O pastor amoroso
SUMÁRIO
Quando eu não te tinha 4 Está alta no céu a lua e é primavera 5 Agora que sinto amor 6 Todos os dias agora acordo com alegria e pena 7 O amor é uma companhia 8 Passei toda a noite, sem saber dormir, vendo sem espaço a figura dela 9 Talvez quem vê bem não sirva para sentir 10 O pastor amoroso perdeu o cajado 11 4
I
Quando eu não te tinha Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...
Agora amo a Natureza Como um monge calmo à Virgem Maria, Religiosamente, a meu modo, como dantes, Mas de outra maneira mais comovida e próxima.
Vejo melhor os rios quando vou contigo Pelos campos até à beira dos rios;
Sentado a teu lado reparando nas nuvens Reparo nelas melhor...
Tu não me tiraste a Natureza...
Tu não me mudaste a Natureza...
Trouxeste-me a Natureza para ao pé de mim.
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma, Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais, Por tu me escolheres para te ter e te amar, Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente Sobre todas as cousas.
Não me arrependo do que fui outrora Porque ainda o sou.
Só me arrependo de outrora te não ter amado. 5 II
Está alta no céu a lua e é primavera.
Penso em ti e dentro de mim estou completo.
Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; não sou eu: sou feliz.
Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelos campos, E eu andarei contigo pelos campos a ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos, Mas quando vieres amanhã e andares comigo realmente a colher flores, Isso será uma alegria e uma novidade para mim. 6
III
Agora que sinto amor Tenho interesse nos perfumes.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver. 7
IV
Todos os dias agora acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei-de fazer das minhas sensações, Não sei o que hei-de ser comigo.
Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo.
Quem ama é diferente de quem é.
É a mesma pessoa sem ninguém. 8
V
O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos, Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio. 9
VI
Passei toda a noite, sem saber dormir, vendo sem espaço a figura dela E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala, E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la, Quase que prefiro não a encontrar, Para não ter que a deixar depois.
E prefiro pensar dela, porque dela como é tenho qualquer medo.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só pensar ela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar. 10 VII
Talvez quem vê bem não sirva para sentir E não agrade por estar muito antes das maneiras.
É preciso ter modos para todas as cousas, E cada cousa tem o seu modo, e o amor também.
Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir.
Amei, e não fui amado, o que só vi no fim, Porque não se é amado como se nasce mas como acontece.
Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes, E eu continuo como era dantes, sozinho no campo.
Como se tivesse estado de cabeça baixa, Penso isto, e fico de cabeça alta E o dourado do sol seca as lágrimas pequenas que não posso deixar de ter.
Como o campo é grande e o amor pequeno!
Olho, e esqueço, como o mundo enterra e as árvores se despem.
Eu não sei falar porque estou a sentir.
Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa, E a minha voz fala dela como se ela é que falasse.
Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro, E a boca quando fala diz cousas que não há nas palavras.
Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio. 11 VIII
O pastor amoroso perdeu o cajado, E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta, E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu... Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos vários verdes de sempre, As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento, A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito.