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Textos para uso geral de domínio público.

O Livro de Cesario Verde

Prefacio A JORGE VERDE
Aqui deponho em suas maos e debaixo dos seus labios o livro do seu irmao. A minha "obra" terminou no dia em que elle saiu da nossa doce amizade para a nossa terrivel amargura: morri, meu querido Jorge--deixe-me chamar assim ao irmao do meu querido Cesario;--morri para as alegrias do trabalho, para as esperancas dos enganos doces!
O desmoronamento fez-se, a um tempo, no espirito e no coracao! Dos restos do passado deixe-me offerecer-lhe a dedicacao extremada:
peca-me o sacrificio; e, quando no decorrer da vida, se lembrar de nos, tenha este pensamento consolador:--A grande alma de meu irmao soube impor-se a um coracao endurecido; e tenha este outro pensamento:
--Mas nao estava de todo endurecido o coracao que soube amal-a.
Adeus, meu querido Jorge!
S.P.
20 de julho de 1886.
Encontramo-nos pela primeira vez no Curso Superior de Lettras. Foi em 1873. Cesario Verde marticulara-se no Curso em homenagem as Lettras, como se as Lettras la estivessem--no Curso. Eu matriculara-me, com a esperanca de habilitar-me um dia a conquista de uma cadeira disponivel. Encontramo-nos e ficamos amigos--para a vida e para a morte.
Para a vida e para a morte.
Tenho de fallar de mim, se eu pretendo fallar de Cesario Verde. Elle nao teve, desde aquelle dia--ha treze annos--maior amigo do que eu fui; e sobre esta mesa onde eu estou escrevendo, as 10 horas da noite d'este formidavel dia glacial--20 de Julho de 1886, dia do seu enterro,--sobre esta mesa onde eu estou escrevendo tenho estas palavras suas de ha poucos dias:--"E como se de o caso de tu seres o mais dedicado dos meus amigos..." Tenho aqui essas palavras:
ellas constituem a justificacao dos meus solucos de ha poucas horas, alli, no cemiterio visinho onde elle dorme--o Cesario!--a sua primeira noite redimida...
Eu fui, pois, a luctar nas grandes batalhas da Desgraca, n'aquelle anno para mim terrivel de 1874. Fui-me, a dezenas de leguas de Lisboa. Elle ficou. E no dia em que eu medi forcas com as avancadas do meu destino, a inquietacao invadiu o espirito e o coracao de Cesario Verde, por modo que ja eu assoberbara com o meu desprezo a desventura pertinaz e ainda elle nao vingara libertar-se do peso de seus cuidados e afflicoes. Durante annos escreveu-me centenares de paginas--commentarios sobre os meus infortunios, conselhos do seu espirito lucidissimo, sobresaltos do seu coracao fraternal. Um dia, trocamos estas palavras:--"Como tu tens tempo, meu amigo, para soffrer tanto!"--"Como tu tens tempo, meu amigo, para me acompanhar no soffrimento!".
E indispensavel ter conhecido intimamente Cesario Verde para conhecel-o um pouco. Os que apenas lhe ouviram a phrase rapida, imperiosa, dogmatica, mal podem imaginar o fundo de tolerancia espectante d'aquelle bello e poderoso espirito. Elle tinha o furor da discussao--a toda a hora. Eu careco de preparar-me durante horas para a simples comprehensao. As exigencias do meu caro polemista irritavam-me. Eu respondia ao acaso; mas acontecia por vezes que o sorriso ligeiramente ironico do perseguidor expandia-se n'um bom e largo sorriso de convencido; e entao--meu querido amigo! meu santo poeta!--elle saudava com um enthusiasmo de creanca amoravel o que elle chamava o meu triumpho! Nao hesitava em confessar-se vencido;
e congratulava-se commigo--porque eu o vencera inconscientemente.
A generosa alma chamava aquillo a minha superioridade!
Os campos, a verdura dos prados e dos montes; a liberdade do homem em meio da natureza livre: os seus sonhos amados; as suas realidades amadas! Quando aquelle artista delicado, quando aquelle poeta de primeira grandeza julgava em raros momentos sacrificar a Arte aos seus gostos de lavrador e de homem pratico, succedia que as cousas do campo, da vida pratica assimilavam a fecundante seiva artistica do poeta: e entao dos fructos alevantavam-se aromas que disputavam foros de poesia aos aromas das flores. O mesmo sopro bondoso e potente agitava e fecundava os milharaes e as violetas e os trigaes e as rosas! A bondade summa esta no poeta,--mais visivel, pelo menos, do que em Deus.
Artista--e de alta plana! Eu pude vel-o cioso de seus direitos e reivindicando-os com tanto de ingenuidade quanto de vigor. E pois que um ligeiro esboco, precedendo mais detido trabalho, estou elaborando sobre os tracos mais salientes d'aquella individualidade, nao me dispensarei d'esta indicripcao:
Ha dois mezes escrevia-me Cesario Verde: "O Doutor Sousa Martins perguntou-me qual era a minha occupacao habitual. Eu respondi-lhe naturalmente: Empregado no commercio. Depois, elle referiu-se a minha vida trabalhosa que me distrahia, etc. Ora, meu querido amigo, o que eu te peco e que, conversando com o dr. Sousa Martins, lhe des a perceber que eu nao sou o sr. Verde, empregado no commercio.
Eu nao posso bem explicar-te; mas a tua amizade comprehende os meus escrupulos: sim?..."
E eu fui a beira de Sousa Martins e perguntei-lhe se o poeta Cesario Verde podia ser salvo. O grande e illustre medico tranquilisou-me --e apunhalou-me em pleno peito:--Que o poeta Cesario Verde estava irremediavelmente perdido!
Meu poeta! Meu amigo! Tu estavas condemnado no tribunal superior, quando eu te mentia e ao publico e a mim proprio: estavas condemnado, meu santo! Mas podia viver tranquillo o teu orgulho de artista: o teu medico sabia que o poeta Cesario Verde eras tu proprio, meu pallido agonisante illudido!
A esthesia, o processo artistico e a individualidade d'este admiravel e originalissimo poeta merecem a Critica independente uma attencao desvelada. Eu nao hesito em vincular o meu nome a promessa de um tributo que a obra de Cesario Verde esta reclamando.
* * * * *
E todavia, nao pode o meu espirito evadir-se a idea consoladora de que e um sonho isto que o entenebrece! Nao podes evadir-te, o meu espirito amargurado! mas eu vou libertar-te para a dor!
Foi as cinco da tarde--ainda agora. Caia o sol a prumo sobre a estrada do Lumiar e nos vinhamos arrastando a nossa miseria,--nos os vivos; o morto arrastava a sua indifferenca. Chegamos, com duas horas de amargura, alli ao porto de abrigo e de descanco. Veio o ceremonial tragico, o latim, o encerramento. Caso de uma eloquencia terrivel: Entre algumas dezenas de homens nao houve uma phrase indifferente--e em dado momento explosiram solucos n'um enternecimento que ageitava a loira cabeca do cadaver la dentro do caixao--como as maos da mae lh'a ageitaram infantil, no travesseiro, ha vinte e quatro annos, e moribunda ha vinte e quatro horas!
Eram sete horas da tarde, o minha alma triste! Eu fui-me a chorar velhas lagrimas de gelo, avocadas por lagrimas de fogo recemnascidas.
Fui-me por entre os tumulos, a pedir ao meu Deus de ha trinta annos que que me desse forca, que me desse forca nova,--pois que se prolonga o captiveiro! E a sos, caminhando por entre os tumulos, ao cair da noite, pareceu-me comprehender que nos recebemos forca nova em cada nova dor, para soffrermos de novo--do mesmo modo que o alcatruz de uma nora se despeja para encher-se, para despejar-se --sem saber porque...
20 de Agosto * * * * *
A morada nova do Cesario e de pedra e tem uma porta de ferro, com um respiradouro em cruz;--rua n. 6 do cemiterio dos Prazeres. A
porta esta um arbusto da familia dos cyprestes--um brinde ao meu querido morto. Eu offerecera uma palmeira que o vento esgarcou ao terceiro dia, e tive de escolher uma especie resistente, ca da minha raca--funebre e resistente. Esta verdejante e vigorosa a pequenina arvore, e de longe e uma sentinella perdida da minha doce amizade religiosa. De longe vou ja perguntando a nossa arvore:--Esta bom o nosso amigo?... E ella inclina os pequeninos trocos, com a gravidade do cypreste:--Bem; nao houve novidade em toda a noite...
E que eu vou pelas tardes visital-o; e saber como elle passou e todo um meu cuidado, como e toda a minha alegria o bem-estar d'aquella hora em que nao ha risos. Nao fomos risonhos--o Cesario e eu. As nossas horas de convivencia foram tristes e severas. Depois da morte do Cesario eu deixei de viver nos dominios onde elle sentira consolacoes, alentos, esperancas, onde elle imaginara renascimentos, horisontes, claridades novas. Nunca mais publiquei uma palavra que se lhe nao consagrasse--ao meu querido morto. Em face d'aquelle cadaver eu senti alastrar-se no meu pobre ser fatigado o bem-amado desprezo da vida. O meu santo esta alli,--esta resignado: e tudo.
Vos todos, que o amastes, sabei que elle esta resignado--o nosso querido morto impassivel!
E n'uma dessas tardes, alguns dias depois da sua morte, eu aproximei da porta de ferro a minha pobre cabeca esbrazeada e olhei para dentro do jazigo, involuntariamente; e entao, como quer que eu visse la a dentro do jazigo alguns caixoes arrumados, e como eu acertasse em descobrir o caixao do Cesario, os solucos despedacaram-se contra a minha garganta, n'uma affliccao immensa e cruel. E foi entao que a voz rouca e enfraquecida do Cesario--lembram-se da voz d'elle?--pronunciou distinctamente la a dentro do caixao:--"Se natural, meu amigo; se natural!"
Era a voz do Cesario; era a sua voz tremente e doce, o meu sagrado horror inconsciente! Debrucei-me contra a porta do jazigo e suppliquei n'uma angustia:--"Fala! Dize! Falla, outra vez, meu amigo!" Nao se reproduziu o doloroso encanto. Apenas uma especie de marulho brando, um arrastar de folhagem resequida--e o morto na paz da Morte!
Vao ja decorridos dez annos sobre um periodo de alguns mezes serenos da minha via dolorosa. Eu viera a conquistar a certeza de que nao havia luz misericordiosa para a noite que me vem acompanhando e torturando os olhos avidos, desde o berco a sepultura redemptora.
Cheguei aqui, a cidade maldita da minha primeira hora e trazia o sonho de uma aurora pacifica de vida nova no meu pobre espirito illudido. A aurora fez-se com um desabamento de esperancas: a crueldade bestial que se debrucara sobre o meu primeiro dia nao estava arrependida, nem fatigada: a perseguicao renasceu. E quando eu, no singular desespero dos esmagados em sua crenca, pensei na Morte como no abrigo antecipado--querido abrigo inevitavel!--a voz de Cesario foi a voz evocadora para a continuacao do soffrimento --do soffrimento amparado e protegido...
Protegido! A proteccao foi a maior da grande alma serena para a pobre alma abatida: foi de lagrimas que se confundiram com as minhas lagrimas; foi aquelle sorriso triste de resignacao, consagrado as minhas amarguras,--que para o Cesario nao foram mysteriosas; foi o aperto de mao robusto, na vertigem do combate; foi a voz firme e severa na hora dos desfallecimentos; foi o reflexo permanente que a minha angustia encontrou na sua.
Ah, santo! Ah, meu santo! Ah, meu puro e meu grande! Ah, meu forte!
