Poesias Completas
POESIAS LÍRICAS
O QUE SÃO MEUS VERSOS
Se é vate quem acesa a fantasia Tem de divina luz na chama eterna;
Se é vate quem do mundo o movimento C’o movimento das canções governa;
Se é vate quem tem n’alma sempre abertas Doces, límpidas fontes de ternura, Veladas por amor, onde se miram As faces da querida formosura;
Se é vate quem dos povos, quando fala, As paixões vivifica, excita o pasmo, E da glória recebe sobre a arena As palmas, que lhe of’rece o entusiasmo;
Eu triste, cujo fraco pensamento Do desgosto gelou fatal quebranto;
Que, de tanto gemer desfalecido, Nem sequer movo os ecos com meu canto;
Eu triste, que só tenho abertas n’alma Envenenadas fontes d’agonia, Malditas por amor, a quem nem sombra De amiga formosura o céu confia;
Eu triste, que, dos homens desprezado, Só entregue a meu mal, quase em delírio, Ator no palco estreito da desgraça, Só espero a coroa do martírio;
Vate não sou, mortais; bem o conheço;
Meus versos, pela dor só inspirados, —
Nem são versos — menti — são ais sentidos, Às vezes, sem querer, d’alma exalados;
São fel, que o coração verte em golfadas Por contínuas angústias comprimido;
São pedaços das nuvens, que m’encobrem Do horizonte da vida o sol querido;
São anéis da cadeia, qu’arrojou-me 2 Aos pulsos a desgraça, ímpia, sanhuda;
São gotas do veneno corrosivo, Que em pranto pelos olhos me transuda.
Seca de fé, minha alma os lança ao mundo, Do caminho que levam descuidada, Qual, ludíbrio do vento, as secas folhas Solta a esmo no ar planta mirrada.
O MEU SEGREDO
I
O lume de sinistro fogo estranho Que em meu olhar se acende;
A nuvem que de mágoas carregada No rosto se me estende;
Esta agonia acerba que repassa Os sons da minha lira;
Este céptico altivo horror ao mundo Que em tudo meu respira;
Estas rugas, que trago sobre as faces, Os modos distraídos, A constante desordem do semblante, Dos gestos, dos vestidos;
Revela tudo um segredo, Que o mundo não sabe ler;
Segredo, que só com pranto É que se pode escrever;
Segredo, que em meu futuro Negro anátema cuspiu;
Segredo, que seduziu-me;
Segredo que me traiu.
Letras escritas com pranto Sei que apagadas serão!
Sei que um segredo de mágoas Nunca merece atenção!
Mas não importa; hoje quero O meu segredo escrever;
Que guardado por mais tempo Talvez me faça morrer.
II
Mandado do inferno Por ímpio destino, Um gênio mali’no No berço me viu —
E após um instante Haver-me encarado 3 Com gesto irritado, O Gênio — o meu fado Traçando — sorriu.
Sorriu-se... e mudados No mesmo momento Que o Gênio cruento, Cruento me viu, Em negra tristeza, Meus gostos findaram;
Meus lábios murcharam;
Meus ais começaram;
Meu pranto caiu.
No peito inda verde Secou-se a ventura Daquela fé pura Que a infância nos dá;
No espelho onde via Em êxtase santo Os risos, o encanto, De um mundo, que há tanto Não sei onde está.
Em dita tão pura Minh’alma exultava, E quanto alcançava Sabia explicar;
Que, além de dar crença A tudo que ouvia, Por certa magia, As cousas que via, Sentia falar.
Se às vezes tentava Brincar com as flores, Revendo os lavores De um vasto jardim, A brisa me dava, No trânsito leve, Um cântico breve, Escrito na neve De um casto jasmim.
Fugaz borboleta Nas asas de ouro Imenso tesouro Deixava-me ver;
E, qual um avaro, Sedento, inquieto, Com ardido afeto Atrás do inseto Me punha a correr.
Qual boca de ninfa Há pouco desperta, Se rosa entreaberta 4 Prendia louçã, Segredos da infância A flor me contava, Q’eu só escutava, E, rindo, exclamava: —
Tu és minha irmã!...
À vista do oceano, Imenso, ruidoso, Que quadro assombroso Fez meu ideal!...
Em êxtase, longo Vi nele espantado, Rugindo deitado, Um monstro azulado D’enorme cristal.
Em crua e constante, Horríssona guerra, In’migo da terra, Pintou-se-me o mar —
Que fero co’as ondas Na praia batia, E aflito bramia, Porque não podia A praia arredar.
Na concha celeste Se os olhos fitava, Lá novos achava Encantos também;
Nos astros eu via De anjinhos um bando, Que, o corpo ocultando, Me estavam olhando De um mundo de além.
Eu via na lua A casa encantada, De luz prateada Fugindo no ar;
Asilo somente Da fada querida, Que vinha escondida A gente nascida De noite embalar.
O sol eu amava Da tarde na hora;
Amava-o d’aurora No fresco arrebol.
E quando a tais horas No mar se escondia, P’ra ele me ria, Julgando que via Adeuses do sol. 5 III
Mas esse tempo de encantos, Que nunca julguei ter fim, Não é hoje para mim Mais que morta e seca flor!...
Do gênio mau completou-se A primeira profecia:
Era o que o Gênio dizia No seu riso mofador.
A natureza calou-se Desde que o Gênio me viu;
Minha alma inteira sentiu Repentina mutação, Dei por mim em terra estranha;
Tive novos pensamentos;
Tive novos sentimentos;
Criei novo coração.
Visão do Céu... não — da terra;
Não podia ser do Céu;
Que Deus no domínio seu Falsos arcanjos não quer;
Visão, que da natureza Toda a graça revestia, Por desdita vi um dia Num semblante de mulher.
Tinha a visão tal encanto, Que, ao vê-la, absorto fiquei;
Tanto, que não escutei O profundo soluçar Da inocência, que, sentindo Da paixão a ardente calma, Abraçada com minh’alma Se despedia a chorar.
Vida de louco passei;
Mas achei nessa loucura Tanto bem — tanta ventura, Quais nunca a razão me deu;
Que, se a razão da verdade Tem os claros resplendores, —
Amor o reino das flores Tem todo inteiro por seu.
E a esta senda estrepada, Que à morte os seres conduz, O que lhe importa uma luz, Se a não tapiza uma flor?
E se amor, além de flores, Também possui um clarão, Antes amor sem razão, Do que razão sem amor. 6 Mas foi-se o tempo de risos Da minha feliz loucura!...
Libei o fel da amargura No mel de um beijo traidor!...
Do Gênio mau completou-se A segunda profecia:
Era o que o Gênio dizia No seu riso mofador.
Dessa profunda chaga resta ainda Dorida cicatriz: a mão do tempo Talvez cure-a por fim; mas não tão cedo, Que inda verte de si pútrido sangue, Se a magoam cruéis reminiscências De quadra tão feliz.
IV
Outro fantasma, a glória, Da passada visão invade o posto.
Pelos mares risonhos da esperança Ao batel do desejo abrindo as velas Minh’alma foi buscá-lo.
De pintor bem falaz condão tem ele Muito para temer; do entusiasmo Nas lavas do vulcão acende o facho, Que os desenhos lhe aclara: esposa amante, Dá-lhe, a imaginação, seus cofres todos, Donde tira estampas que copia Nas telas do futuro. De seus quadros Na beleza enlevada a viajante Navega sem sentir.
Eis ponto negro No azulado horizonte surge, e estende Asas de tempestade! Às vistas magas Reposteiro de ferro mão ignota Rápido corre, e presto em lastro imenso De aguçados cachopos se convertem As aniladas ondas. Rola o lenho Por sobre o pedregal, e mastro e leme, Enrolados na vela espedaçada, O sopro de um tufão some nos ares!
Rompendo a cerração espectro em osso De repente aparece, sacudindo Na destra uma mortalha: envolto nela Desceu meu pai à campa!...
Musa, basta...
Pare-se um pouco aqui; nas tuas asas, Que não neste papel, corra meu pranto...
Apara-o, anjo meu; depois os mares Transpõe... o lar dos mortos não te assusta —
Não é assim? Pois bem, irmã querida, 7 Na terra — nossa mãe — suspende os vôos;
Busca a sombria região dos túmulos, E lá, depois de um beijo dar na campa De nosso amado pai, depõe sobre ela Este pranto que verto.
Enfim bonança Ímpia resplandeceu sobre os destroços Que fez o vendaval. Único vivo, Em pé sobre um rochedo, contemplei-os E ri-me... e neste riso agonizou-me A última esperança... foi a síntese De minha vida inteira; — estreita fresta Por onde, desmaiada e quase morta, Minh’alma um raio morno De prazer sepulcral mandava ao mundo.
E o Gênio, que viu meu berço, Dentre os cachopos surgiu, E olhando os estragos riu, Contente de minha dor.
Do Gênio estava completa Toda inteira a profecia:
Era o que o Gênio dizia No seu riso mofador.
V
E desde então existo, mas não vivo;
Só tenho sentimento Nesse elo fatal por onde a vida Se prende ao sofrimento.
Vi na infância relâmpago afogado Em negra escuridão;
De amor nas breves ditas vil mentira, Na glória uma ilusão.
Eis porquê, dos prazeres desquitado, O rosto em pranto inundo;
Tudo odeio, e pareço desposado Com seres doutro mundo.
E na verdade o estou: pena minh’alma Nas sombras da amargura...
Homens! fugi de mim; não vos pertenço —
Sou outra criatura.
O GÊNIO E A MORTE
I
Sobre as asas de fogo Da águia ardente que no espaço voa, Saudado pelo cântico das aves, De flores perfumado, 8 Entre nuvens de púrpura — risonho Nos céus assoma o dia.
O exército dos astros afugentam Seus coruscantes raios;
E passeia garboso pelo espaço, Como triunfador pela campina, Donde expulsara as hostes inimigas.
Lá no meio da arena do triunfo, Como um olho de Deus devassa o mundo:
As plantas que a manhã de vida enchera, Com seu intenso ardor, bárbaro cresta —
Qual jovem indiscreto, em loucos dias De vulcânica idade, No coração desseca, mata, extingue Sentimentos que a infância alimentara...
Da glória ao grau supremo Subiste, ó rei; humilha-te — vassalo Também és do Senhor — descer te cumpre.
Ei-lo que abdicou — Já vai tardio Pela estrada do ocaso, e já tristonha Lhe escorre pelo rosto a luz enferma!
Sobre leito de chumbo se reclina, —
E, no momento extremo, Seus olhos chamejantes Extremo olhar saudoso à terra volvem.
Último arranco!... Cai desfalecido Nos braços do crepúsculo.
Morreu o dia; — e a noite piedosa Em seu manto de dó lhe envolve o túmulo.
II
Que é feito, ó Primavera, Das frescas odoríferas grinaldas Que a fronte te adornavam?
Murchas caíram; jazem esmagadas Aos pés de gelo do caduco inverno!
Os pomos sazonados, Que pendiam das árvores frondosas, Orgulho e pompa dos alegres prados, Ei-los dispersos pelo chão molhado Do pranto que em tristeza o céu derrama, Ao ver-lhe a fronte merencória e pálida, Debruçada do cume das montanhas, Com lágrimas saudar do sol os raios, Qual mísero vivente, a quem torturam As galas da alegria.
Beijada pelos zéfiros — c’roada De viçosas capelas, — pelos bosques, Jardins, e prados, e alcantis dos montes, Eu a vi passear; — vi toda a terra De flores se cobrir, trajar verduras, Ao toque de seus passos;
Vi... mas mudou-se da estação ridente O quadro encantador; — e já bramidos Dos desatados temporais proclamam —
Que é morta a Primavera. 9 III
Morrem as estações, morrem os tempos!
Morrem os dias, como as noites morrem:
Também acaba o homem —
E o Anjo do extermínio, desdenhoso, Encara estultas pompas, que distinguem O servo do senhor, o rei dos povos;
E fazendo correr-lhes pelas frontes A rasoura da morte, traça o nível.
Que cabe aos homens todos.
Tudo no mundo expira:
Só sobranceiro à lousa o Gênio altivo Nos vôos acompanha a eternidade!
Soberbo em seu poder persegue a morte, E consegue vencê-la, Mil vítimas lhe arranca, E da imortalidade nos altares As mostra coroadas.
Em vão do manto esquálido A bárbara sacode o voraz verme No cadáver do sábio;
Lá desce o Gênio intrépido, Em vão as frias cinzas lhe arremessa Nos abismos do olvido;
E, ao lume da lanterna da memória, Ajunta as cinzas, sopra o fogo santo Da santa poesia, O sábio ressuscita e pasma o mundo!
IV
Beleza, doce engano, Mimo, que o tempo deu, que o tempo acaba;
Encantadora nuvem, mas efêmera, Que da cor do pudor n’os céus vagueia, Qual suspiro de amor que aos céus se eleva;
Beijada pelo sol, tímida aurora, Também fenecerás! Trevas do túmulo Aos lumes da existência Sucederão funéreas;
Serão consócios teus mudo silêncio, Sombras, escuridão, vermes, e terra.
Lestes, belas? Tremeis? Magos encantos Baceia a mão do tempo, arrasa a campa:
Porém do Gênio à voz — curva-se o tempo:
Quebra o sepulcro a laje aos pés do Gênio.
Não!... de todo não morre uma beleza De um Gênio idolatrada;
Que a luz brilhante, que lhe anima os carmes O luzento fanal, que o ilumina Nas borrascas da vida, Jamais, jamais se apaga. 10 V
Cidades destruídas, Impérios derrocados, Oh! quantas, quantas vezes O Gênio, qual brandão, vos esclarece As pálidas ruínas, Lê nelas vossa glória, e vos confia As trombetas da fama!...
Se foge a tempestade, Se as estações revivem, Se as noites reproduzem novos dias, E os dias novas noites, Servos obedecendo à voz do Eterno, Mensageiro do Eterno o Gênio exerce Igual poder na terra!... A Natureza, No meio das procelas, Se a voz lhe escuta, abandonando as fúrias, Dissipando de um sopro atroz horrores, Surge risonha, como à voz divina, Saiu do caos informe, — encantadora, Toda nua, trazendo por adornos Nos seios o Verão, nas mãos o Outono:
Nos cabelos prendendo a Primavera, Por chapim de cristal calçando o Inverno.
Do Gênio ouvindo o canto, Remoçam-se as idades, Os mortos dos sepulcros se levantam, E vivem nova vida Dos homens na memória.
VI
Ó Anjo das ruínas, Voa ao teu reino, que é tarefa inútil Extinguir o que é belo no universo, Enquanto o lume santo D’inspiração celeste Mentes iluminar predestinadas.
Aos sons miraculosos D’harpa do Gênio ressurgindo ovantes O saber, a virtude, Meigos encantos de gentil beleza, Hão de zombar de ti — quebrar-te o sólio, Calcar-te aos pés a fronte.
VII
Como o gemer de vaga, que se quebra No sopé do rochedo;
Como ribombo de trovão, que rola Pelos longes do espaço, Ou eco de clarim perdido em ermos, Do Gênio a voz ecoa no infinito, E, por ela acordada, 11 O semblante solene Ergue para saudá-lo a Eternidade, Lá soa o bronze, solfejando a nota Da alpercata da morte sobre as campas.
O sol está no ocaso!!!
O Gênio ansioso espera O sinal de seu vôo ao Ser Supremo.
Vede-lhe o pensamento: — é uma lira, Donde os dedos da Fé extraem destros Melífluos sons divinos —
São os salmos do gênio agonizante:
E a última das notas é sua alma, Que se perde no céu! — De lá, ó morte, Sorrindo a teu poder te desafia Pelo raio divino armada a destra, Dos céus abroquelado;
Enquanto cá na terra, Sarcasmo a teu poder, seu nome troa, Como um brado de glória, enchendo o mundo NO ÁLBUM DUMA SENHORA
Meu nome aqui deixara solitário Escrito nessa cor;
Com que desde nascido as faixas d’alma Tingiu-me o dissabor;
Meu nome aqui deixara solitário Em traço negro incerto, Qual friso do buril da desventura Em claro plano aberto;
A não temer que alguém, que não soubesse O que este nome diz, Ao vê-lo neste livro me insultasse Chamando-me feliz.
Saiba, pois, quem o ler, que de uma Virgem No livro afortunado Seu nome escuro, como seu destino, Escreve um desgraçado!
Sobre ele verta a Virgem uma lágrima Do seu pranto celeste, Que talvez se desbotem os negrumes Do luto que o reveste.
Sim, ó Virgem, do pranto de teus olhos, Concede, sim, concede Uma lágrima triste ao pobre nome Que lágrimas só pede!
De teus olhos quisera uma centelha Um peito do vulcão;
Ao contrário, porém, só pede pranto Um morto coração! 12 O sol ilumina, a gala ofende Ao solo mortuário:
Só sobressaem os cristais do pranto Dos mortos no sudário.
Eia, pois, cair deixa neste nome O teu pranto celeste;
Que talvez se desbotem os negrumes Do luto que o reveste.
ESTRAGOS DE AMOR
I
Miseráveis insensatos, Escravos da formosura, Curvados a seu aceno, Buscais vida no veneno Que vos leva à sepultura!
II
Nos seus braços reclinados, Beijando em ternos carinhos Divinas faces mimosas, Libais o néctar das rosas Sem reparar nos espinhos!
III
“Oh! loucos, vede a verdade, “Conhecei essa ilusão, “Por que viveis seduzidos?”
Embalde contra os sentidos Aflita brada a razão!...
IV
Nada alcança: tudo cede Ao amoroso desmaio: —
Lumiando o par gentil, Brilha amor como um fuzil, Mas ao fuzil segue o raio.
V
Lá do monte da esperança Cresta o fogo as verdes fraldas;
E de quanto possuía Só conserva a fantasia Secas, dispersas grinaldas.
VI
Suspeitas, tiranias serpes, Nos peitos cravando os dentes, 13 Com seu sangue se alimentam;
Das chagas chamas rebentam, Das chamas novas serpentes.
VII
Em furor e desespero Começa o triste a chorar, Vendo a estrada que seguiu;
Morde o laço em que caiu, Mas não pode-o desatar!...
VIII
A razão, para vingar-se, Mais aumenta o seu flagício, Com semblante inexorável, Muda, surda, imperturbável, Assistindo ao sacrifício.
IX
Tudo é dor, tudo agonia, E queixumes contra o fado;
Suspiros e pranto ardente, Desespero no presente, Saudades pelo passado!...
X
Té que vai desabrochando, Pelo pranto d’aflição Regada continuamente, Do desengano a semente Nas cinzas do coração.
XI
Ergue a planta a fronte altiva, Mas de tristonha aparência;
Folhas, tronco, é toda luto;
Tem mirrado raro fruto;
Esse fruto — é a experiência. —
XII
Das ruínas levantado, Vê-se o espírito surgir;
Vem com passo fatigado, Como guerreiro cansado, À sua sombra dormir.
XIII
Presto acorda, e então, cedendo Da fome aos cruéis assomos, Alguns ramos segurando, 14 Vai colhendo, e vai tragando Os amargos negros pomos.
XIV
Comeu, ergueu-se, é já outro!
Foi-se do rosto a meiguice!
Do tronco um ramo quebrado Serve ao triste de cajado —
Eis a imagem da velhice.
XV
Está tudo terminado!
Está completa a sentença!
Aos fogos sucedem gelos, Que anunciam nos cabelos A idade da indiferença!
XVI
Lá vai o velho mesquinho, Lá vai desacompanhado, O caminho da existência, Nutrido pela exp’riência, Ao desengano arrimado.
XVII
Só seus pés tocam a terra, Os olhos do céu na luz, Entregue a culto profundo, Lá vai, fugindo do mundo, Cair nos braços da Cruz.
XVIII
Lá expira... mas dizei-lhe —
Amor! Vereis num transporte Como seus olhos cintilam, Como a um tempo se aniquilam Todas as forças da morte!!...
XIX
É que amor inexorável Nos seus planos iracundos, Se os mortais torna cativos, Nem minora o mal dos vivos, Nem respeita os moribundos.
XX
Restaura as forças da vida, Não nos consente morrer;
Porque lá nas sepulturas Seus tormentos e torturas 15 Não se pode padecer.
XXI
Envenenados farpões Nos manda em suspiros ternos;
Cinge aos olhos mago véu, E pelos jardins do céu Nos encaminha ao inferno.
XXII
Fugi, humanos!... fugi De seu veneno traidor!
Sem culto, desamparados, Sumam-se, ao tempo votados, Altares, templos de Amor...
A MINHA RESOLUÇÃO
O que fazes, ó minh’alma!
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras Te despreza, como ingrato, Coração, sê mais sensato, Busca outro coração!
Corre o ribeiro suave Pela terra brandamente, Se o plano condescendente Dele se deixa regar;
Mas, se encontra algum tropeço Que o leve curso lhe prive, Busca logo outro declive, Vai correr noutro lugar.
Segue o exemplo das águas, Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras Te despreza, como ingrato, Coração, sê mais sensato, Busca outro coração!
Nasce a planta, a planta cresce, Vai contente vegetando, Só por onde vai achando Terra própria a seu viver;
Mas, se acaso a terra estéril Às raízes lhe é veneno, Ela vai noutro terreno As raízes esconder. 16 Segue o exemplo da planta, Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras Te despreza, como ingrato, Coração, sê mais sensato, Busca outro coração!
Saiba a ingrata que punir Também sei tamanho agravo:
Se me trata como escravo, Mostrarei que sou senhor;
Como as águas, como a planta, Fugirei dessa homicida;
Quero dar a um’alma fida Minha vida e meu amor.
A LINGUAGEM DOS TRISTES
Se houver um ente, que sorvido tenha Gota a gota o veneno da amargura;
Que nem nos horizontes da esperança Veja raiar-lhe um dia de ventura;
Se houver um ente, que, dos homens certo, Neles espere certa a falsidade;
Que veja um laço vil num rir de amores, Uma traição nos mimos da amizade;
Se houver um ente, que, votado às dores, Todo com a tristeza desposado, De cruéis desenganos só nutrido, Somente males a esperar do fado;
Que venha, acompanhar-me na agonia, Qu’esta minh’alma, sem cessar, traspassa!
