O Vôo do Gênio
Um dia em que na terra a sós vagava Pela estrada sombria da existência, Sem rosas-nos vergéis da adolescência, Sem luz d'estrela-pelo céu do amor;
Senti as asas de um arcanjo errante Roçar-me brandamente pela fronte, Como o cisne, que adeja sobre a fonte, As vezes toca a solitária flor.
E disse então: "Quem és, pálido arcanjo!
Tu, que o poeta vens erguer do pego?
Eras acaso tu, que Milton cego Ouvia em sua noite erma de sol?
Quem és tu? Quem és tu?"—"Eu sou o gênio", Disse-me o anjo "vem seguir-me o passo, Quero contigo me arrojar no espaço, Onde tenho por c'roas o arrebol".
"Onde me levas, pois?..."—"Longe te levo Ao país do ideal, terra das flores, Onde a brisa do céu tem mais amores E a fantasia-lagos mais azuis..."
E fui... e fui... ergui-me no infinito, Lá onde o vôo d'águia não se eleva...
Abaixo-via a terra-abismo em treva!
Acima-o firmamento— abismo em luz!
"Arcanjo! arcanjo! que ridente sonho!"
— "Não, poeta, é o vedado paraíso, Onde os lírios mimosos do sorriso Eu abro em todo o seio, que chorou, Onde a loura comédia canta alegre, Onde eu tenho o condão de um gênio infindo, Que a sombra de Molière vem sorrindo Beijar na fronte, que o Senhor beijou..."
"Onde me levas mais, anjo divino?"
— "Vem ouvir, sobre as harpas inspiradas, O canto das esferas namoradas, Quando eu encho de amor o azul dos céus.
Quero levar-te das paixões nos mares.
Quero levar-te a dédalos profundos, Onde refervem sóis... e céus... e mundos...
Mais sóis... mais mundos, e onde tudo é meu...
"Mulher! mulher! Aqui tudo é volúpia:
A brisa morna, a sombra do arvoredo, A linfa clara, que murmura a medo, A luz que abraça a flor e o céu ao mar.
Ó princesa, a razão já se me perde, És a sereia da encantada Sila.
Anjo, que transformaste-te em Dalila, Sansão de novo te quisera amar!
"Porém não paras neste vôo errante!
A que outros mundos elevar-me tentas?
Já não sinto o soprar de auras sedentas, Nem bebo a taça de um fogoso amor.
Sinto que rolo em báratros profundos...
Já não tens asas, águia da Tessália, Maldições sobre ti... tu és Onfália, Ninguém te ergue das trevas e do horror.
"Porém silêncio! No maldito abismo, Onde caí contigo criminosa, Canta uma voz, sentida e maviosa, Que arrependida sobe a Jeová!
Perdão! Perdão! Senhor, p'ra quem soluça, Talvez seja algum anjo peregrino…
Mas não! inda eras tu, gênio divino, Também sabes chorar, como Eloá?
"Não mais, ó serafim! suspende as asas!
Que, através das estrelas arrastado, Meu ser arqueja louco, deslumbrado.
Sobre as constelações e os céus azuis.
Arcanjo! Arcanjo! basta... já contigo Mergulhei das paixões nas vagas cérulas...
Mas nos meus dedos — já não cabem —
Mas na minh'alma — já não cabe — luz!.