Poemas Humorísticos e Irônicos
PARANAGUADAS
Que importa que tu fales Que importa que tu files Que importa que não cales, Que importa que tu fales Que importa que te rales, Que importa-me essa bílis Que importa que tu fales Que importa que tu files.
QUESTÃO BROCARDO
— Pife, pufe, pafe, pefe Pafe, pefe, pife, pufe —
A cacholeta no chefe —
— Pife, pufe, pafe, pefe Estoure como um tabefe E o ventre de raiva entufe —
— Pife, pufe, pafe, pefe Pafe, pefe, pife, pufe!
SEMPRE
Se é certo que o amor é um bem profundo Se é certo que o amor é um sol ardente, Eu hei de amar-te sempre neste mundo E sempre, sempre, sempre — eternamente.
BEIJOS
Nesta Tebaida infinita Da vida, na sombra oculto, Eu gosto de olhar o vulto De uma criança bonita.
Porque afinal as crianças, Como eu deslumbro-me ao vê-las, Cintilam como as estrelas, Florescem como esperanças.
Dentro de mim se projeta A luz cambiante dos prismas E batem asas as cismas Qual passarada irrequieta.
E batem asas e ruflam, Pelas artísticas plagas, As auras que as grandes vagas Dos fundos mares insuflam.
E digo, ó mães, se uma aurora Fosse a minh’alma sincera, Os clarões todos eu dera A uma criança que chora.
Porque se a luz fortalece Arbustos e as andorinhas, Também por certo às criancinhas Conforta, avigora, aquece.
E eu que aplaudo e que rimo Tudo isso que à luz se regre, Na vibração mais alegre As criancinhas estimo.
Portanto, assim, sem refolhos Beijando a Olga, beijando Meus sonhos vão, irradiando, Se derramar em seus olhos! QUESTÃO BROCARDO
Triolé fura essa pança Do Delegado — és um russo, Revolução n’esta dança...
Triolé fura essa pança, Fura, fura como a lança Ou como no boi um chuço;
Triolé fura essa panca Do Delegado — és um russo.
[PINTO, PINTA — PONTA À PONTA]
Pinto, pinta — ponta à ponta Tanta ponta, Pinto pinta Que pinta se pinta a pinta Pinto — pinta — ponta à ponta.
Pinto é ponto mas não ponta Mas se pinta por um pinto E já que o Pinto se pinta Eu pinto-lhe a pinta ao Pinto.
PIRUETAS
Finou-se um tal inglês Gastrônomo e patife Que tanto — de uma vez Comeu, comeu e esparramou-se em bife;
Que um dia de jejum, Pela pança rotunda e quixotesca, Teve um parto... comum, Um feto original... de carne fresca.
AS DEVOTAS I
Enquanto o sino bimbalha, Bimbalha, bimbalha e tine, Lançai do olhar a migalha — Enquanto o sino bimbalha —
À raça que se amortalha No horror que não se define...
Enquanto o sino bimbalha Bimbalha, bimbalha e tine.
II
Perto da Igreja a senzala, O Cristo junto aos escravos E, pois, deveis visitá-la, Perto da Igreja, a senzala E procurar transformá-la Da luz às palmas, aos bravos!...
Perto da Igreja a senzala, O Cristo junto aos escravos.
III
E tão-somente por isto Enquanto o sino bimbalha, Bem antes de terdes visto — E tão-somente por isto —
Todo o martírio do Cristo, O vosso amor que lhes valha, E tão-somente por isto, Enquanto o sino bimbalha.
[DE CLAQUE, CASACA E LUVA]
De claque, casaca e luva, De luva, casaca e claque Ao rendezvous da viúva, De claque, casaca e luva, Tu vais — arrostas a chuva No macadam — plaque, plaque...
De claque, casaca e luva, De luva, casaca e claque.
[MEUS ESPLÊNDIDOS DESEJOS] Meus esplêndidos desejos Emigram, como beijos, Pelo azul espaço, em curvas, Rasgando essas brumas turvas;
Pelo sol das primaveras, Batendo as asas brancas, Como, batem, quimeras...
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Voai, andorinhas francas!
[NUNCA SE CALA O CALLADO]
Nunca se cala o Callado E sempre o Callado, fala Callado que não se cala, Nunca se cala o Callado, Callado sem ser calado, Callado que é tão falado...
Nunca se cala o Callado E sempre o Callado, fala.
[ESTOURE COMO O CHAMPAGNE]
Estoure como o champagne O triolé — pule e salte E como os gatos arranhe, Estoure como o champagne E a cara dos erros lanhe E como o sol nunca falte...
Estoure como o champagne O triolé — pule e salte.