Venha, qu’há muito luto, a ver se encontro Quem sinta, como eu, tanta desgraça Venha, sim, que talvez por nosso trato Uma nova linguagem seja urdida, Em que possam falar-se os desgraçados, Que do mundo não seja traduzida.
Por lei inexorável do destino, Quem gemer à desgraça condenado, Inda lidando no lidar do mundo, Há de viver do mundo desterrado.
E em que desterro! Os outros só nos tiram Os olhos do lugar do nascimento;
A desgraça, porém, do mundo inteiro Desterra o coração e o pensamento.
Ao menos a linguagem deste exílio 17 Mais suportável torne a vida crua;
Tenha ao menos a terra da desgraça Uma linguagem propriamente sua.
E quem tê-la melhor? Por mais que fale O sedutor prazer em frase ardente, Por mais que se perfume e se floreie, Nunca é, como a dor, tão eloqüente.
Nos fenômenos d’alma o corpo sempre Do seu modo de obrar diversifica:
Pelas quebras da orgânica fraqueza A força esp’ritual se multiplica.
Quando, livre, o esp’rito aos céus remonta, Da Eternidade demandando o norte, Toda força primeva recobrando —
Tomba a matéria, e cai nas mãos da morte!
Quando o gás do prazer dilata o seio, A força do sentir dormente acalma;
Quando a pressa da dor o seio aperta, A força do sentir se expande n’alma.
Assim novas palavras, novas frases, Nova linguagem, pede o sofrimento;
Porque dobra o sentir, e duplas asas P’ra vôos duplos colhe o pensamento:
Não, não pode em seus termos quase inertes, Esse falar comum de cada dia, Deste duplo sentir, d’idéias duplas, Exprimir fielmente a valentia.
Enganai-vos, ditosos! Vossas falas, Anos que falem, nunca dizem tanto, Quanto num só momento dizer pode Um suspiro, um soluço, um ai, um pranto.
Eia, pois, tristes! eia!... desde agora Uma nova linguagem seja urdida, Em que possam falar-se os desgraçados, Que do mundo não seja traduzida.
Veja o mundo, de gozos egoísta, Qu’os tristes nada têm de suas lavras:
Que, orgulhosos na pátria da desdita, Nem dos ditosos querem as palavras.
A JOSÉ PEDREIRA FRANÇA1 I
1 Oferecido ao amigo José Pedreira França por ocasião do seu aniversário. 18 Um dia natalício em quantas faces Se pode desenhar!
Que cenas de prazer e de pesares Nos pode retratar!
Anel d’oiro, ou de ferro, anel d’estala, Na cadeia da vida;
Marco de légua pela morte ganha, E para nós perdida.
Origem de uma fonte que começa Onde outra terminou;
Berço de um tempo, mas também sepulcro De um tempo que passou!
Porém por que razão sempre festivo Se mostra o rosto seu? —
Porque o ano que nasce esquecer deixa O ano que morreu:
Porque enquanto na estrada da existência A humanidade avança, Deixa sempre olvidar os desenganos Co’os olhos na esperança.
Mas o tempo, que corre desta sorte P’ra todos os humanos, Oh! Pedreira feliz! — mudou de aspecto No curso de teus anos.
O tempo, que se passa inertemente, Tem vida transitória;
Mas o tempo contado por virtudes Tem sempre eterna glória.
Não serão pois cobertos os teus anos Do olvido pelo véu:
Quando morram na mente dos ingratos, Com Deus serão no céu.
Não tens áureos brasões por hábil destra Com arte burilados;
Não cinges toga ilustre, nem tens nome No rol dos purpurados;
Porém, sem as virtudes qu’em tu’alma Existem engastadas, São títulos, brasões, fama, riquezas, Misérias enfeitadas.
São flores sem aroma, e cujo viço Efêmero não dura;
Fosfóricos fanais, que a sorte acende, E apaga a sepultura.
Que sempre encares com igual semblante O Céu — e o Céu propício 19 Não deixe a menor nuvem de desgosto Turvar teu natalício —
Tais são os votos meus, nunca inspirados Por vil adulação;
Quando minh’alma os escreveu, a pena Molhou no coração.
Tais são os votos meus na voz expressos, De frouxa poesia, Que verte a lira pouco acostumada Aos hinos d’alegria;
Filha de um estro fraco e perseguido Por fado sem piedade, Vagando peregrino em terra estranha Nos ermos da saudade.
II
Mas inda que a sorte Um estro me desse, Que aos astros pudesse Teu nome elevar;
Enquanto vir triste Com dores pungentes A pátria em correntes, Não posso cantar.
Não posso cantar;
Enquanto vir bravos Rojar como escravos Infame grilhão:
Curvando a sicários A fronte sublime!
Submissos, sem crime, Pedindo perdão!
Não posso cantar, Enquanto um malvado Poder infamado, Audaz, sem pudor, Com seu bafo infecta Brasílio horizonte, Trazendo na fronte — Prevaricador —;
Enquanto essa gente, Tão ímpia e tão vil, Meu caro Brasil Puder governar;
Co’a pátria inundada De luto e de pranto, Não posso ter canto, Não posso cantar.
Porém se algum dia 20 O fero domínio Do ímpio extermínio Tiver de morrer;
Se o povo, esquecido De loucos enganos, Um dia os tiranos Quiser abater;
Se um dia, cansada De tanta maldade, Soltar Liberdade Seus raios da mão, E os ceptros pesados Dos reis fementidos, Por eles fundidos, Rolarem no chão:
E as nossas campinas E prados virentes, E os céus de contentes, Trajados de azul.
Ouvirem os hinos Da livre corte Da parte do Norte, Da parte do Sul;
E os grandes Andradas, Canecas, Machados E mais nomeados Por alto valor, De lá do Empíreo Tais cantos ouvindo, Saudarem, se rindo, Seu povo senhor;
Então minha lira, Coberta de flores, Já livre, louvores Podendo entoar, Aos doces encantos Da quadra formosa Virá sonorosa Teus anos cantar.
EPICÉDIO
À MORTE DO DR. JOSÉ DE ASSIS ALVES BRANCO MUNIZ2 I
Morreu, enfim, morreu! Aquele Gênio, Para quem pareceu pequeno o mundo, Por milagre da Morte limitou-se A um pedaço de terra! Ali com ele Ricos tesouros de um futuro imenso,
2 Poesia oferecida a Luís Maria Muniz Barreto em decorrência da morte de José de Assis Alves Branco Muniz Barreto. 21 De mil triunfos avultadas palmas, De glória mil coroas, tudo encerra, Aquele estreito chão no seio estreito!
São um mistério as dimensões de um tum’lo!
Morreu! aquela mágica trombeta, Que, das leis em defesa trovejando, Fez tremer e tingiu da cor do medo De protervos mandões soberbas frontes, Jaz por terra calada! Aquela boca, Que em turbilhões sonoros de eloqüência Raios vibrava, gélida mordaça Para sempre fechou! O caudal rio, Que no curso afanoso prometia Tanta fertilidade ao pátrio solo, Seca total sorveu! Por que, ó Pátria, Não pôde o pranto teu de novo enchê-lo?
Por que não pôde férvido caindo Sobre a fatal mordaça derretê-la, E de novo acordar da tuba as vozes?
As entranhas da morte são de pedra;
Coração jamais teve a hidra ímpia;
Carnes humanas come, bebe lágrimas;
Só respira suspiros dolorosos E ais agonizantes; comovê-la Não pode a tua dor aflita, Pátria!
Hás de vê-la dormindo aos ecos dela, E o mostro rir-se de prazer cruento Ao ver o pranto teu banhar-lhe o sólio.
Mas não te desesperes, Mãe querida, Há nos cofres da dor certos segredos Que os míseros só sabem. São amigos, Amigos bem fiéis da mágoa os filhos.
Um gemido consola outro gemido, Uma lágrima outra. Desde o berço Para eterno chorar n’alma cavou-me Da desgraça o punhal fontes de pranto, Que de Assis pela morte transbordaram.
Pátria! seremos sócios na amargura!
Baga com baga juntas, nossas lágrimas —
Cristalina torrente de saudades —
Unidas regarão do Herói a campa.
III
Fatal pressentimento deste golpe Três vezes tive; adivinhei três vezes Do sábio moço a prematura morte!
IV
Eu o vi inda imberbe num combate Desses em que são almas — combatentes, E a intel’gência — espada: os sacros foros Da ciência da vida defendia, Dando vida à ciência. Extasiado, Qual uma ave rasteira, que contempla Condor gigante, que nos vôos roça 22 No semblante do sol soberbas asas, Bebi-lhe os rasgos da atrevida mente;
E concentrado em mim, disse comigo: —
Não pode viver muito!
V
Correm tempos:
Para o campo da imprensa denodado Se arroja o lidador. D’entusiasmo Aceso e de prazer, banhei minh’alma Na luz dos seus escritos. Cada linha Que deles lia atento me mostrava Uma estrada de glória ao novo Gênio!
Cada palavra sua era uma pegada Do progresso a correr, e cada sílaba De patriotismo ardente uma centelha Que do saber ao sopro cintilava.
Vi-o, e pasmei de o ver, assim tão jovem;
E, concentrado em mim, disse comigo: —
Não pode viver muito!
VI
Na Tribuna, Prometendo um Demóstenes futuro, O jovem aparece; e vi o povo Imenso, pasmo, imóvel, todo ouvidos A vê-lo combater, e Paladinos Formidáveis caindo aos golpes dele!
Vi sobr’ele lançando olhares torvos, Trêmulos d’ira, os Áulicos ralarem-se, Quando um sarcasmo seu rápido e fino, Voando num motejo improvisado De leve sulco de um sorriso irônico Nos corações de orgulho intumescidos Lhes mastigava as fibras da vaidade.
Vi, e vi muitas vezes, confundidos Ante o moço orador os Mandatários Do despotismo, quando pretendiam Seus golpes rebater, presas as línguas, Disparatado o curso das idéias, Perderem-se de todo, e dar-lhe humildes O vergonhoso culto do silêncio.
Vi-o, e pasmei de o ver, assim, tão jovem;
E, concentrado em mim, disse comigo: —
Não pode viver muito!
VII
Um quê bem certo Para tanto dizer razão me dava.
Todo o sublime para o Céu deriva:
Era muito pequeno um crânio humano Para tal pensamento. De seus vôos Ao forte embate, as molas da matéria Estalam cedo, quando o gênio é grande. 23 VIII
A fatal profecia está completa!
O prisma, que três faces tão brilhantes Ao sol do novo mundo apresentava, Despedaçado está, ou refletindo Cores da eternidade à luz das campas!
IX
Morreu!... porém na hora derradeira Inda resplandeceu! O homem justo, Entre as vascas do eterno passamento, Em ânsias e fadigas se atribula, Mas no momento de deixar a terra, Para voar a Deus, forças recobra, E como astro da fé no céu da morte, Qual em vida luziu, luzindo acaba.
E como a luz, que triste bruxuleia Prestes a se apagar, mas no lampejo Da convulsão final aviva o lume, E com dobrado resplendor expira.
É como o sol no ocaso enlanguecido, Que desmaiado arqueja agonizante Do mar nas ondas apagando os raios, Mas que altivo e zeloso de seus foros, P’ra morrer como sol, antes que morra Com duplicada luz alaga o mundo.
Assis assim morreu. Na ânsia extrema Da mortal agonia, toda inteira Su’alma concentrada num só ponto Para da carne disparar seu vôo, Luz celeste expandiu; ao clarão dela O mundo apareceu-lhe como um doudo Enfeitado, brincando co’as alfaias;
Sorriu-se, desprezou-o, e seu desprezo Todo se traduziu nessa sentença, Com que sábio fechou, morrendo sábio, O livro d’ouro da existência sua.
X
O amor paternal, da esposa o pranto Também dos olhos pranto lhe arrancaram...
Mas nunca tocar pôde o desespero, De leve nem sequer, naquele peito Ungido em fé cristã. Da Providência Viu as mãos postas sobre as frontes de ambos —
E creu e resignou-se.
XI
Esses fantasmas Tristes, negros, medonhos, vaporosos, Que na hora final o ímpio cercam, 24 Sôfregos, como abutres esfaimados Farejando-lhe o leite, dele Nem ousaram fitar; visões celestes Nas madornas da morte o embalavam.
XII
Quebradas as cadeias que a prendiam, Livre, das penas sacudiu o barro, E em leve adejo penetrou sua alma As áureas portas da cidade eterna Entre aplausos risonha; e o seu arcanjo, Ao dar conta ao Senhor da missão alta De a guardar sobre a terra, as níveas asas Mostrou tão limpas, quais do céu trouxera.
XIII
Chora, ó pátria, lamenta a infausta perda;
Mas consola-te ao menos com lembrar-te Que teu filho desceu sem mancha ao túmulo.
Morreu!... mas grande foi. Da liberdade Filho amante nasceu; dela soldado, Morreu firme em seu posto. Da ciência Candidato fiel, morreu filósofo.
Era uma planta de primor nascida Em campo estéril, pedregoso e imundo;
Mas tão cheia de vida, qu’inda nova E em terreno tão mau, brotava aos centos Do tronco verde vigorosos ramos;
Ramos cobertos de formosas flores, E curvados de frutos. Encantado, De a ver assim tão bela, o Rei Celeste, Antes que envenenada perecesse No solo ingrato, transplantou-a em breve Para os pomares seus. 25 XIV
Pátria, teu choro, Merecem, mais que o morto, os filhos vivos.
Ai! tristes dessas plantas que ficaram No campo estéril, pedregoso e imundo!
Pela má região contaminados, Raça degenerada os dias contam Por ampulhetas grávidas de crimes.
Começa a punição. Esse do Egito Anjo exterminador está conosco;
Cada dia, um a um, nos vai ceifando Da liberdade os filhos primogênitos.
Assim a espada da justiça eterna Invisível nos fere, inopinada:
Assim os tetos da cidade ímpia, Do Senhor pela ira arremessado, Sem fuzil nem trovão, mudo, imprevisto, O raio punidor fulmina e abate.
SOBRE O TÚMULO DO MARECHAL LABATUT
I
Eis as cenas do mundo! A mesma liça Que o viu pela vitória laureado, Donde nos brados dos canhões acesos Da glória aos penetrais mandou seu nome, Veio (Grandes ouvi!) pedir, mendigo, Uma esmola de terra!!
II
E quem o fez mendigo, sepultura Estrangeira buscar!? Não cerra França Aos mortos filhos seus braços maternos!
Mas não é outra a pátria do soldado Que o campo do triunfo, e esta terra Barateou seu sangue p’ra comprá-la.
III
Foi ele neste campo o mestre e o guia De uma raça de heróis em cujas veias Fervia com o sangue o amor da Pátria!
Aqui, por sobre as frontes inimigas Passando como um raio Que ao mesmo tempo espalha luz e morte, Os servos fulminando, Sua espada de bravo a um bravo povo Aqui viu esse povo Decidido no empenho de ganhá-la, Como um leão bramindo engolir chamas, E vomitar na fronte do tirano 26 Que tentava enfreá-lo!
Aqui o viu c’roado De cívicas verbenas Com as cadeias fundidas No fogo do combate O crânio esmigalhar do despotismo:
E a horda escrava que servia o monstro Fugitiva a correr, lançar-se às ondas, Ou cair tropeçando nas espadas.
Sentado em sua tenda de guerreiro Aqui nos braços recebeu do amigo Os parabéns alegres, Que rindo repartiu com seus soldados, E descansou, dormindo aos sons festivos Dos hinos marciais, que aos Céus levavam Entre vivas seu nome. Aqui... Não, cinzas, Aqui, perante os netos generosos Que gratos hoje vêm dar-vos seus cultos, Da traição dos avós não falaremos.
Do cristão sobre a campa a caridade Com letras imortais perdão escreve: —
Perdão para os ingratos!!!
IV
Neste campo, Em que se lhe marcou n’um ponto misto Seu ocaso e nascente, resumiu-se A sua vida inteira. Mais que a França Foste-lhe Pirajá: a França apenas Deu-lhe a luz da existência, e tu lhe deste A imortalidade!
V
E sempre grato Te foi o teu herói. Nas densas trevas Da imensa eternidade, porta incerta Da morte tateando, não perdia De vista o Pirajá. “Amados campos “Do meu melhor passado”, soluçando Com voz fraca exclamou, “solo onde as palmas “Colhi, que tão sedento cobiçava “Nos meus sonhos de glória, lá deixei-vos “A minha alma plantada! Ah! quem me dera, “Quando ele se partir, que mão amiga “Lá plante o meu cadáver!”
Felizmente esta prece foi gravada Num coração de ouro. Quem é ele?
Quereis dizer seu nome? — nomeai-o, Mil tít’los lhe juntai: quanto ao poeta Basta chamá-lo — amigo.
VI 27 Satisfez-se A vontade final do moribundo.
Dormir veio o soldado o sono eterno À sombra de seus louros.
VII
Eis aqui Labatut. Aguiar, Siqueira, Jacome, abraçai vosso irmão d’armas!
Eis vosso General!! Mortos soldados, Que sem campas errais, das andrajosas Fardas que vos serviram de mortalha A terra sacudi! vinde prostrar-vos Aqui em continência ante seus manes, Veteranos da nossa independência!
Braços cortados do possante corpo Que o trono levantou da liberdade, Vinde, vinde verter sobre esta pedra Uma lágrima, vinde! Enfeita o pranto Um semblante tostado nos combates, Quando é vertido assim.
Povo, se és grato, Só te não satisfaças com trazê-lo, Dentro em teu coração leva este túmulo.
ADEUS AO MUNDO
I
Já do batel da vida Sinto tomar-me o leme a mão da morte:
E perto avisto o porto Imenso nebuloso, e sempre noite, Chamado — Eternidade!
Como é tão belo o sol! Quantas grinaldas Não tem de mais a aurora!!
Como requinta o brilho a luz dos astros!
Como são recendentes os aromas Que se exalam das flores! Que harmonia Não se desfruta no cantar das aves, No embater do mar, e das cascatas, No sussurrar dos límpidos ribeiros, Na natureza inteira, quando os olhos Do moribundo, quase extintos, bebem Seus últimos encantos!
II
Quando eu guardava, ao menos na esperança, Para o dia seguinte o sol de um dia, De uma noite o luar para outras noites;
Quando durar contava mais que um prado, Mais que o mar, que a cascata erguer meu canto, E murmurá-lo num jardim de amores;
Quando julgava a natureza minha, 28 Desdenhava os seus dons: ei-la vingada:
Cedo de vermes rojarei ludíbrio, E vida alardearão fracos arbustos Sobre meu lar de morto! A noite, o dia, O inverno, o verão, a primavera, A aurora, a tarde, as nuvens, e as estrelas, A rir-se passarão sobre meus ossos!
Não importa: não é perder o mundo O que me azeda os pálidos instantes Que conto por gemidos. Meu tormento, Minha dor, é morrer longe da pátria, Da mãe, e dos irmãos que tanto adoro.
III
Quando da pátria me ausentei, não tinha Nada, que lhes deixar, que lhes dissesse O que eram eles dentro de minh’alma.
Mendigo, a quem cedi pequena esmola, Deu-me quatro sementes de saudades;
Ao meu jardim doméstico levei-as, Cavei, reguei a terra com meu pranto, E plantei as saudades. Soluçando Chamei ali os meus: “Aqui vos deixo (Disse apontando à plantação) “em flores “Minh’alma toda inteira; aqui vos deixo “Um tesouro enterrado. Jóias, oiro, “Riquezas, não, não tem, porém na terra Estéril não será.” Ondas de pranto Afogaram-me a voz: houve silêncio;
Palpei de novo o chão; vi que de novo Cavado estava! A terra se afundara, E as sementes nadavam sobre lágrimas, Que minha mãe e minha irmã choravam...
Replantei-as, orei, beijei a terra, E parti... Trouxe d’alma só metade;
E o coração?... deixei-o num abraço.
IV
Certo estou de que a planta, já crescida, Terá brotado flor. Se ao menos dado Me fosse colher uma... ver a terra Pelo pranto dos meus santificada!
Se uma dessas saudades enfeitar-me Viesse a minha essa, ou meu sudário, Ou, pela mão materna transplantada, Encravar-me as raízes no sepulcro...
É tão pouco, meu Deus!!... Eu não vos peço Soberbo mausoléu, estátua augusta De túmulo de rei. Assaz desprezo Esses gigantes de oiro Com entranhas de pó. Mortalha escassa De grosseiro burel, que bordem lágrimas;
Terra só quanto baste p’ra um cadáver, E as minhas saudades, e entre elas Uma cruz com os braços bem abertos, 29 Que peça a todos preces. Terra, terra Perto dos meus e no terrão da pátria, É só quanto suplico.
V
A morte é dura, Porém longe da pátria é dupla a morte.
Desgraçado do mísero, que expira Longe dos seus, que molha a língua, seca Pelo fogo da febre, em caldo estranho;
Que vigílias de amor não tem consigo, Nem palavras amigas que lhe adocem O tédio dos remédios, nem um seio, Um seio palpitante de cuidados Onde descanse a lânguida cabeça!
Feliz, feliz aquele, a quem não cercam Nesse momento acerbo indiferentes Olhos sem pranto; que na mão gelada Sente a macia destra d’amizade Num aperto de dor prender-lhe a vida!
Feliz o que no arfar da ânsia extrema De desvelada irmã piedoso lenço, Úmido de saudades vem limpar-lhe As frias bagas dos finais suores!
Feliz o que repete a extrema prece, Ensinada por ela, e beijar pode O lenho do Senhor nas mãos maternas!
Desgraçado de mim!... Talvez bem cedo Longe de mãe, de irmãos, longe da pátria Tenha de me finar... Ramo perdido Do tronco que o gerou, e arremessado Por mão de Gênio mau à plaga alheia, Mirrarei esquecido! Os céus o querem, Os Céus são imutáveis: aos decretos Do Senhor curvarei a fronte humilde, Como cristão que sou. Eternidade, Recebe-me a teu bordo!... Adeus, ó mundo!
VI
Já sinto da geada dos sepulcros O pavoroso frio anregelar-me...
A campa vejo aberta, e lá do fundo Um esqueleto em pé vejo a acenar-me...
Entremos. Deve haver nestes lugares Mudança grave na mundana sorte;
Quem sempre a morte achou no lar da vida Deve a vida encontrar no lar da morte.
Vamos. Adeus, ó mãe, irmãos, e amigos!
Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!...
Adeus, que vou viagem de finados... 30 Adeus... adeus... adeus!
Adeus, ó sol que, amigo iluminaste Meu pobre berço com os raios teus...
Ilumina-me agora a sepultura: —
Adeus, meu sol, adeus!
Florezinhas, que quando era menino Tanto servistes aos brinquedos meus, Vegetai, vegetai-me sobre a campa: —
Adeus, flores, adeus!
Vós, cujo canto tanto me encantava, Da madrugada alígeros orfeus, Uma nênia cantai-me ao pôr da tarde:
Passarinhos, adeus!
Vamos. Adeus ó mãe, irmãos, e amigos!
Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!...
Adeus: que vou viagem de finados!...
Adeus!... adeus!... adeus!
A MINHA VIDA
I
Este mundo é-me um deserto Por onde um vulcão passou, E gravada a minha história Em traços negros deixou.
São-lhes tetos bronzeados Escuros, medonhos céus, Onde bramam tempestades Em contínuos escarcéus.
Só, por ele vai minh’alma, Nos destroços tropeçando, Com passo tardio e incerto Tristemente caminhando.
Marcha... marcha... enfim, cansada De tão longo caminhar, Nalguma pedra que encontra Descansa, e põe-se a chorar.
Olha o céu... nem uma estrela!
Olha a terra... é negro chão!
Clama em brados por socorro, Só responde o furacão!
Nos olhos seca-lhe o pranto...
Continua a caminhar, E noutra pedra distante Descansa, e põe-se a chorar. 31 II
É triste o seu fadário: mas ao menos Oh! bálsamo do céu, piedosas lágrimas!
Da infeliz peregrina a dor pungente Um pouco mitigais.
E só me alento Quando posso chorar: são meus prazeres Um banquete de lágrimas! Mil vezes Alegre ter-me-ão visto entre os alegres, Conversando, soltar ditos chistosos A rir e fazer rir. Um drama a vida Não é? Porque julgar-se do semblante, Do semblante, essa máscara de carne Que o homem recebeu para entrar no mundo, O que por dentro vai? É quase sempre, Se há estio no rosto, inverno n’alma.
Confesso-me ante vós; ouvi, contentes!
O meu riso é fingido; sim, mil vezes Com ele afogo os ecos de um gemido Qu’imprevisto me chega à flor dos lábios;
Mil vezes sobre as cordas afinadas Que tanjo, o canto meu acompanhando, Cai pranto. Oh! praza ao céu qu’inda o não vísseis!
Eu me finjo ante vós, que o fingimento É no lar do prazer prudência ao triste.
Louco fora por certo o que cantasse D’exéquias hino em bodas: ou de noiva, Qu’em transportes de amor o esposo abraça, Crepe de viuvez lançasse ao tálamo.
Eu me finjo ante vós porque venero O sublime das lágrimas; conheço-as;
São modestas Vestais, vivem no ermo, Aborrecem festins; olhos que o fogo Do banquete acendeu-lhes são odiosos:
Descidas lá do céu, Virgens do Empírio, Têm vestes de cristal, temem manchá-las.
Bem fechadas nos claustros de meus olhos, Dentro em meu coração hei de escondê-las, Guardá-las bem de vós, contentes, hei-de, Porque a dor me não traia neste empenho, Zelosa e vigilante sentinela, Em meus lábios trazer constante um riso.
III
Hei de fingir-me ante vós, Porque sei que o desgraçado, Se a desgraça não oculta, É de todos desprezado:
Que o feliz, que goza os frutos Dos pomares da ventura, 32 Não conhece o gosto acerbo Da peçonha da amargura;
Que aos tristes consoladoras, Palavras nos lábios seus, São as palavras de Cristo Na boca dos Fariseus.
IV
Nestes versos vos dou minha vida:
Minha vida, mortais, é assim:
Ante os homens um riso mentido, Longe deles um pranto sem fim.
É veneno de arábico aroma, Entre fumo sutil disfarçado;
É cadáver de carnes despido, Com vestidos de gala trajado.
É sepulcro, onde, o escárnio da morte, Mausoléu majestoso se arvora;
Morte, trevas e terra por dentro:
Vida, luzes e pompa por fora.
Nestes versos vos dou minha vida, Minha vida, mortais, é assim:
Ante os homens um riso mentido, Longe deles um pranto sem fim.
O QUE SOU, E O QUE SEREI! 3 I
Homens, que vedes-me a passar sombrio Pela estrada que vai da vida à morte!
Talvez buscais saber meu que de vida —
O que sou, que serei, qual é meu norte.
Caso oculto de amor — certo — supondes, Que um moço trovador é sempre amores:
Nem pode outro condão sobre seu peito, Nem se acurva — tão cedo — a outras dores.
Julgais bem; — porém pouco... que em minha alma Amor plantou — mais fundo — o seu feitiço:
Dai mais peso ao que eu sinto, homens, que trago O viver, como vedes, tão submisso!
Não cuideis que o penoso sentimento, Que toda prende a amor minha existência, É como este sentir que todos sentem, De um dia, sem ardor, sem veemência!
3 Poesia de Antônio Joaquim Rodrigues da Costa oferecida a Laurindo Rabelo. 33 Também já assim amei, se amor se pode Chamar essa ilusão de namorado, Mas hoje esse sentir me é tão da vida Que, se ele me faltar, ver-me-eis finado.
II
Indagais meu sofrer! Buscai na terra O ente mais formoso, Aquele que do céu for mais mimoso —
Que todo meu sentir nele se encerra.
Vendo-o, formai de mim vosso juízo;
Se o encontrardes ledo, Contai que descobristes o segredo Do meu prazer... — vereis — sou todo riso.
Mas, se, ao contrário, virdes o quebranto Da tristeza em seu rosto, Julgai-me logo a padecer exposto;
Sabei logo o que sou... sou todo pranto.
Se o virdes pôr em mim seus olhos belos, Seus lábios me sorrindo, E seu seio a ondular cândido e lindo... —
O que eu sou — decifrai — sou todo anelos.
Se uma palavra der-me, à semelhança Das palavras, do céu, Do coração rasgai-me o tênue véu, E aí lede o que sou — sou todo esp’rança!
Contemplai a que amo. — Ora em langores Quase desfalecida;
Ora toda expressão, incêndio e vida —
E dir-me-eis se hei-de, ou não, morrer de amores.
Homens! Eis o que sou! — Dos trovadores O que mais sofre e sente;
Por este coração, por esta mente, Sou todo inspirações, sou todo amores!
III
Mas perguntais-me vós, porqu’inda triste Vou caminho da vida pensativo, Depois de o ente achar, que único deve Por áureas sendas ao porvir levar-me?!
Por quê? Porque inda resta-me a incerteza, Essa inimiga certa da esperança, Que se me antolha horrenda em meus transportes!
Di-lo-ei todavia, homens (embora Traia o meu coração neste segredo, Que a mim só confiou), di-lo-ei — é força, Pois o exigis, é força confessar-vo-lo —
O que serei, ouvi... é vaticínio 34 De um coração, a quem tornou profeta A luz de uns olhos lá do céu descidos.
Serei Nume, ou Demônio sobre a terra...
Todo ternura e amor, ou todo cólera...
Todo venturas, ou desgraças todo.
Ser minha, ou não — eis todo o meu futuro, Para o qual duas páginas abertas Em perfeito contraste há neste livro Imenso do porvir. É uma delas Toda negra e de sangue salpicada;
A outra toda rósea, e matizada De azul e verde, com relevos de ouro!
Destas páginas n’uma os nossos nomes, O dela e o meu, por força hão de gravar-se.
Ver-me-eis Demônio apascentando fúrias, Precipitado a caminhar na terra, Como quem busca o termo da existência;
Dos olhos a saltarem-se faíscas De loucura e furos; na destra um ferro, Nos lábios um som único — vingança!
E assim medonho, impenetrável, louco, Pisando por abrolhos sem senti-los, Insensível a tudo, aos próprios crimes, Querendo o mundo enfim todo de sangue!...
Se ela minha não for — serei Demônio!
Ver-me-eis, porém, um Nume de venturas, Um prisma de afeições, cândidas todas, Um poeta de amor, sorrindo à terra, Um ente só feliz olhando encantos;
Ver-me-eis co’os olhos em seu rosto impressos, Como os seus em minha alma impressos brilham;
Ver-me-eis co’os lábios em seus pés, e ao mundo Entretanto c’os pés calcando a fronte!!
Se Eulina minha for! — serei um Nume!!
IV
Homens! Eis meu porvir: — dos trovadores Ou o mais desgraçado, Ou um Poeta mágico, inspirado, Bebendo vida e luz num céu de amores.
Bahia, 21 de janeiro de 1855.
Antônio Joaquim RODRIGUES DA COSTA
AMOR E LÁGRIMAS 4 Se fosse possível na minha alma Amanhecer um dia da ventura, Corado por um beijo de donzela Ao despontar d’aurora...
4 Oferecida ao amigo e colega Manoel Bernardino Bolivar. 35 Se, Anjo de salvação mandado ao mísero, Sorrindo, pelo céu jurasse a bela Fazer-me cada vez por novos beijos Mais rubra a cor do dia...
Se fiel companheira em toda parte Quisesse me seguir, presa comigo, Como um raio celeste preso a um astro A iluminar-lhe o curso...
Se a visse, desdenhosa a mil tesouros, Só por ter-me, deixá-los e contente A gabar-me o sabor do pão grosseiro Que me alimenta a vida...
Não a crera; e talvez que até julgasse Tantas provas de amor atroz perfídia, Se amor me não brilhasse nos seus olhos No centro de uma lágrima.
Amor é fogo; o coração que ama Todo nas suas chamas se evapora, No rosto se condensa, e chega aos olhos Em água convertido.
Que é um riso? — Um prazer. Prisão estreita De duas almas? — Simpatia apenas:
E os abraços e beijos? — Muitas vezes Sustento de lascívia.
Tudo isso diz amor; mas quando? — Quando, Filho de um doce afeto que se apura Nos cadinhos da dor, é batizado, Num batismo de prantos.
É belo ver-se uns olhos cintilantes, Acesos em vulcões de fogo ignoto, A dardejar faíscas invisíveis Que os corações abrasam:
É belo ver-se um rosto nacarado No carmim do prazer: é belo ver-se Partir fino coral de rubros lábios Um sim d’alma saído:
Mas em rostos assim amor não fala;
E, se fala, as mais vezes diz mentiras;
E este — sim — que tomamos por verdade É escárnio do crente.
Quereis vê-lo sincero? Observai-o N’açucena de um rosto desmaiado, Entre os lírios de uns lábios que roxeiam Suspiros de agonia:
Nuns olhos, cuja luz crepusculante, Entre a neve das lágrimas, pareça 36 Revérbero da alâmpada mortiça Do templo da saudade.
Aí podeis lhe crer o que disser-vos, Podeis segui-lo sem temer um crime;
Que amor, se o pranto lhe borrifa as asas, Seu vôo ao céu dirige.
A SAUDADE BRANCA5 Que tens, mimosa saudade?
Assim branca quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada, Minha flor? Que palidez!...
Ah!... já sei: n’um peito vário Emblema foste de amor:
O peito mudou de afeto, E tu mudaste de cor.
Mas não; só peito animado Por constância e lealdade, Unida pode trazer-te Consigo, minha saudade.
Demais tu não mudas; seja Qual for o destino teu, Conservas sempre o aspecto Que a natureza te deu.
Que tens, mimosa saudade?
Assim branca quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada, Minha flor? Que palidez!
Quem sabe se és flor, saudade?
Quem sabe? Da sepultura Amor nas pedras penetra Por milagre da ternura.
Quem sabe... (Oh! meu Deus não seja, Não seja esta idéia vã!)
Se em ti não foi transformada A alma de minha irmã?!
“Minha alma é toda saudades;
“De saudades morrerei” —
Disse-me, quando a minh’alma Em saudades lhe deixei:
E agora esta saudade Tão triste e pálida... assim Como a saudade que geme Por ela dentro de mim!...
5 Composta por ocasião da morte de sua irmã e oferecida ao amigo Antônio Augusto de Mendonça Júnior. 37 A namorar-me os sentidos!
A fascinar-me a razão!...
Julgo que sinto a voz dela Falar-me no coração!
Exulta, minh’alma, exulta!...
Aos meus lábios, flor louçã!
No meu peito... Toma um beijo...
Outro beijo, minha irmã!
Outro beijo, que estes beijos Não te proíbe o pudor;
Sou teu irmão, não te mancham Os beijos de meu amor.
Fala um pouco. Se almas podem Em flores se transformar, Sendo almas encantadas, As flores podem falar.
Mas não falas?... não respondes?...
Oh! cruéis enganos meus!
Saudade, por que me iludes?
Minha irmã!... Meu Deus!... Meu Deus!...
Minha irmã!... minha ventura, Esperança, encanto meu!
É teu irmão quem te chama!...
Responde!... fala!... Sou eu!
Dista muito o céu da terra?
Os anjos asas não têm?
Desata um vôo, meu anjo!
Não tardes, meu anjo! Vem!
Vem! Ao menos um momento Quero ver-te, irmã querida:
Embora, depois de ver-te, Fique cego toda a vida.
Mas não vens? Deus te não deixa Vir ao mundo, meu amor?
Só devo encontrar no pranto Lenitivo à minha dor?
Ah! minh’alma desfalece...
E o coração, que apressado Com tanta força batia, Mal palpita... está cansado.
Muda, sem termos, nem vozes Me vai ralando a agonia:
A tempestade de angústias, Mudou-se em melancolia.
Que é isto?! Como tão negro 38 Ficou-me todo o horizonte!
Que suor me banha o rosto!
Que peso sinto na fronte!
Ah! meu Deus! graças! aos olhos O pranto sinto chegar;
Se a boca não fala, ao menos Os olhos podem chorar.
Nós temos duas saudades;
Uma de sangue ensopada Pela mão do desespero No seio d’alma plantada;
Outra da melancolia Toma o gesto, e veste a cor, Exangue, pálida e fria, Mas calada em sua dor.
Parece que a natureza Quis provar esta verdade, Quando diversa da roxa Te criou, branca saudade.
FRANCISCO MUNIZ BARRETO 6 I
Dizer não posso o que és, o que é teu canto, Que o diga o Sol da Pátria Nos céus aos astros, quando, derramando A luz que neles bebe, Os astros vê nadando em novos lumes!
Que o diga a Primavera Nos prados e nos montes, Nos jardins, nas searas Descuidada deixando cair flores, E aparando teus versos no regaço.
Que o diga em noite estiva, A Lua melancólica, Pálida — imóvel — a chorar ternuras, Ouvindo-te saudosa — enamorada Uma canção de amores.
Que o digam essas brisas tão suaves Que ao viajor cansado, em nossos bosques, Refrigeram, deleitam, enfeitiçam, Trazendo-lhe o aroma que desprendem As flores bafejadas por teu estro.
Que o digam a escutar-te, quando altíssono
6 Oferecida ao amigo e mestre Francisco Muniz Barreto. 39 Nos narras inspirado Dos livres os triunfos, glória, e brios, A liberdade rindo, E o terror a tremer nas faces frias Dos pálidos tiranos.
Que o diga amor, e escreva Nos troféus que levanta, Quando, tangendo as cordas Da lira de diamantes, Rendidos corações arrastas presos Nos grilhões de teu canto até seu sólio.
Diga a mulher enfim, — não a que nutre Nos olhares ardentes de volúpia A chama impura das paixões nocivas;
Divindade fatal, de cujos templos A razão a fugir ao crime entrega As aras e o turíbulo; — mas a virgem, A virgem, que descer dos céus à terra Por escada de flores viu o homem No lindo sonho do dormir primeiro:
O anjo que no exílio acompanhava O primeiro proscrito, e no pão negro, Que lhe dera o pecado, transformou-lhe C’um beijo em mel de rosa o fel das lágrimas:
A estrela, que, depois de conduzir-nos Por mares de delícias, Onde afogados de prazer morremos, A vida nos restaura, E de luz divinal num raio amigo Nos embebe no seio o amor paterno.
Sim, que o diga a mulher, mas a perfeita, A completa mulher por Deus formada, Norma daquele cofre que devera Arca de salvação, guardá-lo um dia, E cuja cópia transladaste em verso!
II
Eu não posso dizer o que é teu canto, Nem cantar-te louvores, Se chama etérea me acendesse o estro...
Se no meu coração vingasse ao menos Uma flor de poesia...
Porém não vinga a flor sobre o rochedo, Não medra a chama, nem se nutre o raio, Nas cortadoras úmidas montanhas De aglomerados gelos.
III
Gratidão e amizade, Que dentro em mim se batem neste empenho, Podem muito, Moniz, porém não podem De um trovista, qual eu, fazer poeta, 40 Poetar como tu, para cantar-te!
Seja, pois, fraco e fido testemunho De quanto por ti sinto Este desejo que te envio.
IV
Amigo, Do riso e da aflição me acarinhaste Do estéril pensamento os pecos frutos;
Zeloso Mestre, as trovas me lavaste No límpido Jordão da clara mente;
Amigo e Mestre, deixa que te chame!
— Amigo, — porque o és — minha alma o sabe;
— Mestre, — porque me pede o entusiasmo Dizer-te como tal; porque preciso, Um nada como sou, do mundo às portas, Com o mérito teu cobrir meu nome.
À BAHIA
I
Se o trovador, que outrora, Como filho querido, nos teus braços Amorosa apertaste, De ti merece ainda uma lembrança, Pátria, querida pátria da minha alma, Terreno abençoado onde, aos milhares, Prantos que derramei brotaram risos, Recebe neste canto um revérbero Das chamas da amizade Eterna que por ti arde em meu peito.
II
Ao lindo sol da glória, que teus campos Liberal fertiliza, Minha primeira luz não deve os raios, Nem teus jardins me deram Flores com que adornasse o pobre berço;
Lá das campinas tuas não medimos Nem eu, nem sócios meus, brincando alegres Velocidade e forças Na carreira e nas lutas esforçados:
As mal pronunciadas Preces minhas sumir-se no infinito Não foram do teu céu, quando cansada A Tarde no Ocidente despe a púrpura Que o Nascente lhe deu, chamando-a — Aurora;
Nessa hora, em que a brisa da saudade Suspiro da saudosa Natureza, Com brando movimento agita as folhas Extremas do arvoredo, os passarinhos Volvem aos ninhos apressados vôos, E dúbia luz, com trevas misturada, 41 Pouco a pouco se esvai entre as cinzentas Montanhas vaporosas; nessa hora, Em que todo o universo, extasiado Num culto involuntário, Parece ver passar o Anjo do Tempo, Que vai, guarda da terra, a Deus dar conta Dos trabalhos diurnos; nessa hora, Em que a melancolia afaga os peitos, Em que a alma se contrai ouvindo a queda Do pó que mede a vida, E, transido de mágoa, o campanário Deixa cair as lágrimas metálicas No sepulcro do dia.
Amei onde nasci. Essa esperança Tão doce e feiticeira Que na idade viril desponta n’alma;
Essa idéia de fogo, onde releva A mão da fantasia imagem de anjo Que nos seduz e arrasta, Tive-a no meu torrão. O mesmo astro Que no berço me viu, viu meus amores.
O ameno Mon-Serrate, a fresca Barra, O místico Bonfim não asilaram Meus primeiros segredos de ternura;
Essa história de enleios toda guardam Amigas margens do meu pátrio Rio, Que até no curso rápido desenha A rapidez das ditas, Do gozo, do prazer que tive nela.
O nascimento, a infância, Os primeiros amores, Não, não te devo a ti, terra querida;
Mas a dívida imensa Deste amor desvelado que me deste, Sem temor de baixeza, me consente Chamar-te — minha pátria.
III
Quando, pela desgraça arremessado No solo teu, sem nome, pobre enfermo, Quase a esmolar um pão, busquei teus filhos, Ilesos do desprezo que aos felizes A desgraça sugere, Irmãos, não só amigos, Pais, não só protetores me abraçaram;
As portas da ciência, Que a chave da indigência me fechara, Tuas mãos generosas Abriram francas a meu livre ingresso;
E a vida almejavas ver-me o termo Da difícil viagem, Enxugar-me na frente iluminada O suor da fadiga, E a coroa de espinhos Que a sorte me cingiu tornar de louros. 42 IV
O Berço do nascimento, Ou em palácio opulento Trajando a gala real, Ou cama de palhas feita Onde a escrava o filho deita Enrolado no sendal;
O Céu que a primeira prece, De tarde ou quando amanhece, A criança ouvia rezar, Quer puro, e ledo sorrindo, Quer furioso bramindo, Fuzilando a trovejar;
O lugar onde primeiro O coração todo inteiro, Amor dizendo, se abriu;
Prado florente e risonho, Ou vale escuro e medonho, Que sangue humano tingiu;
A pátria, enfim, tem encantos, Tão sedutores e tantos, Que não se pode vencer!
É uma visão divina, Que a vida nos ilumina, E nos segue até morrer;
Mas também o porto amigo Onde nos braços consigo A amizade nos levou, E d’alma, toda chagada, As feridas consternada Uma por uma curou;
Onde destras apertamos Em que pasmados achamos O calor só natural A chama que o céu ateia, Quando veia, sobre veia Sente sangue paternal;
Essa terra benfazeja, Inda que pátria não seja, Igual atrativo tem;
E o estranho protegido Pode, sendo agradecido, Chamá-la pátria também.
