Java:
Cresce, crespa e cerrada, a laçaria brava Dos fléxiles cipós, curvos e resistentes, As árvores atendo em voltas de serpentes;
Lá dentro, na espessura, entre o esplendor selvagem Da flora tropical, nos arcos de folhagem Balançam-se animais fantásticos, suspensos:
Morcegos de uma forma extraordinária, e imensos Escaravelhos que o ar pesado e morno agitam.
Monstros de horrendo aspecto estas furnas habitam:
- Elefantes brutais, brutais rinocerontes, Esfregando ao passar contra os rugosos montes A rugosa couraça, e espedaçando os troncos Das árvores, lá vão; e hipopótamos broncos De túmido focinho e orelhas eriçadas, Batem pausadamente as patas compassadas.
Na clareira, onde o sol penetra ao meio-dia O auriverde dossel das ramagens, e enfia Como uma cunha de outro um raio luminoso, E onde um calmo retiro achar contaste ansioso, - Transido de pavor encontrarás, piscando Os olhos verdes, e o ar, sôfrego, respirando, Um tigre a dormitar, com a língua rubra o pêlo De veludo lustrando, ou, em calma, um novelo De boas, digerindo o touro devorado...
Tem receio de tudo! O céu puro e azulado, A erva, o fruto maduro, o sol, o ambiente mudo, Tudo aquilo é mortal... Tem receio de tudo!
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E é porque eu sou assim que o mundo me repele, E é por isso também que eu nada quero dele!
NO LIMIAR DA MORTE
“Grande lascivo! Espera-te a voluptuosidade do nada.”
(Machado de Assis, Brás Cubas)
Engelhadas as faces, os cabelos Brancos, ferido, chegas da jornada;
Revês da infância os dias; e, ao revê-los, Que fundas mágoas na alma lacerada!
Paras. Palpas a treva em torno. Os gelos Da velhice te cercam. Vês a estrada Negra, cheia de sombras, povoada De atros espectros e de pesadelos...
Tu, que amaste e sofreste, agora os passos Para meu lado moves. Alma em prantos, Deixa os ódios do muçulmano inferno...
Vem! Que enfim gozarás entre meus braços Toda a volúpia, todos os encantos, Toda a delícia do repouso eterno!
PARÁFRASE DE BAUDELAIRE
Assim! Quero sentir sobre a minha cabeça O peso dessa noite embalsamada e espessa...
Que suave calor, que volúpia divina As carnes me penetra e os nervos me domina!
Ah! Deixa-me aspirar indefinidamente Este aroma subtil, este perfume ardente!
Deixa-me adormecer envolto em teus cabelos!...
Quero senti-los, quero aspira-los, sorve-los, E neles mergulhar loucamente o meu rosto, Como quem vem de longe, e, às horas do sol posto, Acha a um canto da estrada uma nascente pura, Onde mitiga ansioso a sede que o tortura...
Quero tê-los nas mãos, e agita-los, cantando, Como a um lenço, pelo ar saudades espalhando.
Ah! Se pudesses ver tudo o que neles vejo!
- Meu desvairado amor! meu insano desejo!...
Teus cabelos contêm uma visão completa:
- Largas águas, movendo a superfície inquieta, Cheia de um turbilhão de velas e de mastros, Sob o claro dossel palpitante dos astros;
Cava-se o mar, rugindo, ao peso dos navios De todas as nações e todos os feitios, Desenrolando no alto as flâmulas ao vento, E recortando o azul do limpo firmamento, Sob o qual há uma eterna, uma infinita calma.
E prevê meu olhar e pressente minh’alma Longe, - onde, mais profundo e mais azul, se arqueia O céu, onde há mais luz, e onde a atmosfera, cheia De aromas, ao repouso e ao divagar convida, -
Um país encantado, uma região, uma região querida, Fresca, sorrindo ao sol, entre frutos e flores:
- Terra santa da luz, do sonho e dos amores...
Terra que nunca vi, terra que não existe, Mas da qual, entretanto, eu, desterrado e triste, Sinto no coração, ralado de ansiedade, Uma saudade eterna, uma fatal saudade!
Minha pátria ideal! Em vão estendo os braços Para teu lado! Em vão para teu lado os passos Movo! Em vão! Nunca mais em teu seio adorado Poderei repousar meu corpo fatigado...
Nunca mais! nunca mais!
Sobre a minha cabeça, Querida! abre essa noite embalsamada e espessa!
Desdobra sobre mim os teus negros cabelos!