Vae-se na corrente, desfallecido, se nos nao troveja nos ouvidos a voz reanimadora! Vae-se na corrente,--que o sei eu! Mas tu, depois do grito salvador, tinhas um applauso vibrante la do fundo da tua grandeza e da tua generosidade. E tu sabias que me salvara a tua mao, a tua palavra, a tua alma de justo, a tua face que eu nao quizera ver, contrahida e severa, retraindo-se perante o quadro da minha fraqueza! Tu bem o sabias,--forte, bom, generoso, nobre, sempre bom--e todavia sempre justo!
A crise mais feroz atravessei-a, pois, abrigado,--abrigado pela sua voz amiga. Eu tive de luctar com a lenda de rebelliao, com a desconfianca dos homens praticos, com o odio dos pequeninos malvados offendidos em seus orgulhos e desmascarados em suas hypocrisias:
conseguintemente, com a suppressao do trabalho,--do pao,--com a calumnia, com a intriga, com todas as armadilhas a minha colera, com todas as ciladas a minha fe... Ah, perdidos em paiz de Cafres!
Mal conceberieis o horror de uma lucta como aquella, de todos os dias de dez annos, em paiz de conta aberta no bazar da Civilisacao!
Hoje, o meu santo amigo esta alli em baixo, na sua morada nova, esperando... Espera que eu va dizer-lhe dos horisontes novos abertos a consciencia dos justos; espera que eu va dizer-lhe as victorias da Justica absoluta--da Justica illuminada e serena;--espera que eu va dizer-lhe as victorias do Trabalho, da Razao, da Sciencia, da Sinceridade, do Amor: os homens reconciliados, esclarecidos, a Natureza convertida em Progresso, Deus explicado, o Futuro illuminado, a Vida possivel, A Mulher fortalecida, o Homem abrandado, as luctas supprimidas, o concerto da Terra desentranhando-se em harmonias reconhecidas, a Bondade convertida em norma, os Direitos e os Deveres supprimidos pela Igualdade: os seus sonhos, a sua fe, o seu horisonte, o seu amor!
Esta alli em baixo, esperando... Eu, mensageiro triste, nao saberei dizer-lhe o ascender dos espiritos, e so poderei levar-lhe no meu abatimento a demonstracao da minha pouca fe, aggravada pela espantosa amargura d'estes ultimos dias,--d'estas ultimas horas. As visoes do poeta hao de emmurchecer confundidas com as ultimas rozas que a minha pobre mao tremente e desfallecida lhe depora no tumulo, e os restos da minha fe hao-de misturar-se com o po accumulado a entrada do seu tumulo pelo Nordeste--menos frio do que a minha alma succumbida!
* * * * *
Silva Pinto.
Os versos I
CRISE ROMANESCA
DESLUMBRAMENTOS
Milady, e perigoso contemplal-a, Quando passa aromatica e normal, Com seu typo tao nobre e tao de sala, Com seus gestos de neve e de metal.
Sem que n'isso a desgoste ou desenfade, Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas, Eu vejo-a, com real solemnidade, Ir impondo toilettes complicadas!...
Em si tudo me attrae como um thesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril, A sua voz que tem um timbre de oiro E o seu nevado e lucido perfil!
Ah! Como m'estontea e me fascina...
E e, na graca distincta do seu porte, Como a Moda superflua e feminina, E tao alta e serena como a Morte!...
Eu hontem encontrei-a, quando vinha, Britannica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sosinha, E com firmeza e musica no andar!
O seu olhar possue, n'um fogo ardente, Um archanjo e um demonio a illuminal-o;
Como um florete, fere agudamente, E afaga como o pello d'um regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo, E mostre, se eu beijar-lhe as brancas maos, O modo diplomatico e orgulhoso Que Anna d'Austria mostrava aos cortezaos.
E emfim prosiga altiva como a Fama, Sem sorrisos, dramatica, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chamma Seu ermo coracao, como um brilhante.
Mas cuidado, milady, nao se afoite, Que hao-de acabar os barabaros reaes;
E os povos humilhados, pela noite, Para a vinganca agucam os punhaes.
E um dia, o flor do Luxo, nas estradas, Sob o setim do Azul e as andorinhas, Eu hei-de ver errar, allucinadas, E arrastando farrapos--as rainhas!
SEPTENTRIONAL
Talvez ja te esquecesses, o bonina, Que viveste no campo so commigo, Que te osculei a bocca purpurina, E que fui o teu sol e o teu abrigo.
Que fugiste commigo da Babel, Mulher como nao ha nem na Circassia, Que bebemos, nos dois, do mesmo fel, E regamos com prantos uma acacia.
Talvez ja te nao lembres com desgosto D'aquellas brancas noites de mysterio, Em que a lua sorria no teu rosto E nas lages que estao no cemiterio.
Quando, a brisa outonica, como um manto, Os teus cabellos d'ambar desmanchados, Se prendiam nas folhas d'um acantho, Ou nos bicos agrestes dos silvados, E eu ia desprendel-os, como um pagem Que a cauda solevasse aos teus vestidos;
E ouvia murmurar a doce aragem Uns delirios d'amor, entristecidos;
Quando eu via, invejoso, mas sem queixas, Pousarem borbeletas doudejantes Nas tuas formosissimas madeixas, D'aquellas cor das messes lourejantes, E no pomar, nos dois, hombro com hombro, Caminhavamos sos e de maos dadas, Beijando os nossos rostos sem assombro, E colorindo as faces desbotadas;
Quando ao nascer d'aurora, unidos ambos N'um amor grande como um mar sem praias, Ouviamos os meigos dithyrambos, Que os rouxinoes teciam nas olaias, E, afastados da aldeia e dos casaes, Eu comtigo, abracado como as heras, Escondidos nas ondas dos trigaes, Devolvia-te os beijos que me deras;
Quando, se havia lama no caminho, Eu te levava ao collo sobre a greda, E o teu corpo nevado como o arminho Pesava menos que um papel de seda...
E foste sepultar-te, o seraphim, No claustro das Fieis emparedadas, Escondeste o teu rosto de marfim No veu negro das freiras resignadas.
E eu passo, tao calado como a Morte, N'esta velha cidade tao sombria, Chorando afflictamente a minha sorte E prelibando o calix da agonia.
E, tristissima Helena, com verdade, Se podera na terra achar supplicios, Eu tambem me faria gordo frade E cobriria a carne de cilicios.
MERIDIONAL
Cabellos O vagas de cabello esparsas longamente, Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar, E tendes o crystal d'um lago refulgente E a rude escuridao d'um largo e negro mar;
Cabellos torrenciaes d'aquella que m'enleva, Deixae-me mergulhar as maos e os bracos nus No barathro febril da vossa grande treva, Que tem scintillacoes e meigos ceos de luz.
Deixae-me navegar, morosamente, a remos, Quando elle estiver brando e livre de tufoes, E, ao placido luar, o vagas, marulhemos E enchamos de harmonia as amplas solidoes.
Daixae-me naufragar no cimo dos cachopos Occultos n'esse abysmo ebanico e tao bom Como um licor rhenano a fermentar nos copos, Abysmo que s'espraia em rendas de Alencon!
E o magica mulher, o minha Inegualavel, Que tens o immenso bem de ter cabellos taes, E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbavel, Entre o rumor banal dos hymnos triumphaes;
Consente que eu aspire esse perfume raro, Que exhalas da cabeca erguida com fulgor, Perfume que estontea um millionario avaro E faz morrer de febre um louco sonhador.
Eu sei que tu possues balsamicos desejos, E vaes na direccao constante do querer, Mas ouco, ao ver-te andar, melodicos harpejos, Que fazem mansamente amar e elanguescer.
E a tua cabelleira, errante pelas costas, Supponho que te serve, em noites de verao, De flaccido espaldar aonde te recostas Se sentes o abandono e a morna prostracao.
E ella hade, ella hade, um dia, em turbilhoes insanos Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor Que antigamente deu, nos circos dos romanos, Um oleo para ungir o corpo ao gladiador.
* * * * *
O mantos de veludo esplendido e sombrio, Na vossa vastidao posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio E quero asphyxiar-me em ondas de prazer.
IRONIAS DO DESGOSTO
"Onde e que te nasceu"--dizia-me ella as vezes--
"O horror calado e triste as cousas sepulcraes?
"Porque e que nao possues a verve dos Francezes "E aspiras, em silencio, os frascos dos meus saes?
"Porque e que tens no olhar, moroso e persistente, "As sombras d'um jazigo e as fundas abstraccoes, "E abrigas tanto fel no peito, que nao sente "O abalo feminil das minhas expansoes?
"Ha quem te julgue um velho. O teu sorriso e falso;
"Mas quando tentas rir parece entao, meu bem, "Que estao edificando um negro cadafalso "E ou vae alguem morrer ou vao matar alguem!
"Eu vim--nao sabes tu?--para gosar em maio, "No campo, a quietacao banhada de prazer!
"Nao ves, o descorado, as vestes com que saio, "E os jubilos, que abril acaba de trazer?
"Nao ves como a campina e toda embalsamada "E como nos alegra em cada nova flor?
"E entao porque e que tens na fronte consternada "Um nao sei que tocante e enternecedor?
E eu so lhe respondia:--"Escuta-me. Conforme "Tu vibras os crystaes da bocca musical, "Vae-nos minando o tempo, o tempo--o cancro enorme "Que te ha de corromper o corpo de vestal.
"E eu calmamente sei, na dor que me amortalha, "Que a tua cabecinha ornada a Rabagas, "A pouco e pouco ha de ir tornando-se grisalha "E em breve ao quente sol e ao gaz alvejara!
"E eu que daria um rei por cada teu suspiro, "Eu que amo a mocidade e as modas futeis, vans, "Eu morro de pezar, talvez, porque prefiro "O teu cabelo escuro as veneraveis cans!"
HUMILHACOES
(De todo o coracao--a Silva Pinto)
Esta aborrece quem e pobre. Eu, quasi Job, Acceito os seus desdens, seus odios idolatro-os;
E espero-a nos saloes dos principaes theatros, Todas as noites, ignorado e so.
La canca-me o ranger da seda, a orchestra, o gaz;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos, E emquanto vao passando as cortezans e os brilhos, Eu analyso as pecas no cartaz.
Na representacao d'um drama de Feuillet, Eu aguradava, junto a porta, na penumbra, Quando a mulher nervosa e van que me deslumbra Saltou soberba o estribo do coupe.
Como ella marcha! Lembra um magnetisador.
Rocavam no veludo as guarnicoes das rendas;
E, muito embora tu, burguez, me nao entendas, Fiquei batendo os dentes de terror.
Sim! Por nao podia abandonal-a em paz!
O minha pobre bolsa, amortalhou-se a idea De vel-a aproximar, sentado na platea, De tel a n'um binoculo mordaz!
Eu occultava o fraque usado nos botoes;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
--Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
E ouviam-se ca fora as ovacoes.
Que desvanecimento! A perola do Tom!
As outras ao pe d'ella imitam as bonecas;
Tem menos melodia as harpas e as rabecas, Nos grandes espetaculos do Som.
Ao mesmo tempo, eu nao deixava de a abranger;
Vi-a subir, direita, a larga escadaria E entrar no camarote. Antes estimaria Que o chao se abrisse para me abater.
Sai; mas ao sair senti-me atropellar.
Era um municipal sobre um cavallo. A guarda Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda, Cresci com raiva contra o militar.
De subito, fanhosa, infecta, rota, ma, Poz-se na minha frente uma velhinha suja, E disse-me, piscando os olhos de coruja:
--Meu bom senhor! Da-me um cigarro? Da?...
RESPONSO
I
N'um castello deserto e solitario, Toda de preto, as horas silenciosas, Envolve-se nas pregas d'um sudario E chora como as grandes criminosas.