[PARECE UM CÉU ESTRELADO]
Parece um céu estrelado Esta vida de nós dois Depois d’aquele passado...
Parece um céu estrelado Largo, puro, undiflavado Depois do pesar, depois, Parece um céu estrelado Esta vida de nós dois.
[LEVANTEM ESTA BANDEIRA]
Levantem esta bandeira Da posição de farrapo;
Da terra azul brasileira Levantem esta bandeira Que sente o horror da esterqueira Da escravidão — negro sapo.
Levantem esta bandeira Da posição de farrapo.
OLHARES
Teus traquinantes olhinhos Continhas, Ziza, parecem;
Zigzagam sempre, tontinhos Teus traquinantes olhinhos;
Tão pretos, tão redondinhos Olhinhos que me embevecem, Teus traquinantes olhinhos Continhas, Ziza, parecem.
[NAS EXPLOSÕES DE BONS RISOS]
Nas explosões de bons risos Os triolés petulantes Chocalhem, tinam, precisos Nas explosões de bons risos, Tilintem como mil guisos Sonoros, raros, vibrantes Nas explosões de bons risos, Os triolés petulantes. [PRESO AO TRAPÉZIO DA RIMA]
Preso ao trapézio da rima Triolé — pega estes zotes E dá-lhes de baixo acima Preso ao trapézio da rima Na mais artística esgrima D’estouros e piparotes, Preso, ao trapézio da rima Triolé — pega estes zotes.
GRITO DE GUERRA
Aos senhores que libertam escravos Bem! A palavra dentro em vós escrita Em colossais e rubros caracteres, É valorosa, pródiga, infinita, Tem proporções de claros rosicleres.
Como uma chuva olímpica de estrelas Todas as vidas livres, fulgurosas, Resplandecendo, — vós tereis de vê-las Rolar, rolar nas vastidões gloriosas.
Basta do escravo, ao suplicante rogo, Subindo acima das etéreas gazas, Do sol da idéia no escaldante fogo, Queimar, queimar as rutilantes asas.
Queimar nas chamas luminosas, francas Embora o grito da matéria apague-as;
Porque afinal as consciências brancas São imponentes como as grandes águias.
Basta na forja, no arsenal da idéia, Fundir a idéia que mais bela achardes, Como uma enorme e fúlgida Odisséia Da humanidade aos imortais alardes.
Quem como vós principiou na festa Da liberdade vitoriosa e grande, Há de sentir no coração a orquestra Do amor que como um bom luar se expande. Vamos! São horas de rasgar das frontes Os véus sangrentos das fatais desgraças E encher da luz dos vastos horizontes Todos os tristes corações das raças...
A mocidade é uma falena de ouro, Dela é que irrompe o sol do bem mais puro:
Vamos! Erguei vosso ideal tão louro Para remir o universal futuro...
O pensamento é como o mar — rebenta, Ferve, combate — herculeamente enorme E como o mar na maior febre aumenta, Trabalha, luta com furor — não dorme.
Abri portanto a agigantada leiva, Quebrando a fundo os espectrais embargos, Pois que entrareis, numa explosão de seiva, Muito melhor nos panteões mais largos.
Vão desfilando como azuis coortes De aves alegres nas esferas calmas, Na atmosfera espiritual dos fortes, Os aguerridos batalhões das almas.
Quem vai da sombra para a luz partindo Quanta amargura foi talvez deixando Pelas estradas da existência — rindo Fora — mas dentro, que ilusões chorando.
Da treva o escuro e aprofundado abismo Enchei, fartai de essenciais auroras, E o americano e fértil organismo De retumbantes vibrações sonoras.
Fecundos germens racionais produzam Nessas cabeças, claridões de maios...
Cruzem-se em vós — como também se cruzam Raios e raios na amplidão dos raios.
Os britadores sociais e rudes Da luz vital às bélicas trombetas, Hão de formar de todas as virtudes As seculares, brônzeas picaretas.
Para que o mal nos antros se contorça Ante o pensar que o sangue vos abala, Para subir — é necessário — é força Descer primeiro a noite da senzala.
[DA LUA AOS RAIOS PRATEADOS]
Da Lua aos raios prateados Que no horizonte se espargem, Como fulguram os prados Da lua aos raios prateados, Há vagos silfos alados Do rio azul pela margem Da lua aos raios prateados Que no horizonte se espargem.
[TEUS OLHOS BELOS POR DENTRO]
Teus olhos belos por dentro De grandes colorações, Parecem ter pelo centro Teus olhos belos por dentro A luz vital onde eu entro E saio imerso em clarões...
Teus olhos belos, por dentro De grandes colorações.