Quero, sôfrego e louco, aspira-los, morde-los, E, bêbado de amor, o seu peso sentindo, Neles dormir envolto e ser feliz dormindo...
Ah! Se pudesses ver tudo o que neles vejo!
Meu desvairado amor! Meu insano desejo!
RIOS E PÂNTANOS
Muita vez houve céu dentro de um peito!
Céu coberto de estrelas resplendentes, Sobre rios alvíssimos, de leito De fina prata e margens florescentes...
Um dia veio, em que a descrença o aspeito Mudou de tudo: em túrbidas enchentes, A água um manto de lodo e trevas feito Estendeu pelas veigas recendentes.
E a alma que os anjos de asa solta, os sonhos E as ilusões cruzaram revoando, - Depois, na superfície horrenda e fria, Só apresenta pântanos medonhos, Onde, os longos sudários arrastando, Passa da peste a legião sombria...
DE VOLTA DO BAILE
Chega do baile. Descansa.
Move a ebúrnea ventarola.
Que aroma de sua trança Voluptuoso se evola!
Ao vê-la, a alcova deserta E muda até então, em roda Sentindo-a, treme, desperta, E é festa e delírio toda.
Despe-se. O manto primeiro Retira, as luvas agora, Agora as jóias, chuveiro De pedras da cor da aurora.
E pelas pérolas, pelos Rubins de fogo e diamantes, Faiscando nos seus cabelos Como estrelas coruscantes.
Pelos colares em dobras Enrolados, pelos finos Braceletes, como cobras Mordendo os braços divinos, Pela grinalda de flores, Pelas sedas que se agitam Murmurando e as várias cores Vivas do arco-íris imitam, - Por tudo, as mãos inquietas Se movem rapidamente, Como um par de borboletas Sobre um jardim florescente.
Voando em torno, infinitas, Precipitadas, vão, soltas, Revoltas nuvens de fitas, Nuvens de rendas revoltas.
E, de entre as rendas e o arminho, Saltam seus seios rosados, Como de dentro de um ninho Dois pássaros assustados.
E da lâmpada suspensa Treme o clarão; e há por tudo Uma agitação imensa, Um êxtase imenso e mudo.
E, como que por encanto, Num longo rumor de beijos, Há vozes em cada canto E em cada canto desejos...
Mais um gesto... E, vagarosa, Dos ombros solta, a camisa Pelo seu corpo, amorosa E sensualmente, desliza.
E o tronco altivo e direito, O braço, a curva macia Da espádua, o talhe do peito Que de tão branco irradia;
O ventre que, como a neve, Firme e alvíssimo se arqueia E apenas embaixo um leve Buço dourado sombreia;
A coxa firme, que desce Curvamente, a perna, o artelho;
Todo o seu corpo aparece Subitamente no espelho...
Mas logo um deslumbramento Se espalha na alcova inteira:
Com um rápido movimento Destouca-se a cabeleira.
Que riquíssimo tesouro Naqueles fios dardeja!
É como uma nuvem de ouro Que a envolve, e, em zelos, a beija.
Toda, contorno a contorno, Da fronte aos pés, cerca-a; e em ondas Fulvas derrama-se em torno De suas formas redondas:
E, depois de apaixonada Beija-la linha por linha, Cai-lhe às costas, desdobrada Como um manto de rainha...
SAHARA VITAE
Lá vão eles, lá vão! O céu se arqueia Como um tecto de bronze infindo e quente, E o sol fuzila e, fuzilando, ardente Criva de flechas de aço o mar de areia...
Lá vão, com os olhos onde a sede ateia Um fogo estranho, procurando em frente Esse oásis do amor que,m claramente, Além, belo e falaz, se delineia.
Mas o simum da morte sopra: a tromba Convulsa envolve-os, prostra-os; e aplacada Sobre si mesma roda e exausta tomba...
E o sol de novo no ígneo céu fuzila...
E sobre a geração exterminada A areia dorme plácida e tranqüila.
BEIJO ETERNO
Quero um beijo sem fim, Que dure a vida inteira e aplaque o meu desejo!
Ferve-me o sangue. Acalma-o com teu beijo, Beija-me assim!
O ouvido fecha ao rumor Do mundo, e beija-me, querida!
Vive só para mim, só para a minha vida, Só para o meu amor!
Fora, repouse em paz Dormida em calmo sono a calma natureza, Ou se debata, das tormentas presa, -
Beija inda mais!