Podesse eu ser o lenco de Bruxellas Em que ella esconde as lagrimas singellas.
II
E loura como as doces escocezas, D'uma belleza ideal, quasi indecisa;
Circumda-se de luto e de tristezas E excede a melancolica Artemisa.
Fosse eu os seus vestidos afogados E havia de escutar-lhe os seus peccados.
III
Alta noite, os planetas argentados Deslisam um olhar macio e vago Nos seus olhos de pranto marejados E nas aguas mansissimas do lago Podesse eu ser a lua, a lua terna, E faria que a noite fosse eterna.
IV
E os abutres e os corvos fazem giros De roda das ameias e dos pegos, E nas salas resoam uns suspiros Dolentes como as supplicas dos cegos.
Fosse eu aquellas aves de pilhagem E cercara-lhe a fronte, em homenagem.
V
E ella vaga nas praias rumorosas, Triste como as rainhas desthronadas, A contemplar as gondolas airosas, Que passam, a giorno illuminadas.
Podesse eu ser o rude gondoleiro E alli e que fizera o meu cruzeiro.
VI
De dia, entre os veludos e entre as sedas, Murmurando palavras afflictivas, Vagueia nas umbrosas alamedas E acarinha, de leve, as sensitivas.
Fosse eu aquellas arvores frondosas E prendera-lhe as roupas vaporosas.
VII
Ou domina, a rezar, no pavimento Da capella onde outr'ora se ouviu missa, A musica dulcissima do vento E o sussuro do mar, que s'espreguica.
Podesse eu ser o mar e os meus desejos Eram ir borrifar-lhe os pes, com beijos.
VIII
E as horas do crepusculo saudosas, Nos parques com tapetes cultivados, Quando ella passa curvam-se amorosas As estatuas dos seus antepassados.
Fosse eu tambem granito e a minha vida Era vel-a a chorar arrependida.
IX
No palacio isolado como um monge, Erram as velhas almas dos precitos, E nas noites de inverno ouvem-se ao longe Os lamentos dos naufragos afflictos.
Podesse eu ter tambem uma procella E as lentas agonias ao pe d'ella!
X
E as lages, no silencio dos mosteiros, Ella conta o seu drama negregado, E o vasto carmesim dos resposteiros Ondula como um mar ensanguentado.
Fossem aquellas mil tapecarias Nossas mortalhas quentes e sombrias.
XI
E assim passa, chorando, as noites bellas, Sonhando nos tristes sonhos doloridos, E a reflectir nas gothicas janellas As estrellas dos ceus desconhecidos.
Podesse eu ir sonhar tambem comtigo E ter as mesmas pedras no jazigo!
XII
Mergulha-se em angustias lacrimosas Nos ermos d'um castello abandonado, E as proximas florestas tenebrosas Repercutem um choro amargurado.
Unissemos, nos dois, as nossas covas, O doce castella das minhas trovas!
II
NATURAES
CONTRARIEDADES
Eu hoje estou cruel, frenetico, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrivel! Ja fumei tres massos de cigarros Consecutivamente.
Doe-me a cabeca. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravacao nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os acidos, os gumes E os angulos agudos.
Sentei-me a secretaria. Alli defronte mora Uma infeliz, sem, peito, os dois pulmoes doentes;
Soffre de falta d'ar, morreram-lhe os parentes E engomma para fora.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tao livida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta a botica!
Mal ganha para sopas...
O obstaculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias, Por causa d'um jornal me regeitar, ha dias, Um folhetim de versos.
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais d'uma redaccao, das que elogiam tudo, Me tem fechado a porta.
A critica segundo o methodo de Taine Ignoram-n'a. Juntei n'uma fogueira immensa.
Muitissimos papeis ineditos. A imprensa Vale um desdem solemne.
Com raras excepcoes merece-me o epigramma.
Deu meia-noite; e em paz pela calcada abaixo, Um sol-e-do. Chovisca. O populacho Diverte-se na lama.
Eu nunca dediquei poemas as fortunas, Mas sim, por deferencia a amigos ou a artistas, Independente! So por isso os jornalistas Me negam as columnas.
Receiam que o assignante ingenuo os abandone, Se forem publicar taes cousas, taes auctores.
Arte? Nao lhes convem, visto que os seus leitores Deliram por Zaccone.
Um prosador qualquer desfructa fama honrosa, Obtem dinheiro, arranja a sua "coterie";
E a mim, nao ha questao que mais me contrarie Do que escrever em prosa.
A adulacao repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos litteratos, E apuro-me em lancar originaes e exactos, Os meus alexandrinos...
E a tisica? Fechada, e com o ferro acceso!
Ignora que a asphyxia a combustao das brazas, Nao foge do estendal que lhe humedece as casas, E fina-se ao desprezo!
Mantem-se a cha e pao! Antes de entrar na cova.
Esvae-se; e todavia, a tarde, fracamente, Oico-a cantarolar uma cancao plangente D'uma opereta nova!
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e n'outros climas, Conseguirei reler essas antigas rimas, Impressas em volume?
Nas lettras eu conheco um campo de manobras;
Emprega-se a reclame, a intriga, o annuncio, a blague, E esta poesia pede um editor que pague Todas as minhas obras...
E estou melhor; passou-me a colera. E a visinha?
A pobre engommadeira ir-se-ha deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. E feia...
Que mundo! Coitadinha!
A DEBIL
Eu, que sou feio, solido, leal, A ti, que es bella, fragil, assustada, Quero estimar-te, sempre, recatada N'uma existencia honesta, de crystal.
Sentado a mesa d'um cafe devasso, Ao avistar-te, ha pouco, fraca e loura, N'esta Babel tao velha e corruptora, Tive tencoes de offerecer-te o braco.
E, quando soccorreste um miseravel, Eu, que bebia calices d'absintho, Mandei ir a garrafa, porque sinto Que me tornas prestante, bom, saudavel.
"Ella ahi vem!" disse eu para os demais;
E puz-me a olhar, vexado e suspirando, O teu corpo que pulsa, alegre e brando, Na frescura dos linhos matinaes.
Via-te pela porta envidracada;
E invejava,--talvez que o nao suspeites!--
Esse vestido simples, sem enfeites, N'essa cintura tenra, immaculada.
Ia passando, a quatro, o patriarcha.
Triste eu sahi. Doia-me a cabeca;
Uma turba ruidosa, negra, espessa, Voltava das exequias d'um monarcha.
Adoravel! Tu muito natural Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, n'um largo arborisado, Uma estatua de rei n'um pedestal.
Sorriam nos seus trens os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto, A tua boa mae, que te ama tanto, Que nao te morrera sem te casares!
Soberbo dia! Impunha-me respeito A limpidez do teu semblante grego;
E uma familia, um ninho de socego, Desejava beijar sobre o teu peito.
Com elegancia e sem ostentacao, Atravessavas branca, esvelta e fina, Uma chusma de padres de batina, E d'altos funccionarios da nacao.
"Mas se a atropella o povo turbolento!
Se fosse, por acaso, alli pisada!"
De repente, paraste embaracada Ao pe d'um numeroso ajuntamento.
E eu, que urdia estes faceis esbocetos, Julguei ver, com a vista de poeta, uma pombinha timida e quieta N'um bando ameacador de corvos pretos.
E foi, entao, que eu homem varonil, Quiz dedicar-te a minha pobre vida, A ti, que es tenue, docil, reconhecida, Eu, que sou habil, pratico, viril.
N'UM BAIRRO MODERNO
A Manuel Ribeiro Dez horas da manha; os transparentes Matizam uma casa apalacada;
Pelos jardins estancam-se os nascentes, E fere a vista, com brancuras quentes, A larga rua macadamisada.
Rez-de-chaussee repousam socegados, Abriram-se, n'alguns, as persianas, E d'um ou d'outro, em quartos estucados, Ou entre a rama dos papeis pintados, Reluzem, n'um almoco, as porcelanas.
Como e saudavel ter o seu conchego, E a sua vida facil! Eu descia, Sem muita pressa, para o meu emprego, Aonde agora quasi sempre chego Com as tonturas d'uma apoplexia.
E rota, pequenina, aramafada, Notei de costas uma rapariga, Que no xadrez marmoreo d'uma escada, Como um retalho de horta agglomerada, Pousara, ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Poz-se de pe: resoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodao azul da meia, Se ella se curva, esguedelhada, feia, E pendurando os seus bracinhos brancos.
Do patamar responde-lhe um criado:
"Se te convem, despacha; nao converses.
Eu nao dou mais." E muito descancado, Atira um cobre livido, oxidado, Que vem bater nas faces d' uns alperces.
Subitamente,--que visao de artista!--
Se eu transformasse os simples vegetaes, A luz do sol, o intenso colorista, N'um ser humano que se mova e exista Cheio de bellas proporcoes carnaes?!
Boiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz as costas, e vergando, Sobem padeiros, claros de farinha;
E as portas, uma ou outra campainha Toca, frenetica, de vez em quando.
E eu recompunha, por anatomia, Um novo corpo organico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria Uma cabeca n'uma melancia, E n'uns repolhos seios injectados.
As azeitonas, que nos dao o azeite, Negras e unidas, entre verdes folhos, Sao trancas d'um cabello que se ageite;
E os nabos--ossos nus, da cor do leite, E os cachos d'uvas--os rosarios d'olhos.
Ha collos, hombros, boccas, um semblante Nas posicoes de certos fructos. E entre As hortalicas, tumido, fragrante, Como d'alguem que tudo aquilo jante, Surge um melao, que me lembrou um ventre.
E, como um feto, emfim, que se dilate, Vi nos legumes carnes tentadoras, Sangue na ginja vivida, escarlate, Bons coracoes pulsando no tomate E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
O sol dourava o ceo. E a regateira, Como vendera a sua fresca alface E dera o ramo de hortela que cheira, Voltando-se, gritou-me prazenteira:
"Nao passa mais ninguem!... Se me ajudasse?!..."
Eu acerquei-me d'ella, sem desprezo;
E, pelas duas azas a quebrar, Nos levantamos todo aquelle peso Que ao chao de pedra resistia preso, Com um enorme esforco muscular.
"Muito obrigada! Deus lhe de saude!"
E recebi, naquella despedida, As forcas, a alegria, a plenitude, Que brotam d'um excesso de virtude Ou d'uma digestao desconhecida.
E em quanto sigo para o lado opposto, E ao longe rodam umas carruagens, A pobre afasta-se, ao calor de agosto, Descolorida nas macas do rosto, E sem quadris na saia de ramagens.
Um pequerrucho rega a trepadeira D'uma janella azul; e, com o ralo Do regador, parece que joeira Ou que borrifa estrellas; e a poeira Que eleva nuvens alvas e incensal-o.
Chegam do gigo emanacoes sadias, Oico um canario--que infantil chilrada!--
Lidam menages entre as gelosias, E o sol estende, pelas frontarias, Seus raios de laranja distillada.
E pittoresca e audaz, na sua chita, O peito erguido, os pulsos nas ilhargas, D'uma desgraca alegre que me incita, Ella apregoa, magra, enfezadita, As suas couves repolhudas, largas.
E como as grossas pernas d'um gigante, Sem tronco, mas athleticas, inteiras, Carregam sobre a pobre caminhante, Sobre a verdura rustica, abundante, Duas frugaes aboboras carneiras.
CRYSTALISACOES
A Bettencourt Rodrigues Faz frio. Mas, depois d'uns dias de aguaceiros, Vibra uma immensa claridade crua.
De cocaras, em linha os calceteiros, Com lentidao, terrosos e grosseiros, Calcam de lado a lado a longa rua.