Lisonja, adulação, alcunhe embora, O vulgo o puro amor que te consagro, O culto que te rendo;
Recebeste o meu pranto no teu seio, Da fortuna enjeitado perfilhaste-me, Pátria, teu filho sou, e assim te adoro.
À MORTE DE JUNQUEIRA FREIRE
Do retiro claustral cisne sagrado O vôo desprendeu!
Enchendo os ares pátrios de harmonias 43 Cantou, depois morreu!
Mistério! — Ave criada entre os altares, Acaso a turba impura Do mundo com seu bafo envenenado Abriu-te a sepultura?!
Punindo-te o desprezo de seus lares O Anjo de Sião Por ordem do Senhor tão presto deu-te A morte, em punição?!
Preso o espírito, acaso, nas cadeias Do voto eterno e forte Teve, na luta acerba espedaçando-as, Por liberdade a morte?!
Mistério! — Respeitemos nesta campa Decretos divinais!
Sobre as cinzas do morto ao vivo toca O pranto e nada mais!
Rei que fora! — Era um servo que devia A vida ao Senhor seu!
Seu Senhor o chamou, a voz ouviu-lhe E pronto obedeceu!
Duvidais do que digo? — Erguei a campa...
Esse corpo o que é?!
E negareis ainda que era um servo?!
Aí tendes a libré!
Viveu como poeta, de poeta Deixou o canto e a fama.
Inda no crânio morto tem — bem vedes —
Do louro verde a rama!
Leste-lhe a poesia? Eram arquejos D’um coração aflito!
De uma alma que ensaiava na matéria Os vôos do infinito!
Voou!... Cisne de luz, adeja livre Mau grado a humanidade!
Os hinos dos arcanjos são seus hinos Seu mundo — a eternidade!
AMOR-PERFEITO7 Secou-se a rosa... era rosa;
Flor tão fraca e melindrosa, Muito não pôde durar.
Exposta a tantos calores,
7 Segundo o Sr. Antenor Nascentes o título dessa poesia é uma adaptação. Foi publicada na Revista Brasileira, tomo VI de 1880. 44 Embora fossem de amores, Cedo devia secar.
Porém tu, amor-perfeito, Tu, nascido, tu afeito Aos incêndios que amor tem, Tu que abrasas, tu que inflamas, Tu que vegetas nas chamas, Por que secaste também?!
Ah! bem sei. De acesas fráguas As chamas são tuas águas, O fogo é água de amor.
Como as rosas se murcharam, Porque as águas lhes falharam, Sem fogo murchaste, flor.
É assim, que bem florente Eras, quando o fogo ardente De uns olhos que raios são, Em breve, mas doce prazo, Te orvalhou naquele vaso Que, já foi meu coração.
Secaste, porque esse pranto Que chorei, que choro há tanto, De todo o fogo apagou.
Triste, sem fogo, sem frágua Secaste, como sem água, A triste rosa secou.
Que olhos foram aqueles!
Quando eu mais fiava deles Meu presente e meu porvir, Faziam cruéis ensaios Para matar-me. Eram raios, Tinham por fim destruir.
Destruíram-me: contudo Perdôo o pesar agudo, Perdôo a pungente dor Que sofri nos meus tormentos, Pelos felizes momentos Que me deram nesta flor.
Ai! querido amor-perfeito!
Como vivi satisfeito, Quando te vi florescer!
Ai! não houve criatura No prazer e na ventura Que me pudesse exceder.
Ai! seca flor, de bom grado, Se tanto pedisse o fado, Quisera sacrificar Liberdade e pensamento, Sangue, vida, movimento, 45 Luz, olfato, sons e ar.
Só para ver-te florente, Como quando o fogo ardente, De uns olhos que raios são, Em breve, mas doce prazo, Te orvalhou naquele vaso Que já foi meu coração.
DOUS IMPOSSÍVEIS
Jamais! quando a razão e o sentimento Disputam-se o domínio da vontade, Se uma nobre altivez nos alimenta Não se perde de todo a liberdade.
A luta é forte: o coração sucumbe Quase nas ânsias do lutar terrível;
A paixão o devora quase inteiro, Devorá-lo de todo é impossível!
Jamais! a chama crepitante lastra, Em curso impetuoso se propaga, Lancem-lhe embora prantos sobre prantos, É inútil, que o fogo não se apaga.
Mas chega um ponto em que lhe acena o ímpeto Em que não queima já, mas martiriza, Em que tristeza branda e não loucura À razão se sujeita e harmoniza.
É nesse ponto de indizível tempo Onde, por misterioso encantamento, O sentir a razão vencer não pode, Nem a razão vencer ao sentimento.
No fundo de noss’alma um espetáculo Se levanta de triste majestade, Se de um lado a razão seu facho acende De outro os lírios seus planta a saudade.
Melancólica paz domina o sítio, Só da razão o facho bruxoleia Quando por entre os lírios da saudade Do zelo semimorto a serpe ondeia!
Dous limites então na atividade Conhece o ser pensante, o ser sensível:
Um impossível — a razão escreve, Escreve o sentimento outro impossível!
Amei-te! os meus extremos compensaste Com tanta ingratidão, tanta dureza, Que assim como adorar-te foi loucura, Mais extremos te dar fora baixeza. 46 Minh’alma nos seus brios ofendida De pronto a seus extremos pôs remate, Que mesmo apaixonada uma alma nobre Desespera-se, morre, não se abate.
Pode queixar-se inteira a felicidade De teu olhar de fogo inextinguível, Acabar minha crença, meu futuro, Aviltar-me! jamais! É impossível!
Mas a razão, que salva da baixeza O coração depois de idolatrar-te, Me anima a abandonar-te, a não querer-te, Mas a esquecer-te, não, sempre hei de amar-te!
Porém amar-te desse amor latente, Raio de luz celeste e sempre puro Que tem no seu passado o seu presente, E tem no seu presente o seu futuro.
Tão livre, tão despido de interesse, Que para nunca abandonar seu posto, Para nunca esquecer-te, nem precisa Beber, te vendo, vida no teu rosto.
Que, desprezando altivo quantas graças No teu semblante, no teu porte via, Adora respeitoso aquela imagem Que deles copiou na fantasia.
NÃO POSSO MAIS!
Não sei se é vida, porém sei que a morte Terá de certo menos amargor;
Só sei que a morte tem uma agonia, E não sei quantas tenho nesta dor!
Os olhos fecha quem a vida perde, O bem perdido jamais pode ver;
Eu, morto n’alma, fitos os olhos tenho No bem querido, que não posso ter.
Embora firam desgraçada vítima Ervados gumes de cruéis punhais, As dores cessam mal que chega a morte, Sangue as feridas lhe não vertem mais.
Desta ferida nada o sangue estanca...
A dor recresce mais, e mais pungente;
Morta minha alma para os gozos todos, Só vê que vive pela dor que se sente.
O céu perdoe a quem assim compensa Os sacrifícios deste coração;
Porém a mágoa me desvaira a mente:
Se não há crime, como haver perdão? 47 A fronte curva, delinqüente altivo, A fronte curva, não és mais que um réu;
Teu bafo impuro, que o pecado alenta, Acende o raio que te arroja o céu.
Perdão!... mas seja para mim somente, Nesse olhar terno que o perdão exprime;
Perdão te peço, Querubim celeste;
pune o culpado, mas perdoa o crime.
Rola de bosque, da inocência ao ninho Eu cego o verme da paixão levei-te;
Anjo risonho, sobre a fronte lisa A ruga acerba do cismar tracei-te!
Turvei-te a face, nebulei-te os olhos, Cobri de espinhos o teu santo leito, E da tristeza, que a minh’alma encobre, Parte dos goivos te lancei no peito!
Mas Deus puniu-me...! Da sentença austera Tu escrevias a primeira parte, Quando a meus rogos de extremoso amante Só respondias — eu não posso amar-te!
Mas não bastava: — ao martírio imenso Dobrar devias a cruel tristura;
Num sim de amores que me deste um dia, Um céu me abriste de falaz ventura.
Mas presto nuvens o horizonte toldam, De todo nelas a visão se esvai, E o cego doudo, que fitava os anjos, De novo em trevas envolvido cai.
Não ter-te, fora já penar bastante;
Perder-te, extremo de cruel penar!
Pensei que a pena se acabava nisto, Mas inda tinha mais que suportar!...
Desprezo em troca de meu culto; às ânsias De minha angústia riso mofador, De ti, daquele a quem me sacrificas, Para mostrar-lhe todo o teu amor.
Que a fronte calques, que por ti velando Consome dias, noites sem cessar;
Que a fronte calques, que desdenha o mundo E varre a terra p’ra teus pés beijar...
É dura afronta, mas com essa afronta Eu não me avilto, nem me desabono:
É nobre o solo que as rainhas pisam, Chama-se solo convertido em trono;
Porém que aplaudas, que consintas outro, 48 Também calcar-me escarnecer de mim...
Eu não me lembro que fizesse um crime, Que merecesse ser punido assim!...
Estrela d’Alva de divina aurora, Deixa-me em trevas, é destino meu!
Deus te dirige neste mundo os raios, Tu não governas o clarão que é teu.
Não quero o riso desbotado e morno De complacente, caridoso amor;
De amor a planta quem a prova incauto Morre do fruto, se não goza a flor.
Deus de teus braços me recusa a dita, Mudo a sentença sofrerei — sou réu;
Banhei meus lábios nos paúis do crime, Beijar não posso Querubins do céu!
Mas não mereço do escárnio o riso Mas não sou digno de desprezos tais;
Se me não podes destruir a pena, Muda o tormento, que não posso mais!...
AS DUAS REDENÇÕES
Ao batismo e liberdade de uma menina Inda uma vez tanjamos A lira, e mais um hino Consinta-me o destino Erguer nos cantos meus;
Que vá, de sons profanos Despido e desquitado Em vôo arrebatado, Voando aos pés de Deus.
Da liberdade a estrela No berço da inocência Derrama a providência De duas redenções;
Mostrando um’alma limpa Do crime primitivo No corpo de um cativo Que quebra os seus grilhões.
Que assunto mais merece Um hino de poesia?
Que dia tem mais dia?
Que feito tem mais Luz?
Do cativeiro um anjo Quebrando infames laços, À cruz estende os braços E os braços lhe abre a cruz.
Perfilha Deus o anjo 49 Na filiação da graça, E o ser que o crime embaça Puniu a redenção!
E o homem, dissipando Do berço insano agravo, Em menos um escravo Abraça um novo irmão!
Que foras, inocente, Que foras, nesta vida, Da escravidão perdida No bárbaro bazar!?
Pobre rola ferida Da infâmia pelo espinho, Em que ramo, em que ninho Te havias de aninhar?
Infante, sem afagos, Temendo-te altiveza, Querendo-te a vileza Plantar no coração, Dariam-te nos gestos, Nas vestes, no aposento, Na mesa, no alimento, Somente — escravidão!
Donzela (oh! sacrilégio!)
Amor, qual flor sem viço, Mil vezes é serviço Que fero senhor quer!
É dor que o fel requinta, Que a ímpia sorte agrava Daquela que é escrava Depois de ser mulher!
Se mãe (é mãe escrava!)
Quem sabe se verias Teu filho mãos ímpias Do seio te arrancar?
E surdos ao teu pranto Mandarem-te com calma Do seio da tua alma A outro alimentar?!
Criança mas sem veres Da infância as verdes cores, Donzela sem amores, Talvez alam sem Deus!
Não foras arrastada Da vida pelos trilhos, Nem tu, e nem teus filhos Seriam filhos teus.
Ó vós que hoje lhe destes O dom da liberdade, Que junto à divindade Matais a escravidão, 50 Ao trovador propícios De ação tão excelente Em culto reverente...
Guardai esta canção.
Eu sei que haveis guardá-la, Que em tão santa amizade Não vem a variedade Deitar veneno atroz.
Sou vosso desde a infância:
Da vida até o fim Sereis tanto por mim Como serei por vós!
AO SR. JOÃO ANTÔNIO DA TRINDADE8 Ora de rosas, ora de ciprestes, As horas da existência coroadas Voam nas asas do volúvel tempo Lentas algumas, outras apressadas.
Mas na marcha que levam sinais deixam De uma vida constante ou transitória:
Umas do esquecimento engole o pego Outras medram no campo da memória.
Aí frondosas árvores florentes Os mausoléus que a dor tem levantado São os frutos que colhe uma alma atenta Quando vaga nos mundos do passado.
Daí vem que o espírito, voando Do passado na vasta imensidade, Ergue às vezes um hino de alegria, Às vezes chora um pranto de saudade!
Bem-vinda sejas, hora sacrossanta Das raras festivais — bem-vinda sejas!
Oh! nunca a nuvem negra do desgosto Ofusque a luz divina que dardejas!
Anos oitenta e dous há, que do mundo Viu feliz a primeira claridade Um ente, em quem prudência, brio e honra Se juntaram, formando uma — TRINDADE!
Despido de brasões, nobre na essência, De elevado sentir, modesto e puro, Fazendo do trabalho o seu destino, Arrancou de si mesmo o seu futuro!
Disse — sou homem! — trabalhou, e fez-se...
Se achou tropeços, fez em mil pedaços:
E sentindo-se, enfim, robustecido,
8 Oferecida a seu padrinho João Antônio da Trindade por ocasião do seu octogésimo segundo aniversário. 51 Piedoso ao aflito estende os braços.
Se as coroas não têm desses pequenos Que a fama como grandes apregoa, As virtudes que brilham-te na fronte Decerto que lhe dão melhor coroa!
É grinalda do céu, de viço eterno, Onde refulgem, qual celeste orvalho, Os prantos do indigente agradecido, As gotas do suor de seu trabalho!
Sus, vivente feliz, bendiz teu fado, Que o céu a teu favor se pronuncia;
Para bem penetrar-te esta verdade, Contempla um pouco o quadro deste dia!
Como prêmio, já na vida, Do teu honesto labor, Deu-te Deus na terra um Anjo Que te enxugasse o suor!
Um Anjo de caridade, De candura e singeleza;
Um Anjo, enfim, adornado Com os dotes de — TERESA!
Por anos tão numerosos O Senhor tem conservado O Anjo sempre contigo, Tu sempre ao Anjo ligado!
Na tempestade e bonança Sempre o par se conservou Unido, como dous ramos Que o mesmo tronco gerou!
Que nunca se perturbe a paz tranqüila Deste Par tão ditoso!
Que seja o Filho, qual tem sido sempre, Uma cópia do pai; e imensos anos Se renove este dia Que nos enche de glória e de alegria!
A SRA. D. TERESA MARIA CAETANA DA TRINDADE 9 Que importam anos? Uma flor existe Que, quanto mais por ela o tempo corre Mais seu aroma e seu verdor aumenta;
Com o tempo revive, nunca morre.
É a virtude, raio que no mundo Do céu dardeja o sol da eternidade, Em si bem como Deus o tempo encerra,
9 Oferecida a sua madrinha D. Teresa Trindade por ocasião de seu aniversário. 52 Anos não conta, nem aumenta a idade.
O homem que a contempla, embora viva Séculos a contemplar-lhe a formosura, Mais aroma lhe sente, e vê na forma Mor garbo, mais beleza e mais doçura.
Não, as cãs da velhice não enfeiam A fronte da matrona virtuosa;
Diadema de prata nela brilha, Qual na da mocidade brilha a rosa.
Se a grinalda de rosas da donzela É bela por dizer graça e meiguice, Exprime mais solenes predicados A coroa de prata da velhice.
Mostra uma virtude ainda nascente, As galas, o trajar da juventude, E a outra, coroa de triunfos, Que já colheu dos anos a virtude.
SUSPIROS E SAUDADES
Depois de tantas perdas só restou-me Na soledade, Em que deixou-me a dor, para consolo Roxa saudade.
Esta flor, tão estéril nos prazeres, Quando em retiro Quase sempre do seio magoado Brota um suspiro.
Achava estes suspiros e saudades Encantadores, Embora fossem flores da tristeza, Sempre eram flores.
Demais, quem tem das ditas deste mundo Chegado ao termo, Quem traz de ingratidões e desenganos O peito enfermo;
Quem tem com a flor que às almas venturosas Do prazer fala?
Que ao ver-lhe o coração trajando luto Traja de gala?
A tristeza que tendes, minhas flores, É vosso encanto.
E como éreis formosas orvalhadas Pelo meu pranto!
Mas secastes também?! Faltou-vos água?
Demais tivestes. 53 Fogo? Desde nascidas sempre em chamas De amor vivestes.
Secastes? Com razão, que destas flores Certo não é Verdadeiro alimento, água nem fogo Faltando a fé.
Vivem com fogo e água, se dos prados Nascem no chão;
Mas não se flores d’alma dentro d’alma Nascendo vão.
Quando morta a f’licidade, A fé expira também!
Saudades de que se nutrem?
Os suspiros que alvo têm?
Morta a fé, vai-se a esperança, Como pois viver pudera Saudade que não tem crença, Saudade que desespera?
Onde as graças do passado, Se altivo gênio sanhudo O cepticismo nos brada, Foi mentira, engano tudo?
Em nada creio do mundo:
Ludíbrio da desventura A felicidade me acena, Só de um ponto — a sepultura.
Morreram minhas saudades, E meus suspiros calados Dentro d’alma pouco a pouco Vão morrendo sufocados.
OS DOUS BATIZADOS 10 O fogo santo que dá vida à vida, Chama-se amor;
Botão de rosa, que o pudor defende, Quando dous corpos este fogo acende, Desabrocha em flor.
Chorando sangue a virgindade foge, E mais não vem:
Botão de rosa, no botão fechada, Depois que a rosa foi desabrochada, Vida não tem.
Prossegue o fogo, e faz que a flor aberta Murchando vá;
10 Oferecida ao casal Torres, amigos do poeta, por ocasião do batismo de um dos seus filhos. 54 Mas quase sempre generoso amor Em recompensa da perdida flor Um fruto dá.
Desses frutos o mundo se povoa Em sua imensidade;
Formam eles o grupo da família, Os reinos, as nações, a maravilha Chamada humanidade!
Feliz aquele que feliz recolhe O seu fruto de amor!
Que seguindo da lei divina o trilho, Como filho de Deus vê no seu filho Um filho do Senhor!
Feliz o que cumprindo um dever santo Às santas aras vem, Fazendo o mesmo que seus pais fizeram, A Deus, como seus pais outrora o deram, Seu filho dar também!
Felizes vós portanto neste dia, Em que da culpa o véu Rasgando aos olhos de dous novos crentes, Fizestes de dous anjos inocentes Dous anjos para o céu!
Folgai, ó anjos, que o espaço é vosso, A cintilar!
Vede... a estrela da graça se levanta!...
Ganhastes asas nessa pia santa...
Podeis voar!
Voar, meu Deus? Defende-os das torpezas Do mundo réu;
Pela bondade que teu seio encerra, Dá que estes anjos sem roçar na terra Cheguem ao céu!
O DESALENTO
Ao meu amigo Leopoldo Luís da Cunha Quando eu morrer, minha morte Não lamentes, caro amigo, Que o sepulcro é um jazigo Onde eu devo descansar;
A minha triste existência É tão pesada, é tão dura, Que a pedra da sepultura Já me não pode pesar.
Uma lágrima, um suspiro, Eis quanto custa o morrer;
Custa-nos sempre o viver 55 Prantos, suspiros, sem fim!
Que tormento fora a vida, Se não fosse transitória!?...
Não me risques da memória, Porém não chores por mim.
Enchem trevas o sepulcro, Mas ninguém delas se queixa;
Quando o morto os olhos fecha, Não quer luz, quer sossegar;
Aquele fundo silêncio, Aquele extremo abandono, Dão-lhe tão profundo sono, Que nem pode despertar.
Já tive medo da morte, Agora tenho da vida;
Sinto minha alma abatida, Sem vigor o coração;
Já cansado de viver, Para a morte os olhos lanço;
Vejo nela o meu descanso, A minha consolação.
À TERRA NATAL 11 Adeus!... Vou procurar talvez um túmulo Longe do teu regaço.
Nunca me foste mãe, mas sou teu filho, Concede-me um abraço!
Abençoa-me! — Parto; dá-me a bênção!
Que ao filho desgraçado, Mesmo o ser infeliz dá mais direitos A ser abençoado.
És rica, eu nada tenho; mas ao nada Me soube acostumar;
Dispenso os teus tesouros, mas a bênção Não posso dispensar.
Adoro-a, quero-a, sim; porque custou-me Aspérrimo desgosto, Torturas inauditas, conservar-lhe Sem manchas este rosto.
Quero de filial doce ventura Encher meu coração, Revendo nela, filho abençoado, A minha filiação.
Nunca me foste mãe pelos carinhos;
Ao menos um sinal Dá-me, dá-me de mãe, que sou teu filho,
11 Escrita quando o poeta partiu para a Bahia para concluir seu curso de Medicina. 56 Na bênção maternal.
Adeus!... Perdoa se me queixo; as queixas Que exalo em minha dor Ofender-te não devem, que são filhas De meu ardente amor.
Esses braços ao filho que se aparta Estende por quem és, Que o filho por teus braços abraçado Abraçará teus pés!...
SAUDADES
Da saudade, bem amado, Nesta ausência tão distante, Cada vez mais encravado O espinho penetrante, O coração sossegado Me não deixa um só instante.
Como do caos primitivo Surgiu bela criação, Do caos da minha tristeza Da pátria surge a visão!
Tenho saudades dos montes, Dos ares, dos horizontes Que à pátria servem de véu;
Saudades dos meus palmares, Saudades daqueles ares, Saudades daquele céu!
É puro, mas com ser puro Este céu me não convém;
Que tendo tantas estrelas A minha estrela não tem!
Muitas vezes a procuro, Mas debalde!... um ponto escuro No seu lugar se fitou;
Conheço e vejo a verdade:
Foi a nuvem da saudade, Que a minha estrela apagou.
Sim, meu bem, brilhou a estrela Sem rival nos brilhos seus, Enquanto a luz recebia Do lume dos olhos teus;
Quando teus olhos ardentes, Rutilando de contentes Iam-se nela fitar.