E, enquanto o brando calor Sinto em meu peito de teu seio, Nossas bocas febris se unam com o mesmo anseio, Com o mesmo ardente amor!
De arrebol a arrebol, Vão-se os dias sem conto! E as noites, como os dias, Sem conto vão-se, cálidas ou frias!
Rutile o sol Esplêndido e abrasador!
No alto as estrelas coruscantes, Tauxiando os largos céus, brilhem como diamantes!
Brilhe aqui dentro o amor!
Suceda a treva à luz!
Vele a noite de crepe a curva do horizonte;
Em véus de opala a madrugada aponte Nos céus azuis, E Vênus, como uma flor, Brilhe, a sorrir, do ocaso à porta, Brilhe à porta do Oriente! A treva e a luz – que importa?
Só nos importa o amor!
Raive o sol no Verão!
Venha o Outono! do Inverno os frígidos vapores Toldem o céu! das aves e das flores Venha a estação!
Que nos importa o esplendor Da primavera, e o firmamento Limpo, e o sol cintilante, e a neve, e a chuva, e o vento?
Beijemo-nos, amor!
Beijemo-nos! que o mar Nossos beijos ouvindo, em pasmo a voz levante!
E cante o sol! a ave desperte e cante!
Cante o luar, Cheio de um novo fulgor!
Cante a amplidão! cante a floresta!
E a natureza toda, em delirante festa, Cante, cante este amor!
Rasgue-se, à noite, o véu Das neblinas, e o vento inquira o monte e o vale:
“Quem canta assim?” E uma áurea estrela fale Do alto do céu Ao mar, presa de pavor:
“Que agitação estranha é aquela?”
E o mar adoce a voz, e à curiosa estrela Responda que é o amor!
E a ave, ao sol da manhã, Também,. a asa vibrando, à estrela que palpita Responda, ao vê-la desmaiada e aflita:
“Que beijo, irmã!
Pudesses ver com que ardor Eles se beijam loucamente!”
E inveje-nos a estrela... e apague o olhar dormente, Morta, morta de amor!...
Diz tua boca: “Vem!”
“Inda mais!”, diz a minha, a soluçar... Exclama Todo o meu corpo que o teu corpo chama:
“Morde também!”
Ai! morde! que doce é a dor Que me entra as carnes, e as tortura!
Beija mais! Morde mais! Que eu morra de ventura, Morto por teu amor!
Quero um beijo sem fim, Qu dure a vida inteira e aplaque o meu desejo!
Ferve-me o sangue: acalma-o com teu beijo!
Beija-me assim!
O ouvido fecha ao rumor Do mundo, e beija-me, querida!
Vive só para mim, só para minha vida, Só para o meu amor!
POMBA E CHACAL
Ó Natureza! Ó mãe piedosa e pura!
Ó cruel, implacável assassina!
- Mão, que o veneno e o bálsamo propina E aos sorrisos as lágrimas mistura!
Pois o berço, onde a boca pequenina Abre o infante a sorrir, é a miniatura A vaga imagem de uma sepultura, O gérmen vivo de uma atroz ruína?!
Sempre o contraste! Pássaros cantando Sobre túmulos... flores sobre a face De ascosas águas pútridas boiando...
Anda a tristeza ao lado da alegria...
E esse teu seio, de onde a noite nasce, É o mesmo seio de onde nasce o dia...
MEDALHA ANTIGA
(Leconte de Lisle)
Este, sim! viverá por séculos e séculos, Vencendo o olvido. Soube a sua mão deixar, Ondenado no negror do ônix polido e rútilo, A alva espuma do mar.
Ao sol, bela e radiosa, o olhar surpreso e estático, Vê-se Kypre, à feição de uma jovem princesa, Molemente emergir à flor da face trêmula Da líquida turquesa.
Nua a deusa, nadando, a onde dos seios túmidos Leva diante de si, amorosa e sensual:
E a onda mansa do mar borda de argênteos flóculos Seu pescoço imortal.
Livre das fitas, solto em quedas de ouro, espalha-se Gotejante o cabelo: e o seu corpo encantado Brilha nas águas, como , entre violetas unidas, Um lírio imaculado.
E nada, e folga, enquanto as barbatanas ásperas E as fulvas caudas no ar batendo, e em derredor Turvando o Oceano, em grupo os delfins atropelam-se, Para a fitar melhor.
NO CÁRCERE
Por que hei de, em tudo quanto vejo, vê-la?
Por que hei de eterna assim reproduzida Vê-la na água do mar, na luz da estrela, Na nuvem de ouro e na palmeira erguida?
