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Panóplias

Índice - Poesias A morte de Tapir A Gonçalves Dias Guerreira Para a Rainha Dona Amélia, de Portugal A um grande homem A sesta de Nero O Incêndio de Roma O sonho de Marco Antônio Lendo a Ilíada Messalina A ronda noturna Delenda Carthago!
A Morte de Tapir I
Uma coluna de ouro e púrpuras ondeantes Subia o firmamento. Acesos véus, radiantes Rubras nuvens, do sol à viva luz, do poente Vinham, soltas, correr o espaço resplendente.
Foi a essa hora, - às mãos o arco possante, à cinta Do leve enduape a tanga em várias cores tinta, A aiucara ao pescoço, o canitar à testa, -
- Que Tapir penetrou o seio da floresta.
Era de vê-lo assim, com o vulto enorme ao peso Dos anos acurvado, o olhar faiscando aceso, Firme o passo apesar da extrema idade, e forte.
Ninguém, como ele, em face, altivo e hercúleo, a morte Tantas vezes fitou... Ninguém, como ele, o braço Erguendo, a lança aguda atirava no espaço.
Quanta vez, do uapi ao rouco troar, ligeiro Como a corça, ao rugir do estrépito guerreiro O tacape brutal rodando no ar, terrível, Incólume, vibrando os golpes, - insensível Às preces, ao clamor dos gritos, surdo ao pranto Das vitimas, - passou, como um tufão, o espanto, O extermínio, o terror atras de si deixando!
Quanta vez do inimigo o embate rechaçando Por si só, foi seu peito uma muralha erguida, Em que vinha bater e quebrar-se vencida De uma tribo contrária a onda medonha e bruta!
Onde um pulso que, tal como seu pulso, à luta Costumado, um por um, ao chão arremessasse Dez combatentes? Onde um arco, que atirasse Mais célere, a zunir, a fina flecha ervada?
Quanta vez, a vagar na floresta cerrada, Peito a peito lutou com as fulvas onças bravas, E as onças a seus pés tombaram, como escravas, Nadando em sangue quente, e, em roda, o eco infinite Despertando, ao morrer, com o derradeiro grito!..
Quanta vez! E hoje velho, hoje abatido!
II
E o dia Entre os sangüíneos tons do ocaso decaía...
E era tudo em silêncio, adormecido e quedo...
De súbito um tremor correu todo o arvoredo:
E o que há pouco era calma, agora é movimento, Treme, agita-se, acorda, e se lastima... O vento Fala: 'Tapir! Tapir! é finda a tua raça!"
E em tudo a mesma voz misteriosa passa;
As árvores e o chão despertam, repetindo:
'Tapir! Tapir! Tapir! O teu poder é findo!"
E, a essa hora, ao fulgor do derradeiro raio Do sol, que o disco de ouro, em lúcido desmaio, Quase no extremo céu de todo mergulhava, Aquela estranha voz pela floresta ecoava Num confuso rumor entrecortado, insano...
Como que em cada tronco havia um peito humano Que se queixava... E o velho, úmido o olhar, seguia.
E, a cada passo assim dado na mata, via Surgir de cada canto uma lembrança... Fora Desta imensa ramada à sombra protetora Que um dia repousara... Além, a arvore anosa, Em cujos galhos, no ar erguidos, a formosa, A doce Juraci a rede suspendera, - A rede que, com as mãos finíssimas, tecera Para ele, seu senhor e seu guerreiro amado!
Ali... - Contai-o vós, contai-o, embalsamado Retiro, ninhos no ar suspensos, aves, flores!...
Contai-o, o poema ideal dos primeiros amores, Os corpos um ao outro estreitamente unidos, Os abraços sem conta, os beijos, os gemidos, E o rumor do noivado, estremecendo a mata, Sob o plácido olhar das estrelas de prata...
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Juraci! Juraci! virgem morena e pura!
Tu também! tu também desceste à sepultura!...
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III
E Tapir caminhava... Ante ele agora um rio Corria; e a água também, ao crebro Da corrente, a rolar, gemia ansiosa e clara:
- "Tapir! Tapir! Tapir! Que é da veloz igara, Que é dos remos dos teus? Não mais as redes finas Vêm na pesca sondar-me as águas cristalinas.
Ai! não mais beijarei os corpos luxuriantes, Os curvos seios nus, as formas palpitantes Das morenas gentis de tua tribo extinta!