Hoje que estão desmaiados Por prantos continuados, Com seus sóis quase apagados, Como há de a estrela brilhar?
Cada dia que se passa Neste desgosto cruel, Tem novo quadro a desgraça, Tem a ausência novo fel, Mais compunge o peito ansiado 57 Esse espinho envenenado, Que a saudade me cravou;
E a dor me tem convencido Que do espinho introduzido Novo espinho se gerou.
Eu o sinto, quando estreito Nos meus transportes de dor, Sobre os lábios, sobre o peito, O meu talismã de amor;
O meu fiel companheiro E talvez o derradeiro Presente de amor, de ti, Na hora da despedida Em que tudo (exceto a vida Para chorar-te) perdi!
Se d’alma a essência celeste Pudesse ser transmitida, O retrato que me deste Não fora um corpo sem vida Que, ao vê-lo, minh’alma ardente, No transporte mais veemente, Sente ao semblante subir, E nos olhos condensada, Em lágrimas transformada, Sobre o retrato cair.
Aos tormentos que já sobram Novos reúne a saudade;
Os seus negrumes redobram As sombras da soledade.
Na mente a imagem se agita Dessa ventura infinita Que junto a ti desfrutei, Em quadros tão sedutores, Quais nunca dos meus amores, Nem nos sonhos divisei.
O amor com que me abraças, Então não posso dizer!
Da saudade sinto as asas No coração me bater;
E contemplando os espaços Que te roubam aos meus braços, E que não posso transpor, Perco a luz, e desmaiada Cai-me a fronte atordoada Pelos combates de amor!
Assim passo em tua ausência.
Eis qual é o meu viver!
Melhor que tal existência Mil vezes fora morrer, Se não tivesse a esperança Que venturosa bonança À tormenta porá fim;
Se não tivesse a certeza Que me adoras com firmeza, Que não te esqueces de mim. 58 EPÍSTOLA
AO MEU AMIGO F. DE PAULA BRITO
Se dessa nobre irmã, que as mais domina, Que de gala e de pompa revestida Majestosa nos ares se reclina:
De tudo quanto há belo enriquecida, Coberta pelo azul de um céu brilhante, De sempre verdes prados guarnecida;
Cujos pórticos guarda vigilante De dia e noite imóvel sentinela, Um disforme e grandíssimo gigante;
Que tão soberba em forma se revela, Como amável no trato hospitaleiro Com que abraça a quem vive à sombra dela;
Se desse pátrio ninho, onde primeiro Vimos ambos a luz, inda é lembrado Daquele solo o filho derradeiro;
Ou se em todas as mentes apagado, Pelo buril eterno d’amizade Seu nome inda na tua está lembrado;
Recebe nesta um culto de saudade, De afeto, e desse afeto que termina Onde encontra seu termo a eternidade;
Desse afeto do céu, que não fascina, Sol brilhante nos dias de ventura, Nas dores, da desgraça medicina;
No que te digo vai verdade pura;
As linhas que te escrevo, Brito, amigo, São alívios à dor que me tortura!
Aqui, por mais que busque, não consigo Ter por minha de tantas uma hora Igual àquelas que passei contigo!
Tédio enfadonho tudo me descora;
Marca-me o tempo lentamente a vida, Que aos outros entes rápido devora!
Parti... e, nessa hora da partida (Não sei se foi meu corpo, se minh’alma), Porém um fez do outro a despedida!
Dizem que com o tempo a dor se acalma;
Mas a amante, a quem tal bem sucede, Ao verdadeiro amante ceda a palma.
Quando a vista ansiosa o espaço mede, E a imagem divinal do bem perdido 59 Em vão à terra, ao mar e aos astros pede;
Quando, da perda infausta convencido, Chega a crer que partiu, a crer n’ausência, Que já não tem presente o bem querido;
Quando, cedendo à força da evidência, Nem lhe resta uma nuvem de esperança Para os olhos vendar da consciência;
Não é decerto um tempo de bonança!
Longe a certeza acorda a tempestade, Que perto sobre a dúvida descansa!
E quanto mais conhece-se a verdade, Mais funda, mais pungente e mais dorida, Se vai abrindo a chaga da saudade!...
É esta aqui, meu Brito, a minha vida!
Nem exagera a pena meu tormento, Em poéticas tintas embebida!
Tenho n’alma um cruel pressentimento (Talvez não mui remota profecia Que não posso apagar do pensamento!)
Espero cedo o meu extremo dia;
E a morte, da pátria tão distante, É quadro que me abate de agonia!
A saudade tornou-me tolerante!
Que importa ser da pátria desprezado?
Serei sempre da pátria filho amante.
Se outrora, contra ela conspirado, Os males que me fez lancei-lhe em rosto, Hoje tudo lhe tenho perdoado.
Dos lances em que a sorte me tem posto Esquecido, o desgosto de não vê-la É dos desgostos meus maior desgosto!
Ah! que não fosse a hora de perdê-la, A hora em que parti!... O sul formoso É belo, benfazejo, é lar ditoso:
Mas eu tenho no Norte a minha estrela!
BANDO
Eia, Baianos, raiar Vai na terra do Cruzeiro Esse dia tão jucundo, Que, apesar de ser segundo, Há de sempre ser primeiro!
Não deixes despercebido 60 O rei dos dias passar, Mostrai que não sois escravos, Mostrai que o dia dos bravos Inda sabeis festejar!
Se o misérrimo que sofre Da escravidão os rigores, Às vezes repete a história Dos seus passados de glória Nas senzalas dos senhores;
Nós livres, a quem escravos Inda não pôde fazer O furor do despotismo, Nossos feitos de heroísmo Não devemos esquecer.
Não devemos esquecer Esse dia, a cuja luz Os deus dos Americanos Escreveu — morte aos tiranos —
Nos braços da Santa-Cruz.
Esse dia que provou Com solene majestade Ao vil tirano atrevido, Quanto pode um povo unido, Quando grita — liberdade —
Com as frontes coroadas De louros vamos cantar Hinos aos fortes soldados, Que valentes, denodados, Nos souberam libertar.
Todos os ódios se esqueçam, Demo-nos todos as mãos, E empenhemos nosso orgulho Em festejar dous de julho, Em um banquete d’irmãos!
Nem receeis que algum braço, Que para nos esmagar Ocultamente trabalha, Da nossa mesa a toalha Venha com sangue manchar.
Não, que tem a liberdade Seus amores neste dia, E, temendo as iras dela, Se atormenta, se arrepela, Mas não fala a tirania.
Comece pois o festim, E nas galas sem rival Entre as ledas comitivas, Impelido pelos vivas 61 Rode o carro triunfal.
Saia à noite, que não há de Cobri-lo da noite o véu;
Brandões hão de iluminá-lo, De luzes hão de banhá-lo Os candelabros do céu!
Nele do dia dos livres Veja o formoso arrebol, Essa cabocla engraçada Que tem a face tostada Dos beijos que deu-lhe o sol!
E quando voltar dirão Com toda a gente os louvores, O mar por canhões bradando, Os ares vivas troando, A terra brotando flores!
Seja então tudo prazer, Tudo sonoras canções, Tudo banquete de bravos, Tudo remorsos de escravos Que inda desejam grilhões!
Eia, Baianos, raiar Vai na terra do Cruzeiro Esse dia tão jucundo, Que, apesar de ser segundo, Há de sempre ser primeiro.
Não deixeis despercebido O rei dos dias passar, Mostrai que não sois escravos, Mostrai que o dia dos bravos Inda sabeis festejar.
AO DIA DOS FINADOS
Fragmento dos Túmulos I
Um dia para os mortos, se é que o dia Nos túmulos penetra.
Entre tantos de riso um só de pranto Seja sagrado às lousas Fechadas pela morte, e onde seu selo, Segunda morte grava o esquecimento.
II
Terra de mortos, deixa que pisem Os pés dos vivos, deixa; no teu reino Pedaços d’alma dos que vivem dormem. 62 Entre os círios funéreos Arde também amor, geme a saudade.
Mãe extremosa, os restos seus recebes Quando do mundo inteiro abandonados Vêm no teu leito procurar descanso.
O pai idolatrado A ti confia o órfão;
Entrega-te seu filho a mãe querida;
Os irmãos, os amigos Seus irmãos, seus amigos, te entregaram:
Um dia, ao menos, querem vê-los: — Cede, Pois tens tudo o que é seu.
III
Um espírito único Desgraçado daquele que só teve Quando peregrinou por estes lares!
O triste foi um tronco sem raízes Que aos impulsos da sorte foi tombando.
Té que por fim caiu na eternidade.
Nem há na espécie humana Infeliz tão bastardo da ventura, Que tão ermo ficasse sobre a terra.
É uma planta só a humanidade:
Por mais extremo que lhe seja um ramo, Pela seiva comum é sustentado, E a cicatriz, que fica se o decotam, Da vida que se foi narrando a perda, Da vida que ficou narra a saudade...
IV
Terra de mortos, deixa que dos vivos As almas se dilatem; frias cinzas Animar-se não podem; mas são elas Quinas dos edifícios abatidos Que o espírito só a Deus conhecem.
Deixai-os divagar nessas ruínas, Que são domínios seus. — A terna ave, A quem a companheira arrebataram, Deixa, ao menos, voar em torno ao ninho.
V
Podeis entrar, fiéis. — Que o pó do mundo Vos não venha nos pés. — Quando é da vida, Tudo estranho é aqui; a gala é óbito;
O banquete são preces: Deus reparte O pão espiritual que o sacerdote Prepara nos altares;
São convivas os mortos, que recebem Também com ele O sangue sacrossanto, que enfraquece Da punição o fogo. — Frágeis lágrimas, Ah! do mundo não são, tanto que o mundo Não as quer nem conhece. 63 VI
Entremos... Mas... O nível dos sepulcros Não vejo aqui!!... Marmóreos monumentos Aqui, ali se erguem distinguindo O pó do pó que a morte confundira.
Ilusão pueril! É cinzas tudo!
Só diverge a morada no aspecto:
Os donos são iguais.
ÚLTIMO CANTO DO CISNE
Quando eu morrer, não chorem minha morte, Entreguem meu corpo à sepultura;
Pobre, sem pompas, sejam-lhe a mortalha Os andrajos que deu-me a desventura.
Não mintam ao sepulcro apresentando Um rico funeral d’aspecto nobre:
Como agora a zombar me dizem vivo, Digam-me também morto — aí vai um pobre!
De amigos hipócritas não quero Públicas provas de afeição fingida;
Deixem-me morto só, como deixaram-me Lutar contra a má sorte toda a vida.
Outros prantos não quero, que não sejam Esse pranto de fel amargurado De minha companheira de infortúnios, Que me adora apesar de desgraçado.
O pranto, açucena de minh’alma, Do coração sincero, d’alma sã, De um anjo que também sente meus males, De uma virgem que adoro como irmã.
Tenho um jovem amigo, também quero Que junte em minha Essa os prantos seus Aos de um pobre ancião que perfilhou-me Quando a filha entregou-me aos pés de Deus Dos meus todos eu sei que terei preces, Saudades, lágrimas também;
Que não tenho a lembrança de ofendê-los E sei quanta amizade eles me têm.
E tranqüilo, meu Deus, a vós me entrego, Pecador de mil culpas carregado:
Mas os prantos dos meus perdão vos pedem, E o muito que também tenho chorado.
HINO 64 Cantado pelos alunos do Instituto dos Cegos por ocasião da distribuição dos prêmios em 1863 SAUDAÇÃO
1º CANTO
CORO
Glória aos anjos que firmando Deste império a monarquia, Contra as iras da anarquia, Do seu trono a glória são.
São duas virgens formosas, Cujos sublimes destinos Nos rostos, quase divinos Bem retratados estão.
Inda que cegos nem vê-las Por um momento possamos, É assim que as desenhamos Em nossa imaginação.
Firmes e ledas na vida Caminham da glória ao templo, Guiadas pelo exemplo Que os pais augustos lhes dão.
O perfume da inocência Que das flores d’alma exalam Quando riem, quando falam, Avassala o coração.
Quem as ouve, embora a mente Ao trono se não remonte, Curva os joelhos e a fronte, Para beijar-lhes a mão.
E nós, cegos infelizes, Quando a destra lhes beijamos, Dentro d’alma sufocamos Um pranto de gratidão.
SÚPLICA
2º CANTO
Tu, Ser no qual dos seres Somente o ser consiste!
Que És ser de quanto existe Se nutre e reproduz;
Se para a luz nascemos, Depois da luz criados, Eis-nos aqui prostrados! 65 A luz, Senhor! A luz!
A luz, dádiva imensa, Bela, sublime, santa, Que deste à terra, à planta, Ao bruto, aos bons, aos maus!
As nossas mãos tateiam Abismo negro e fundo;
Aos outros deste o mundo, A nós somente o caos!
Mas Tu És Ser dos seres Em que o ser consiste!!
És Ser de quanto existe, Se nutre e reproduz;
Se para a luz nascemos, Depois da luz criados, Eis-nos aqui prostrados!
A luz, Senhor! A luz!
VISÃO
3º CANTO
Silêncio! As trevas desbotam Seu carregado negror;
Vai pouco a pouco surgindo Matutino resplendor.
Por entre nuvens de púrpura Assoma visão celeste, Real aspecto mostrando No ar, na forma e na veste.
Cinge um manto, um cetro empunha, que um dragão tem por emblema;
Vinte estrelas-sóis flamejam No circ’lo do seu diadema.
Na destra suspende um mundo:
Mais vigoroso que Atlante, Firme os pés, apóia o cetro Sobre o dorso de um gigante.
A claridade que o cerca É seu olhar que a produz;
Não vê somente, dá vista;
Não tem só, difunde a luz.
Dessa luz iluminados, Com pasmo e prazer profundo, No vulto reconhecemos Nosso pai — Pedro Segundo 66 ALEGRIA E AGRADECIMENTO
4º CANTO
Do corpo os olhos mortos, Senhor, temos em vida;
Porém na desabrida Mágoa do mal atroz, Celeste medicina A nossa dor acalma;
Propícia aos olhos d’alma A luz nos vem de vós.
A luz da inteligência, Crescente pelo estudo, Na claridade, em tudo Que a outra vale mais.
A luz externa a tudo Concede a providência;
A luz da inteligência Só toca aos racionais;
E esta vos devemos.
O cego desvalido Por vós hoje instruído Calcula, escreve e lê, Se em trevas tropeçando Só tem no mundo escolhos, Aos céus levanta os olhos, E vê o que alma vê.
Monarca no poder, Monarca na bondade, Na dupla majestade Com que sois rei, senhor, Se tendes quem beijar-vos A mão de rei deseje, Mais tendes quem vos beije A mão de benfeitor.
E quanto as obras vossas Por Deus são estimadas, Na esposa e prole amadas Mais que patente está;
Nas ditas, na ventura Que tendes no seu grêmio, Dos bens que dais, em prêmio Na terra, o céu vos dá.
Deste reinado a história De glória e f’licidade, Para adorar-vos há de O mundo inteiro ler.
Hão de escrevê-la sábios De méritos subidos, Mas hão de os desvalidos 67 A mor parte escrever.
Então, também louvando Voss’alma benfazeja, Um cego que mais veja, Dos muitos que aqui estão (Talvez em prosa altiva, Ou sublimado metro), Dirá que o vosso cetro Dos cegos foi bordão.
SONETOS
LEANDRO E HERO
SONETO I
Hei de, mártir de amor, morrer te amando.
O facho do Helesponto apaga o dia, Sem que aos olhos de Hero o sono traga, Que dentro de sua alma não se apaga O fogo com que o facho se acendia.
Aflita o seu Leandro ao mar pedia, Que abrandado por ela, a prece afaga, E traz-lhe o morto amante numa vaga, (Talvez vaga de amor, inda que fria).
Ao vê-lo pasma, e clama num transporte —
“Leandro!... és morto?!... Que destino infando “Te conduz aos meus braços desta sorte?!!
“Morreste!... mas... (e às ondas se arrojando Assim termina já sorvendo a morte)
“Hei de, mártir de amor, morrer te amando.”
A UMA INCONSTANTE
SONETO II
É carpir, delirar, morrer por ela!
BOCAGE
De uma ingrata em troféu despedaçado Meu coração devora amor cruento, Trocando em fero e bárbaro tormento Quantos prazeres concedeu-me o fado.
No seio d’alma, já dilacerado, Negras fúrias do báratro apascento!
Filtra-me o delirante pensamento De zelos negro fel envenenado.
Desprezo, ingratidão, fria esquivança 68 Da cruel por quem morro, em tal procela Apagaram-me a estrela da esperança.
E eu (ao confessá-lo a dor me gela)
Humilhado a seus pés, minha vingança É carpir, delirar, morrer por ela. 69 A UM INFELIZ
SONETO III
Geme, geme, mortal infortunado, É fado teu gemer continuamente:
Perante as leis do Fado és delinqüente, Sempre tirano algoz terás no Fado.
Mas para não ser mais envenenado O fel que essa alma bebe, e o mal que sente, Não te iluda o falaz riso aparente De um futuro de rosas coroado.
Só males o presente te afiança:
Encrustado de vermes charco imundo Se te volve o passado na lembrança.
Busca, pois, o da morte ermo profundo:
Despedaça a grinalda da esperança:
Crava os olhos na campa, e deixa o mundo.
A UMA SENHORA
SONETO IV
Dos meus lares, dos meus que choro ausente, Me vieste acordar saudade ímpia, Tu, amada do Anjo d’Harmonia, Que te fazes ouvir tão docemente.
Do piano o teclado obediente Ao teu tocar encheu-se de magia, E lá dos mortos na soidão12 sombria Operou-se um milagre de repente.
A morte sobre a fouce, entristecida, Amarguradas lágrimas verteu, Talvez do fero ofício arrependida!
Bellini do sepulcro a pedra ergueu;
E, cheio de alegria desmedida, C’um sorriso de glória um — bravo — deu.
À SRA. MARIETA LANDA
Por ocasião de cantar no teatro de S. João da cidade da Bahia SONETO V
Disseste a nota amena d’alegria, E, arrebatado então nesse momento De um doce, divinal contentamento,
12 Soidão – forma arcaica de solidão. 70 Eu senti que minh’alma aos céus subia.
Disseste a nota da melancolia, Negra nuvem toldou-me o pensamento;
Senti que agudo espinho virulento Do coração as fibras me rompia.
És anjo ou nume, tu que desta sorte Trazes o peito humano arrebatado Em sucessivo e rápido transporte?!
Anjo ou nume não és; mas, se te é dado No canto dar a vida, ou dar a morte, Tens nas mãos teu Porvir, teu bem, teu fado.
À MESMA SENHORA
SONETO VI
Tão doce como o som da doce avena Modulada na clave da saudade;
Como a brisa a voar na soledade, Branda, singela, límpida e serena;
Ora em notas de gozo, ora de pena, Já cheia de solene majestade, Já lânguida exprimindo piedade, Sempre essa voz é bela, sempre amena.
Mulher, do canto teu no dom supremo A dádiva descubro mais subida Que de um Deus pode dar o amor paterno.
E minh’alma, num êxtase embebida, Aos teus lábios deseja um canto eterno, E, só para gozá-lo, eterna a vida.
À MESMA SENHORA
SONETO VII
Alcíone, perdido o esposo amado, Ao céu o esposo sem cessar pedia;
Porém as ternas preces surdo ouvia O céu, de seus amores descuidado.
Em vão o pranto seu d’alma arrancado Tenta a pedra minar da campa fria;
A morte de seu pranto escarnecia, De seu cruel penar se ria o fado.
Mas ah! — não fora assim, se a voz tivera Tão bela, tão gentil, tão doce e clara, Daquela que hoje neste palco impera.
Se assim cantasse, o túmulo abalara 71 Do bem querido; e, branda a morte fera, Vivo o extinto esposo lhe entregara.
O TEMPO 13 Deus pede estrita conta de meu tempo, É forçoso do tempo já dar conta;
Mas, como dar sem tempo tanta conta, Eu que gastei sem conta tanto tempo?
Para ter minha conta feita a tempo Dado me foi bem tempo e não foi conta.
Não quis sobrando tempo fazer conta, Quero hoje fazer conta e falta tempo.
Oh! vós que tendes tempo sem ter conta Não gasteis esse tempo em passatempo:
Cuidai enquanto é tempo em fazer conta.
Mas, oh! se os que contam com seu tempo Fizessem desse tempo alguma conta, Não choravam como eu o não ter tempo.
Para do mundo dar completo cabo, Lá do negro recinto o soberano Meditava a forjar horrível plano Coçando a grenha, sacudindo o rabo.
Merecedor enfim de imenso gabo, Eis o que assim disse muito ufano:
Para a missão cumprir — digesto humano Quero fazer — que nasça hoje um diabo.
E o 23 de maio nisso raia...
Teotônio nasceu, e a fama soa Jamais ter visto infame dessa laia.
Pois para Satã ser mesmo em pessoa, Traja, qual bruxa velha, negra saia, Como o rei dos bandalhos tem coroa.
Vendo da peste o bárbaro flagelo Mil vidas a ceifar a cada instante, D’África deixa o solo distante E veio no Brasil curar Otelo.
O semblante imposto negro-amarelo Cresta do orgulho a chama crepitante, Traz cheia de vidrinhos o turbante, E buído punhal por escalpelo.
Homeopata é, e o albergue puro Do puro Martins busca e diz-lhe ardido:
“Doutor, eu quero ter vosso futuro.”
13 Segundo Teixeira de Mello, a autoria não é de Laurindo Rabelo, afirmando ser uma tradução de um soneto francês. 72 — Bravo! grita o Martins enternecido;
Pelas cinzas de Hahnemann te juro Que não hás de morrer desconhecido.
SETENÁRIO POÉTICO
CANTO I
A Providência, a cujos decretos nada resiste, e de que não é lícito murmurar.
(Imp. Alexandre da Rússia)
Das soberbas muralhas, tetos d’ouro, Dos palácios zombando, sem sussurro Voa o anjo que volve o mundo ao nada!
Com a destra fatal lançando em terra Tronos, cetros, diademas e tiaras.