Fosse possível ser a imagem dela Depois de tantas mágoas esquecida!...
Pois acaso será, para esquece-la, Mister e força que me deixe a vida?
Negra lembrança do passado! Lento Martírio, lento e atroz! Por que não há de Ser dado a toda a mágoa o esquecimento?
Por quê? Quem me encadeia sem piedade No cárcere sem luz deste tormento, Com os pesados grilhões desta saudade?
OLHANDO A CORRENTE
Põe-te à margem! Contempla-a, lentamente, Crespa, turva, a rolar. Em vão indagas A que paragens, a que longes plagas Desce, ululando, a lúgubre torrente...
Vem de longe, de longe... Ouve-lhe as pragas!
Que infrene grita, que bramir freqüente, Que coro de blasfêmias surdamente Rolam na queda dessas negras vagas!
Choras? Tremes? É tarde... Esses violentos Gritos escuta! Em lágrimas, tristonhos, Fechas os olhos?... Olha ainda o horror Daquelas águas! Vê! Teus juramentos Lá vão! lá vão levados os meus sonhos, Lá vai levado todo o nosso amor!
E tremo a mezza state, ardendo inverno.
Petrarca Tenho frio e ardo em febre!
O amor me acalma e endouda! o amor me eleva e abate!
Quem há que os laços, que me prendem, quebre?
Que singular, que desigual combate!
Não sei que ervada flecha Mão certeira e falaz me cravou com tal jeito, Que, sem que eu a sentisse, a estreita brecha Abriu, por onde o amor entrou em meu peito.
O amor me entrou tão cauto O incauto coração, que eu nem cuidei que estava, Ao recebe-lo, recebendo o arauto Desta loucura desvairada e brava.
Entrou. E, apenas dentro, Deu-me a calma do céu e a agitação do inferno...
E hoje... ai! de mim, que dentro em mim concentro Dores e gostos num lutar eterno!
O amor, Senhora, vede:
Prendeu-me. Em vão me esforço, e me debato, e grito;
Em vão me agito na apertada rede...
Mais me embaraço quanto mais me agito!
Falta-me o senso: a esmo, Como um cego, a tatear, busco nem sei que porto:
E ando tão diferente de mim mesmo, Que nem sei se estou vivo ou se estou morto.
Sei que entre as nuvens paira Minha fronte, e meus pés andam pisando a terra;
Sei que tudo me alegra e me desvaira, E a paz desfruto, suportando a guerra.
E assim peno e assim vivo:
Que diverso querer! que diversa vontade!
Se estou livre, desejo estar cativo;
Se cativo, desejo a liberdade!
E assim vivo, e assim peno;
Tenho a boca a sorrir e os olhos cheios de água:
E acho o néctar num cálix de veneno, A chorar de prazer e a rir de mágoa.
Infinda mágoa! infindo Prazer! pranto gostoso e sorrisos convulsos!
Ah! Como dó assim viver, sentindo Asas nos ombros e grilhões nos pulsos!
NEL MEZO DEL CAMIN...
Cheguei. Cegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha, Tinhas a alma de sonhos povoada, E a alma de sonhos povoada eu tinha...
E paramos de súbito na estrada Da vida: longos anos, presa à minha A tua mão, a vista deslumbrada Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje, segues de novo... Na partida Nem o pranto os teus olhos umedece, Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo, Vendo o teu vulto que desaparece Na extrema curva do cominho extremo.
SOLITUDO
Já que te é grato o sofrimento alheio, Vai! Não fique em minh’alma nem um traço, Nem um vestígio teu! Por todo o espaço Se estende o luto carregado e feio.
Turvem-se os largos céus... No leito escasso Dos rios a água seque... E eu tenha o seio Como um deserto pavoroso, cheio De horrores, sem sinal de humano passo...
Vão-se as aves e as flores juntamente Contigo... Torre o sol a verde alfombra, A areia envolva solidão inteira...
E só fique em meu peito o Saara ardente Sem um oásis, sem a esquiva sombra De uma isolada e trêmula palmeira!
A CANÇÃO DE ROMEU
Abre a janela... acorda!
Que eu, só por te acordar, Vou pulsando a guitarra, corda a corda, Ao luar!
As estrelas surgiram Todas: e o limpo véu, Como lírios alvíssimos, cobriram Do céu.
De todas a mais bela Não veio inda, porém:
Falta uma estrela... És tu! Abre a janela, E vem!