Como as elevacoes seccaram do relento, E o descoberto sol abafa e cria!
A frialdade exige o movimento;
E as pocas d'agua, como em chao vidrento, Reflectem a molhada casaria.
Em pe e perna, dando aos rins que a marcha agita, Disseminadas, gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem na manha bonita, Uns barracoes de gente pobresita.
E uns quintalorios velhos com parreiras.
Nao se ouvem aves; nem o choro d'uma nora!
Tomam por outra parte os viandantes;
E o ferro e a pedra--que uniao sonora!--
Retinem alto pelo espaco fora, Com choques rijos, asperos, cantantes.
Bom tempo. E os rapagoes, morosos, duros, bacos, Cuja columna nunca se endireita, Partem penedos; cruzam-se estilhacos.
Pesam enormemente os grossos macos, Com que outros batem a calcada feita.
A sua barba agreste! A la dos seus barretes!
Que espessos forros! N'uma das regueiras Acamam-se as japonas, os colletes:
E elles descalcam com os picaretes, Que ferem lume sobre pederneiras.
E n'esse rude mez, que nao consente as flores, Fundeam, como a esquadra em fria paz, As arvores despidas. Sobrias cores!
Mastros, enxarcias, vergas! Valladores Atiram terra com as largas pas.
Eu julgo-me no Norte, ao frio--o grande agente!--
Carros de mao, que chiam carregados, Conduzem saibro, vagarosamente;
Ve se a cidade, mercantil, contente:
Madeiras, aguas, multidoes, telhados!
Negrejam os quintaes, enxuga e alvenaria;
Em arco, sem as nuvens fluctuantes, O ceu renova a tinta corredia;
E os charcos brilham tanto, que eu diria Ter ante mim lagoas de brilhantes!
E engelhem muito embora, os fracos, os tolhidos, Eu tudo encontro alegremente exacto.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
E tangem-me, excitados, sacudidos, O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!
Pede-me o corpo inteiro esforcos na friagem De tao lavada e egual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me a fogo, a silex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.
Mal encarado e negro, um para emquanto eu passo;
Dois assobiam, altas as marretas Possantes, grossas, temperadas d'aco;
E um gordo, o mestre, com um ar de ralaco E manso, tira o nivel das valletas.
Homens de carga! Assim as bestas vao curvadas!
Que vida tao custosa! Que diabo!
E os cavadores pousam as enxadas, E cospem nas callosas maos gretadas, Para que nao lhes escorregue o cabo.
Povo! No panno cru rasgado das camizas Uma bandeira penso que transluz!
Com ella soffres, bebes, agonisas:
Listroes de vinho lancam-lhe divisas, E os suspensorios tracam-lhe uma cruz!
D'escuro, bruscamente, ao cimo da barroca, Surge um perfil direito que se aguca;
E ar matinal de quem sahiu da toca, Uma figura fina, desemboca, Toda abafada n'um casaco a russa.
D'onde ella vem! A actriz que tanto comprimento E a quem, a noite na plateia, attraio Os olhos lizos como polimento!
Com seu rostinho estreito, friorento, Caminha agora para o seu ensaio.
E aos outros eu admiro os dorsos, os costados Como lajoes. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezirias, dos montados;
Os das planicies, altos, aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!
Mas fina de feicoes, o queixo hostil, distincto, Furtiva a tiritar em suas pelles, Espanta-me a actrizita que hoje pinto, N'este dezembro energico, succinto, E n'estes sitios suburbanos, reles!
Como animaes communs, que uma picada esquente, Elles, bovinos, masculos, ossudos, Encaram-n'a sanguinea, brutamente:
E ella vacilla, hesita impaciente Sobre as botinhas de tacoes agudos.
Porem, desempenhando o seu papel na peca, Sem que inda o publico a passagem abra, O demonico arrisca-se, atravessa Covas, entulhos, lamacaes, depressa, Com seus pesinhos rapidos, de cabra!
NOITES GELIDAS
MERINA
Rosto comprido, airosa, angelical, macia, Por vezes, a allema que eu sigo e que me agrada, Mais alva que o luar de inverno que me esfria, Nas ruas a que o gaz da noites de ballada;
Sob os abafos bons que o Norte escolheria, Com seu passinho curto e em suas las forrada, Recorda-me a elegancia, a graca, a galhardia De uma ovelhinha branca, ingenua e delicada.
SARDENTA
Tu, n'esse corpo completo, O lactea virgem doirada, Tens o lymphatico aspecto D'uma camelia melada.
FLORES VELHAS
Fui hontem visitar o jardimzinho agreste, Aonde tanta vez a luz nos beijou, E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste, Soberba como um sol, serena como um voo.
Em tudo scintillava o limpido poema Com osculos rimado as luzes dos planetas;
A abelha inda zumbia em torno da alfazema;
E ondulava o matiz das leves borboletas.
Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem, A imagem que inspirava os castos madrugaes;
E as viracoes, o rio, os astros, a pasizagem, Traziam-me a memoria idyllios immortaes.
Diziam-me que tu, no florido passado, Detinhas sobre mim, ao pe d'aquellas rosas, Aquelle teu olhar moroso e delicado, Que fala de languor e d'emocoes mimosas;
E, o pallida Clarisse, o alma ardente e pura, Que nao me desgostou nem uma vez sequer, Eu nao sabia haurir do calix da ventura O nectar que nos vem dos mimos da mulher.
Falou-me tudo, tudo, em tons commovedores, Do nosso amor, que uniu as almas de dois entes;
As falas quasi irmas do vento com as flores E a molle exhalacao das varzeas rescendentes.
Inda pensei ouvir aquellas coisas mansas No ninho de affeicoes creado para ti, Por entre o riso claro, e as vozes das creancas, E as nuvens que esbocei, e os sonhos que nutri.
Lembrei-me muito, muito, o symbolo das santas, Do tempo em que eu soltava as notas inspiradas, E sob aquelle ceo e sobre aquellas plantas Bebemos o elixir das tardes perfumadas.
E nosso bom romance escripto n'um desterro, Com beijos sem ruido em noites sem luar, Fizeram-m'o reler, mais tristes que um enterro, Os goivos, a baunilha e as rosas de toucar.
Mas tu agora nunca, ah! nunca mais te sentas Nos bancos de tijolo em musgo atapetados, E eu nao beijarei, as horas somnolentas, Os dedos de marfim, polidos e delgados...
Eu, por nao ter sabido amar os movimentos Da estrophe mais ideal das harmonias mudas, Eu sinto as decepcoes e os grandes desalentos E tenho um riso mau como o sorrir de Judas.
E tudo emfim passou, passou como uma penna, Que o mar leva no dorso exposto aos vendavaes, E aquella doce vida, aquella vida amena, Ah! nunca mais vira, meu lyrio, nunca mais!
O minha boa amiga, o minha meiga amante!
Quando hontem eu pisei, bem magro e bem curvado, A areia em que rangia a saia rocagante, Que foi na minha vida o ceo aurirosado, Eu tinha tao impresso o cunho da saudade, Que as ondas que formei das suas illusoes Fizeram-me enganar na minha soledade E as azas ir abrindo as minhas impressoes.
Soltei com devocao lembrancas inda escravas, No espaco construi phantasticos castellos, No tanque debrucei-me em que te debrucavas, E onde o luar parava os raios amarellos.
Cuidei ate sentir, mais doce que uma prece, Suster a minha fe, n'um veo consolador, O teu divino olhar que as pedras amollece, E ha muito que me prendeu nos carceres do amor.
Os teus pequenos pes, aquelles pes suaves, Julguei-os esconder por entre as minhas maos, E imaginei ouvir ao conversar das aves As celicas cancoes dos anjos aos teus irmaos.
NOITE FECHADA
(L.)
Lembras-te tu do sabbado passado, Do passeio que demos, devagar, Entre um saudoso gaz amarellado E as caricias leitosas do luar?
Bem me lembro das altas ruasinhas, Que ambos nos percorremos de maos dadas:
As janellas palravam as visinhas;
Tinham lividas luzes as fachadas.
Nao me esqueco das cousas que disseste, Ante um pesado templo com recortes;
E os cemiterios ricos, e o cypreste Que vive de gorduras e de mortes!
Nos sairamos proximo ao sol-posto, Mas seguiamos cheios de demoras;
Nao me esqueceu ainda o meu desgosto Nem o sino rachado que deu horas.
Tenho ainda gravado no sentido, Porque tu caminhavas com prazer, Cara rapada, gordo e presumido, O padre que parou para te ver.
Como uma mitra a cupula da egreja Cobria parte do ventoso largo;
E essa bocca vicosa de cereja, Torcia risos com sabor amargo.
A lua dava tremulas brancuras, Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com arvores escuras, Como uma jaula todo gradeado!
E para te seguir entrei comtigo N'um pateo velho que era d'um canteiro, E onde, talvez, se faca inda o jazigo Em que eu irei apodrecer primeiro!
Eu sinto ainda a flor da tua pelle, Tua luva, teu veu, o que tu es!
Nao sei que tentacao e que te impelle Os pequeninos e cancados pes.
Sei que em tudo attentavas, tudo vias!
Eu por mim tinha pena dos marcanos, Como ratos, nas gordas mercearias, Encafunados por immensos annos!
Tu sorriras de tudo: Os carvoeiros, Que apparecem ao fundo d'umas minas, E a crua luz os pallidos barbeiros Com oleos e maneiras femininas!
Fins de semana! Que miseria em bando!
O povo folga, estupido e grisalho!
E os artistas d'officio iam passando, Com as ferias, ralados do trabalho.
O quadro anterior, d'um que a candea, Ensina a filha a ler, metteu-me do!
Gosto mais do plebeu que cambalea, Do bebado feliz que falla so!
De subito, na volta de uma esquina, Sob um bico de gaz que abria em leque, Vimos um militar, de barretina E galoes marciaes de pechisbeque, E em quanto elle fallava ao seu namoro, Que morava n'um predio de azulejo, Nos nossos labios retinio sonoro Um vigoroso e formidavel beijo!
E assim ao meu capricho abandonada, Erramos por travessas, por viellas, E passamos por pe d'uma tapada E um palacio real com sentinellas.
E eu que busco a moderna e fina arte, Sobre a umbrosa calcada sepulchral, Tive a rude intencao de violentar-te Imbecilmente como um animal!
Mas ao rumor dos ramos e d'aragem, Como longiquos bosques muito ermos, Tu querias no meio da folhagem Um ninho enorme para nos vivermos.
E ao passo que eu te ouvia abstractamente, O grande pomba tepida que arrulha, Vinham batendo o macadam fremente, As patadas sonoras da patrulha, E atravez a immortal cidadesinha, Nos fomos ter as portas, as barreiras, Em que uma negra multidao se apinha De teceloes, de fumos, de caldeiras.
Mas a noite dormente e esbranquicada Era uma esteira lucida d'amor;
O jovial senhora perfumada, O terrivel creanca! Que esplendor!
E ali comecaria o meu desterro!...
Lodoso o rio, e glacial, corria;
Sentamo-nos, os dois, n'um novo aterro Na muralha dos caes de cantaria.
Nunca mais amarei, ja que nao me amas, E e preciso, decerto, que me deixes!
Toda a mare luzida como escamas, Como alguidar de prateados peixes.
E como e necessario que eu me afoite A perder-me de ti por quem existo, Eu fui passar ao campo aquella noite E andei leguas a pe, pensando n'isto.
E tu que nao seras somente minha, As caricias leitosas do luar, Recolheste-te, pallida e sosinha A gaiola do teu terceiro andar!