Sopram seus lábios hórridos venenos, Que as flores murcham da infeliz campina Que o viu passar. A Nápoles seu vôo Furioso endereça, as asas bate Sobre o trono, e de luto cobre o sólio, Na mísera cidade levantando Monumento credor de pranto eterno!
E lá jaz para sempre, lá repousa Uma fronte real que inda há bem pouco, Gingindo áureo diadema, prometera Idades d’ouro dos Bourbons ao povo.
Inesperado golpe, caso infausto, Quantos bens nos roubaste no futuro!...
Oh! quantas esperanças destruíste...
Quanto pranto trouxeste!... triste sorte Dos míseros humanos!... Ilusores, Magníficos fantasmas da esperança...
Vida, que és tu?!... Caminho breve sempre Do leito à sepultura! Flor que murcha Quando mais odorosa nos parece.
E, além das ilusões, quimeras fúteis De rápidos prazeres soçobrados Em oceanos de angústias, que nos deixas?...
O que resta de ti?... Só a virtude!
Sim, que a virtude só zomba da morte.
E de pé sobre a laje do sepulcro Do vivo para o morto um culto pede!
De lá, ó Isabel!, teu nome Augusto De apoteoses mil cercado surge...
Ele as funéreas trevas aguardava, Para brilhar no céu, como rutilam Nos céus os astros, quando a noite arroja Seu manto opaco e negro sobre a terra.
Junto às portas do céu arremessaste A túnica de carne, que trajavas 73 Da milícia da vida nos combates, Como junto ao portal do alvergue amigo Arremessa o guerreiro fatigado As pesadas, inúteis armaduras, Para gozar tranqüilo e sossegado Sono de paz em leito abençoado Por destra paternal. A Glória é tua!
Bem conhece a razão esta verdade;
Mas zomba da razão da mágoa a força;
E, apesar da razão, medra a saudade!...
Quanto mais bela te divisa o mundo, Mais deseja gozar-te, alma bendita!...
Mais punge a tua ausência o peito ausente De Teus Filhos, Teus Netos e Teu Povo.
Ah! lança lá do Céu a bênção Tua Sobre o mundo; consola o mundo aflito...
Faze que o céu nos dê valor, constância, Para os males sofrer que nos flagelam! —
E, se lá do Empíreo minhas vozes Gratas te são, acolhe meus suspiros!...
Inspira-me essas frases lamentosas, Com que de minha dor modero as iras;
Afina a lira débil que votou-te O Vate Brasileiro aos Régios Manes!
CANTO II
Elle est, elle est à Dieu.........
Lamartine, Harm. Poet.
Isabel, que do mundo fugiste, Tão brilhante, tão bela e tão pura Como o sol do horizonte, deixando Sobre o mundo cair treva escura;
Isabel, que do mundo fugiste Como foge louçã Primavera, Permitindo que o Inverno desbote Vastos campos que verdes fizera;
Isabel, que do mundo fugiste Como foge dos ares no véu Belo Íris, que aos homens declara A aliança da terra e do céu;
Se da noite rompendo os negrumes Torna o sol no horizonte a nascer, Com a volta trazendo os prazeres Que, morrendo, fizera morrer;
Se voltando a gentil Primavera À natureza dá forças, dá vida, Que perdera de frio gelada Do inverno na capa envolvido; 74 Se do Íris a cor tão mimosa Para sempre se não desvanece, E depois de nos céus se perder, Outras vezes nos céus aparece...
Íris, Sol, Primavera Gentil, Vem de novo na terra brilhar:
Tua augusta presença dá vida, Tua ausência nos pode matar!...
Vestem noite teus filhos, teu trono, Traja noite teu povo também;
Chovem prantos dos olhos de todos, Nem verdumes os campos já têm!
Íris, Sol, Primavera Gentil, Vem de novo na terra brilhar;
Tua augusta presença dá vida, Tua ausência nos pode matar!...
Belas flores murcharam tristonhas;
Tem os troncos tristonho prospecto;
Águas turvas sem vida derrama Na enlutada Campânia o Sabeto.
Íris, Sol, Primavera Gentil, Vem de novo na terra brilhar:
Tua augusta presença dá vida, Tua ausência nos pode matar!...
Mas, inúteis são preces aos mortos...
Nunca mais, nunca mais voltará Cá dos homens ao reino infeliz Quem no reino dos anjos está.
Ri-te, ri-te nos céus, alma santa;
Goza, goza eternal f’licidade!...
— Isabel deve rir-se na Glória, Deve o mundo chorar de saudade!!!... —
CANTO III
She went to meet her God.
Elegia à Rainha Carolina de Inglaterra 1º
De Isabel os restos jazem Lá no recinto sombrio, No seio da sepultura Solitário, mudo e frio.
Lá descansa em sono eterno A Mãe cheia de ternura, A Rainha que a ventura Fazia do povo Seu. 75 Tantas preces, tanto pranto, Tantas súplicas de amor, Nada, nada do Senhor O decreto removeu.
2º
Como juntos d’árvore santa, Que por ímpios derribada, Entre os frutos macerados, Jaz em terra desfolhada, Choram aves que gozavam Dos aromas exalados Das flores, dos sazonados Belos pomos que brotou;
Saudosas daquela sombra, Que do sol na intensidade, No rigor da tempestade Os seus dias abrigou.
3º
Isabel, assim a gente Que viveu tão feliz vida, Pela sombra do Teu manto Breves tempos acolhida, Que o aroma das virtudes De tua alma desfrutara, Que nos teus filhos depara, Do seu Deus santa bênção;
Vendo junto dos Teus manes Tua prole lacrimosa, Aflita, geme chorosa Na maior consternação.
4º
Chorai, ó povos! chorai!...
Com vosso pranto fazei Conhecer ao mundo inteiro Quanto amais ao vosso Rei!
Mostrai-vos gratos a quem De vosso bem se incumbiu, Que convosco repartiu Seu pensar e seu viver.
Livre deixai esse pranto, Que o semblante vos inunda, Da Rainha sem segunda Na sepultura correr.
5º
Chorai, que vos acompanha Do bronze o sagrado som, Porque o bronze também chora, Quando morre algum Bourbon;
E cá deste meu Brasil, 76 Onde, cheia de candura, De virtudes, de doçura, De Isabel vive Uma Flor, Com eles irão juntar-se, Transpondo distância tanta, Os tristes versos que canta Brasileiro Trovador.
CANTO IV
Quem como tu, alma angélica!
J. Bonifácio De novo minhas lágrimas queridas Dos meus olhos correi em liberdade!...
Vinde aplacar as dores das feridas, Que da morte alegrando a impiedade, Me quis fazer no íntimo do peito O farpão penetrante da saudade.
Convosco, só convosco me deleito, Porque sois as sensíveis companheiras Do mortal que não vive satisfeito...
De meus olhos correi, correi ligeiras!...
Molhai da minha lira as cordas tristes, De minha dor cansadas pregoeiras!
E vós, ó Natureza! que me ouvistes, Erguer o sonoroso alegre canto, Quando de alegres cantos me incumbistes;
Se agora do pesar me cobre o manto, Guardai no vosso seio piedoso As gotas cristalinas do meu pranto!...
Ímpio, cruel decreto, rigoroso Nos vassalos e reis, fatal, ferino, Roubou-nos um presente precioso...
Que ao mundo ofertara o Ser Divino.
Feliz! feliz mil vezes quem pudesse Arrancá-lo do livro do Destino!!!
Por ele dentre nós desaparece Um ser, dos Querubins cópia fiel, Que rival em virtude desconhece.
Por ele, na saudade mais cruel Nos deixou, e caiu na sepultura, No reino dos finados... Isabel...
Oh! lei inexorável! sorte dura!...
Extinguiu-se tão cedo desta sorte Das mãos do Criador obra tão pura! 77 Quem pode compreender o poder forte Com que, do céu zombando impunemente, Tudo quanto Deus cria extingue a morte?!!...
A natureza inteira o golpe sente Do seu terrível braço; tudo chora Debaixo de seu gládio impaciente.
Do universo ríspida senhora, O mundo, como fera insaciável, Pela boca dos túmulos devora!...
Oh! vida triste... vida miserável!
Julgada pelo Céu enfurecido Como crime de morte imperdoável!...
Mas a luz da razão tenho perdido...
Oh! Céu! até que ponto me arrebata De meu pesar o impulso desmedido?!...
Suspende, criatura! a voz recata!...
Que do Céu os desígnios soberanos Soberba e loucamente desacata!
Oh Isabel! que longe dos humanos Contas na mais completa f’licidade Anos por dias, séculos por anos!...
Perdoa se ofendi a majestade De Teu Deus, maldizendo Seus decretos, Perdoa meus queixumes indiscretos, Tudo foi um delírio de saudade!
CANTO V
Aquela noite sempiterna Cruel, acerba e triste Que tu... viste.
P. M. Bernardes, floresta De luto vestidos os campos estão, Envolve as cidades das trevas o véu, A lua não brilha, as outras estrelas Somente povoam a face do céu.
Ninguém se recreia no triste silêncio, Na paz, no sossego desta solidão;
Só eu gosto dela, por ver no seu rosto Descrito o retrato do meu coração.
Contigo me alegro, contigo meu peito Combina contente, ó noite sombria!...
Do dia não gosto; o sol me aborrece:
Nas noites encontro melhor poesia! 78 Ó tu minha lira, me dize: não é Da noite no seio mais belo teu som?...
Teus meigos suspiros, teus ais, teus gemidos Não tem outra vida, não tem outro tom?...
O mundo inquieto, no estrondo que faz, Sucumbe teus ecos, sufoca-os no ar:
Em seu labirinto, confuso de dia, Por mais que lhe fales, não quer te escutar.
Mas quando nas horas remotas da noite Escuta acordado teu som sedutor, Ouvindo soluços, que dizem saudade, Que dizem queixumes, que dizem amor...
Qual peito sensível resiste ao poder, À doce magia que o vem penetrar?...
E quando termina o toque divino, Não quer ansioso que torne a voltar?!...
Oh minha adorada! meu bem! minha lira!
Passar não deixemos tão doces momentos!...
Ah! leva em teus sons ao reino ditoso As tristes idéias de meus pensamentos!...
Com eles, meus versos, velozes voai!
Aos astros dizei meu mal tão cruel;
Dos astros parti à santa morada, Humildes beijai os pés de Isabel.
Mas louco! não vês que a lira tangida Por destra tão fraca não pode soar Vozes tão sonoras e tão duradouras Que possam da terra aos astros chegar?!...
Que as tristes endechas, que os cantos humildes De um vate mesquinho tal força não tem?...
Que ao céu voam cantos dos bardos celestes, Que aos bardos da terra só terra convém?...
Porém, se não podem as vozes da lira A par de meus cantos à glória chegar, Tu, alma celeste, dos anjos encanto!...
Bem podes na glória meu canto escutar!...
Escuta, portanto, meus hinos saudosos, Meus hinos sem flores, sem ostentação:
Com eles recebe na santa morada Um culto sincero do meu coração!...
CANTO VI
Una ave sola Ni canta ni llora.
Lamentaciones del Solitario 79 Na primavera da vida Viu o mundo, sobre o trono, Isabel aparecer Tão pura como a inocência, Tão bela como o prazer.
Sua alma não era humana, Era um anjo, que do céu Todas as graças vestia;
Seu corpo templo sagrado, No qual o anjo vivia.
Mas o brilho desse templo O tempo, sempre inconstante, Pouco a pouco destruiu;
Sua bela arquitetura A ruínas reduziu.
O anjo, que viu caído, Em terra desmoronado, Seu asilo encantador, Foi buscar outra morada Na mansão do Criador.
Lá ficou, e para sempre!
E o tempo, algoz cruento, Só a destroços votado, Vai consumir as ruínas Do edifício sagrado.
E a cinzas reduzir Aquela que viu o mundo O régio ceptro reger, Tão pura como a inocência, Tão bela como o prazer.
Mas que importa? pode o tempo Pela morte auxiliado, Sua existência ferir;
Há de lá na sepultura Os seus restos consumir.
Porém triunfam do tempo Suas heróicas virtudes;
Isabel vive na glória, Isabel viverá sempre Do universo na memória.
CANTO VII
She is no more, but her memory will last for ever.
Vida de Lady Kutingdon 80 Potentados soberbos! vinde, vinde Ver um quadro sublime, Onde lampeja a glória da virtude, E se aniquila o crime!
Isabel sobre o leito d’agonia Saúda a eternidade, Que assentada nos túmulos apaga A luz da majestade...
Instante acerbo, que ao tirano causa Desusado terror, Porque vai baquear, cair do trono, Aos pés de seu Senhor!...
Por ver que no sepulcro se evaporam Seus queridos emblemas, Seus mantos, seus palácios e seus tronos, Seus cetros, seus diademas;
Porque vê, como um astro ensangüentado Em céu enegrecido, Sua alma aflita divagar da morte No lar desconhecido!...
Instante acerbo, em que p’ra consolo Nem mesmo os olhos seus Podem por um momento só fixar-se Sobre os olhos de Deus!...
E com razão bastante contemplá-los Não pode o infeliz:
Seus crimes são horrendos, Deus é justo, E Deus é seu Juiz!!!...
O anátema do céu parece ao triste Do sacerdote a bênção, E o rosto volta, procurando aflito Fugir da maldição!
Isabel vê tranqüila da existência O último raiar;
Nesse instante solene nada pode Sua alma perturbar!
A lembrança de trono, que perdia, Não a pode afligir;
Pois lá da sepultura um novo trono De glória vê surgir.
Não é uma rainha que prostrada Do sólio cair vai;
É a filha feliz que alegre voa Aos braços de seu pai.
Nem sequer uma idéia criminosa Lhe mancha o pensamento, 81 Que, fixado no céu, tranqüilo espera O último momento.
As costumadas preces de seus lábios Ao céu iam parar, E do céu lhe traziam santas graças Que a vinham consolar.
Lágrimas verte; mas quanta virtude Expressa pranto tal?!...
Exprime de seus filhos e do povo Saudade maternal.
Das asas de sua alma só pena Ao mundo estava presa;
Que dos filhos no peito segurava A mão da natureza!
Despegou-se afinal, voou da terra Ao céu leda e serena, Para o céu nos levou prazer consigo, Deixou do mundo a pena.
Só restos insensíveis nos ficaram Daquele ser benigno;
Só este bem nos deixou na terra O anjo do destino!...
Ó povos! colocai-o num funéreo Eterno monumento;
Que a vossa gratidão declare aos séculos O seu merecimento.
Esta inscrição gravai em letras d’ouro No régio mausoléu;
“Seu corpo tem altares cá na terra, “Sua alma lá no céu!...”
FLORES MURCHAS
Oferecido ao meu amigo e colega Dr. Sinfrônio O (límpio) Álvares Coelho I
Ai! flores de minh’alma! quem matou-vos Que nem o aroma vos deixou tão grato, Com que se embalsamava toda inteira A minha esp’rança? Flores, flores minhas, Que a inocência plantou na terra nova Do meu coração virgem, quem ceifado Vos tem assim dos ramos tão frondosos Do meu futuro?!... Árvore bem verde, Bem viçosa e fecunda, era-vos ele Mantenedor de vida deleitosa, Que parecia eterna!... mas... caístes! 82 E nem revivereis, nem outras flores Como vós colherei, que o tronco enfermo, Talvez por falta vossa, está mirrado!
II
ROSAS, rosas Rosas, rosas, que a aurora me atirava Aos punhados do céu, quando eu menino, Vendo-a seguir do mar, do céu, dos montes, Mandava-lhe minh’alma num sorriso Inocente como ela; que mau gênio Roubou-vos a meus olhos!... Rosas, rosas, Que nos brincos da tarde me trazia Do jardim paternal a irmã correndo Para me dar em troca de um abraço...
Ai! sempre, rosas, sempre me ganháveis Por um abraço-mil, por cada pétala Abrasados de amor — milhões de beijos!
Murchastes de calor?!... foi tanto o fogo, Que vos matou tão cedo?... Amor não mata;
Gira um vulcão de vida em cada chama Que acende o facho seu: de um deus amante A palavra de amor deu vida ao mundo...
Se dei-vos tanto amor, por que morrestes?...
Quem vos murchou tão cedo?... Rosas, rosas Que nos brincos da tarde me trazia Do jardim paternal a irmã correndo Para me dar em troca de um abraço!...
III
Só um bem nesta vida me resta:
De remorsos minh’alma está sã!
Vêm curar-lhe do mundo as feridas Puras águas da crença cristã.
Sim, eu sei que, apesar de cerrados, Os teus braços, ó cruz, não têm fim;
Se teus braços abrangem o mundo, Infinitos estende-os p’ra mim.
Que eles são infinitos quem nega?
Quem não sabe que em todo lugar Onde um filho estiver do Calvário Em teus braços se pode arrimar?
Quantas flores colhi neste mundo, As perdi das paixões no escarcéu:
Em jardim me converte o sepulcro, A colher dá-me as flores do céu!
IV
Creio em Deus, minha irmã; e tanto creio Que, vendo lá no céu tua alma pura, 83 Em vez de maldições, mil bênções voto À hora em que desceste à sepultura!
Creio em Deus, minha irmã; tanto que espero, Inda no céu contigo, como outrora, Frescas rosas colher desabrochadas À luz dos raios da divina aurora.
Creio em Deus, minha mãe; em tua bênção Reconheço um tesouro divinal, Que do trono infinito a mão do Eterno Segue o traço da bênção maternal.
Creio em Deus, minha mãe; tanto que espero Qu’inda a terra do meu funéreo leito — Por teu maternal pranto semeada —
Me brote um verdadeiro amor-perfeito.
Creio em Deus, creio em Deus; o bardo amigo, E por isso inda creio que, se o fado, Se não na minha pátria, neste solo Me permitir morrer junto a teu lado, Por talismã da fé que nós sagramos E sincero tributo de amizade, Na terra que cobrir-me as frias cinzas Plantarás um suspiro, uma saudade.
Bahia, 4 de agosto de 1854 84 DELÍRIO E CIÚME
Mais nada resta a suspeitar!... Mais nada O véu da falsidade encobrir pode!...
Do desengano ao lume, desesp’rada, Atenta tudo vê, tudo conhece Minha alma acesa em raiva, acesa em zelos!...
Que pretendias, pérfida?... Que ainda Perdurasse a ilusão com que risonha Entretinhas meus loucos pensamentos?
Que da paixão ao sopro envenenado O lume da razão, perdendo a chama, Jamais recuperasse?... Não! não pôde Em mim de amor a força ganhar tanto!...
Mas oh! por que me ufano se ainda escravo Geme o meu coração? Se inda deseja Ver da tigre o semblante, ouvir-lhe as vozes?...
Tristes sortes dos míseros amantes, De ingratos corações vítimas loucas!
Conhecem o algoz! e o algoz só querem!
Maldizem mão cruel, que os assassina, E só acham nos braços do verdugo, Alívio para o mal, que os atormenta!
Cegos, que pretendeis achar ventura Entregues à paixão, que me devora!
Estultos! vede os males que me cercam!
Contemplai minhas ânsias! meus suspiros Penetrem vossos peitos desgraçados!
Amei uma mulher, julguei que nela Tudo era belo, tudo amável, terno:
Minha alma embalsamada pelo aroma De meigas esperanças amorosas, Só delícias gozava, só prazeres Quando pensava nela, quando a via;
Meu peito era inocente, e a razão nova.
Na mente virgem de amorosas cenas, Era a primeira trágica — Marfida! —
Roubou-me com enganos a traidora Meus primeiros suspiros, meus carinhos, Meus beijos, minhas queixas, meus desvelos!
Se de ciúme ardente o peito amante, Irado, contra ela a voz erguia, Um sorriso somente me bastava Para apagar a lava em que fervia Meu coração zeloso! Um olhar terno, Delirante de amor, aos pés da infida Em despojo a seus olhos me arrastava!
Num beijo desmaiava, embriagado Por um licor divino que sentia Difundir-se dos seus pelos meus lábios!
Quantas ditas gozei! quantos tormentos, Já me causava a Ingrata antes da infâmia!...
Mas... tudo se passou!... Visões celestes, Vossa tirana angélica pintura 85 Em quadros infernais está mudada!...
Leves pincéis de amor tendo quebrado, Molhou da ingratidão a negra brocha Nas tintas que as traições lhe ministraram, E dentro da minha alta só vilezas, Falsidades venais, cenas infames Me desenha na mente desvairada!
Oh! como! com que cor, com que prodígio Vendo estou daqui mesmo dos seus crimes O retrato fiel, a forma viva!
Crestados pela luz da fantasia Queimam-se os véus que envolvem o nefando Leito onde fervem gozos impudicos!
Onde a luxúria treme em corpos trêmulos, Exalando seu hálito empestado!
Ao sumo em comoção chegaram ambos:
Correm os beijos mais que o pensamento:
Juramentos de amor entrecortados.
Ouvem as fúrias presidindo o ato!
Os corpos mutuamente se comprimem...
E Deus em toda a parte!!!... e tudo vendo!!...
Nem o respeito ao céu lhe veda o crime Que acesa a Salamandra em fogo impura, Tem o céu nos prazeres desonestos E seu Deus no mortal com que os goza...
E não brada vingança um tal delito?...
Risonha a Natureza a contemplá-la Parece festejar seus desatinos!...
Bem; sucumba-se a sorte aos céus e ao fado;
Fartem-se com os jorros do meu pranto;
Contém-me as ânsias, contém-me os suspiros, Formem eles um cântico de glória Que ao seio paternal do Nume afague!...
Porém... que digo!... Lábios, que fizestes?...
Que disse!... oh! justo Deus! perdoa a Bardo:
Não guiou a razão falsários ditos:
Perdoa, justo céu! são tais palavras Centelhas do vulcão em que me abraso!
Marfida escuta agora a voz do vate, Onde a paz já domina; atende um pouco À voz do coração aniquilado.
Que já livre das fúrias do ciúme, Inda ardente de amor, mas já sem lavas, Submergido nas trevas da tristeza, É qual em fundo bosque, em noite escura, Esqueleto de choça incendiada, Sem chama, sem fumaça, em brasa viva!