[TEUS OLHOS — ESSES CARINHOS]
Teus olhos — esses carinhos, Esse casal de ilusões Tão doces como os arminhos, Teus olhos — esses carinhos Parecem ser os dois ninhos Das minhas consolações, Teus olhos — esses carinhos Esse casal de ilusões!... [ENQUANTO ESTE SANGUE FERVE]
Enquanto este sangue ferve Com força, com toda a força, Palpite a fibra da verve Enquanto este sangue ferve Esmague-se o que não serve Na treva o Mal se contorça, Enquanto este sangue ferve, Com força, com toda a força.
[MERECE O BOM DO VIDAL]
Merece o bom do Vidal Que é mesmo um Joca de truz, Ter também com o seu Fiscal, Merece o bom do Vidal Um banquete bambual, De cem milhões de bambus Merece o bom do Vidal Que é mesmo um Joca de truz!
[QUANDO ELA ESTÁ DE COLETE]
Quando ela está de colete, Espartilhada, irradiante Vestida de azul-ferrete Quando ela está de colete Em mim cruzando o florete Do seu olhar — que elegante Quando ela está de colete, Espartilhada, irradiante.
[SE ESTALA A ESTROFE DE FOGO]
Se estala a estrofe de fogo, Se explose a estrofe do Bem, Como o verbo demagogo Se estala a estrofe de fogo, Não ceda o espírito ao rogo Do Mal que os erros contêm, Se estala a estrofe de fogo, Se explose a estrofe do Bem!
[EMBORA EU NÃO TENHA LOUROS]
Embora eu não tenha louros Como esses grandes heróis E nem da idéia os tesouros, Embora eu não tenha louros, Talvez nos tempos vindouros Traduza o poema dos sóis, Embora eu não tenha louros Como esses grandes heróis.
[AOS RELÂMPAGOS SULFÚREOS]
Aos relâmpagos sulfúreos Na esfera zigue-zagando Como esses pobres tugúrios, Aos relâmpagos sulfúreos Se douram, brilham purpúreos Fulguram de quando em quando, Aos relâmpagos sulfúreos Na esfera zigue-zagando.
[À SOMBRA ESPESSA DE UM ÁLAMO]
À sombra espessa de um álamo Quando nasceu-me a paixão, Crescendo aos beijos do tálamo À sombra espessa de um álamo Que de harpas senti, que cálamo Por dentro do coração À sombra espessa de um álamo Quando nasceu-me a paixão. [QUANDO ESTÁS DE LAÇAROTES]
Quando estás de laçarotes E de plissês e fichus, De rendas e de decotes, Quando estás de laçarotes, Toilette de chamalotes, Quanto esplendor, quanta luz, Quando estás de laçarotes E de plissês e fichus.
[DA IDÉIA NOS MARES JÔNIOS]
Da idéia nos mares jônios A barca das tuas cismas Soprada por bons favônios Da idéia nos mares jônios, Vai livre dos maus demônios, Batida da luz dos prismas, Da idéia nos mares jônios A barca das tuas cismas.
[ASSOMBRO DE ASSOMBROS]
Como um assombro de assombros A rapariga — um rainúnculo, Da serra pelos escombros Como um assombro de assombros, Quando vê de enxada aos ombros O noivo — lembra um carbúnculo, Como um assombro de assombros A rapariga — um rainúnculo.
[COMO FORTES GARGALHADAS]
Como fortes gargalhadas Por um templo de cristal, Sonoramente vibradas, Como fortes gargalhadas, Sinto idéias baralhadas N’um frágil descomunal Como fortes gargalhadas Por um templo de cristal.
"DIATRIBE"
Dois zoilos mui completos deste mundo, Dois zoilos há terríveis e zelosos, Que estando sem fazer, mui ociosos Só tratam dum falar nauseabundo.
Eu sei mui bem seus nomes — não confundo Com esses bem sensatos, talentosos, Com esses lidadores mui briosos Que têm estudo imenso e bem profundo!
Mas ah! pra que tempo hei-de gastar Com quem só vive imerso na caligem D’inveja torpe e vil a esbravejar!
Isto, meus amigos, é impigem Que quanto se procura mais coçar Tanto e tanto mais só dá prurigem!
[DA BRUMA PELOS PAÍSES]
Da bruma pelos países Pelos países da bruma, Longe dos astros felizes, Da bruma pelos países, Tu vais perdendo os matizes Da luz e da glória em suma, Da bruma pelos países, Pelos países da bruma. ESCRAVOCRATAS
Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio Manhosos, agachados — bem como um crocodilo, Viveis sensualmente à luz dum privilégio Na pose bestial dum cágado tranqüilo.
Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas Ardentes do olhar — formando uma vergasta Dos raios mil do sol, das iras dos poetas, E vibro-vos à espinha — enquanto o grande basta O basta gigantesco, imenso, extraordinário —
Da branca consciência — o rútilo sacrário No tímpano do ouvido — audaz me não soar.
Eu quero em rude verso altivo adamastórico, Vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico, Castrar-vos como um touro — ouvindo-vos urrar!
DA SENZALA...
De dentro da senzala escura e lamacenta Aonde o infeliz De lágrimas em fel, de ódio se alimenta Tornando meretriz A alma que ele tinha, ovante, imaculada Alegre e sem rancor;
Porém que foi aos poucos sendo transformada Aos vivos do estertor...
De dentro da senzala Aonde o crime é rei, e a dor — crânios abala Em ímpeto ferino;
Não pode sair, não, Um homem de trabalho, um senso, uma razão...
e sim, um assassino! DILEMA
Ao cons. Luís Alvares dos Santos Vai-se acentuando, Senhores da justiça — heróis da humanidade, O verbo tricolor da confraternidade...
E quando, em breve, quando Raiar o grande dia Dos largos arrebóis — batendo o preconceito...
O dia da razão, da luz e do direito — Solene trilogia —
Quando a escravatura Surgir da negra treva — em ondas singulares De luz serena e pura;
Quando um poder novo Nas almas derramar os místicos luares, Então seremos povo!
À REVOLTA
A Cassiano César O século é de revolta — do alto transformismo, De Darwin, de Littré, de Spencer, de Laffite —
Quem fala, quem dá leis é o rubro niilismo Que traz como divisa a bala-dinamite!...
Se é força, se é preciso erguer-se um evangelho, Mais reto, que instrua — estético — mais novo Esmaguem-se do trono os dogmas de um Velho E lance-se outro sangue aos músculos do povo!...
O vício azinhavrado e os cérebros raquíticos, É pô-los ao olhar dos sérios analíticos, Na ampla, social e esplêndida vitrine!...
À frente!... — Trabalhar à luz da idéia nova!...
— Pois bem! Seja a idéia, quem lance o vício à cova, — Pois bem! — Seja a idéia, quem gere e quem fulmine!... ESCÁRNIO PERFUMADO
Quando no enleio De receber umas notícias tuas, Vou-me ao correio, Que é lá no fim da mais cruel das ruas, Vendo tão fartas, D'uma fartura que ninguém colige, As mãos dos outros, de jornais e cartas E as minhas, nuas — isso dói, me aflige...
E em tom de mofa, Julgo que tudo me escarnece, apoda, Ri, me apostrofa, Pois fico só e cabisbaixo, inerme, A noite andar-me na cabeça, em roda, Mais humilhado que um mendigo, um verme...
DECADENTES
Richepin, Rollinat! gritos sangrentos Da carne alvoroçada de desejos, Mosto de risos, lágrimas e beijos, Estertores de abutres famulentos.
Desesperado frêmito dos ventos, De harpas, sutis, fantásticos harpejos, Clarins de guerra, e cânticos e adejos De aves — todos os vivos elementos.
Tudo flameja e nas estrofes canta, Estruge, zune, em borbotões levanta Noites, luares, fulgurantes dias.
Mas nessa ideal temperatura forte Tudo isso é triste como a flor da morte Que brota dentro das caveiras frias...
DOENTE As unhas perigosas da bronquite Nas tuas carnes sensuais e moles Não deixarão que o teu amor palpite Nem que os olhares pelos astros roles.
É fatal a moléstia. Só permite Que te acabes por fim e que te estioles, Sem que em teu peito o coração se agite, Sem que te animes, sem que te consoles.
Vai se extinguindo a polpa dessas faces...
Mas se ainda hoje em mim acreditasses, Como no tempo virginal de outrora, Tu curar-te-ias com pequeno esforço Das serranias através do dorso, Pela saúde dos vergéis afora.
CRIANÇAS NEGRAS
Em cada verso um coração pulsando, Sóis flamejando em cada verso, e a rima Cheia de pássaros azuis cantando, Desenrolada como um céu por cima.
Trompas sonoras de tritões marinhos Das ondas glaucas na amplidão sopradas E a rumorosa música dos ninhos Nos damascos reais das alvoradas.
Fulvos leões do altivo pensamento Galgando da era a soberana rocha, No espaço o outro leão do sol sangrento Que como um cardo em fogo desabrocha.
A canção de cristal dos grandes rios Sonorizando os florestais profundos, A terra com seus cânticos sombrios, O firmamento gerador de mundos.