A alva cortina ansiosa Do leito entreabre; e, ao chão Saltando, o ouvido presta à harmoniosa Canção.
Solta os cabelos cheios De aroma: e seminus, Surjam formosos, trêmulos, teus seios À luz.
Repousa o espaço mudo;
Nem uma aragem, vês?
Tudo é silêncio, tudo calma, tudo Mudez.
Abre a janela, acorda!
Que eu, só por te acordar, Vou pulsando a guitarra corda a corda, Ao luar!
Que puro céu! que pura Noite! nem um rumor...
Só a guitarra em minhas mãos murmura:
Amor!...
Não foi o vento brando Que ouviste soar aqui:
É o choro da guitarra, perguntando Por ti.
Não foi a ave que ouviste Chilrando no jardim:
É a guitarra que geme e trila triste Assim.
Vens, que esta voz secreta É o canto de Romeu!
Acorda! quem te chama, Julieta, Sou eu!
Porém... Ó cotovia, Silêncio! a aurora, em véus De névoa e rosas, não descobre o dia Nos céus...
Silêncio! que ela acorda...
Já fulge o seu olhar...
Adormeça a guitarra, corda a corda, Ao luar!
A TENTAÇÃO DE XENÓCRATES
I
Nada turbava aquela vida austera:
Calmo, traçada a túnica severa, Impassível, cruzando a passos lentos As aléias de plátanos, - dizia Das faculdades de alma e da teoria De Platão aos discípulos atentos.
Ora o viram perder-se, concentrado, No labirinto escuso de intricado, Controverso e sofístico problema, Ora os pontos obscuros explicando Do Timeu, e seguro manejando A lâmina bigúmea do dilema.
Muitas vezes, nas mãos pousando a fronte, Com o vago olhar perdido no horizonte, Em pertinaz meditação ficava...
Assim, junto às sagradas oliveiras, Era imoto seu corpo horas inteiras, Mas longe dele o espírito pairava.
Longe, acima do humano fervedouro, Sobre as nuvens radiantes, Sobre a planície das estrelas de ouro;
Na alta esfera, no páramo profundo Onde não vão, errantes, Bramir as vozes das paixões do mundo:
Aí, na eterna calma, Na eterna luz dos céus silenciosos, Voa, abrindo, sua alma As asas invisíveis, E interrogando os vultos majestosos Dos deuses impassíveis...
E a noite desce, afuma o firmamento...
Soa somente, a espaços, O prolongado sussurrar do vento...
O expira, às luzes últimas do dia, Todo o rumor dos passos Pelos ermos jardins da Academia.
E, longe, luz mais pura Que a extinta luz daquele dia morto Xenócrates procura:
- Imortal claridade, Que é proteção e amor, vida e conforto, Porque é a luz da verdade.
II
Ora Laís, a siciliana escrava Que Apeles seduzira, amada e bela Por esse tempo Atenas dominava...
Nem o frio Demóstenes altivo Lhe foge o império: dos encantos dela Curva-se o próprio Diógenes cativo.
Não é maior que a sua a encantadora Graça das formas nítidas e puras Da irresistível Diana caçadora;
Há nos seus olhos um poder divino;
Há venenos e pérfidas doçuras Na fita de seu lábio purpurino;
Tem nos seios – dois pássaros que pulam Ao contacto de um beijo, - nos pequenos Pés, que as sandálias sôfregas osculam.
Na coxa, no quadril, no torno airoso, Todo o primor da calipígia Vênus - Estátua viva e esplêndida do Gozo.
Caem-lhe aos pés as pérolas e as flores, As dracmas de ouro, as almas e os presentes, Por uma noite de febris ardores.
Heliastes e Eupátridas sagrados, Artistas e Oradores eloqüentes Leva ao carro de glória acorrentados...
E os generais indômitos, vencidos, Vendo-a, sentem por baixo das couraças Os corações de súbito feridos.
III
Certa noite, ao clamor da festa, em gala, Ao som contínuo das lavradas taças Tinindo cheias na espaçosa sala, Vozeava o Ceramico, repleto De cortesãs e flores. As mais belas Das heteras de Samos e Mileto Eram todas na orgia. Estas bebiam, Nuas, à deusa Ceres. Longe, aquelas Em animados grupos discutiam.
Pendentes no ar, em nuvens densas, vários Quentes incensos índicos queimando, Oscilavam de leve os incensários.
Tíbios flautins finíssimos gritavam;
E, as curvas harpas de ouro acompanhando, Crótalos claros de metal cantavam...
O espúmeo Chipre as faces dos convivas Acendia. Soavam desvairados Febris acentos de canções lascivas.
Via-se a um lado a pálida Frinéia, Provocando os olhares deslumbrados E os sensuais desejos da assembléia.
Laís além falava: e, de seus lábios Suspensos, a beber-lhe a voz maviosa, Cercavam-na Filósofos e Sábios.
Nisto, entre a turba, ouviu-se a zombeteira Voz de Aristipo: “És bela e poderosa, Laís! mas, por que sejas a primeira, A mais irresistível das mulheres, Cumpre domar Xenócrates! És bela...
Poderás fasciná-lo se o quiseres!
Doma-o, e serás rainha! “ Ela sorria...
E apostou que, submisso e vil, naquela Mesma noite a seus pés o prostraria.
Apostou e partiu...
IV
Na alcova muda e quieta, Apenas se escutava Leve, a areia, a cair no vidro da ampulheta...
Xenócrates velava.
Mas que harmonia estranha, Que sussurro lá fora! Agita-se o arvoredo Que o límpido luar serenamente banha:
Treme, fala em segredo...
As estrelas, que o céu cobrem de lado a lado, A água ondeante dos lagos Fitam, nela espalhando o seu clarão dourado, Em tímidos afagos.
Solta um pássaro o canto.
Há um cheiro de carne à beira dos caminhos...
E acordam ao luar, como que por encanto, Estremecendo, os ninhos...
Que indistinto rumor! Vibram na voz do vento Crebos, vivos arpejos.
E vai da terra e vem do curvo firmamento Um murmurar de beijos.
Com as asas de ouro, em roda Do céu, naquela noite úmida e clara, voa Alguém que a tudo acorda e a natureza toda De desejos povoa:
É a Volúpia que passa e no ar desliza; passa, E os corações inflama...
Lá vai! E, sobre a terra, o amor, da curva taça Que traz às mãos, derrama.
E entretanto, deixando A alva barba espalhar-se em rolos sobre o leito, Xenócrates medita, as magras mãos cruzando Sobre o escarnado peito.
Cisma. E tão aturada é a cisma em que flutua Sua alma, e que as regiões ignotas o transporta, - Que não sente Laís, que surge seminua Da muda alcova à porta.
V
É bela assim! Desprende a clâmide! Revolta, Ondeante, a cabeleira, aos níveos ombros solta, Cobre-lhe os seios nus e a curva dos quadris, Num louco turbilhão de áureos fios subtis.
Que fogo em seu olhar! Vê-lo é a seus pés prostrada A alma ter suplicante, em lágrimas banhada, Em desejos acesa! Olhar divino! Olhar Que encadeia, e domina, e arrasta ao seu altar Os que morrem por ela, e ao céu pedem mais vida, Para tê-la por ela inda uma vez perdida!
Mas Xenócrates cisma...
É em vão que, a prumo, o sol Desse olhar abre a luz num radiante arrebol...
Em vão! Vem tarde o sol! Jaz extinta a cratera, Não há vida, nem ar, nem luz, nem primavera:
Gelo apenas! E, em gelo envolto, ergue o vulcão Os flancos, entre a névoa e a opaca cerração...
Cisma o sábio. Que importa aquele corpo ardente Que o envolve, e enlaça, e prende, e aperta loucamente?
Fosse cadáver frio o mundo ancião! talvez Mais sentisse o calor daquela ebúrnea tez!...
Em vão Laís o braça, e o nacarado lábio Chega-lhe ao lábio frio... Em vão! Medita o sábio, E nem sente o calor desse corpo que o atrai, Nem o aroma febril que dessa boca sai.
E ela: “Vivo não és! Jurei domar um homem, Mas de beijos não sei que a pedra fria domem!”
Xenócrates, então, do leito levantou O corpo, e o olhar no olhar da cortesã cravou:
“Pode rugir a carne... Embora! Dela acima Paira os espírito ideal que a purifica e anima:
Cobrem nuvens o espaço, e, acima do atro véu Das nuvens, brilha a estrela iluminando o céu!”
Disse. E outra vez, deixando A alva barba espalhar-se em rolos sobre o leito, Quedou-se a meditar, as magras mãos cruzando Sobre o escarnado peito.
Fonte:
BILAC, Olavo. Antologia : Poesias. São Paulo : Martin Claret, 2002. p.57-93 : Sarças de
fogo. (Coleção a obra-prima de cada autor).
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Anamaria Grunfeld Villaça Koch – São Paulo/SP
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