Argüições não são, meu bem, são rogos!
Rogos, que meigo, terno, lacrimoso, Suplicante, abatido, d’alma verto!
Marfida! muda um pouco esses transportes!
Dos lábios desse amante que idolatras, Desapega teus lábios!... vem ao menos Encostá-los nos meus envenenados 86 Para dar-lhes o seu contraveneno!
Cede às aflitas preces da minha alma, Que sedenta te roga algumas horas, Um minuto sequer de gozo antigo, Da celeste ilusão dos teus enganos!...
Mas... sucumba a paixão; erga-se o homem!
Quebrem meus pés enfim as vis cadeias, Que a seus pés arrastei! Mísero louco!...
Escárnio a meu rival, escárnio dela!
A taça em que sorvi divino néctar Caiu-me aos pés quebrada; os vis fragmentos Esmaguemos também! Nem mais teu rosto Venham mostrar-me espelhos da memória!
Vai-te! Vai-te de mim... porém, não! fica, Fica, que, se tu partes, vai contigo Todo o meu coração, vai-se minha alma!...
Que ânsia tão aflita me sufoca!
Talvez a morte seja... Vem; não tardes, Imagem da extinção, imagem santa Do nada; ponte curta que nos leva Da ilusão à verdade! Mesmo quando, Castigo ou prêmio, nada depois dela Exista para nós, o nada mesmo Realidade é! Mortais tormentos Suportará jamais quem não existe;
A vida entre prazeres vale a vida;
Mais que a vida em desgraça vale a morte.
Talvez, talvez, cruel, antes que um dia Sobre o sepulcro d’outro a luz derrame, Da vida o fio me rebente a morte!
Talvez amanhã mesmo sobre a campa, Que meu já frio corpo frio espera, Tu pises orgulhosa de meu fado!
Vai; que lá mesmo te darão meus manes Uma prova de mais dos meus tormentos!
Gemidos que ouvirás na minha campa, Sairão de meu peito inanimado;
Entre suspiros ouvirás teu nome Por meus já mortos lábios repetido;
Que amor, essencial parte do espírito, No espírito eterno, eterno viva.
RONDÓ Minha lira brandamente, Delinqüente em leis de amor Do traidor que tem por crime O que imprime na razão, Que lacera a quem afaga Que propaga em seus ardores Os horrores da tristeza Que me pesa na feição, Tangerei as cordas tuas, 87 Que são tuas, e não minhas Que o que tinhas tangedor Tens de amor a escravidão.
Não mais de outras criaturas Formosuras cantaremos, Louvaremos tão-somente De um só ente a perfeição.
Tirce, a bela moreninha, Que de minha nada tem, É, meu bem, a criatura Que segura meu grilhão.
Eu que em vê-la só me esmero Ser não quero desprendido, Que embebido no meu rosto Acho gosto na prisão.
O JORNALEIRO
É igual a ti mesmo, a ti somente (Do poema O ganhador)
Quando ousado o poeta a voz levanta, Em punho tendo o látego da sátira, P’ra castigar hipócritas malvados, É a voz da verdade a voz que soa!
Desmascarar falsários intrigantes, O vício espezinhar, punir tartufos, Velhacos suplantar, caluniadores, São atos que de austera probidade Louvor sincero e atenção merecem.
Armados pois, de um retorcido relho, A um negro covil — talvez o inferno —
Por um forte cabresto bem seguro, Eu vou buscar um torpe Jornaleiro, Que entre sujos papéis escrevinhados (Que só p’ra guardanapo têm valia)
Sentado em tamborete junto à banca, Tendo nas garras de algum corvo a pena, Baldões, insultos contra a honra atira!
Trazer pretendo o ganhador escriba Qual jumento manhoso à praça pública E expô-lo às apuradas dos moleques, Por quem apedrejado ser devia...
Quem não conhecerá o Miguelista, Escória dos sandeus de quem eu falo?!...
Chicanista imoral, doutor em nada, Insosso prosador — alto pedante —
Que estudar foi na estranja — patacoadas Para dizer-se aqui homem de letras?
Quem não conhecerá o sábio lente, Que num certo colégio desta Corte Ciência geográfica ensinava?
Quem não conhecerá — o que na escola, 88 Onde quer se instruir jovem guerreiro, Explicando o direito ensina o torto?!...
O homem que insultava adversários, Alcunhando-os heróis das “vacas gordas”, E que agora sedento — a grossa teta Bem agarrado, chupitar procura?!
Homens raros assim todos conhecem!...
Eu não preciso retratá-lo ao vivo, Descrever-lhe o carão, onde grudados — Nos olhos — tem pedaços de vidraça, O corpo infame, o bojo monstruoso, Qual um balão de fedorentos gases;
E mostrar o letreiro que na fronte — Em letras garrafais — diz “Ganhador”!
Todos bem sabem de que peça falo:
O trabalho me tira a grande fama Que por falso, impudente tem ganhado.
Sim, ó grão-Redator (a ti me volvo)
Ao público amador — quero mostrar-te, P’ra que faça a justiça que mereces...
És qual tarpéia rocha inabalável Em teu princípio firme-o da calúnia —
És herói dos heróis, quando se trata De vis aduladores intrigantes!
Um singular portento és na mentira!
Tu és grande! és enorme!! porque arrumas Patadas, couces mil, no mundo inteiro!!
A natureza pasma ao contemplar-te, Julgando que não és uma obra sua!
Embasbaca-se o gênio das trapaças Vendo brilhar o teu saber ingente!
Té o demo — de gosto — pinoteia, — E berrando que tu, seu protegido, Que és glória sua comunica à terra!...
E no entanto ninguém teu pai se julga!...
Nem o podem dizer, porque não sabem...
Quem te acendeu nos cascos esses fogos Que tudo abrasam, sem queimar-te a bola?
Quem és pois? de onde vens? P’ra onde te [atiras?!...
És abutre — que mágica do Averno —
Em homem transformou p’ra da calúnia O instrumento ser aqui na terra?
És do zoilo invejoso a alma errante, Ou um sopro de negra, imunda harpia?
Onde encontraste o ser? a origem tua?...
Veste por acaso do planeta Que Vulcano por lei dizem chamar-se?
Onde fixaste o norte de teu rumo, Ó ente singular, teu paradeiro?
Para onde irás tu, quando partires Deste imenso teatro em que tens feito 89 O papel mais infame que se pode?!
Abutre, harpia ou sopro, ou quer que sejas, — És igual a ti mesmo, a ti somente! —
Cansa-se a pena a enumerar teus feitos!
Envergonha-se aquele que o censura, Olhando para ti, vendo que és homem, Na figura somente... em nada mais!...
Imortal, Redator do papelucho A quem um respeitável nome deste (Sim que o nome da Pátria, para o probo, Que não p’ra ti, é nome respeitável), É tempo de voltar ao antro escuro, Ou p’ra o lugar — ignoro donde hás vindo!
Já muito por aqui de mal tens feito...
As cinzas venerandas revolveste De um dos heróis da “Independência” nossa!...
Tua missão cumpriu-se!... é tempo, volta...
Era minha intenção trazer-te à praça;
Mas desisto da empresa!... A puros homens É um crime mostrar torpes figuras, Negros quadros, que infâmias representam!
Vai-te! foge daqui! do vate a destra Só cordas vibra de doiradas liras:
Se indignado empunha o forte relho Para surrar hipócritas malvados, Envergonha-se logo do que há feito!
É nobre o fim p’ra que o Poeta nasce;
E não para amansar bestas bravias Ou corrigir sicários sevandijas!...
ODE
A D. Carlota Leal Milliet (Na noite de seu benefício em 16 de agosto de 1858)
Tem um destino o gênio Só é livre na terra o que é pequeno;
É fatal o sublime, Que o sublime é de Deus e não do mundo.
Olhos gravados nos fanais brilhantes De ridente futuro, Embora desejo incendiado Aos hinos o arremesse, Que retumbas nas mesas opulentas De altivos Baltasares, De rojo contra as urzes da desgraça Há de cair o Gênio;
De rojo há de ir por elas, 90 Arrastado por destra misteriosa, Que dest’arte o remonta a ignoto alcáçar.
O ÉPICO DO — FIAT
Zela em extremo a palma aos seus diletos;
Que o viço lhe desbotem não consente;
Quando eles descuidados não a velam, Ante seus olhos amortalha o mundo, E na dor os obriga, Com lágrimas de sangue, a dar-lhe orvalho.
O anjo d’Harmonia no teu seio Jazia encarcerado, Deixando a furto apenas Ouvir em curto canto as notas mágicas Da sua voz divina, Por não haver um templo Onde pudesse desferir seus vôos;
Abriu-se o templo d’Arte!...
Eia, Sacerdotisa, o altar te toca!
Norma de Norma, chega!
Já a língua de Euterpe é língua tua!
Lua e sol d’Harmonia ao mesmo tempo, É tua voz Proteu do sentimento Nas notas que desliza!
O Estro de Bellini nas doçuras Da língua portuguesa mais se adoça, Só lhe falta a doçura do teu canto.
Norma de Norma, chega!
Já a língua de Euterpe é língua tua!
O FUROR CIUMENTO
Da mãe, que pelo amante empunha o ferro Para cravar nos filhos, pede o fogo, Que em teus olhos dardeja o sol dos trópicos;
A clave do gemido brasileiro Pede a prece da filha Que os filhos recomenda ao amor paterno;
Norma de Norma, chega!
Já a língua de Euterpe é língua tua!
Chegaste!... dos desgostos pela senda, Arrastada por destra misteriosa, Que dest’arte guiou-te ao ignoto alcáçar Recebe, pois, um ósculo da Poesia, Que Música e Poesia Irmãs nos louros, beijam-se na floria.
Sus, Rainha do Canto, o cetro empunha!
Reina, que, se não reinas No mundo d’harmonia, Reinar não pode a cena brasileira. 91 AOS ANOS DE UM RESPEITÁVEL ANCIÃO
I
Já seca pende morta essa grinalda Que outrora me adornou!
Da inspiração a luz que me animava De todo se apagou!...
Os astros de luz tão bela Estão sem claridade;
Apagaram-se todos, mal ergueu-se O astro da verdade Fui livre quando, louco! no infinito Voava da demência;
A razão cativou minh’alma presa Nos ferros da evidência.
Fecharam-se os jardins da fantasia, Nem há mais uma flor!
Domina-me a razão — como ser livre, Sendo de mim senhor?
Se, conhecendo o mundo limitado Perante os meus projetos, Os vôos enfreei do entusiasmo, Prendi os meus afetos?
Minh’alma nos limites circunscrita Da franca humanidade, Abandonou a posse do infinito Perdeu a liberdade.
A lanterna da exp’riência Com seu escasso clarão Não pode mostrar imagens Do mundo da inspiração.
A verdade deste mundo Seca, morta, sem fulgor, Não deixa medrar as flores Da palma do trovador.
A pobre realidade Que o mundo inteiro respira:
O trovador não encontra Nas notas da sua lira.
Das verdades deste mundo A misérrima visão Adormece, mata, extingue O fogo da inspiração.
Mas, assim como a lâmpada que exala 92 A vida no seu último lampejo, O meu último canto hoje dar quero À glória dos teus anos. Sim, um hino, Um hino de amizade, extremas notas Sejam da lira que, jamais manchada De infame adulação, só dedicou-se À virtude, ao amor, aos bons amigos E à pátria, que a despreza!...
II
Mais um ano hoje contas, mais um dia Desses que valem anos te é marcado.
Vês em redor de ti os teus, contente, Vês um grupo de amigos a teu lado.
Contente a verde prole nos teus braços Em transporte de amor hoje se lança;
Na mãe dos filhos teus vês a bondade, E vês em cada filho uma esperança.
Filhos! não iludis os seus desejos, Não deis às esperanças desenganos;
Vosso pai já velou nos anos vossos, Compete-vos velar sobre seus anos.
Vede, os anos passaram-lhe na fronte Sem lhe deixar um sulco de desgosto;
Respeitai o que os tempos respeitaram, Não aumenteis as rugas do seu rosto.
Começa o ancião a encanecer-se, E já lhe vejo as têmporas nevadas;
Ah! mais do que a ninguém, incumbe aos [filhos Conservar de seu pai as cãs honradas.
Um pai não vive em si, nos filhos vive, Mal sentem estes os vitais lampejos, Todo o bem, que é só seu, o pai esquece, O bem dos filhos seus são seus desejos.
Dá-lhe Deus a ciência do futuro Ganhada dos trabalhos pelo trilho, Quando do amor paterno iluminado O pai sempre conhece o bem do filho.
Amortalha, portanto, o seu futuro, Cair no precipício certo vai O filho que o amor paterno esquece, Desprezando um conselho de seu pai.
Filhos, beijai a destra deste velho, É a bênção de Deus nela encarnada:
Ele vos deu segura mocidade, Dai-lhe também velhice afortunada. 93 AS LÁGRIMAS
Lágrimas, lágrimas tristes, Não deixeis os olhos meus, Que por vós eternamente, Aos prazeres disse adeus.
Para ter indisputáveis Direitos ao nosso amor, Arranquei-vos da minh’alma, Sois filhos, de minha dor.
Minha vida, agreste planta De desertos areais, Ao sol das paixões vivendo, Expira se a não regais.
Para ter indisputáveis Direitos ao nosso amor, Arranquei-vos da minh’alma, Sois filhos, de minha dor.
CIÚME E RAZÃO
I
E perdi-a! e nem mais uma esperança, Sequer, me alenta nesta dor terrível, Que hei de, não mudo só, porém me rindo Devorar em segredo até a morte!
Suportar um tormento Que ao menos em gemidos Vai-se em parte exalando; a febre, a sede Do amor e da saudade mitigar-se Com lágrimas, é bem que só conhece, Quando o céu lhe recusa, o desgraçado!
E não hei de chorar, chorar não quero, Não quero, porque as bagas do meu pranto Enfeitam a coroa Que ele cinge, feliz, nos braços dela! 94 II
Excede à força humana este martírio;
Mas, louvores ao céu, minha alma sinto Resignada e pronta.
Benéfica razão serve de alâmpada Das minhas ilusões à sepultura!
Amarga como o fel sempre a verdade Quando do amor é o erro, mas não cospem-na Lábios que a ingratidão beijar rejeitam.
III
Sim, hei de consumar o sacrifício;
Nem súplicas, nem queixas há de ouvir-me;
Do Coração no fundo hei de trancá-las Ao vê-la, ao vê-los, e saudar contente Do amor de ambas a ventura e os gozos!
Daquele olhar d’arcanjo cujos raios, Como punhais de fogo, Do coração as fibras me laceram, Hei de fitar a luz sem perturbar-me;
E morrer impassível, Quando nos olhos dele minha vida Em delíquio amoroso depuserem!
IV
Nobre altivez as preces me proíbe, Assim como a razão proíbe as queixas Que lhe posso pedir que dar-me possa?
Desejava um amor puro, espontâneo, Desses que nascem nos segredos d’alma Que ao simples choque de um olhar acordam Para não mais dormir. Queria os vôos Desse amor desvelado, procurando Dentro em meu coração fazer um ninho;
Observar em êxtase os milagres Do proteísmo ser; colhê-lo em rosas Nas chamas do rubor que acende um beijo Senti-lo gelo após alguma ausência Num susto de saudades, E no doce apertar de um longo abraço No seio me cair, tépida lágrima.
Não me pode dar tanto. Da vontade Os domínios amor nas asas prende;
Se quando se quisesse amor nascesse, Quando se não quisesse amor findara!
Inda que a minhas preces comovida, Dissesse-me tudo que desejo agora, Faltava em tudo o mel que amor destila E unicamente amor!...
Anjo inocente, Não queixo-me de ti, regem os fados Das sensações o mundo; aos afetos 95 O céu a cada um deu seu destino;
O tesouro que guardas no teu seio Foi destinado a outrem;
Os desígnios do céu foram cumpridos E assim tu, sem querer, me deste a morte!...
Grosseiros corações, almas estreitas Mancham o querubim que os encantara, Porque as asas lhe nega; generoso, Inimitável, crescente o meu afeto Das ânsias no martírio se acrisola;
Por cada golpe que me dás no peito, Nova chama de amor me acendes n’alma, Extinta a minha última esperança No árido deserto em que me arrojas.
Inda busco uma flor para enfeitar-te!
Não, não hei de acusar-te, mesmo quando Na explosão de meus gelos mais pungentes Me for a mágoa de te haver perdido.
És a imagem querida do meu êxtase;
Intacta ficarás. Por entre a nuvem Que o infortúnio lançou-me sobre os olhos, A mesma me será no pensamento, Benfazeja visão de um sonho eterno!
ANGÚSTIA
Quando morta a f’licidade, A fé expira também!
Saudades de que se nutrem?
Os suspiros, que alvo têm?
Morta a fé, vai-se a esperança;
Como pois, viver pudera Saudade que não tem crença, Saudade que desespera?
Onde as graças do passado, Se altivo gênio sanhudo O cepticismo nos brada, Foi mentira, engano tudo?
Em nada creio do mundo:
Ludíbrio da desventura, A felicidade me acena Só de um ponto — a sepultura.
Morreram minhas saudades, E nem suspiros calados Dentro d’alma pouco a pouco Vão morrendo sufocados. 96 IMPROVISOS
AS POTÊNCIAS DO OCIDENTE
As Potências do Ocidente Com as Águias e os Leões, Ou tomam Sebastopol, Ou deixam de ser nações.
Paula Brito Já de suportar cansado Tanta injúria moscovita, Um povo acolá se agita Da guerra soltando o brado!
Dos canhões de Rei mitrado Retumba o eco imponente, Que em defesa da inocente Fraca, mas briosa terra, Acorda, e convida à guerra As potências do Ocidente.
Eram rivais... mas que importa!
Um povo herói tudo esquece, Se outro povo, que padece, A defendê-lo o exorta.
Não, cair não há de a Porta, Não há de rojar grilhões, Não há de que seus brasões Vão defender com pujança A Inglaterra e a França Com as Águias e os Leões.
Ei-las no campo de glória, Que com puro sangue lavam, E cada luta que travam É uma nova vitória!...
Da humanidade e da história Seguidas pelo farol, Juram ambas pelo sol Dos livres, em que se abrasam, Que Sebastopol arrasam, Ou tomam Sebastopol.
Hão de tomá-la!... arrastada Do autocrata a bandeira, Há de ser a pregoeira Desta verdade sagrada:
“Que nações que pela espada “Pretendem usurpações, “Que, vis escravos, grilhões “Às suas irmãs destinam, “Ou como Tróia terminam, “Ou deixam de ser nações.” 97 O QUE FAZ MINHA DOR
Um pensamento de morte, Uma lembrança de amor, Uma esperança perdida, Eis o que faz minha dor!...
Tive no mundo da mente Formosos dias serenos, Como os do céu sempre amemos Em doce paz inocente.
Dos desgostos a torrente Em um rápido transporte, Por má vontade da sorte, Me fizeram num momento Do meu feliz pensamento “Um pensamento de morte!”
A minha alma escureceu-se Do pensamento nublada, E a mente desnorteada Em negro caos converteu-se!
Um mar de pranto — estendeu-se Naquele mundo de horror;
E no medonho fragor Da tormenta desabrida Vaga nas ondas, perdida, “Uma lembrança de amor!”
Cresce a celeste batalha, E na vasta escuridade Sem cessar, da tempestade O raio o manto retalha A flutuante mortalha, Vaga sempre! Convertida Aquela idéia de vida Num sudário desta sorte, Retrata, emblema da morte “Uma esperança perdida.”
Em pé firme e solitária, Minh’alma fora insensível À tempestade terrível, Contínua, crescente e vária!...
Mas a veste mortuária, Que das ondas vai na flor, Mortalha do meu amor, Dantes saudosa lembrança...
Hoje perdida esperança...
“Eis o que faz minha dor!...” 98 O FAROL DA LIBERDADE 14 Na terra da Santa Cruz, Que enlutava atroz maldade, Já solta brilhante luz O Farol da Liberdade.
Que vejo?... a Rússia tremendo Sob despótica espada?!...
Forte Hungria derrotada Entre cadeias gemendo, A Itália a fronte abatendo Ante o fanático Jus?!...
Liberdade!... se de luz Precisas, responde, fala, Aqui temos, vem buscá-la Na terra de Santa Cruz.
Famoso povo guerreiro, Por nós hospitalizado, Contra nós sem causa irado Nos levou ao cativeiro!
Em seu jugo carniceiro Choramos longa orfandade!
Nossos campos, nossa herdade, De cadáveres cobertos, Eram funéreos desertos Que enlutava atroz maldade.
Mas nossos brios um dia Contra os ímpios acordaram, E os combates rebentaram Entre nós e a tirania!
A estrela que conduziu Colombo à terra da Cruz, Que os grandes povos conduz Ao templo da Liberdade, Dos Andes na sumidade Já solta brilhante luz.
Ao seu divino clarão Pedro o filho dessa terra Que dispunha em nova guerra Lançar-nos novo grilhão, Acorda... fita a visão, Toma a espada, o campo invade, Embebe-a na claridade Que da estrela se desprende, E com ela acesa acende O Farol da Liberdade.
14 Poesia para festejar o dia 7 de setembro. 99 À MINHA MULHER
Lembranças do nosso amor Da morte o sopro gelado, Não me apagando a existência, No coração com veemência Sinto seu passado apressado.
Ai quando, bem adorado, Minha alma daqui se for, Disfarça teu dissabor, Resiste à força veemente, Mas nunca risques da mente Lembranças do nosso amor.
Nada tenho que deixar-te De fortuna nem de glória, Nada me aponta a memória Que possa morto legar-te;
Se nada deve ficar-te Mais que saudades e dor, Bálsamo consolador À dolorosa ferida Hão de ser-te nesta vida Lembranças do nosso amor.
Lembrar um bem adorado Na dor da saudade ausente, É mesmo sê-lo presente, Inda que seja passado.