Não mais! Depois dos teus de brônzea pele tinta Com os sucos do urucu, de pele branca vieram Outros, que a ti e aos teus nas selvas sucederam.
Ai! Tapir! ai! Tapir! A tua raça é morta! -"
E o índio, trêmulo, ouvindo aquilo tudo, absorta A alma em cismas, seguiu curvada a fronte ao peito.
Agora da floresta o chão não mais direito E plano se estendia: era um declive; e quando Pelo tortuoso anfracto, a custo, caminhando Ao crepúsculo, pôde o velho, passo a passo, A montanha alcançar, viu que a noite no espaço Vinha a negra legião das sombras espargindo...
Crescia a treva. A medo, entre as nuvens luzindo, No alto, a primeira estrela o cálix de ouro abria...
Outra após cintilou na esfera imensa e fria...
Outras vieram... e, em breve, o céu, de lado a lado, Foi como um cofre real de pérolas coalhado.
IV
Então, Tapir, de pé, no arco apoiado, a fronte Ergueu, e o olhar passeou no infinito horizonte:
Acima o abismo, abaixo o abismo, o abismo adiante.
E, clara, no negror da noite, viu, distante, Alvejando no vale a taba do estrangeiro...
Tudo extinto!... era ele o último guerreiro!
E do vale, do céu, do rio, da montanha, De tudo que o cercava, ao mesmo tempo, estranha, Rouca, extrema, rompeu a mesma voz: - "É finda Toda a raça dos teus: só tu és vivo ainda!
Tapir! Tapir! Tapir! morre também com ela!
Já não fala Tupã no ulular da procela...
As batalhas de outrora, os arcos e os tacapes, As florestas sem fim de flechas e acanguapes, Tudo passou! Não mais a fera inúbia à boca Dos guerreiros, Tapir, soa medonha e rouca.
É mudo o maracá. A tribo exterminada Dorme agora feliz na Montanha Sagrada...
Nem uma rede o vento entre os galhos agita!
Não mais o vivo som de alegre dança, e a grita Dos pajés, ao luar, por baixo das folhagens, Rompe os ares... Não mais! As poracés selvagens, As guerras e os festins, tudo passou! É finda Toda a raça dos teus... Só tu és vivo ainda! -"
V
E num longo soluço a voz misteriosa Expirou... Caminhava a noite silenciosa, E era tranqüilo o céu; era tranqüila em roda, Imersa em plúmbeo sono, a natureza toda.
E, no tope do monte, era de ver erguido O vulto de Tapir... Inesperado, um ruído Seco, surdo soou, e o corpo do guerreiro De súbito rolou pelo despenhadeiro...
E o silêncio outra vez caiu.
Nesse momento, Apontava o luar no curvo firmamento.
A Gonçalves Dias Celebraste o domínio soberano Das grandes tribos, o tropel fremente Da guerra bruta, o entrechocar insano Dos tacapes vibrados rijamente, O maracá e as flechas, o estridente Troar da inúbia, e o canitar indiano...
E, eternizando o povo americano, Vives eterno em teu poema ingente.
Estes revoltos, largos rios, estas Zonas fecundas, estas seculares Verdejantes e amplíssimas florestas Guardam teu nome: e a lira que pulsaste Inda se escuta, a derramar nos ares O estridor das batalhas que contaste.
Guerreira É a encarnação do mal. Pulsa-lhe o peito Ermo de amor, deserto de piedade...
Tem o olhar de uma deusa e o altivo aspeito Das cruentas guerreiras de outra idade.
O lábio ao ríctus do sarcasmo afeito Crispa-se-lhe num riso de maldade, Quando, talvez, as pompas, com despeito, Recorda da perdida majestade.
E assim, com o seio ansioso, o porte erguido, Corada a face, a ruiva cabeleira Sobre as amplas espáduas derramada, Faltam-lhe apenas a sangrenta espada Inda rubra da guerra derradeira, E o capacete de metal polido...
Para a Rainha Dona Amélia de Portugal Um rude resplendor, de rude brilho, touca E nimba o teu escudo, em que as quinas e a esfera Guardam, ó Portugal! a tua glória austera, Feita de louco heroísmo e de aventura louca.
Ver esse escudo é ver a Terra toda, pouca Para a tua ambição; é ver Afonso, à espera Dos mouros, em Ourique; e, em redor da galera Do Gama, ouvir do mar a voz bramante e rouca...
Mas no vosso brasão, Borgonha! Avis! Bragança!
De ouro e ferro, encerrando o orgulho da conquista, Faltava a suavidade e o encanto de uma flor;
E eis sobre ele pairando o alvo lírio de França, Que lhe deu, flor humana, alma gentil de artista, Um sorriso de graça e um perfume de amor...
A um Grande Homem Heureuse au fond du bois Ia source pauvre et pure!
Lamartine.
Olha: era um tênue fio De água escassa. Cresceu Tornou-se em rio Depois. Roucas, as vagas Engrossa agora, e é túrbido e bravio, Roendo penedos, alagando plagas.
Humilde arroio brando!...
Nele, no entanto, as flores, inclinando O débil caule, inquietas Miravam-se. E, em seu claro espelho, o bando Se revia das leves borboletas.
Tudo, porém: - cheirosas Plantas, curvas ramadas rumorosas, Úmidas relvas, ninhos Suspensos no ar entre jasmins e rosas, Tardes cheias da voz dos passarinhos, -
Tudo, tudo perdido Atrás deixou. Cresceu. Desenvolvido, Foi alargando o seio, E do alpestre rochedo, onde nascido Tinha, crespo, a rolar, descendo veio...
Cresceu. Atropeladas, Soltas, grossas as ondas apressadas Estendeu largamente, Tropeçando nas pedras espalhadas, No galope impetuoso da corrente...
Cresceu. E é poderoso:
Mas enturba-lhe a face o lodo ascoso...
É grande, é largo, é forte:
Mas, de parcéis cortado, caudaloso, Leva nas dobras de seu manto a morte.
Implacável, violento, Rijo o vergasta o latego do vento.
Das estrelas, caindo Sobre ele em vão do claro firmamento Batem os raios límpidos, luzindo...
Nada reflete, nada!
Com o surdo estrondo espanta a ave assustada;
É turvo, é triste agora.
Onde a vida de outrora sossegada?
Onde a humildade e a limpidez de outrora?
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Homem que o mundo aclama!
Semideus poderoso, cuja fama O mundo com vaidade De eco em eco no século derrama Aos quatro ventos da celebridade!
Tu, que humilde nasceste, Fraco e obscuro mortal, também cresceste De vitória em vitória, E, hoje, inflado de orgulhos, ascendeste Ao sólio excelso do esplendor da glória!
Mas, ah! nesses teus dias De fausto, entre essas pompas luzidias, - Rio soberbo e nobre!
Hás de chorar o tempo em que vivias Como um arroio sossegado e pobre...
A Sesta de Nero Fulge de luz banhado, esplêndido e suntuoso, O palácio imperial de pórfiro luzente E mármor da Lacônia. O teto caprichoso Mostra, em prata incrustado, o nácar do Oriente.
Nero no toro ebúrneo estende-se indolente...
Gemas em profusão do estrágulo custoso De ouro bordado vêem-se. O olhar deslumbra, ardente, Da púrpura da Trácia o brilho esplendoroso.
Formosa ancila canta. A aurilavrada lira Em suas mãos soluça. Os ares perfumando, Arde a mirra da Arábia em recendente pira.
Formas quebram, dançando, escravas em coréia.
E Neto dorme e sonha, a fronte reclinando Nos alvos seios nus da lúbrica Popéia.
O Incêndio de Roma Raiva o incêndio. A ruir, soltas, desconjuntadas, As muralhas de pedra, o espaço adormecido De eco em eco acordando ao medonho estampido, Como a um sopro fatal, rolam esfaceladas.
E os templos, os museus, o Capitólio erguido Em mármor frígio, o Foro, as erectas arcadas Dos aquedutos, tudo as garras inflamadas Do incêndio cingem, tudo esbroa-se partido.
Longe, reverberando o clarão purpurino, Arde em chamas o Tibre e acende-se o horizonte...
- Impassível, porém, no alto do Palatino, Neto, com o manto grego ondeando ao ombro, assoma Entre os libertos, e ébrio, engrinaldada a fronte, Lira em punho, celebra a destruição de Roma.
O Sonho de Marco Antônio Noite. Por todo o largo firmamento Abrem-se os olhos de ouro das estrelas...
Só perturba a mudez do acampamento O passo regular das sentinelas.
Brutal, febril, entre canções e brados, Entrara pela noite adiante a orgia;
Em borbotões, dos cântaros lavrados Jorrara o vinho. O exército dormia.
Insone, entanto, vela alguém na tenda Do general. Esse, entre os mais sozinho, Vence a fadiga da batalha horrenda, Vence os vapores cálidos do vinho.
Torvo e cerrado o cenho, o largo peito Da couraça despido e arfando ansioso, Lívida a face, taciturno o aspeito, Marco Antônio medita silencioso.
Da lâmpada de prata a luz escassa Resvala pelo chão. A quando e quando, Treme, enfunada à viração que passa, A cortina de púrpura oscilando.
O general medita. Como, soltas Do álveo de um rio transvazado, as águas Crescem, cavando o solo, - assim, revoltas, Fundas a alma lhe vão sulcando as mágoas.
Que vale a Grécia, e a Macedônia, e o enorme Território do Oriente, e este infinito E invencível exército que dorme?
Que doces braços que lhe estende o Egito!...
Que vença Otávio! e seu rancor profundo Leve da Hispânia à Síria a morte e a guerra!
Ela é o céu... Que valor tem todo o mundo, Se os mundos todos seu olhar encerra?!
Ele é valente e ela o subjuga e o doma...
Só Cleópatra é grande, amada e bela!
Que importa o império e a salvação de Roma?
Roma não vale um só dos beijos dela!...
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Assim medita. E alucinado, louco De pesar, com a fadiga em vão lutando, Marco António adormece a pouco e pouco, Nas largas mãos a fronte reclinando.
II
A harpa suspira. O melodioso canto, De uma volúpia lânguida e secreta, Ora interpreta o dissabor e o pranto, Ora as paixões violentas interpreta.
Amplo dossel de seda levantina, Por colunas de jaspe sustentado, Cobre os cetins e a caxemira fina Do régio leito de ébano lavrado.
Move o leque de plumas uma escrava.
Vela a guarda lá fora. Recolhida, Os pétreos olhos uma esfinge crava Nas formas da rainha adormecida.
Mas Cleópatra acorda... E tudo, ao vê-la Acordar, treme em roda, e pasma, e a admira:
Desmaia a luz, no céu descora a estrela, A própria esfinge move-se e suspira...
Acorda. E o torso arqueando, ostenta o lindo Colo opulento e sensual que oscila.
Murmura um nome e, as pálpebras abrindo, Mostra o fulgor radiante da pupila.
III
Ergue-se Marco Antônio de repente...
Ouve-se um grito estrídulo, que soa O silêncio cortando, e longamente Pelo deserto acampamento ecoa.
O olhar em fogo, os carregados traços Do rosto em contração, alto e direito O vulto enorme, - no ar levanta os braços, E nos braços aperta o próprio peito.
Olha em torno e desvaira. Ergue a cortina, A vista alonga pela noite afora.
Nada vê. Longe, à porta purpurina Do Oriente em chamas, vem raiando a aurora.
E a noite foge. Em todo o firmamento Vão se fechando os olhos das estrelas:
Só perturba a mudez do acampamento O passo regular das sentinelas.
Lendo a Ilíada Ei-lo, o poema de assombros, céu cortado De relâmpagos, onde a alma potente De Homero vive, e vive eternizado O espantoso poder da argiva gente.
Arde Tróia... De rastos passa atado O herói ao carro do rival, e, ardente, Bate o sol sobre um mar ilimitado De capacetes e de sangue quente.
Mais que as armas, porém, mais que a batalha Mais que os incêndios, brilha o amor que ateia O ódio e entre os povos a discórdia espalha:
- Esse amor que ora ativa, ora asserena A guerra, e o heróico Páris encadeia Aos curvos seios da formosa Helena.
Messalina Recordo, ao ver-te, as épocas sombrias Do passado. Minh'alma se transporta À Roma antiga, e da cidade morta Dos Césares reanima as cinzas frias;
Triclínios e vivendas luzidias Percorre; pára de Suburra à porta, E o confuso clamor escuta, absorta, Das desvairadas e febris orgias.
Aí, num trono erecto sobre a ruína De um povo inteiro, tendo à fronte impura O diadema imperial de Messalina, Vejo-te bela, estátua da loucura!
Erguendo no ar a mão nervosa e fina, Tinta de sangue, que um punhal segura.
A Ronda Noturna Noite cerrada, tormentosa, escura, Lá fora. Dorme em trevas o convento.
Queda imoto o arvoredo. Não fulgura Uma estrela no torvo firmamento.
Dentro é tudo mudez. Flébil murmura, De espaço a espaço, entanto, a voz do vento:
E há um rasgar de sudários pela altura, Passo de espectros pelo pavimento...
Mas, de súbito, os gonzos das pesadas Portas rangem... Ecoa surdamente Leve rumor de vozes abafadas.
E, ao clarão de uma lâmpada tremente, Do claustro sob as tácitas arcadas Passa a ronda noturna, lentamente...
Defenda Carthago!
I
Fulge e dardeja o sol nos amplos horizontes Do céu da África. Ao largo, em plena luz, dos montes Destacam-se os perfis. Tremulamente ondeia, Vasto oceano de prata, a requeimada areia.
O ar, pesado, sufoca. E, desfraldando ovantes Das bandeiras ao vento as pregas ondulantes, Desfilam as legiões do exército romano Diante do general Cipião Emiliano.
Tal soldado sopesa a dava de madeira;
Tal, que a custo sofreia a cólera guerreira, Maneja a bipenata e rude machadinha.
Este, à ilharga pendente, a rútila bainha Leva do gládio. Aquele a poderosa maça Carrega, e às largas mãos a ensaia. A custo passa, Curvado sob o peso e de fadiga aflando, De guerreiros um grupo, os aríetes levando.
Brilham em confusão cristados capacetes.
Cavaleiros, contendo os ardidos ginetes, Solta a clâmide ao ombro, ao braço afivelado O côncavo broquel de cobre cinzelado, Brandem o pílum no ar. Ressona, a espaços, rouca, A bélica bucina. A tuba cava à boca Dos eneatores troa. Hordas de sagitários Vêem-se, de arco e carcás armados. O ouro e os vários Ornamentos de prata embutem-se, em tauxias De um correto lavor, nas armas luzidias Dos generais. E, ao sol, que, entre nuvens, cintila, Em torno de Cartago o exército desfila.
Mas, passada a surpresa, às pressas, a cidade Aos escravos cedera armas e liberdade, E era toda rumor e agitação. Fundindo Todo o metal que havia, ou, céleres, brunindo Espadas e punhais, capacetes e lanças, Viam-se a trabalhar os homens e as crianças.
Heróicas, abafando os soluços e as queixas, As mulheres, tecendo os fios das madeixas, Cortavam-nas.
Cobrindo espáduas deslumbrantes, Cercando a carnação de seios palpitantes Como véus de veludo, e provocando beijos, Excitaram paixões e lúbricos desejos Essas tranças da cor das noites tormentosas...
Quantos lábios, ardendo em sedes luxuriosas, As tocaram outrora entre febris abraços!..
Tranças que tanta vez - frágeis e doces laços! -
Foram cadeias de ouro invencíveis, prendendo Almas e corações, - agora, distendendo Os arcos, despedindo as setas aguçadas, Iam levar a morte... - elas, que, perfumadas, Outrora tanta vez deram a vida e o alento Aos presos corações!...
Triste, entretanto, lento, Ao pesado labor do dia sucedera O silêncio noturno. A treva se estendera:
Adormecera tudo. E, no outro dia, quando Veio de novo o sol, e a aurora, rutilando, Encheu o firmamento e iluminou a terra, A luta começou.
II
As máquinas de guerra Movem-se. Treme, estala, e parte-se a muralha, Racha de lado a lado. Ao clamor da batalha Estremece o arredor. Brandindo o pílum, prontas, Confundem-se as legiões. Perdido o freio, às tontas, Desbocam-se os corcéis. Enrijam-se, esticadas Nos arcos, a ringir, as cordas. Aceradas, Partem setas, zunindo. Os dardos, sibilando, Cruzam-se. Éneos broquéis amolgam-se, ressoando, Aos embates brutais dos piques arrojados.
Loucos, afuzilando os olhos, os soldados, Presa a respiração, torvo e medonho o aspeito, Pela férrea squammata abroquelado o peito, Se escruam no furor, sacudindo os macetes.
Não param, entretanto, os golpes dos aríetes, Não cansam no trabalho os musculosos braços Dos guerreiros. Oscila o muro. Os estilhaços Saltam das pedras. Gira, inda uma vez vibrada No ar, a máquina bruta... E, súbito, quebrada, Entre o insano clamor do exército e o fremente Ruído surdo da queda, - estrepitosamente Rui, desaba a muralha, e a pétrea mole roda, Rola, remoinha, e tomba, e se esfacela toda.
Rugem aclamações. Como em cachões, furioso, Parte os diques o mar, roja-se impetuoso, As vagas encrespando acapeladas, brutas, E inunda povoações, enche vales e grutas, E vai semeando o horror e propagando o estrago, Tal o exército entrou as portas de Cartago...
O ar os gritos de dor e susto, espaço a espaço, Cortavam. E, a bramir, atropelado, um passo O invasor turbilhão não deu vitorioso, Sem que deixasse atrás um rastro pavoroso De feridos. No ocaso, o sol morria exangue:
Como que refletia o firmamento o sangue Que tingia de rubro a lâmina brilhante Das espadas. Então, houve um supremo instante, Em que, cravando o olhar no intrépido africano Asdrúbal, ordenou Cipião Emiliano:
"- Deixa-me executar as ordens do Senado!
Cartago morrerá: perturba o ilimitado Poder da invicta Roma... Entrega-te! -"
Orgulhoso, A fronte levantando, ousado e rancoroso, Disse o cartaginês:
"- Enquanto eu tiver vida, Juro que não será Cartago demolida!
Quando o incêndio a envolver, o sangue deste povo Há de apagá-lo. Não! Retira-te! -"
De novo Falou Cipião:
Atende, Asdrúbal! Por mais forte Que seja o teu poder, há de prostrá-lo a morte!
Olha! A postos, sem conta, as legiões de Roma, Que Júpiter protege e que o pavor não doma, Vão começar em breve a mortandade infrene!
Entrega-te! -"
"- Romano, escuta-me! (solene, O outro volveu, e a raiva em sua voz rugia)
Asdrúbal é o irmão de Aníbal... Houve um dia Em que, ante Aníbal, Roma estremeceu vencida E tonta recuou de súbito ferida.
Ficaram no lugar da pugna, ensangüentados, Mais de setenta mil romanos, trucidados Pelo esforço e valor dos púnicos guerreiros;
Seis alqueires de anéis dos mortos cavaleiros Cartago arrecadou... Verás que, como outrora, Do eterno Baal-Moloch a proteção agora Teremos. A vitória há de ser nossa... Escuta:
Manda que recomece a carniceira luta! -"
E horrível, e feroz, durante a noite e o dia, Recomeçou a luta. Em cada casa havia Um punhado de heróis. Seis vezes, pela face Do céu, seguiu seu curso o sol, sem que parasse O medonho estridor da sanha da batalha...
Quando a noite descia, a treva era a mortalha Que envolvia, piedosa, os corpos dos feridos.
Rolos de sangue e pó, blasfêmias e gemidos, Preces e imprecações... As próprias mães, entanto, Heróicas na aflição, enxuto o olhar de pranto, Viam cair sem vida os filhos. Combatentes Houve, que, não querendo aos golpes inclementes Do inimigo entregar os corpos das crianças, Matavam-nas, erguendo as suas próprias lanças...
Por fim, quando de todo a vida desertando Foi a extinta cidade, e, lúgubre, espalmando As asas negras no ar, pairou sinistra e horrenda A morte, teve um fim a peleja tremenda, E o incêndio começou.
III
Fraco e medroso, o fogo À branda viração tremeu um pouco, e logo, Inda pálida e tênue, ergueu-se. Mais violento, Mais rápido soprou por sobre a chama o vento:
E o que era labareda, agora ígnea serpente Gigantesca, estirando o corpo, de repente Desenrosca os anéis flamívomos, abraça Toda a cidade, estala as pedras, cresce, passa, Rói os muros, estronda, e, solapando o solo, Os alicerces broca, e estringe tudo. Um rolo De plúmbeo e denso fumo enegrecido em torno Se estende, como um véu, do comburente forno.
Na horrorosa eversão, dos templos arrancado, Vibra o mármore, salta; abre-se, estilhaçado, Tudo o que o incêndio aperta... E a fumarada cresce Sobe vertiginosa, espalha-se, escurece O firmamento... E, sobre os restos da batalha, Arde, voraz e rubra, a colossal fornalha.
Mudo e triste Cipiáo, longe dos mais, no entanto, Deixa livre correr pelas faces o pranto...
É que, - vendo rolar, num rápido momento Para o abismo do olvido e do aniquilamento Homens e tradições, reveses e vitórias, Batalhas e troféus, seis séculos de glórias Num punhado de cinza -, o general previa Que Roma, a invicta, a forte, a armipotente, havia De ter o mesmo fim da orgulhosa Cartago.
E, perto, o precipitar estrepitoso e vago D0 incêndio, que lavrava e inda rugia ativo, Era como o rumor de um pranto convulsivo...


Domínio Público Gov.BR


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