MANHANS BRUMOSAS
Aquella, cujo amor me causa alguma pena, Poe o chapeo ao lado, abre o cabello a banda, E com a forte voz cantada com que ordena, Lembra-me, de manhan, quando nas praias anda, Por entre o campo e o mar, bucolica, morena, Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.
Que linguas fala? A ouvir-lhe as inflexoes inglezas, --Na Nevoa azul, a caca, as pescas, os rebanhos!--
Sigo-lhe os altos pes por estas asperezas;
E o meu desejo nada em epoca de banhos, E, ave de arribacao, elle enche de surprezas Seus olhos de perdiz, redondos e castanhos.
As irlandezas teem soberbos desmazelos!
Ella descobre assim, com lentidoes ufanas, Alta, escorrida, abstracta, os grossos tornozelos;
E como aquellas sao maritimas, serranas, Suggere-me o naufragio, as musicas, os gelos E as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.
Parece um "rural boy"! Sem brincos nas orelhas, Traz um vestido claro a comprimir-lhe os flancos, Botoes a tiracollo e applicacoes vermelhas;
E a roda, n'um paiz de prados e barrancos, Se as minhas maguas vao, mansissimas ovelhas, Correm os seus desdens, como vitellos brancos.
E aquella, cujo amor me causa alguma pena, Poe o chapeo ao lado, abre o cabello a banda, E com a forte voz cantada com que ordena, Lembra-me, de manhan, quando nas praias anda, Por entre o campo e o mar, catholica, morena, Uma pastora de audaz da religiosa Irlanda.
FRIGIDA
I
Balzac e meu rival, minha senhora ingleza!
Eu quero-a porque odeio as carnacoes redondas!
Mas elle eternisou-lhe a singular belleza E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.
II
Admiro-a. A sua longa e placida estatura Expoe a magestade austera dos invernos.
Nao cora no seu todo a timida candura;
Dansam a paz dos ceos e o assombro dos infernos.
III
Eu vejo-a caminhar, fleugmatica, irritante, N'uma das maos franzindo um lenco de cambraia!...
Ninguem me prende assim, funebre, extravagante, Quando arregaca e ondula a preguicosa saia!
IV
Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite, Mas nunca a fitarei d'uma maneira franca;
Traz o esplendor do Dia e as pallidez da Noite, E, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca!
V
Podesse-me eu prostrar, n'um meditado impulso, O gelida mulher bizarramente estranha, E tremulo depor os labios no seu pulso, Entre a macia luva e o punho de bretanha!...
VI
Scintilla no seu rosto a lucidez das joias.
Ao encarar comsigo a phantasia pasma;
Pausadamente lembra o silvo das giboias E a marcha demorada e muda d'um phantasma.
VII
Metallica visao que Charles Baudelaire Sonhou e presentiu nos seus delirios mornos, Permitta que eu lhe adule a distinccao que fere, As curvas de magreza e o lustre dos adornos!
VIII
Deslise como um astro, uma astro que declina;
Tao descancada e firme e que me desvaria, E tem a lentidao d'uma corveta fina Que nobremente va n'um mar de calmaria.
IX
Nao me imagine um doido. Eu vivo como um monge, No bosque das ficcoes, o grande flor do Norte!
E, ao, perseguil-a, penso acompanhar de longe O socegado espectro angelico da Morte!
X
O seu vagar occulta uma elasticidade Que deve dar um gosto amargo e deleitoso, E a sua glacial impassibilidade Exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso.
XI
Porem, nao arderei aos seus contactos frios, E nao me enroscara nos serpentinos bracos:
Receio supportar febroes e calefrios;
Adoro no seu corpo os movimentos lassos.
XII
E se uma vez me abrisse o collo transparente, E me osculasse, emfim, flexivel e submisso, Eu julgaria ouvir alguem, agudamente, Nas trevas, a cortar pedacos de cortica!
DE VERAO
A Eduardo Coelho I
No campo; eu acho n'elle a musa que me anima:
A claridade, a robustez, a accao.
Esta manha, sai com minha prima, Em que eu noto a mais sincera estima E a mais completa e seria educacao.
II
Creanca encantadora! Eu mal esboco o quadro Da lyrica excursao, d'intimidade Nao pinto a velha ermida com seu adro;
Sei so desenho de compasso e esquadro, Respiro industria, paz, salubridade.
III
Andam cantando aos bois; vamos cortando as leiras;
E tu dizias: "Fumas? E as fagulhas?
Apaga o teu cachimbo junto as eiras;
Colhe-me uns brincos rubros nas ginjeiras!
Quando me alegra a calma das debulhas!"
IV
E perguntavas sobre os ultimos inventos Agricolas. Que aldeias tao lavadas!
Bons ares! Boa luz! Bons alimentos!
Olha: Os saloios vivos, corpulentos, Como nos fazem grandes barretadas!
V
Voltemos. Na ribeira abundam as ramagens Dos olivaes escuros. Onde iras?
Regressam os rebanhos das pastagens;
Ondeiam milhos, nuvens e miragens, E, silencioso, eu fico para traz.
VI
N'uma collina azul brilha um logar caiado.
Bello! E arrimada ao cabo da sombrinha, Com teu chapeo de palha, desabado, Tu continuas na azinhaga; ao lado Verdeja, vicejante, a nossa vinha.
VII
N'isto, parando, como alguem que se analysa, Sem desprender do chao teus olhos castos, Tu comecaste, harmonica, indecisa, A arregacar a chita, alegre e lisa Da tua cauda um poucochinho a rastos.
VIII
Espreitam-te, por cima, as frestas dos celleiros;
O sol abrasa as terras ja ceifadas, E alvejam-te, na sombra dos pinheiros, Sobre os teus pes decentes, verdadeiros, As saias curtas, frescas, engommadas.
IX
E, como quem saltasse, extravagantemente, Um rego d'agua sem se enxovalhar, Tu, a austera, a gentil, a intelligente, Depois de bem composta, deste a frente Uma pernada comica, vulgar!
X
Exotica! E cheguei-me ao pe de ti. Que vejo!
No atalho enxuto, e branco das espigas Caidas das carradas no salmejo, Esguio e a negrejar em um cortejo, Destaca-se um carreiro de formigas.
XI
Ellas, em sociedade, espertas, diligentes, Na natureza tremula de sede, Arrastam bichos, uvas e sementes;
E atulha, por instincto, previdentes, Seus antros quasi occultos na parede.
XII
E eu desatei a rir como qualquer macaco!
"Tu nao as esmagares contra o solo!"
E ria-me, eu ocioso, inutil, fraco, Eu de jasmim na casa do casaco E d'oculo deitado a tiracolo!
XIII
"As ladras da colheita! Eu se trouxesse agora Um sublimado corrosivo, uns pos De solimao, eu, sem maior demora, Envenenal-as-hia! Tu, por ora, Preferes o romantico ao feroz.
XIV
Que compaixao! Julgava ate que matarias Esses insectos importunos! Basta.
Merecem-te espantosas sympathias?
Eu felicito suas senhorias, Que honraste com um pulo de gymnasta!"
XV
E emfim calei-me. Os teus cabellos muito loiros Luziam, com docura, honestamente;
De longe o trigo em monte, e os calcadoiros, Lembravam-me fusoes d'immensos oiros, E o mar um prado verde e florescente.
XVI
Vibravam, na campina, as chocas da manada;
Vinham uns carros a gemer no outeiro, E finalmente, energica, zangada, Tu inda assim bastante envergonhada, Volveste-me, apontando o formigueiro:
XVII
"Nao me incommode, nao, com ditos detestaveis!
Nao seja simplesmente um zombador!
Estas mineiras negras, incancaveis, Sao mais economistas, mais notaveis, E mais trabalhoras que o senhor."
O SENTIMENTO D'UM OCCIDENTAL
A Guerra Junqueiro I
AVE MARIAS
Nas nossas ruas, ao anoitecer, Ha tal soturnidade, ha tal melancholia, Que as sombras, o bulicio, o Tejo, a maresia Despertam-me um desejo absurdo de soffrer.
O ceu parece baixo e de neblina, O gaz extravasado enjoa-me, perturba;
E os edificios, com as chamines, e a turba Toldam-se d'uma cor monotona e londrina.
Batem os carros de aluguer, ao fundo, Levando a via ferrea os que se vao. Felizes!
Occorrem-me em revista exposicoes, paizes:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros, As edificacoes somente emmadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas, Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
Voltam os calafates, aos magotes, De jaquetao ao hombro, enfarruscados, seccos;
Embrenho-me, a scismar, por boqueiroes, por beccos, Ou erro pelos caes a que se atracam botes.
E evoco, entao, as chronicas navaes:
Mouros, baixeis, heroes, tudo resuscitado!
Lucta Camoes no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu nao verei jamais!
E o fim da tarde inspira-me; e incommoda!
De um couracado inglez vogam os escaleres;
E em terra n'um tinir de loucas e talheres Flammejam, ao jantar, alguns hoteis da moda.
N'um trem de praca arengam dois dentistas;
Um tropego arlequim braceja n'umas andas;
Os cherubins do lar fluctuam nas varandas;
As portas, em cabello, enfadam-se os logistas!
Vasam-se os arsenaes e as officinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E n'um cardume negro, herculeas, galhofeiras, Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Vem sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, a cabeca, embalam nas canastras Os filhos que depois naufragam nas tormentas, Descalcas! Nas descargas de carvao, Desde manha a noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se n'um bairro aonde miam gatas, E o peixe podre gera os focos de infeccao!
II
NOITE FECHADA
Toca-se as grades, nas cadeias. Som Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estao velhinhas e creancas, Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!
E eu desconfio, ate, de um aneurisma Tao morbido me sinto, ao accender das luzes;
A vista das prisoes, da velha se, das cruzes, Chora-me o coracao que se enche e que se abysma.
A espacos, illuminam-se os andares, E as tascas, os cafes, as tendas, os estancos Alastram em lencol os seus reflexos brancos;
E a lua lembra o circo e os jogos malabares.
Duas egrejas, n'um saudoso largo, Lancam a nodoa negra e funebre do clero:
N'ellas esfumo um ermo inquisidor severo, Assim que pela Historia eu me aventuro e alargo.
Na parte que abateu no terremoto, Muram-se as construccoes rectas, eguaes, crescidas;
Affrontam-me, no resto, as ingremes subidas, E os sinos d'um tanger monastico e devoto.
Mas, n'um recinto publico e vulgar, Com bancos de namoro e exiguas pimenteiras, Bronzeo, monumental, de proporcoes guerreiras, Um epico d'outr'ora ascende, n'um pilar!
E eu sonho o Colera, imagina a Febre, N'esta accumulacao de corpos enfezados;
Sombrios e espectraes recolhem os soldados;
Inflamma-se um palacio em face de um casebre.
Partem patrulhas de cavallaria Dos arcos dos quarteis que foram ja conventos;
Edade-media! A pe, outras, a passos lentos, Derramam-se por toda a capital, que esfria.
Triste cidade! Eu temo que me avives Uma paixao defunta! Aos lampeoes distantes, Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes, Curvadas a sorrir as montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as floristas Descem dos magasins, causam-me sobresaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescocos altos E muitas d'ellas sao comparsas ou coristas.
E eu, de luneta de uma lente so, Eu acho sempre assumpto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; as mesas de emigrados, Ao riso e a crua luz joga-se o domino.
III
AO GAZ
E saio. A noite peza, esmaga. Nos Passeios de lagedo arrastam-se as impuras.
O molles hospitaes! Sae das embocaduras Um sopro que arripia os hombros quasi nus.
Cercam-me as lojas, tepidas. Eu penso Ver cirios lateraes, ver filas de capellas, Com santos e fieis, andores, ramos, velas, Em uma cathedral de um comprimento immenso.
As burguezinhas do Catholocismo Resvalam pelo chao minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos, As freiras que os jejuns matavam de hysterismo.
N'um cutileiro, de avental, ao torno, Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exhala-se, inda quente, Um cheiro salutar e honesto a pao no forno.
E eu que medito um livro que exarcebe, Quizera que o real e a analyse m'o dessem;
Casas de confeccoes e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.
Longas descidas! Nao poder pintar Com versos magistraes, salubres e sinceros, A esguia diffusao dos vossos reverberos, E a vossa pallidez romantica e lunar!
Que grande cobra, a lubrica pessoa, Que espartilhada escolhe uns chales com debuxo!
Sua excellencia attrae, magnetica, entre luxo, Que ao longo dos balcoes de mogno se amontoa.
E aquella velha, de bandos! Por vezes, A sua traine imita um leque antigo, aberto, Nas barras verticaes, a duas tintas. Perto, Escarvam, a victoria, os seus mecklemburguezes.
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentaes seccam nos mostradores;
Flocos de pos de arroz pairam suffocadores, E em nuvems de setins requebram-se os caixeiros, Mas tudo canca! Apagam-se nas frentes Os candelabros, como estrellas, pouco a pouco;
Da solidao regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoleos as armacoes fulgentes.
"Do da miseria!... Compaixao de mim!..."
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso, Pede-me sempre esmola um homemzinho idoso, Meu velho professor nas aulas de latim!
IV
HORAS MORTAS
O tecto fundo de oxygenio, d'ar, Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vem lagrimas de luz dos astros com olheiras, Enleva-me a chimera azul de transmigrar.
Por baixo, que portoes! Que arruamentos!
Um parafuso cae nas lages, as escuras:
Collocam-se taipaes, rangem as fechaduras, E os olhos d'um caleche espantam-me, sangrentos.
E eu sigo, como as linhas de uma pauta A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silencio, infaustas e trinadas, As notas pastoris de uma longiqua flauta.
Se eu nao morresse, nunca! E eternamente Buscasse e conseguisse a perfeicao das cousas!
Esqueco-me a prever castissimas esposas, Que aninhem em mansoes de vidro transparente!
O nossos filhos! Que de sonhos ageis, Pousando, vos trarao a nitidez as vidas!
Eu quero as vossas maes e irmas estremecidas, N'umas habitacoes translucidas e frageis.
Ah! Como a raca ruiva do porvir, E as frotas dos avos, e os nomadas ardentes, Nos vamos explorar todos os continentes E pelas vastidoes aquaticas seguir!
Mas se vivemos, os emparedados, Sem arvores, no valle escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas E os gritos de soccorro ouvir estrangulados.
E n'estes nebulosos corredores Nauseam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas, Cantam, de braco dado, uns tristes bebedores.
Eu nao receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distancia, os dubios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, osseos, febris, errantes, Amarelladamente, os caes parecem lobos.
E os guardas, que revistam as escadas, Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as immoraes, nos seus roupoes ligeiros, Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E, enorme, n'esta massa irregular De predios sepulchraes, com dimensoes de montes, A Dor humana busca os amplos horisontes, E tem mares, de fel, como um sinistro mar!
DE TARDE
N'aquelle "pic-nic" de burguezas, Houve uma cousa simplesmente bella, E que, sem ter historia nem grandezas, Em todo o caso dava uma aguarella.
Foi quando tu, descendo do burrico, Foste colher, sem imposturas tolas, A um granzoal azul de grao de bico Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima d'uns penhascos, Nos acampamos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melao, damascos, E pao de lo molhado em malvasia.
Mas, todo purpuro a sahir da renda Dos teus dois seios como duas rolas, Era o supremo encanto da merenda O ramalhete rubro das papoulas!
EM PETIZ
I
DE TARDE
Mais morta do que viva, a minha companheira Nem forca teve em si para soltar um grito;
E eu, n'esse tempo, um destro e bravo rapazito, Como um homemzarrao servi-lhe de barreira!
Em meio de arvoredo, azenhas e ruinas, Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;
E, tetas a abanar, as maes de largas ancas, Desciam mais atraz, malhadas e turinas.
Do seio do logar--casitas com postigos--
Vem-nos o leite. Mas baptisam-n'o primeiro.
Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro, Cujo pregao vos tira ao vosso somno, amigos!
Nos davamos, os dois, um giro pelo valle:
Varzeas, povoacoes, pegos, silencios vastos!
E os fartos animaes, ao recolher dos pastos, Rocavam pelo teu "costume de percale".
Ja nao receias tu essa vaquita preta, Que eu segurei, prendi por um chavelhoe? Juro Que estavas a tremer, cosida com o muro, Hombros em pe, medrosa, e fina, de luneta!
II
OS IRMAOSINHOS
Pois eu, que no deserto dos caminhos, Por ti me expunha immenso, contra as vaccas;
Eu, que apartava as mansas das velhacas, Fugia com terror dos pobresinhos!
Vejo-os no pateo, ainda! Ainda os ouco!
Os velhos, que nos rezam padre-nossos;
Os mandrioes que rosnam, altos, grossos;
E os cegos que se apoiam sobre o moco.
Ah! Os ceguinhos com a cor dos barros, Ou que a poeira no suor mascarra, Chegam das feiras a tocar guitarra, Rolam os olhos como dois escarros!
E os pobres mettem medo! Os de marmita, Para forrar, por anno, alguns patacos, Entrapam-se nas mantas com buracos, Choramingando, a voz rachada, afflicta.
Outros pedincham pelas cinco chagas;
E no poial, tirando as ligaduras, Mostram as pernas putridas, maduras, Com que se arrastam pelas azinhagas!
Querem viver! E picam-se nos cardos;
Correm as villas; sobem os outeiros;
E as horas de calor, nos esterqueiros, De roda d'elles zumbem os moscardos.
Aos sabbados, os monstros, que eu lamento, Batiam ao portao com seus cajados;
E um aleijado com os pes quadrados, Pedia-nos de cima de um jumento.
O resmungao! Que barbas! Que saccolas!
Cheirava a migas, a bafio, a arrotos;
Dormia as noutes por telheiros rotos, E sustentava o burro a pao d'esmolas.
* * * * *
O minha loura e doce como um bolo!
Affavel hospeda na nossa casa, Logo que a torrida cidade abraza, Como um enorme forno de tijolo!
Tu visitavas, esmoler, garrida, Umas creancas n'um casal queimado;
E eu, pela estrada, espicacava o gado, N'uma attitude esperta e decidida.
Por lobishomens, por papoes, por bruxas, Nunca soffremos o menor receio.
Temieis vos, porem, o meu aceio, Mendigasitas sordidas, gorduchas!
Vicios, sezoes, epidemias, furtos, De certo, fermentavam entre lixos;
Que podridao cobria aquelles bichos!
E que luar nos teus fatinhos curtos!
* * * * *
Sei de uma pobre, apenas, sem desleixos, Ruca, descalca, a trote nos atalhos, E que lavava o corpo e os seus retalhos No rio, ao pe dos choupos e dos freixos.
E a douda a quem chamavam a "Ratada"
E que fallava so! Que antipathia!
E se com ella a malta contendia, Quanta indecencia! Quanta palavrada!
Uns operarios, n'estes descampados, Tambem surdiam, de chapeu de coco, Dizendo-se, de olhar rebelde e louco, Artistas despedidos, desgracados.
Muitos! E um bebedo--o Camoes--que fora Rico, e morreu a mendigar, zarolho, Com uma pala verde sobre um olho!
Tivera ovelhas, bois, mulher, lavoura.
E o resto? Bandos de selvagensinhos:
Um nu que se gabava de maroto;
Um, que cortada a mao, cocava o coto, E os bons que nos tratavam por padrinhos.
Pediam fatos, botas, cobertores!
Outro jogava bem o pau, e vinha Chorar, humilde, junto da coxinha!
"Cinco reisinhos!... Nobres bemfeitores!...
E quando alguns ficavam nos palheiros, E de manha catavam os piolhos:
Emquanto o sol batia nos restolhos E os nossos caes ladravam, resingueiros!
Hoje entristeco. Lembro-me dos coxos, Dos surdos, dos manhosos, dos manetas.
Sulcavam as calcadas, de muletas;
Cantavam, no pomar, os pintarroxos!
III
HISTORIAS
Scismatico, doente, azedo, apoquentado, Eu agourava o crime, as facas, a enxovia, Assim que um besuntao dos taes se apercebia Da minha blusa azul e branca, de riscado.
Minaveis, ao serao, a cabecita loira, Com contos de provincia, ingenuas creaditas:
Quadrilhas assaltando as quintas mais bonitas, E pondo a gente fina, em postas, de salmoira!
Na noite velha, a mim, como ticoes ardendo, Fitavam-me os olhoes pesados das ciganas;
Deitavam-n'os o fogo aos predios e arribanas;
Cercava-me um incendio ensanguentado, horrendo.
E eu que era um cavallao, eu que fazia pinos, Eu que jogava a pedra, eu que corria tanto;
Sonhava que os ladroes--homens de quem m'espanto Roubavam para azeite a carne dos meninos!
E protegia-te eu, n'aquelle outomno brando, Mal tu sentias, entre as serras esmoitadas, Gritos de maioraes, mugidos de boiadas, Branca de susto, meiga e miope, estacando!
NOS
A A. de S. V.
I
Foi quando em dois veroes, seguidamente, a Febre E o Cholera tambem andaram na cidade, Que esta populacao, com um terror de lebre, Fugiu da capital como da tempestade.
Ora, meu pae, depois das nossas vidas salvas, (Ate entao nos so tiveramos sarampo), Tanto nos viu crescer entre uns montoes de malvas Que elle ganhou por isso um grande amor ao campo.
Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso predio, os outros inquilinos Morreram todos. Nos salvamo-nos na fuga.
Na parte mercantil, foco da epidemia, Um panico! Nem um navio entrava a barra, A alfandega parou, nenhuma loja abria, E os turbolentos caes cessaram a algazarra.
Pela manha, em vez dos trens dos baptisados, Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessao dos armazens fechados!
Como um domingo inglez na "city", que desterro!
Sem canalisacao, em muitos burgos ermos, Seccavam dejeccoes cobertas de mosqueiros.
E os medicos, ao pe dos padres e coveiros, Os ultimos fieis, tremiam dos enfermos!
Uma illuminacao a azeite de purgueira, De noite amarellava os predios macillentos.
Barricas d'alcatrao ardiam; de maneira Que tinham tons d'inferno outros arruamentos.
Porem, la fora, a solta, exageradamente Emquanto acontecia essa calamidade, Toda a vegetacao, plethorica, potente, Ganhava immenso com a enorme mortandade!
N'um impeto de seiva os arvoredos fartos, N'uma opulenta furia as novidades todas, Como uma universal celebracao de bodas, Amaram-se! E depois houve soberbos partos.
Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa, Triste d'ouvir fallar em orphaos e em viuvas, E em permanencia olhando o horizonte em brasa, Nao quiz voltar senao depois das grandes chuvas.
Elle d'um lado, via os filhos achacados, Um livido flagello e uma molestia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezirias, prados, E um salutar refugio e um lucro na vivenda!
E o campo, desde entao, segundo o que me lembro, E todo o meu amor de todos estes annos!
Nos vamos para la; somos provincianos, Desde o calor de maio aos frios de novembro!
II
Que de fructa! E que fresca e tempora, Nas duas boas quintas bem muradas, Em que o sol, nos talhoes e nas latadas, Bate de chapa, logo de manha!
O laranjal de folhas negrejantes, (Porque os terrenos sao resvaladicos)
Desce em socalcos todos os macissos, Como uma escadaria de gigantes.
Das courellas, que criam cereaes, De que os donos--ainda!--pagam foros.
Dividem-n'o fechados pitosporos, Abrigos de raizes verticaes.
Ao meio, a casaria branca assenta A beira da calcada, que divide Os escuros pomares de pevide, Da vinha, n'uma encosta soalhenta!
Entretanto, nao ha maior prazer Do que, na placidez das duas horas, Ouvir e ver, entre o chiar das noras, No largo tanque as bicas a correr!
Muito ao fundo, entre olmeiros seculares, Secca o rio! Em trez mezes d'estiagem, O seu leito e um atalho de passagem, Pedregosissimo, entre dois logares.
Como lhe luzem seixos e burgaus Rolicos! Marinham nas ladeiras Os renques africanos das piteiras, Que como aloes espigam altos paus!
Montanhas inda mais longiquamente, Com restevas, e combros como bocas, Lembram cabecas estupendas, grossas, De cabello grisalho, muito rente.
E, a contrastar, nos valles, em geral, Como em vidraca d'uma enorme estufa, Tudo se attrae, se impoe, alarga e entufa, D'uma vitalidade equatorial!
Que de frugalidades nos criamos!
Que torrao espontaneo que nos somos!
Pela outomnal maturacao dos pomos, Com a carga, no chao pousam os ramos.
E assim postas, nos barros e areiaes, As maceiras vergadas fortemente, Parecem, d'uma fauna surprehendente, Os polypos enormes, diluviaes.
Comtudo, nos nao temos na fazenda Nem uma planta so de mero ornato!
Cada pe mostra-se util, e sensato, Por mais finos aromas que rescenda!
Finalmente, na fertil depressao, Nada se ve que a nossa mao nao regre:
A florescencias d'um matiz alegre Mostra um sinal--a fructificacao!
* * * * *
Ora, ha dez annos, n'este chao de lava E argila e areia e alluvioes dispersas, Entre especies botanicas diversas, Forte, a nossa familia radiava!
Unicamente, a minha doce irma, Como uma tenue e immaculada rosa, Dava a nota galante e melindrosa Na trabalheira rustica, aldea.
E foi n'um anno prodigo, excellente, Cuja amargura nada sei que adoce, Que nos perdemos essa flor precoce, Que cresceu e morreu rapidamente!
Ai d'aquelles que nascem n'este cahos, E, sendo fracos, sejam generosos!
As doencas assaltam os bondosos E--custa a crer--deixam viver os maus!
* * * * *
Fecho os olhos cancados, e descrevo Das telas da memoria retocadas, Biscates, hortas, batataes, latadas, No paiz montanhoso, com relevo!
Ah! Que aspectos benignos e ruraes N'esta localidade tudo tinha, Ao ires, com o banco de palhinha, Para a sombra que faz nos parreiraes!
Ah! Quando a calma, a sesta, nem consente Que uma folha se mova ou se desmanche, Tu, refeita e feliz com o teu "lunch", Nos ajudavas, voluntariamente!...
Era admiravel--n'este grau do Sul!--
Entre a rama avistar o teu rosto alvo, Ver-te escolhendo a uva diagalvo, Que eu embarcava para Liverpool.
A exportacao de frutas era um jogo:
Dependiam da sorte do mercado O boal, que e de perolas formado, E o ferral, que e ardente e cor de fogo!
Em agosto, ao calor canicular, Os passaros e enxames tudo infestam;
Tu cortavas os bagos que nao prestam Com a tua thesoura de bordar.
Douradas, pequeninas, as abelhas, E negros, volumosos, os besoiros, Circumdavam, com impetos de toiros, As tuas candidissimas orelhas.
Se uma vespa lancava o seu ferrao Na tua cutis--petala de leite!--
Nos collocavamos dez reis e azeite Sobre a galante, a rosea inflammacao!
E se um de nos, ja farto, arrenegado, Com o chapeo cacava a bicharia, Cada zangao voando, a luz do dia, Lembrava o teu dedal arremessado.
* * * * *
Que d'encantos! Na forca do calor Desabrochavas no padrao da bata, E, surgindo da gola e da gravata, Teu pescoco era o caule d'uma flor!
Mas que cegueira a minha! Do teu porte A fina curva, a indefinida linha, Com bondades d'herbivora mansinha, Eram prenuncios de fraqueza e morte!
A procura da libra e do "schilling", Eu andava abstracto e sem que visse Que o teu alvor romantico de "miss"
Te obrigava a morrer antes de mim!
E antes tu, ser lindissimo, nas faces Tivesses "panno" como as camponezas;
E sem brancuras, sem delicadezas, Vigorosa e plebeia, inda durasses!
Uns modos de carnivora feroz Podias ter em vez de inoffensivos;
Tinhas caninos, tinhas incisivos, E podias ser rude como nos!
Pois n'este sitio, que era de sequeiro, Todo o genero ardente resistia, E, a larguissima luz do Meio-dia, Tomava um tom opalico e trigueiro!
* * * * *
Sim! Europa do Norte, o que suppoes Dos vergeis que abastecem teus banquetes, Quando as dockas, com fructas, os paquetes Chegam antes das tuas estacoes?!
Oh! As ricas "primeurs" da nossa terra E as tuas frutas acidas, tardias, No azedo amoniacal das queijarias Dos fleugmaticos "farmers" d'Inglaterra!
O cidades fabris, industriaes, De nevoeiros, poeiradas de hulha, Que pensaes do paiz que vos atulha Com a fructa que sae dos seus quintaes?
Todos os annos, que frescor se exhala!
Abundancias felizes que eu recordo!
Carradas brutas que iam para bordo!
Vapores por aqui fazendo escala!
Uma alta parreira muscatel Por doce nao servia para embarque:
Palacios que rodeiam Hyde-Park, Nao conheceis esse divino mel!
Pois a Coroa, o Banco, o Almirantado, Nao as tem nas florestas em que ha corcas, Nem em vos que dobraes as vossas forcas, Pradarias d'um verde illimitado!
Anglos-Saxonios, tendes que invejar!
Ricos suicidas, comparae comvosco!
Aqui tudo espontaneo, alegre, tosco, Facilimo, evidente, salutar!
Opponde as regioes que dao os vinhos Vossos montes d'escorias inda quentes!
E as febris officinas estridentes As nossas tecelagens e moinhos!
E o condados mineiros! Extensoes Carboniferas! Fundas galerias!
Fabricas a vapor! Cutelarias!
E mechanicas, tristes fiacoes!
Bem sei que preparaes correctamente O aco e a seda, as laminas e o estofo;
Tudo o que ha de mais ductil, de mais fofo, Tudo o que ha de mais rijo e resistente!
Mas isso tudo e falso, e machinal, Sem vida, como um circulo ou um quadrado, Com essa perfeicao do fabricado, Sem o rythmo do vivo e do real!
E ca o santo sol, sobre isso tudo, Faz conceber as verdes ribanceiras;
Lanca as rosaceas bellas e fructeiras Nas searas de trigo palhagudo!
Uma aldeia d'aqui e mais feliz, Londres sombria, em que scintilla a corte!...
Mesmo que tu, que vives a compor-te, Grande seio arquejante de Paris!...
Ah! Que de gloria, que de colorido, quando, por meu mandado e meu conselho, Ca se empapelam "as macas d'espelho"
Que Herbert Spencer talvez tenha comido!
Para alguns sao prosaicos, sao banaes Estes versos de fibra succolenta;
Como se a polpa que nos dessedenta Nem ao menos valesse uns madrigaes!
Pois o que a bocca trava com surprezas Senao as frutas tonicas e puras!
Ah! N'um jantar de carnes e gorduras A graca vegetal das sobremesas!...
Jack, marujo inglez, tu tens razao Quando, ancorando em portos como os nossos, As laranjas com cascas e carocos Comes com bestial soffreguidao!...
* * * * *
A impressao d'outros tempos, sempre viva, Da estremecoes no meu passado morto, E inda viajo, muita vez, absorto, Pelas varzeas da minha retentiva.
Entao recordo a paz familiar, Todo um painel pacifico d'enganos!
E a distancia fatal d'uns poucos annos E uma lente convexa, d'augmentar.
Todos os typos mortos resuscito!
Perpetuam-se assim alguns minutos!
E eu exagero os casos diminutos Dentro d'um veo de lagrimas bemdito.
Pinto quadros por lettras, por signaes, Tao luminosos como os do Levante, Nas horas em que a calma e mais queimante, Na quadra em que o verao aperta mais.
Como destacam, vivas, certas cores, Na vida externa cheia d'alegrias!
Horas, vozes, locaes, physionomias, As ferramentas, os trabalhadores!
Aspiro um cheiro a cosedura, e a lar E a rama do pinheiro! Eu adivinho O resinoso, o tao agreste pinho Serrado nos pinhaes da beira mar.
Vinha cortada, aos feixes, a madeira, Cheia de nos, d'imperfeicoes, de rachas;
Depois armavam-se, n'um prompto as caixas Sob uma calma espessa e calaceira!
Feias e fortes! Punham-lhes papel, A forral-as. E em grossa serradura Acamava-se a uva prematura Que nao deve servir para tonel!
Cingiam-n'as com arcos de castanho Nas ribeiras cortados, nos riachos;
E eram d'assucar e calor os cachos, Criados pelo esterco e pelo amanho!
O pobre estrume, como tu compoes Estes pampanos doces como afagos!
"Dedos de dama": transparentes bagos!
"Tetas de cabra": lacteas carnacoes!
E nao eram caixitas bem dispostas Como as passas de Malaga e Alicante;
Com sua forma estavel, ignorante, Estas pesavam, brutalmente, as costas!
Nos vinhatorios via fulgurar, Com tanta cal que torna as vistas cegas, Os parallelogramos das adegas, Que tem la dentro as dornas e o lagar!
Que rudeza! Ao ar livre dos estios.
Que grande azafama! Apressadamente Como soava um martellar frequente, Vespera da saida dos navios!
Ah! Ninguem entender que ao meu olhar Tudo tem certo espirito secreto!
Com folhas de saudades um objecto Deita raizes duras de arrancar!
As navalhas de volta, por exemplo, Cujo bico de passaro se arqueia, Forjadas no casebre d'uma aldeia, Sao antigas amigas que eu contemplo!
Ellas, em seu labor, em seu lidar, Com sua ponta como a da podoas, Serviam probas, uteis, dignas, boas, Nunca tintas de sangue e de matar.
E as enxos de martello, que d'um lado Cortavam mais do que as enxadas cavam, Por outro lado, rapidas, pregavam, D'uma pancada, o prego fasquiado!
O meu animo verga na abstraccao, Com a espinha dorsal dobrada ao meio;
Mas se de materiaes descubro um veio Ganho a musculatura d'um Sansao!
E assim--e mais no povo a vida e corna--
Amo os officios como o de ferreiro, Com seu folle arquejante, seu brazeiro, Seu malho retumbante na bigorna!
E sinto, se me ponho a recordar Tanto utensilio, tantas perspectivas, As tradicoes antigas, primitivas, E a formidavel alma popular!
Oh! Que brava alegria eu tenho quando Sou tal qual como os mais! E, sem talento, Faco um trabalho technico, violento, Cantando, praguejando, batalhando!
* * * * *
Os fruteiros, tostados pelos soes, Tinham passado, muita vez, a raia, E, espertos, entre os mais da sua laia, --Pobres camponios--eram uns heroes.
E por isso, com phrases imprevistas, E colorido e estylo e valentia, As "haciendas" que ha na "Andalucia"
Pintavam como novos paysagistas.
De como, as calmas, n'essas excursoes, Tinham aguas salobras por refrescos;
E amarellos, enormes, gigantescos, La batiam o queixo com sesoes!
Tinham corrido ja na adusta Hespanha, Todo um fertil plato sem arvoredos, Onde armavam barracas nos vinhedos, Como tendas alegres de campanha.
Que pragas castelhanas, que alegrao, Quanto contavam scenas de pousadas!
Adoravam as cintas encarnadas E as cores, como os pretos do sertao!
E tinham, sem que a lei a tal obrigue, A educacao vistosa das viagens!
Uns por terra partiam e estalagens, Outros, aos montes, no convez d'um brigue!
So um havia, triste e sem fallar Que arrastava a maior misantropia, E, roxo como um figado, bebia O vinho tinto que eu mandava dar!
Pobre da minha geracao exangue De ricos! Antes, como os abrutados, Andar com uns sapatos encebados, E ter riqueza chimica no sangue!
* * * * *
Mas hoje a rustica lavoura, quer Seja o patrao, quer seja o jornaleiro, Que inferno! Em vao o lavrador rasteiro E a filharada lidam, e a mulher!...
Desde o principio ao fim e uma macada De mil demonios! Torna-se preciso Ter-se muito vigor, muito juizo Para trazer a vida equilibrada!
Hoje eu sei quanto custam a criar As cepas, desde que eu as podo e empo.
Ah! O campo nao e um passatempo Com bucolismos, rouxinoes, luar.
A nos tudo nos rouba e nos dizima:
O rapazio, o imposto, as pardaladas, As osgas peconhentas, achatadas, E as abelhas que engordam na vindima.
E o pulgao, a lagarta, os caracoes, E ha inda, alem do mais com que se ateima, As intemperies, o granizo, a queima, E a concorrencia com os hespanhoes.
Na vendas, os vinhateiros d'Almeria Competem contra os nossos fazendeiros.
Dao frutas aos leiloes dos estrangeiros, Por uma cotacao que nos desvia!
Pois tantos contras, rudes como sao, Forte e teimoso, o camponez destroe-os!
Venham de la pesados os comboyos E os "buques" estivados no porao!
Nao, nao e justo que eu a culpa lance Sobre estes nadas! Puras bagatellas!
Nos nao vivemos so de coisas bellas, Nem tudo corre como n'um romance!
Para a Terra parir hade ter dor, E e para obter as asperas verdades, Que os agronomos cursam nas cidades, E, a sua custa, aprende o lavrador.
Ah! Nao eram insectos nem as aves Que nos dariam dias tao difficeis, Se vos, sabios, na gente descobrisseis Como se curam as doencas graves.
Nao valem nada a cava, a enxofra, e o mais!
Difficultoso trato das cearas!
Lutas constantes sobre as jornas caras!
Compras de bois nas feiras annuaes!
O que a alegria em nos destroe e mata, Nao e rede arrastante d'escalracho, Nem e "suao" queimante como um facho, Nem invasoes bulhosas d'herva pata.
Podia ter seccado o poco em que eu Me debrucava e te pregava sustos, E mais as hervas, arvores e arbustos Que--tanta vez!--a tua mao colheu.
"Molestia negra" nem "charbon" nao era, Como um archote incendiando as parras!
Tao pouco as bastas e invisiveis garras, Da enorme legiao do phylloxera!
Podiam mesmo, com o que contem, Os muros ter caido as invernias!
Somos fortes! As nossas energias Tudo vencem e domam muito bem!
Que os rios, sim, que como touros mugem, Transbordando atulhassem as regueiras!
Chorassem de resina as larangeiras!
Ennegrecessem outras com ferrugem!
As turvas cheias de novembro, em vez Do nateiro subtil que fertilisa, Fossem a inundacao que tudo pisa, No rebanho afogassem muita rez!
Ah! N'esse caso pouco se perdera, Pois isso tudo era um pequeno damno, A vista do cruel destino humano Que os dedos te fazia como cera!
Era essa tysica em terceiro grau, Que nos enchia a todos de cuidado, Te curvava e te dava um ar alado Como quem vae voar d'um mundo mau.
Era a desolacao que inda nos mina (Porque o fastio e bem peior que a fome)
Que a meu pai deu a curva que a consome, E a minha mae cabellos de platina.
Era a chlorose, esse tremendo mal, Que desertou e que tornou funesta A nossa branca habitacao em festa Reverberando a luz meridional.
Nao desejemos,--nos os sem defeitos,--
Que os tysicos perecam! Ma theoria, Se pelos meus o apuro principia, Se a Morte nos procura em nossos leitos!
A mim mesmo, que tenho a pretensao De ter saude, a mim que adoro a pompa Das forcas, pode ser que se me rompa Uma arteria, e me mine uma lesao.
Nos outros, teus irmaos, teus companheiros, Vamos abrindo um matagal de dores!
E somos rijos como os serradores!
E positivos como os engenheiros!
Porem, hostis, sobresaltados, sos, Os homens architectam mil projectos De victoria! E eu duvido que os meus netos Morram de velhos como os meus avos!
Porque, parece, ou fortes ou velhacos Serao apenas os sobreviventes;
E ha pessoas sinceras e clementes, E troncos grossos com seus ramos fracos!
E que fazer se a geracao decae!
Se a seiva genealogica se gasta!
Tudo empobrece! Extingue-se uma casta!
Morre o filho primeiro do que o pai!
Mas seja como for, tudo se sente Da tua ausencia! Ah! como o ar nos falta, O flor cortada, susceptivel, alta, Que assim seccaste prematuramente!
Eu que de vezes tenho o desprazer De reflectir no tumulo! E medito No eterno Incognoscivel infinito, Que as ideas nao podem abranger!
Como em paul em que nem cresca a junca Sei d'almas estagnadas! Nos absortos, Temos ainda o culto pelos Mortos, Esses ausentes que nao voltam nunca!
Nos ignoramos, sem religiao, Ao rasgarmos caminho, a fe perdida, Se te vemos ao fim d'esta avenida Ou essa horrivel aniquilacao!...
E o minha martyr, minha virgem, minha Infeliz e celeste creatura, Tu lembras-nos de longe a paz futura, No teu jazigo, como uma santinha!
E emquanto a mim, es tu que substitues Todo o mysterio, toda a santidade, Quando em busca do reino da verdade Eu ergo o meu olhar aos ceos azues!
III
Tinhamos nos voltado a capital maldicta, Eu vinha de polir isto tranquillamente, Quando nos seccedeu uma cruel desdita, Pois um de nos caiu, de subito, doente.
Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
Da-me rebate ainda o seu tossir profundo!
E eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas, Com que se despediu de todos e do mundo!
Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!
Nao sei d'um infortunio immenso como o seu!
Vio o seu fim chegar como um medonho muro, E, sem querer, afflicto e attonito, morreu!
De tal maneira que hoje, eu desgostoso e azedo Como tanta crueldade e tantas injusticas, Se inda trabalho e como os presos no degredo, Com planos de vinganca e ideas insubmissas.
E agora, de tal modo a minha vida e dura, Tenho momentos maus, tao tristes, tao perversos, Que sinto so desdem pela litteratura, E ate desprezo e esqueco os meus amados versos!
PROVINCIANAS
I
Ola! Bons dias! Em marco Que mocetona e que joven A terra! Que amor esparso Corre os trigos, que se movem As vagas d'um verde garco!
Como amanhece! Que meigas As horas antes de almoco!
Fartam-se as vaccas nas veigas E um pasto orvalhado e moco Produz as novas manteigas.
Toda a paizagem se doura;
Tibida ainda, que frecas!
Bella mulher, sim senhora, N'esta manha pittoresca, Primaveral, creadora!
Bom sol! As sebes d'encosto Dao madresilvas cheirosas Que entotecem como um mosto Floridas, as espinhosas Subio-lhes o sangue ao rosto.
Cresce o relevo dos montes, Como seios offegantes;
Murmuram como umas fontes Os rios que dias antes Bramiam galgando pontes.
E os campos, milhas e milhas, Com povos d'espaco a espaco, Fazem-se as mil maravilhas;
Dir-se-ia o mar de sargaco Glauco, ondulante, com ilhas!
Pois bem. O inverno deixou-nos.
E certo. E os graos e as sementes Que ficam d'outros outonos Acordam hoje frementes Depois d'uns poucos de somnos.
Mas nem tudo sao descantes Por esses longos caminhos Entre favaes palpitantes Ha solos bravos, maninhos, Que expulsam seus habitantes!
E n'esta quadra d'amores Que emigram os jornaleiros Ganhoes e trabalhadores!
Passam clans de forasteiros Nas terras de lavradores.
Tal como existem mercados Ou feiras, semanalmente Para comprarmos os gados Assim ha pracas de gente Pelos domingos calados!
Emquanto a ovelha arredonda, Vao tribus de sete filhos, Por varzeas que fazem onda, Para as derregas dos milhos E molhadellas da monda.
De roda pulam borregos;
Enchem entao as cardosas As mocas d'esses labregos Com altas botas bartrosas De se atirarem aos regos!
Eil-as que vem as manadas Com caras de soffrimento, Nas grandes marchas forcadas!
Vem ao trabalho, ao sustento, Com fouces, sachos, enchadas!
Ai o palheiro das servas Se o feitor lhe tira as chaves!
Ellas chegam as catervas, Quando acasalam as aves E se fecundam as hervas!...
II
Ao meio dia na cama, Branca fidalga o que julga Das pequenas da su'ama?!
Vivem minadas da pulga Negras do tempo e da lama.
Nao e caso que a commova Ver suas irmans de leite, Quer faca frio, quer chova, Sem uma mama que as deite Na tepidez d'um alcova?!
Nota: Incompleta esta poesia. Foram os ultimos versos do poeta.
NOTAS
Cesario Verde (Jose Joaquim Cesario Verde) nasceu em Lisboa, freguesia da Magdalena, em 25 de fevereiro de 1855 e falleceu no Paco do Lumiar em 19 de julho de 1886. Era filho do sr. Jose Anastacio Verde, negociante, e da sr. D. Maria da Piedade dos Santos Verde.
* * * * *
A estreia do poeta nos dominios da publicidade data de 1873. Foi o auctor d'estas notas e editor d'este livro quem fez publicar no Diario da Tarde do Porto, em folhetim, os primeiros versos de Cesario Verde, precedendo-os de uma carta de apresentacao a Manoel d'Arriaga.
Esses versos nao se reproduzem no livro de Cesario Verde, porque o poeta os considerou muito inferiores aos que hoje se reproduzem.
Realmente o eram--pela hesitacao do neophyto.
* * * * *
Outros versos foram condemnados pelo auctor e a condemnacao foi hoje respeitada: entre elles citaremos a Satyra ao Diario Illustrado, as poesias Vaidosa, Subindo, Desastre, e algumas outras composicoes de menos folego.
* * * * *
No Prefacio registra-se a promessa de um estudo critico sobre a Obra de Cesario Verde. Essa obra, dispersa nas columnas do Diario da tarde, do Porto, da Renascenca, da Revista de Coimbra, da Tribuna, da Illustracao, etc., nao sera discutida pelo auctor d'estas linhas.
Nao e hoje discutida, nem o sera jamais. Sobeja-lhe, ao auctor da promessa, em enternecimento e amargura quanto lhe falta em serenidade;
--ficam auctorizados a dizer: quanto lhe falta em competencia.
Tambem se registrou algures a promessa de um ajuste de contas com os insultadores do poeta. Inutil:--nenhum d'elles sobreviveu aos insultos.
* * * * *
Os 200 exemplares d'este livro serao distribuidos pelos parentes, pelos amigos e pelos admiradores provados do illustre poeta, bem como por Bibliothecas do paiz e do estrangeiro. A lista de distribuicao sera publicada. As reclamacoes justificadas serao attendidas.
1887.
S. P.



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