Ser por ti sempre lembrado, Como em vida morto for, Por influxo encantador Deste mistério profundo, Hão de ser-te nesse mundo Lembranças do nosso amor.
AO AVISTAR O RIO DE JANEIRO
Despe as nuvens que encobrem Sol da minha f’licidade Que abre a flor dos meus prazeres Santo orvalho da amizade.
Respiro os ares da pátria Contemplo os encantos seus;
Os meus contentes me abraçam, Eu contente abraço os meus.
Meu Deus, meu Deus, não consintas Que a pátria torne a deixar;
Que da segunda ferida Talvez não possa escapar!
Se no íntimo a primeira 100 Feria-me d’alma a raiz, Bem pode inteira cortá-la Segunda na cicatriz.
Completa a cura, não deixes De novo o mal renascer;
Que amarga mais que a desgraça A negaça do prazer.
Não suceda à cruz rojada Mais pesada nova cruz, Não condenes mais às trevas O cego a quem deste a luz.
Mote Quem Feliz-asno se chama De-certo é asno feliz.
Glosa Se Camões cantou Gama Por seus feitos de valor, Também merece um cantor Quem Feliz-asno se chama.
Qualquer burro pela lama Enterra pata e nariz, Mas este, que com ardis Chegou a ser senador, É besta d’alto primor, É decerto asno feliz.
Mote Beijo a mão que me condena A ser sempre desgraçado;
Obedeço ao meu destino, Respeito o poder do Fado.
(Pe. José Maurício)
Glosa Como a adorei, não exprime, Não diz humana linguagem;
Ninguém traçar pode a imagem;
Daquele amor tão sublime!
A cruel, por este crime, Eterno pranto me ordena.
E eu, vítima da pena Da minha amorosa ofensa, Sem argüir a sentença Beijo a mão que me condena!
Sentindo a perseverança Da paixão que me domina, 101 De achar ao mal medicina Não alimento esperança, Não sinto a menor mudança Neste amor tão malfadado;
Se este amor exagerado A mil desgraças me liga, Esta constança me obriga A ser sempre desgraçado!
Há um destino. — A razão Da paixão na imensa vaga De pronto seu facho apaga, E nos deixa a escuridão!
Desse destino a impulsão Eu sinto se me examino:
Sem luz, sem guia e sem tino, Nada cogito, nem quero;
Não penso, não delibero, Obedeço ao meu destino.
Quando em calma cogitava, Calmo, estudando a verdade, A razão e a liberdade Sempre fortes, figurava, Mas ai, triste! nem sonhava Ver-me um dia neste estado!
Agora desenganado Por tão acerba lição, Mais que ao poder da razão, Respeito o poder do Fado!
Mote Ainda no mar do ciúme Fervem centelhas de amor.
Glosa Do amor o ardente lume Eterno nunca se apaga Arde por baixo da vaga;
Da suspeita o azedume Ainda no mar do ciúme.
Não lhe dissipa o fulgor, Tanto que quando o amador Chora da ingrata o quebranto, Por entre as bagas do pranto Fervem centelhas de amor.
Mote Dois corações que se amam, Sem falar se comunicam.
Glosa A freira, que madre chamam, 102 E o frade, que é frei Carvalho, Sustentam com seu trabalho Dois corações que se amam.
E tão bem se verificam Com manobras tão seguras Que, trabalhando às escuras, Sem falar se comunicam.
Mote Soa o bronze, expira o dia, Eu triste fico a gemer;
Eis qual vive o infeliz Eis aqui pois, meu viver.
Glosa Já luziu no firmamento Do sol a luz radiante, Já seu raio fulgurante Deu ao mundo luzimento;
Com sublime encantamento Já espargiu a alegria;
Porém, ó céu, quem diria Que o sol havia expirar?!
Lá o vejo descambar, Soa o bronze, expira o dia.
Vendo pois, da natureza O quadro todo mudado, Comparo-me ao seu estado, Me punge mortal tristeza Já não vendo esta beleza Que o sol faz o mundo ter.
Vendo a noite já descer Com suas cores de morte, Lendo nela minha sorte, Eu fico triste a gemer.
Assim entregue ao azar Triste vítima do fado, Vivo sempre contristado E de contínuo a penar;
Debalde busco encontrar Da felicidade o matiz Tudo que me cerca diz:
“Vê lá das trevas no horror A imagem triste da dor;
Eis qual vive o infeliz.”
Ouço a sentença da sorte, Mais se magoa o meu peito, E ainda à vida sujeito, Lamento não ver a morte, De dor em vivo transporte, Só desejo não morrer; 103 Desejo então mais sofrer, Porém, como sou cativo, Nem posso morrer nem vivo.
Eis aqui o meu viver.
Mote Junto de uma sepultura À sombra de seu salgueiro, Lamentando a minha sorte, Chorei o meu cativeiro.
Glosa Como rompe cintilante O fuzil ferrenho véu De tempestuoso céu E o deixa negrejante, Nasceu, morreu num instante A minha doce ventura.
Aflito em tanta amargura, Buscando então consolar-me, Solitário fui sentar-me Junto de uma sepultura.
Ali, triste meditando Em minha cruenta sorte, Parecia estar co’a morte Horas felizes passando.
Da brisa o sussurro brando, A corrente do ribeiro, Das flores o grato cheiro Nada achava então suave Era qual dos mortos ave À sombra de seu salgueiro.
Toquei a laje pesada Penetrado de agonia, Sentiu essa pedra fria Minha alma, triste, gelada.
Eis que a voz descompassada Ouvi do canto da morte;
Pareceu-me em um transporte Seu triste acento escutando, Que também ‘stava chorando, Lamentando a minha sorte.
Então, já desesperado, Entregue a pungente dor, Conheci todo o rigor De meu desumano fado;
E nesse penoso estado, À sombra desse salgueiro Que me era tão lisonjeiro Por exprimir minha sorte, Em tristes hinos de morte Chorei o meu cativeiro. 104 Mote Quebrou amor por despeito As cordas da minha lira.
Glosa Porque me não viu sujeito De Marília aos ternos braços, De minha ventura os laços Quebrou amor por despeito.
Com isto não satisfeito, Cego nume aceso em ira, Do estro o fogo me tira E desde o fatal momento Rebentaram sem alento As cordas da minha lira.
Um cartucho de confeito, Num dia de patuscada, Nas ventas da minha amada, Quebrou amor por despeito.
Ela, vendo o tal sujeito, Com uma pedra lhe atira;
Mas amor, p’ra que o não fira, Faz o corpo desviar E a pedra foi quebrar As cordas da minha lira.
Mote Pagode sem bebedeira Não é coisa de rapazes.
Glosa O meu bem em certa feira Em que comigo se achava, Disse que não adotava Pagode sem bebedeira.
Repreendendo-a da asneira Lhe disse: “Márcia, o que fazes?”
Ela então, fazendo as pazes, Respondeu-me com carinho;
“Gentes, pagode sem vinho Não é coisa de rapazes.”
105 Mote Ou são quatro as Graças belas Ou tu és uma das três.
Glosa Ou no beco das Cancelas Há uma Graça fugida Por vir do empíreo corrida, Ou são quatro as Graças belas, Uma moça igual a elas Lá encontrei uma vez Em certa noite de Reis E lhe disse uma chalaça:
“Ou há de mais uma Graça, Ou tu és uma das três.”
Mote Um só momento de amor Faz feliz um desgraçado.
Glosa Ao meu cruel dissabor Vou morrer; vem dar-me Armia, Como tacha de agonia, Um só momento de amor Dá-me, dá-me por favor Um suspiro, um ai magoado;
Que um ai de amor, temperado Em duro e cruel transporte, Até nas ânsias da morte Faz feliz um desgraçado.
EPIGRAMAS
A um calvo pretensioso Cabeça, triste é dizê-lo!
Cabeça, que desconsolo!
Por fora não tem cabelo, Por dentro não tem miolo.
Outras versões Vejam só esta cabeça!
Oh! meu Deus, que desconsolo!
Por fora não tem cabelo, Por dentro não tem miolo.
(Edição Melo Braga, p. 344)
Cabeça!... Que desconsolo! 106 Cabeça!... Força é dizê-lo Por fora não tem cabelo, Por dentro não tem miolo.
(Antologia Brasileira, de Werneck, 13ª ed. p. 606)
Dizem que a Morte e Maurício Andaram na mesma escola:
A Morte mata somente;
Maurício mata e esfola.
Cravo, rosa, em jarra fina De ver tenho tido ensejo.
Mas, senhora, flor em tina É a primeira vez que vejo.
Deus, para provar aos homens Toda a sua autoridade, Enviou-nos um bom tempo Que é pior que a tempestade.
Causa pena e causa espanto, E até mesmo causa dó Ver morder a tanta gente Um homem de um dente só.
Para mostrar que é um sábio E filho de boa gente E dos passados ministros Ser em tudo diferente, Sua Excelência da Guerra Em tudo o que der à luz Em vez de assinar de nome Pretende assinar de cruz.
A peça Degolação Foi mui bem representada.
Entre os muitos inocentes Foi a peça degolada.
Cada um de nós no mundo Fazemos nossa figura;
Tu entisicas as partes Eu me encarrego da cura.
MODINHAS
FOI EM MANHÃ DE ESTIO
Foi em manhã de estio De um prado entre os verdores, Que eu vi os meus amores Sozinha a cogitar. 107 Cheguei-me a ela, Tremeu de pejo...
Furtei-lhe um beijo, Pôs-se a chorar.
Eram-lhe aquelas lágrimas Na face nacarada Per’las da madrugada Nas rosas da manhã.
Santificada Naquele instante, Não era amante, Era uma irmã.
Dobrados os joelhos Os braços lhe estendia, Nos olhos me luzia Meu inocente amor.
Domina a virgem Doce quebranto, Seca-se o pranto, Cresce o rubor.
Nestes teus lábios De rubra cor, Quando tu ris-te Sorri-se amor.
Dos lindos olhos, Tens o fulgor, Se p’ra mim olhas Raios de amor.
De teus cabelos De negra cor, Forjam cadeias Brincando amor.
Neles p’ra sempre, Servo ou senhor, Viver quisera Preso de amor.
Rosas que tingem Fresco rubor Nas tuas faces Espalha amor.
Se de minh’alma Com todo o ardor, Chego a beijá-las Morro de amor.
Tua alma é pura Celeste flor, Só aquecida 108 Por sóis de amor.
Já em ternura, Já em rigor, Dá vida e morte, Ambas de amor.
Quando a perturba Casto pudor, Encolhe as asas Tremendo amor.
Se do ciúme Sente o fulgor, Em mar de chamas Se afoga amor.
Se me concedes Terno favor Terei por lume Somente amor.
Porém no templo Mandarei pôr O teu retrato Em vez de amor.
A DESPEDIDA
(Romance)
Adeus, adeus, é chegada A hora da despedida.
Vou, que importa se te deixo Neste adeus a minha vida.
Foste ingrata aos meus extremos, Não te peço gratidão;
Perdão — para os meus carinhos, Aos meus amores — perdão!
Eu era ente da terra, Eras um querubim!
Deus tirou-te dos seus anjos, Não nasceste para mim.
Perdoa a meus amores Esta estulta elevação;
Perdão para os meus carinhos, Aos meus amores — perdão! 109 O crime que cometi Foi muito punido já, Castigou-me o teu desprezo, Maior castigo não há.
Castigado, reconheço Quanto é justa a punição.
Perdão — para os meus carinhos, Aos meus amores — perdão!
Pouca vida já me resta!
Eu sinto que esta amargura Tão intensa muito cedo Há de abrir-me a sepultura.
Do crime que fiz de amar-te, Vem dar-me a absolvição:
Perdão — para os meus carinhos, Aos meus amores — perdão!
Se me adoras, se me queres, Como dizes com ardor, Dá-me um beijo tão-somente Em prova do teu amor...
A paixão em que me abraso Dilacera o peito meu...
Dá-me prazer, dá-me vida, Dá-me, dá-me, um beijo teu.
Amor anima e acende Em chamas do céu nascidas...
Dois corações num abraço, Em um beijo duas vidas.
Uma vida que me falta..., A metade do meu ser Quero num beijo amoroso Dos teus lábios receber.
Sumiu-se, mas ainda escuto, Seus gemidos, que aflição!
E esta mancha deste sangue Não se apaga. Oh! maldição!
Espectro, descansa, Que ao triste homicida As dores do inferno Começam na vida.
Ei-lo ali com o mesmo ferro.
Oh! que terror! que tortura!
Cavando junto a meu leito, A abrir-me a sepultura. 110 Espectro, piedade;
Não caves assim...
Eu dei-te um só golpe Tu mil sobre mim.
Acabou-se a minha crença, Sem crença devo morrer:
Quando deixei de crer nela, No que mais poderei crer?
Onde a verdade Pode fulgir, Se até um anjo Sabe mentir?
Como um anjo me jurou, Como um anjo me sorriu, Como um anjo perjurou, Quebrou a jura — mentiu!
Onde a verdade...
No olhar e nas palavras Onde a inocência respira, Em tudo que diz — verdade, Só encontrei a mentira.
Onde a verdade...
Que mais desejas?
Tudo te dei;
De tudo em troca Nada alcancei.
Dei-te meu peito Em pranto e ais;
Dei-te minha alma;
Que queres mais?
Juraste eterna Fidelidade;
Seguiu-se à jura A falsidade.
Em toda parte Vejo rivais;
A fé perdi-te, Não creio mais.
Se não me queres, Se não me adoras, Quando me queixo Que tens que choras?
Ah! não me prendes No pranto teu;
Não quero um pranto 111 Que não é meu.
Mas, oh! perdoa!
Foi ilusão;
Dos meus tormentos Tem compaixão.
Perdoa, esquece O meu rigor;
Não fere a ofensa Que vem de amor.
AO TROVADOR
Trovador, o que tens, o que sofres, Por que choras com tanta aflição?
O teu pranto assaz me compunge, Trovador, ah! não chores mais não!
Se acaso a mulher que tu amas Te tratou com acerbo rigor, Trovador, ah! por isso não chores, Oh! não creias, por Deus, em amor.
O amor da mulher é a nuvem Quando o vento a impele no ar...
O amor da mulher é volúvel, É tão vário qual onda do mar.
O amor da mulher é um frágil Pequenino, adoidado batel, Que vagueia sem norte, sem rumo, Té quebrar-se em ignoto parcel.
O amor da mulher é luzerna Numa noite de inverno a luzir;
É estrela do céu entre nuvens Que a furto se vê reluzir.
A mulher tem o dom da beleza Tem maneiras que sabem levar...
Mas no meio de seus atrativos A mulher tem o dom de enganar.
Um exemplo tu tens em Helena Que os muros de Tróia abateu, Que infida, deixando o consorte, Para os braços de Páris correu.
A mulher tem feitiço nos olhos E nos lábios veneno letal;
A mulher nos ilude chorando E sorrindo nos crava o punhal.
O amor da mulher, como a rosa Desabrocha, mas logo fenece; 112 A quem hoje a mulher idolatra, Amanhã menospreza, aborrece.
Trovador, ah! esquece essa ingrata, Não mendigues a sua afeição;
Oh! despreza a quem te maltrata, Não suspires por ela mais não!
Eu sinto angústias Me sufocar;
Não há remédio, Senão chorar.
Eia, choremos;
Comece o canto;
Também cantando Se verte o pranto.
O canto às vezes É brisa d’alma Que o mal consola E a dor acalma.
E cada letra Que o canto diz, Um ai exprime Do infeliz!
O canto é prece Que voa a Deus, Se um triste canta Os males seus...
E livre o canto No ar se isola;
O céu penetra E Deus consola.
Depois que a ingrata Feriu-me tanto, Que de mim fora, Sem este canto!...
Talvez que as chagas Fossem mortais, Se as não curasse Com estes ais.
RISO E MORTE
Eu vim ao mundo chorando, Chorar é o meu viver;
Quando eu deixar de chorar, Estou prestes a morrer.
Quando a alma ao infortúnio 113 Assim ligado se tem, Como termo da desgraça A morte não longe vem.
Quando eu deixar de chorar, Quando contente me rir, Não se enganem, desconfiem, Que não tardo a sucumbir.
Vem, oh! morte, ver meu pranto.
Não receies, podes vir;
Choro nos braços da vida, Nos teus braços me hei de rir.
Muitas vezes um prazer Que parece de ventura, Não é mais que um riso d’alma Vendo perto a sepultura.
O feliz ri-se da vida Por ver nela o seu jardim;
O desgraçado, na morte Por ver da desgraça o fim.
O CEGO DE AMOR 15 Pensam que vejo, não vejo, Não vejo, que cego estou;
De que me servem os olhos, Se minha luz se apagou?
Ah! não deixes que me perca Nesta imensa escuridão;
Ó anjo que me cegaste, Vem ao menos dar-me a mão.
Ao avistar-te nos olhos A luz divina senti, E por perder-te de vista, A minha vista perdi.
Ah! não deixes...
Se eu cair, dá-me teus braços, Dá-me pelo amor de Deus, Que talvez recobre a vista Caindo nos braços teus.
Ah! não deixes...
JÁ NÃO VIVE A MINHA FLOR
15 Nos Anais da Fundação Biblioteca Nacional, volume 3, artigo sobre Laurindo Rabelo, Teixeira de Melo faz a seguinte pergunta: “Tem certeza o Sr. Dias da Silva que são de Laurindo as modinhas O cego de amor e Descrença?” 114 Perdeu a flor de meus dias Todo o perfume de amor, Ramo seco pende d’alma, Já não vive a minha flor!
O tempo, que tudo muda Não minora a minha dor;
Já não tenho primavera, Já não vive a minha flor.
Só encontro no deserto Bafejo consolador;
Fechai-vos, jardins do mundo, Já não vive a minha flor.
NÃO TEM DÓ DO MEU PENAR
A serva ingrata querendo Mais minha dor aumentar, Sorrindo bebe meu pranto;
Não tem dó do meu penar.
Para as chagas da minh’alma Mais dolorosas tornar, Nas chagas cospe desprezos;
Não tem dó do meu penar.
Zelando a vida que odeia, Que deseja torturar, Não mata, sangra as feridas;
Não tem dó do meu penar.
A ingrata, a fementida, Me jurou constante amar;
Hoje entregue a meu rival Não tem dó do meu penar.
Esse coração ingrato Que nada pode abalar, Petrificando meu pranto Não tem dó do meu penar.
Das saudades que na ausência Fizera amor vegetar, Arranca d’alma as raízes Não tem dó do meu penar.
O punhal n’alma me enterra E depois de apunhalar, Conta as gotas, bebe o sangue;
Não tem dó do meu penar.
Dos olhos que fitos nela Nunca cessam de chorar, Sedenta pede mais prantos; 115 Não tem dó do meu penar.
Nestas veias cujo sangue Muito cedo há de esgotar, Injeta o fel do ciúme;
Não tem dó do meu penar.
Com meus ais faço no céu De dor os astros chorar;
Lília, tão perto de mim, Não tem dó do meu penar.
Ao ver-me continuamente De pranto o rosto banhar, Além de aumentar meu pranto, Não tem dó do meu penar.
A mesma morte a quem peço Venha meus dias cortar, Cruenta foge de mim;
Não tem dó do meu penar.
Em vez de vir compassiva Minha dor aliviar, Sorrindo vê o meu pranto;
Não tem dó do meu penar.
Busco às vezes negra noite Para meu pranto ocultar;
O dia rouba-me as trevas, Não tem dó do meu penar.
De males furor insano Sobre ti vá me vingar, Já que tu, traidora ingrata, Não tem dó do meu penar.
É AQUI... BEM VEJO A CAMPA
É aqui... bem vejo a campa Onde jazem meus amores, O perfume de su’alma Inda sinto nestas flores.
Aqui nasceram saudades Plantadas por minha mão, Nasceram — devem regá-las Pranto do meu coração.
Pranto amargo de minh’alma Orvalhe bem estas flores...
Verta aqui saudosa mágoa Que sinto por meus amores.
Aqui nasceram saudades, etc. 116 BEIJO DE AMOR
Se me queres ver ainda, Recobra da vida a flor;
Deixa remoçar-me a vida Um beijo de teu amor.
De minha vida a ventura Teus lábios guardam consigo, Dá-me um só beijo e verás Se é mentira o que eu te digo.
Como a flor, do sol a um beijo, Se quiseres, podes ver, A minh’alma, semimorta, Num teu beijo reviver.
De minha vida a ventura, etc.
Só esperá-lo me alenta, Me conforta o fado meu;
Imagina só por isso Quanto pode um beijo teu.
De minha vida a ventura, etc.
A ROMÃ (lundu)
Entre as frutas que há no mundo Não há uma fruta irmã Na beleza e na doçura Da que se chama romã.
Tem coroa de rainha, Roxa cor na casca tem, Quando racha, me retrata A boquinha de meu bem.
Nos meus lábios sequiosos Dum néctar sinto a doçura Quando sedento lhe ponho A boca na rachadura.
Pela primeira vez vi Num jardim pela manhã, O meu bem que em vez de flores Só trazia uma romã.
DE TI FIQUEI TÃO ESCRAVO
De ti fiquei tão escravo Depois que teus olhos vi, Que só vivo por teus olhos, Não posso viver sem ti.
Contemplando o teu semblante 117 Sinto a vida me escapar.
Num teu olhar perco a vida, Ressuscito noutro olhar.
Mas é tão doce Morrer assim.
Lília, não deixes De olhar p’ra mim.
Num raio de teus olhares Minh’alma inteira perdi.
Se tens minh’alma nos olhos, Não posso viver sem ti.
A qualquer parte que os volvas, Minh’alma sinto voar, Inda que livre nas asas, Presa só no teu olhar.
Mas é tão doce Prisão assim.
Lília, não deixes De olhar p’ra mim.
Que era meu fado ser teu Ao ver-te reconheci, Não se muda a lei do fado, Não posso viver sem ti.
Por não ver inda completa Minha doce escravidão, Se me ferem teus olhares, Choro sobre meu grilhão.
Mas é tão doce Prisão assim.
Lília, não deixes De olhar p’ra mim.
MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro