O Soldado
I
Veia tranquila e pura De meu paterno rio, Dos campos, que ele rega, Mansíssimo armentio.
Rocio matutino, Prados tão deleitosos, Vales, que assombravam selvas De sinceirais frondosos, Terra da minha infância, Tecto de meus maiores, Meu breve jardinzinho, Minhas pendidas flores, Harmonioso e santo Sino do presbitério, Cruzeiro venerando Do humilde cemitério, Onde os avós dormiram, E dormirão os pais;
Onde eu talvez não durma, Nem reze, talvez, mais, Eu vos saúdo!, e o longo Suspiro amargurado Vos mando. E quanto pode Mandar pobre soldado.
Sobre as cavadas ondas Dos mares procelosos, Por vós já fiz soar Meus cantos dolorosos.
Na proa ressonante Eu me assentava mudo, E aspirava ansioso O vento frio e agudo;
Porque em meu sangue ardia A febre da saudade, Febre que só minora Sopro de tempestade;
Mas que se irrita, e dura Quando é tranquilo o mar;
Quando da pátria o céu Céu puro vem lembrar;
Quando, no extremo ocaso, A nuvem vaporosa, À frouxa luz da tarde, Na cor imita a rosa;
Quando, do Sol vermelho O disco ardente cresce, E paira sobre as águas, E enfim desaparece;
Quando no mar se estende Manto de negro dó;
Quando, ao quebrar do vento, Noite e silêncio é só;
Quando sussurram meigas Ondas que a nau separa, E a rápida ardentia Em torno a sombra aclara.
II
Eu já ouvi, de noite, Entre o pinhal fechado, Um frémito soturno Passando o vento irado:
Assim o murmúrio Do mar, fervendo à proa, Com o gemer do aflito, Sumido, acorde soa;
E o cintilar das águas Gera amargura e dor, Qual lâmpada, que pende No templo do Senhor, Lá pela madrugada, Se o óleo lhe escasseia, E a espaços expirando.
Afrouxa e bruxuleia.
III
Bem abundante messe De pranto e de saudade O foragido errante Colhe na soledade!
Para o que a pátria perde É o universo mudo;
Nada lhe ri na vida;
Mora o fastio em tudo;
No meio das procelas, Na calma do oceano, No sopro do galerno, Que enfuna o largo pano.
E no entestar coa terra Por abrigado esteiro, E no pousar à sombra Do tecto do estrangeiro.
IV
E essas memórias tristes Minha alma laceraram, E a senda da existência Bem agra me tornaram:
Porém nem sempre férreo Foi meu destino escuro;
Sufocou de luz um raio As trevas do futuro.
Do meu país querido A praia ainda beijei, E o velho e amigo cedro No vale ainda abracei!
Nesta alma regelada Surgiu ainda o gozo, E um sonho lhe sorriu Fugaz, mas amoroso.
Oh, foi sonho da infância Desse momento o sonho!
Paz e esperança vinham Ao coração tristonho.
Mas o sonhar que monta, Se passa, e não conforta?
Minh'alma deu em terra, Como se fosse morta.
Foi a esperança nuvem, Que o vento some á tarde:
Facho de guerra aceso Em labaredas arde!
Do fratricídio a luva Irmão a irmão lançara, E o grito: ai do vencido!
Nos montes retumbara.
As armas se hão cruzado:
O pó mordeu o fone;
Caiu: dorme tranquilo:
Deu-lhe repouso a morte.
Ao menos, nestes campos Sepulcro conquistou, E o adro dos estranhos Seus ossos não guardou.
Ele herdará, ao menos, Aos seus honrado nome;
Paga de curta vida Ser-lhe-á largo renome.
V
E a bala sibilando, E o trom da artilharia, E a tuba clamorosa, Que os peitos acendia, E as ameaças torvas, E os gritos de furor, E desses que expiravam Som cavo de estertor, E as pragas do vencido, Do vencedor o insulto.
E a palidez do morto, Nu, sanguento, insepulto, Eram um caos de dores Em convulsão horrível, Sonho de acesa febre, Cena tremenda e incrível!
E suspirei: nos olhos Me borbulhava o pranto, E a dor, que trasbordava, Pediu-me infernal canto.
Oh, sim!, maldisse o instante, Em que buscar viera, Por entre as tempestades, A terra em que nascera.
Que é, em fraternas lides, Um canto de vitória?
É delirar maldito;
É triunfar sem glória.
Maldito era o triunfo, Que rodeava o horror, Que me tingia tudo De sanguinosa cor!
Então olhei saudoso Para o sonoro mar;
Da nau do vagabundo Meigo me riu o arfar.
De desespero um brado Soltou, ímpio, o poeta, Perdão! Chegara o mísero Da desventura à meta.
VI
Terra infame! – de servos aprisco, Mais chamar-me teu filho não sei;
Desterrado, mendigo serei:
De outra terra meus ossos serão!
Mas a escravo, que pugna por ferros, Que herdará desonrada memória, Renegando da terra sem glória, Nunca mais darei nome de irmão!
Onde é livre tem pátria o poeta, Que ao exílio condena ímpia sorte.
Sobre os plainos gelados do norte Luz do Sol também desce do céu;
Também lá se erguem montes. e o prado De boninas, em Maio. se veste;
Também lá se meneia o cipreste Sobre o corpo que à terra desceu.
Que me importa o loureiro da encosta?
Que me importa da fonte o ruído?
Que me importa o saudoso gemido Da rolinha sedenta de amor?
Que me importam outeiros cobertos Da verdura da vinha, no Estio?
Que me importa o remanso do rio, E, na calma, da selva o frescor?
Que me importa o perfume dos campos, Quando passa da tarde a bafagem, Que se embebe, na sua passagem, Na fragrância da rosa e alecrim?
Que me importa? Pergunta insensata!
É meu berço: a minha alma está lá...
Que me importa... Esta boca o dirá?!
Minha pátria, estou louco... menti!
Eia, servos! O ferro se cruze, Assobie o pelouro nos ares;
Estes campos convertam-se em mares, Onde o sangue se possa beber!
Larga a vala!, que, após a peleja, Todos nós dormiremos unidos!
Lá, vingados, e do ódio esquecidos, Paz faremos... depois do morrer!
VII
Assim, entre amarguras, Me delirava a mente;
E o Sol ia fugindo No termo do Ocidente.
E os fortes lá jaziam Coa face ao céu voltada;
Sorria a noite aos monos, Passando sossegada.
Porém, a noite deles Não era a que passava!
Na eternidade a sua Corria, e não findava.
Contrários ainda há pouco, Irmãos, enfim, lá eram!
O seu tesouro de ódio, Mordendo o pó, cederam.
No limiar da morte Assim tudo fenece:
Inimizades calam, E até o amor esquece!
Meus dias rodeados Foram de amor outrora;
E nem um vão suspiro Terei, morrendo, agora, Nem o apertar da dextra Ao desprender da vida, Nem lágrima fraterna Sobre a feral jazida!
Meu derradeiro alento Não colherão os meus.
Por minha alma aterrada Quem pedirá a Deus?
Ninguém! Aos pés o servo Meus restos calcará, E o riso ímpio, odiento, Mofando soltará.
O sino lutuoso Não lembrará meu fim:
Preces, que o morto afagam, Não se erguerão por mim!
O filho dos desertos, O lobo carniceiro, Há-de escutar alegre Meu grito derradeiro!
Ó morte, o sono teu Só é sono mais largo;
Porém, na juventude, É o dormi-lo amargo:
Quando na vida nasce Essa mimosa flor, Como a cecém suave, Delicioso amor;
Quando a mente acendida Crê na ventura e glória;
Quando o presente é tudo.
E inda nada a memória!
Deixar a cara vida, Então é doloroso, E o moribundo à Terra Lança um olhar saudoso.
A taça da existência No fundo fezes tem;
Mas os primeiros tragos Doces, bem doces, vem.
E eu morrerei agora Sem abraçar os meus, Sem jubiloso um hino Alevantar aos Céus?
Morrer, morrer, que importa?
Final suspiro, ouvi-lo Há-de a pátria. Na terra Irei dormir tranquilo.
Dormir? Só dorme o frio Cadáver, que não sente;
A alma voa a abrigar-se Aos pés do Omnipotente.
Reclinar-me-ei à sombra Do amplo perdão do Eterno;
Que não conheço o crime, E erros não pune o Inferno.
E vós, entes queridos, Entes que tanto amei, Dando-vos liberdade Contente acabarei.
Por mim livres chorar Vós podereis um dia, E às cinzas do soldado Erguer memória pia.