Tudo, como panóplia sempre cheia Das espadas dos aços rutilantes, Eu quisera trazer preso à cadeia De serenas estrofes triunfantes. Preso à cadeia das estrofes que amam, Que choram lágrimas de amor por tudo, Que, como estrelas, vagas se derramam Num sentimento doloroso e mudo.
Preso à cadeia das estrofes quentes Como uma forja em labareda acesa, Para cantar as épicas, frementes Tragédias colossais da Natureza.
Para cantar a angústia das crianças!
Não das crianças de cor de oiro e rosa, Mas dessas que o vergel das esperanças Viram secar, na idade luminosa.
Das crianças que vêm da negra noite, Dum leite de venenos e de treva, Dentre os dantescos círculos do açoite, Filhas malditas da desgraça de Eva.
E que ouvem pelos séculos afora O carrilhão da morte que regela, A ironia das aves rindo a aurora E a boca aberta em uivos da procela.
Das crianças vergônteas dos escravos Desamparadas, sobre o caos, à toa E a cujo pranto, de mil peitos bravos, A harpa das emoções palpita e soa.
Ó bronze feito carne e nervos, dentro Do peito, como em jaulas soberanas, Ó coração! és o supremo centro Das avalanches das paixões humanas.
Como um clarim a gargalhada vibras, Vibras também eternamente o pranto E dentre o riso e o pranto te equilibras De forma tal que a tudo dás encanto.
És tu que à piedade vens descendo.
Como quem desce do alto das estrelas E a púrpura do amor vais estendendo Sobre as crianças, para protegê-las.
És tu que cresces como o oceano, e cresces Até encher a curva dos espaços E que lá, coração, lá resplandeces E todo te abres em maternos braços.
Te abres em largos braços protetores, Em braços de carinho que as amparam, A elas, crianças, tenebrosas flores, Tórridas urzes que petrificaram.
As pequeninas, tristes criaturas Ei-las, caminham por desertos vagos, Sob o aguilhão de todas as torturas, Na sede atroz de todos os afagos.
Vai, coração! na imensa cordilheira Da Dor, florindo como um loiro fruto Partindo toda a horrível gargalheira Da chorosa falange cor do luto.
As crianças negras, vermes da matéria, Colhidas do suplício a estranha rede, Arranca-as do presídio da miséria E com teu sangue mata-lhes a sede!
VELHO VENTO
Velho vento vagabundo!
No teu rosnar sonolento Leva ao longe este lamento, Além do escárnio do mundo.
Tu que erras dos campanários Nas grandes torres tristonhas E és o fantasma que sonhas Pelos bosques solitários.
Tu que vens lá de tão longe Com o teu bordão das jornadas Rezando pelas estradas Sombrias rezas de monge.
Tu que soltas pesadelos Nos campos e nas florestas E fazes, por noites mestas, Arrepiar os cabelos.
Tu que contas velhas lendas Nas harpas da tempestade, Viajas na Imensidade, Caminhas todas as sendas.
Tu que sabes mil segredos, Mistérios negros, atrozes E formas as dúbias vozes Dos soturnos arvoredos.
Que tornas o mar sanhudo, Implacável, formidando, As brutas trompas soprando Sob um céu trevoso e mudo.
Que penetras velhas portas, Atravessando por frinchas...
E sopras, zargunchas, guinchas Nas ermas aldeias mortas.
Que ao luar, pelos engenhos, Nos miseráveis casebres Espalhas frios e febres Com teus aspectos ferrenhos.
Que soluças nos zimbórios Os teus felinos queixumes, Uivando nos altos cumes Dos montes verdes e flóreos.
Que te desprendes no espaço Perdido no estranho rumo Por entre visões de fumo, Das estrelas no regaço.
Que de Réquiens e surdinas E de hieróglifos secretos Enches os lagos quietos Revestidos de neblinas.
Que ruges, brames, trovejas Ó velho vândalo amargo, No sonâmbulo letargo De um mocho rondando igrejas.
Que falas também baixinho Lá da origem do mistério, Trazendo o augúrio sidéreo E certa voz de carinho... Que nas ruas mais escusas, Por tardes de nuvens feias, Como um ébrio cambaleias Rosnando pragas confusas.
Que és o boêmio maldito, O renegado boêmio, Em tudo o turvo irmão gêmeo Do sonhador Infinito.
Que és como louco das praças Nos seus gritos delirantes Clamando a pulmões possantes Todo o Inferno das desgraças.
Que lembras dragões convulsos, Bufantes, aéreos, soltos, Noctambulando revoltos Mordendo as caudas e os pulsos.
Ó velho vento saudoso, Velho vento compassivo, Ó ser vulcânico e vivo, Taciturno e tormentoso!
Alma de ânsias e de brados, Consolador companheiro Sinistro deus forasteiro D'espaços ilimitados!
Tu que andas, além, perdido, Tateando na esfera imensa Como um cego de nascença Nos desertos esquecido...
Que gozas toda a paragem, Toda a região mais diversa, Levando sempre dispersa A tua queixa selvagem.
Que no trágico abandono, No tédio das grandes horas Desoladamente choras, Sem fadigas e sem sono.
Que lembras nos teus clamores, Nas fúrias negras, dantescas, Torturas medievalescas Dos ímpios inquisidores.
Que és sempre a ronda das casas, A gemente sentinela Que tudo desgrenha e gela Com o torvo rumor das asas.
Que pareces hordas e hordas De hirsutos, intonsos bardos Vibrando cânticos tardos Por liras de cem mil cordas.
Ó vento lânguido e vago, Ó fantasista das brumas, Sopro equóreo das espumas, Ó dá-me o teu grande afago!
Que a tua sombra me envolva Que o teu vulto me console E o meu Sentimento role E nos astros se dissolva...
Que eu me liberte das ânsias De ansiedades me liberte, Pairando no espasmo inerte Das mais longínquas distâncias.
Eu quero perder-me a fundo No teu segredo nevoento, Ó velho e velado vento, Velho vento vagabundo!
SAPO HUMANO
A Emiliano Perneta Oh sapo! eu vou cantar tuas misérias, sapo, Vou tirar, nesse lodo onde habitas de rastros, Umas vivas canções do teu nojento papo, Da crosta esverdeada umas centelhas de astros.
E canções de tal forma e tais e tais centelhas, Que todas possam ir, miraculosamente, Transformadas, pelo ar, em rútilas abelhas Com o íris voador de cada asa fulgente. Que tu, tredo animal, tu, triste sapo hediondo, Não és o vil, o torpe, o irracional, que a lama Em camadas envolve o atro ventre redondo, Dos tempos imortais nessa fecunda chama.
Não és o sapo histrião de imundas esterqueiras, O sombrio Caim nos lamaçais errantes, O clown gargalhador das charnecas rasteiras, Que ri-se para o sol com riso ironizante.
Não és o sapo atroz, coaxador, visguento, Que rouco ruge e raiva à noite os seus horrores, E para o constelado e mudo firmamento Faz ecoar os mais surdos e ásperos tambores.
Mas és o sapo humano, esse asqueroso e feio, Nascido de roldão na lúgubre miséria E que do mundo vão no pavoroso seio Lembra o negro sarcasmo enorme da Matéria.
Mas és o sapo humano, o sapo mais abjeto Do crime aterrador, do tenebroso vício, Mas que ainda possuis o brilho de um afeto Que te livra, talvez, do eterno precipício.
Por ora na tua alma a noite cruel, cerrada, Não caiu de uma vez, como terrível fora;
Nela ainda há clarões de límpida alvorada, Um prenúncio feliz de aurora redentora.
Ainda tens coração que pulsa no teu peito Por uns filhos gentis, ingênuos, pequeninos, Que são o grande amor, o sentimento eleito Vencendo esses fatais instintos assassinos.
Tu semelhas de um charco a superfície nua E vítrea, que no campo, aos ares, adormece, Que se em cheio lhe bate a luz do sol, da lua, Para a vasta amplidão cintila e resplandece.
Pois no teu organismo, assim sinistro e torvo, Repleto de vibriões do vício — essas crianças, Sorriem virginais, oh! solitário corvo, Com sorrisos de luzes e barcarolas mansas.
O amor que regenera os ínfimos bandidos, Não reduziu, enfim, tu'alma a ignóbil trapo. E eis por que, num viver de pântano e gemidos, Cantam dentro de ti aves e estrelas, sapo!
MARCHE AUX FLAMBEAUX
I
Rompe na aurora o sol que a terra esbofeteia Com látegos de chama, iriando o pó e a areia, Iriando os vegetais de ricas pedrarias, Dos rubis e cristais das ourivesarias;
Aurora acesa em cor de púrpura de cravos Opulentos, febris, ensanguinados, bravos;
De ritmos leves de harpa e frêmitos e beijos Que são da natureza os trêmulos arpejos;
Aurora que sorri, que traz pomposamente Todo o raro esplendor da luz resplandecente, Das paisagens louçãs no fúlgido matiz O aroma a derramar da meiga flor de lis.
Na alegria dos tons os pássaros cantando Vão as asas abrindo, entre os clarões ruflando, Asas emocionais, que assim dentre clarões Palpitam num fervor de alados corações.
E no luxo oriental de etéreo Grão-Mogol Como um Baco feliz rubro flameja o sol.
II
Filósofos titãs, filósofos insanos Que destes turbilhões, que destes oceanos De lutas e paixões, de sonho e pensamentos Espalhastes no mundo aos clamorosos ventos A Ciência fatal, talvez como um veneno, Que os tempos abalou no caminhar sereno;
Filósofos titãs, que os séculos austeros No flanco da Matéria abris, graves, severos, Sobre o escombro da fé, da crença e da esperança, Da civilização o trilho que hoje alcança No seu aço viril as regiões supremas, Traçado em novas leis, doutrinas e problemas;
Vós que sois no Saber os monges da existência E só acreditais na força da Ciência, Que da morte sabeis os filtros invisíveis, Narcóticos, sutis, incógnitos, terríveis, Não sabeis, entretanto, apóstolos sombrios, Como à luz da Ciência os homens estão frios, Como tudo ficou num doloroso caos E os seres que eram bons, rudes, egoístas, maus.
Em vão! em vão! em vão! os vossos largos crânios Lutaram pelo Bem dos Bens contemporâneos!
Tudo está corrompido e até mais imperfeito...
Não há um lírio são a florescer num peito, De piedade, de amor e de misericórdia...
Se brota uma virtude o ascoso vício morde-a, Envilece, corrompe e abate essa virtude Com o cinismo revel dum epigrama rude...
E até muita alma vil, feroz, patibular, Impunemente sobe ao mais sagrado altar.
Por isso vão passar perante a turbamulta Como abrupta avalanche, enorme catapulta, Numa marche aux flambeaux, os famulentos vícios Que cavaram no globo horrendos precipícios, Os vícios imortais, que infestam tribos, greis, Povos e gerações, seitas, templos e reis E que são como a lava obscura da cratera Que subterraneamente em tudo se invetera.
Com toda intrepidez hercúlea de acrobata Vou sobre eles soltar, gloriosa, intemerata, A sátira que tem esporas de galhardo Cavaleiro ideal que joga a lança e o dardo.
Vou com esse altanado e muscular esforço De quem galga triunfal o soberano dorso, A crista vigorosa, altiva, sobranceira, Da mais agigantada e vasta cordilheira.
III
Lobos, tigres, chacais, camelos, elefantes, Hipopótamos, ursos e rinocerontes, Leopardos e leões, panteras acirrantes, Hienas do furor, membrudos mastodontes, Tredas feras do mal, soturnos dromedários, Serpentes colossais que rastejais na treva, Monstros, monstros cruéis, medonhos, sangüinários, Cuja pata esmagante a presa aos antros leva;
Ó ventrudos judeus, opíparos, obesos, De consciência obtusa, ignóbil e caolha Que no mundo passais grotescamente tesos Com honras de entremez e grandezas de rolha;
Gafentos histriões, ridículos da moda, Que fingis entender Berlim, Londres, Paris, Mas nos altos salões, por entre a fina roda, Meteis sordidamente o dedo no nariz; Brasonados truões, inúteis como eunuco, Que as pompas ostentais de aurífero nababo Mas apenas valeis como um limão sem suco, Tendes rabo no corpo e dentro d'alma rabo;
Nobres de papelão, milionários vândalos De ventre confortado e rosto rubicundo, Que no torvo cancã, no cancã dos escândalos Sois o horrendo espantalho, a ignomínia do mundo;
Ó deuses do milhão, ó deuses da barriga, Que sentindo a aguilhada intensa da luxúria Buscais a mais em flor e linda rapariga Para então vos fartar na luxuriante fúria;
Gamenhos de toilette e convicções de lama Onde tudo afinal se atola e se chafurda, Que do clube e do sport sintetizais a fama Mas tendes para o Bem a fibra sempre surda;
Palhaços, clowns senis, hediondos borrachos Que aos trambolhões urrais afora no universo, Desdenhando de tudo e até rindo dos fachos, Do clarão do saber em toda a parte imerso;
Almas negras, servis, d’ergástulos caóticos, Gerado no paul das lúgubres voragens, Do crime nos bulcões, nos vícios mais despóticos Aos quais tanto rendeis eternas homenagens, Manequins, charlatães, devassos do bom-tom, Que viveis nas Babéis das grandes capitais Apodrecendo sempre infamemente com O cancro do dinheiro as forças virginais;
Mascarados tafuis de gordos ventres de ouro, Ó bonzos do deboche e cínicos esgares, Que sois o único sol esterlinado e louro Das parvas multidões, das multidões alvares;
Fidalgos de barril, sicofantas, malandros Do templo e do bordel, da crápula de harém Que ao puro mar do Ideal, com torpes escafandros, Arrancais, p'ra vender, a pérola do Bem;
Ó trânsfugas, ladrões que difamais a terra, Que tudo poluís, do próprio lodo à flor, À serena humildade, intrepidez da guerra.
Aos beijos maternais, ao nupcial amor;
Espíritos de treva, espíritos de barro Que enegreceis de horror o sangue das papoulas E das ostentações vos aclamais no carro, Cobertos de cetins, arminho e lantejoulas;
Que se vem de repente o Nada sepulcral Nunca deixais, sequer, no tétrico leilão, No leilão da memória, estranho, universal, Nem um som a vibrar do estéril coração! Dentre feras brutais de ríspidos penhascos E a torrente caudal de rijos versos francos E a zombaria e o riso e as sátiras e os chascos, Nesta marche aux flambeaux ides passar, aos trancos!
Do mundo os naturais, zoológicos museus Despejem para fora as pavorosas massas, Para virem reunir-se aos tábidos judeus Irromper e seguir e desfilar nas praças.
Que a cada mata, a entranha, o seio virgem se abra Jorrando tigres, leões, panteras do seu centro E na dança infernal, estrupida, macabra, Siga a marche aux flambeaux pelo universo a dentro.
Gargalhadas abri a rubra flor sangrenta Da humanidade vã na amargurada boca, Vai agora passar a marcha truculenta Sob o espingardear duma ironia louca.
E desfila e desfila em becos e vielas E torna a desfilar por vielas e por becos, Às risadas da turba, estultas e amarelas Que têm o áspero som de gonzos perros, secos...
E desfila e desfila, estrídula e execranda, Das praças na amplidão, rugindo em mar desfila, Enquanto além dardeja, heróica e formidanda, A metralha do sol que rútilo fuzila...
E mastodontes vão de braço dado a sérios Burgueses que já são bem bons comendadores E marqueses de truz, com ares de mistérios, De lunetas gentis e aspectos sonhadores Dão o braço fidalgo e airoso das nobrezas Aos ursos boreais, enquanto os conselheiros, Os condes, os barões, os duques e as altezas Lá vão de braço dado aos lobos carniceiros.
E nessa singular, atroz promiscuidade, Animais e truões de catadura suína, Gordalhudos heróis da infâmia e da maldade, Vendidos da honradez, velhacos de batina Bobos, cães, imbecis, humanos crocodilos E déspotas, jograis, todos os miseráveis De todas as feições e todos os estilos, Uns aos outros lá vão jungidos, formidáveis!...
Mas a marche aux flambeaux derrama um pesadelo, A agonia dum tigre, em sonhos, sobre um ventre, Agonia mortal que envolve tudo em gelo...
E desfila e desfila entre sarcasmos e entre As sátiras-fuzis, relampejando açoite, Por essa imensa aurora, estranhamente imensa Por um sol que angustia e que não tem da noite Para a Miséria a sombra atenuante e densa.
Os vícios, as paixões, os crimes, ódios e erros, Na marcha, de roldão, caminham fraternais Com bandidos, vilões, burgueses rombos, perros E focas e mastins, macacos e chacais.
Aos sobressaltos vão como visões, fantasmas Bichos de toda a casta, anões de chapéu alto, Deixando em convulsão todas as almas pasmas E o globo num tremendo e fundo sobressalto.
E nas praças, ao sol, confundem-se os bramidos, Os uivos com a expressão humana misturados, Através do sussurro e bruscos alaridos Das chacotas bestiais, dos risos trovejados.
E segue e segue e segue, afora, légua a légua Essa marche aux flambeaux, ciclópica, estupenda Caminha atravessando um longo sol sem trégua, Um dia secular, um dia de legenda;
Caminha atravessando um sol de foco aberto, Por um dia fatal, interminável, mudo, O dia do remorso, aterrador, incerto Que em todo o coração crava um punhal agudo.
Mas eu quero assim mesmo, eu quero-vos assim, Em marcha tropical, à crua e ardente luz Que vos seja uma febre indômita, sem fim, Um cautério de fogo a vos queimar o pus Venéreo da Moral, carbonizando-o até Para que nunca mais se sinta dele a origem Nem volte, como sempre, então, a ser o que é, Deixando-vos no mundo inteiramente virgem;
Eu quero-vos assim, de fachos apagados, Apagados, ao alto, os joviais flambeaux, Que os tereis de acender nos campos ignorados Que de sóis de Vingança a Eternidade arou.
E depois de vagar às sátiras de todos, Na evidência da luz, numa perpétua aurora;
De caminhar ao sol, por tremedais, por lodos, No tédio do sarcasmo, o tédio que a devora, Essa Marcha afinal penetrará aos urros, Titânica, sinistra e bêbada, irrisória, Num caos de pontapés, coices, vaias e murros, Na eterna bacanal ridícula da História.
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