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Textos para uso geral de domínio público.

O Humor e a Ironia em Bernardo de Guimarães

À SAIA BALÃO
Balão, balão, balão! cúpula errante, Atrevido cometa de ampla roda, Que invades triunfante Os horizontes frívolos da moda;
Tenho afinado já para cantar-te Meu rude rabecão;
Vou teu nome espalhar por toda parte, Balão, balão, balão!
E para que não vá tua memória Do esquecimento ao pélago sinistro, Teu nome hoje registro Da poesia nos galantes fastos, E para receber teu nome e glória, Do porvir te franqueio os campos vastos.
Em torno ao cinto de gentil beldade Desdobrando o teu âmbito estupendo, As ruas da cidade Co’a longa cauda ao longe vais varrendo;
E nessas vastas roçagantes pregas De teu túmido bojo, Nesse ardor de conquistas em que ofegas, O que encontras, levando vais de rojo, Qual máquina de guerra, Que inda os mais fortes corações aterra.
Quantas vezes rendido e fulminado Um pobre coração, Não vai por essas ruas arrastado Na cauda de um balão.
Mal despontas, a turba numerosa À direita e à esquerda, De tempo sem mais perda Amplo caminho te abre respeitosa;
E com esses requebros sedutores Com que saracoteias, A chama dos amores Em mais de um coração a furto ateias.
Sexo lindo e gentil, — foco de enigmas! — Quanto és ambicioso, Que o círculo espaçoso De teus domínios inda em pouco estimas;
Queres mostrar a força onipotente De teu mimoso braço;
De render corações já não contente, Inda pretendes conquistar o espaço!...
Outrora já c’os atrevidos pentes E as toucas alterosas, As regiões buscavas eminentes, Onde giram as nuvens tormentosas;
Como para vingar-te da natura, Que assim te fez pequena de estatura.
Mudaste enfim de norte, E aumentando o diâmetro pretendes Avantajar-te agora de outra sorte Na cauda do balão, que tanto estendes.
Queres em torno espaço, Té onde possas desdobrar teu braço.
Assim com tuas artes engenhosas Sem medo de estourar tu vais inchando, E os reinos teus co’as vestes volumosas Ao longe sem limites dilatando, Conquistas na largura O que não podes conseguir na altura.
Mas ah! por que o meneio gracioso De teu airoso porte Sepultas por tal sorte Nesse mundo de saias portentoso?
Por que razão cuidados mil não poupas Pra ver tua beleza tão prezada Sumir-se-te afogada Nesse pesado pélago de roupas?
Sim, de que serve ver as crespas ondas De túrgido balão A rugirem bojudas e redondas Movendo-se em contínua oscilação;
— Vasto sepulcro, onde a beleza cega Seus encantos sepulta sem piedade, — Empavezada nau, em que navega A todo pano a feminil vaidade? — De que serve enfeitar da vasta roda Os estufados flancos ilusórios Com esses infinitos acessórios, Que vai criando a inesgotável moda, De babados, de gregas, fitas, rendas, De franjas, de vidrilhos, E outros mil badulaques e fazendas, Que os olhos enchem de importunos brilhos.
Se no seio de tão tofuda mouta Mal se pode saber que ente se acouta?!
De uma palmeira à graciosa imagem, Que flácida se arqueia Ao sopro d’aura, quando lhe meneia A trêmula ramagem, Comparam os poetas As virgens de seus sonhos mais diletas.
Mas hoje onde achar pode a poesia Imagem, que as bem pinte e as enobreça, Depois que deu-lhes singular mania De atufarem-se em roupa tão espessa;
Se eram antes esbeltas qual palmeiras, Hoje podem chamar-se — gameleiras.
Também o cisne, que garboso fende De manso lago as ondas azuladas, E o níveo colo estende Por sobre as águas dele enamoradas, Dos poetas na vívida linguagem De uma bela retrata a pura imagem.
Mas hoje a moça, que se traja à moda, Só se pode chamar peru de roda.
Quais entre densas nuvens conglobadas Em hórrido bulcão Vão perder-se as estrelas afogadas Em funda escuridão, Tal da beleza a sedutora imagem Some-se envolta em túmida roupagem.
Balão, balão, balão! — fatal presente, Com que brindou das belas a inconstância A caprichosa moda impertinente, Sepulcro da elegância, Tirano do bom gosto, horror das graças, Render-te os cultos meus não posso, não; Roam-te sem cessar ratos e traças, Balão, balão, balão.
***
Ó tu, que eu amaria, se na vida De amor feliz restasse-me esperança, E cuja linda imagem tão querida Eu trago de contínuo na lembrança, Tu, que no rosto e no ademã singelo Das filhas de Helen és vivo modelo;
Nunca escondas teu gesto peregrino, E da estreita cintura o airoso talhe, E as graças desse teu porte divino, Nesse amplo detalhe De roupas, que destroem-te a beleza Dos dons de que adornou-te a natureza.
De que serve entre véus, toucas e fitas, Ao peso dos vestidos varredores, De marabouts, de rendas e de flores Tuas formas trazer gemendo aflitas, A ti, que no teu rosto tão viçosas De tua primavera tens as rosas?...
Pudesse eu ver-te das belezas gregas, Quais as figuram mármores divinos, Na túnica gentil, não farta em pregas, Envolver teus contornos peregrinos;
E ver dessa figura, que me encanta, O altivo porte desdobrando a aragem De Diana, de Hero, ou de Atalanta A clássica roupagem!...
Em simples trança no alto da cabeça, As fúlgidas madeixas apanhadas;
E a veste pouco espessa Desenhando-te as formas delicadas, Ao sopro das aragens ondulando, Teus puros membros mórbida beijando.
E as nobres linhas do perfil correto De importunos ornatos destoucadas, Em toda a luz de seu formoso aspecto Fulgindo iluminadas Por sob a curva dessa fronte bela, Em que tanto esmerou-se a natureza;
E o braço nu, e a túnica singela Com broche de ouro aos alvos ombros presa Mas não o quer o mundo, onde hoje impera A moda soberana; —
Esquivar-se p’ra sempre, oh! quem pudera À sua lei tirana!...
Balão, balão, balão! — fatal presente, Com que brindou das belas a inconstância A caprichosa moda impertinente, Sepulcro da elegância, Tirano do bom gosto, horror das graças!...
Render-te os cultos meus não posso, não;
Roam-te sem cessar ratos e traças, Balão, balão, balão.
Rio de Janeiro, 18 de julho de 1859 À MODA
1878 Balão, balão, balão, perdão te imploro, Se outrora te maldisse, Se contra ti em verso mal sonoro Soltei muita sandice.
Tu sucumbiste, mas de tua tumba Ouço uma gargalhada, que retumba.
“Atrás de mim virá inda algum dia, Que bom me há de fazer!”
Tal foi o grito, que da campa fria Soltaste com satânico prazer.
Ouviu o inferno tua praga horrenda, E pior que o soneto veio a emenda.
Astro sinistro no momento extremo De teu ocaso triste, Do desespero no estertor supremo O bojo sacudiste, E surgiram de tua vasta roda Os burlescos vestidos hoje na moda. Moda piramidal, moda enfezada, Que donairoso porte Da moça a mais esbelta e bem talhada Enfeia por tal sorte, Que a torna semelhante a uma chouriça, Que em pé desajeitada se inteiriça.
***
Se vires pelas ruas aos saltinhos Mover-se um obelisco, Como quem vai pisando sobre espinhos, Com a cauda varrendo imenso cisco, Do espectro esguio a forma não te espante Não fujas, não, que ali vai uma elegante.
Mas se de face a moça assim se ostenta Esguia e empertigada, Sendo por um dos lados contemplada Diversa perspectiva se apresenta, E causa assombro ver sua garupa Que área imensa pelo espaço ocupa.
Formidável triângulo desenha-se Com base igual à altura, De cujo ângulo vértice despenha-se Catadupa, que atrás se dependura, De fofos e babados Com trezentos mil nós empantufados.
A linha vertical pura e correta Eleva-se na frente;
Atrás a curva, alinha do poeta Em fofos ondulando molemente Nos apresenta na suave escarpa A figura perfeita de uma harpa.
Pela esguia fachada nua e lisa, Qual maciço pilar, Se brincar co’a roupagem tenta a brisa, Não acha em que pegar;
E só o sopro de um tufão valente Pode abalar da cauda o peso ingente.
***
Onde vais, virgem cândida e formosa, Assim cambaleando?!...
Que zombeteira mão despiedosa O teu donoso porte torturando, Te amarrou a essa cauda, que carregas, Tão atufada de medonhas pregas?!...
Trazes-me à idéia a ovelha timorada, Que trêmula e ofegante Do tosqueador se esquiva à mão ingrata, E em marcha vacilante Vai arrastando a lã despedaçada Atrás em rotos velos pendurada.
Assim também a corça malfadada, Que às garras do jaguar À custo escapa toda lacerada, Co’as vísceras ao ar, De rojo pela senda das montanhas Pendentes leva as tépidas entranhas.
***
Onde estão os meneios graciosos De teu porte gentil?
O nobre andar, e os gestos majestosos De garbo senhoril?...
Abafados morreram nessa trouxa, Que assim te faz andar cambeta e couxa.i E a fronte, a bela fronte, espelho d’alma, Trono do pensamento, Que com viva expressão, turvada e calma, Traduz o sentimento, A fronte, em que realça-se a beleza De que pródiga ornou-te a natureza, Tua fronte onde está?... Teus lindos olhos Brilhar eu vejo apenas Na sombra por debaixo de uns abrolhos De aparadas melenas...
Ah! modista cruel, que por chacota Te pôs assim com cara de idiota.
Ouro Preto, agosto de 1877 AO CHARUTO
Ode Vem, ó meu bom charuto, amigo velho, Que tanto me regalas;
Que em cheirosa fumaça me envolvendo Entre ilusões me embalas.
Oh! que nem todos sabem quanto vale Uma fumaça tua!
Nela vai passear do bardo a mente Às regiões da lua.
E por lá embalado em rósea nuvem Vagueia pelo espaço, Onde amorosa fada entre sorrisos O toma em seu regaço;
E com beijos de requintado afeto A fronte lhe desruga, Ou com as tranças d’ouro mansamente As lágrimas lhe enxuga.
Ó bom charuto, que ilusões não geras!
Que tão suaves sonhos!
Como ao te ver atropelados correm Cuidados enfadonhos!
Quantas penas não vão por esses ares Com uma só fumaça!...
Quanto negro pesar, quantos ciúmes, E quanta dor não passa!
Tu és, charuto, o pai dos bons conselhos, O símbolo da paz;
Para em santa pachorra adormecer-nos Nada há mais eficaz.
Quando Anarda com seus caprichos loucos Me causa dissabores, Em duas baforadas mando embora O anjo e seus rigores.
*** Quanto lastimo os nossos bons maiores, Os Gregos e os Romanos, Por não te conhecerem, nem gozarem Teus dotes soberanos!
Quantos males talvez não pouparias À triste humanidade, Ó bom charuto, se te possuísse A velha antigüidade!
Um charuto na boca de Tarquínio Talvez lhe dissipara Esse ardor, que matou Lucrécia linda, Dos mimos seus avara.
Se o peralta do Páris já soubesse Puxar duas fumaças, Talvez com elas entregara aos ventos Helena e suas graças, E a régia esposa em paz com seu marido Dormindo ficaria;
E a Tróia antiga com seus altos muros Inda hoje existiria.
***
Quem dera ao velho Mário um bom cachimbo Que lhe abrandasse as sanhas, Para Roma salvar, das que sofrera, Catástrofes tamanhas!
Mesmo Catão, herói trombudo e fero, Talvez se não matasse, Se a raiva que aos tiranos consagrava, Fumando evaporasse.
***
Fumemos pois! — Ambrósio, traze fogo...
Puff!... oh! que fumaça!
Como me envolve todo entre perfumes, Qual véu de nívea cassa!
Vai-te, alma minha, embarca-te nas ondas Desse cheiroso fumo, Vai-te a peregrinar por essas nuvens, Sem bússola, nem rumo.
Vai despir no país dos devaneios Esse ar pesado e triste;
Depois, virás mais lépida e contente, Contar-me o que lá viste.
Ouro Preto, 1857 AO CIGARRO
Canção Cigarro, minhas delícias, Quem de ti não gostará?
Depois do café, ou chá, Há nada mais saboroso Que um cigarro de Campinas De fino fumo cheiroso?
Cigarro, quanto és ditoso!
Já reinas em todo mundo, E esse teu vapor jucundo Por toda parte esvoaça.
Até as moças bonitas Já te fumam por chalaça!...
Sim; — já por dedos de neve Posto entre lábios de rosa, Em gentil boca mimosa Tu te ostentas com vaidade.
Que sorte digna de inveja!
Que pura felicidade!
Anália, se de teus lábios Desprendes subtil fumaça, Ah! tu redobras de graça, Nem sabes que encantos tens.
À invenção do cigarro Tu deves dar parabéns.
Qual caçoula de rubim Exalando âmbar celeste, Tua boca se reveste Do mais primoroso chiste. A tão sedutoras graças Nenhum coração resiste.
Embora tenha o charuto Dos fidalgos a afeição, E do conde ou do barão Seja embora o favorito;
Mas o querido do povo Ës tu só, meu cigarrito.
Quem pode ver sem desgosto, Esse charuto tão grosso, Esse feio e negro troço Nos lábios da formosura?...
É uma profanação, Que o bom gosto não atura.
Mas um cigarrinho chique, Alvo, mimoso e faceiro, A um rostinho fagueiro Dá realce encantador.
É incenso que vapora Sobre os altares de amor.
O cachimbo oriental Também nos dá seus regalos;
Porém nos beiços faz calos, E nos faz a boca torta.
De tais canudos o peso Não sei como se suporta!...
Deixemos lá o grão-turco No tapete acocorado Com seu cachimbo danado Encher as barbas de sarro.
Quanto a nós, ó meus amigos, Fumemos nosso cigarro.
Cigarro, minhas delícias, Quem de ti não gostará?
Certo no mundo não há Quem negue tuas vantagens.
Todos às tuas virtudes Rendem cultos e homenagens.
És do bronco sertanejo Infalível companheiro; E ao cansado caminheiro Tu és no pouso o regalo;
Em sua rede deitado Tu sabes adormentá-lo.
Tu não fazes distinção, És do plebeu e do nobre, És do rico e és do pobre, És da roça e da cidade.
Em toda a extensão professas O direito de igualdade.
Vem pois, ó meu bom amigo, Cigarro, minhas delícias;
Nestas horas tão propícias Vem dar-me tuas fumaças.
Dá-mas em troco deste hino, Que fiz-te em ação de graças.
Rio de Janeiro, 1864 LEMBRANÇAS DO NOSSO AMOR
Qual berra a vaca do mar Dentro da casa do Fraga, Assim do defluxo a praga Em meu peito vem chiar.
É minha vida rufar, Ingrata, neste tambor!
Vê que contraste do horror:
Tu comendo marmelada, E eu cantando, aqui, na escada, Lembranças do nosso amor!
Se o sol desponta, eu me assento;
Se o sol se esconde, eu me deito;
Se a brisa passa, eu me ajeito, Porque não gosto de vento.
E, quando chega o momento De te pedir um favor, Alta noite, com fervor, Canto, nas cordas de embira De minha saudosa lira, Lembranças do nosso amor! Mulher, a lei do meu fado É o desejo em que vivo De comer um peixe esquivo, Inda que seja ensopado.
Sinto meu corpo esfregado E coberto de bolor...
Meu Deus! Como faz calor!
Ai! que me matam, querida, Saudades da Margarida, Lembranças da Leonor!
O anjo da morte já pousa Lá na estalagem do Meira, E lá passa a noite inteira Sobre o leito em que repousa.
Com um pedaço de lousa, Ele abafa toda a dor, E, por um grande favor, Manda ao diabo a saudade, E afoga, por amizade, Lembranças do nosso amor!
DEDICATÓRIAS
I
Já que por terras estranhas Acompanhar-vos não posso, Deste fraco amigo vosso Levai o fiel retrato.
Tem o nariz muito chato E a boca um pouco torta...
Mas isto bem pouco importa.
Para que ninguém o veja, Ponde-o a tomar cerveja Por detrás de alguma porta...
II
Amigo, não faças caso Deste retrato tão feio.
Ele é meu, e não alheio:
Eu sou um soldado raso;
Porém, se feio é o vaso, O conteúdo é bonito.
Eu sou um pobre proscrito, Que só, no meio da calma, Solto o brado de minha alma:
— Independência! — eis meu grito.
O NARIZ PERANTE OS POETAS
Cantem outros os olhos, os cabelos E mil cousas gentis Das belas suas: eu de minha amada Cantar quero o nariz.
Não sei que fado mísero e mesquinho É este do nariz, Que poeta nenhum em prosa ou verso Cantá-lo jamais quis.
Os dentes são pérolas, Os lábios rubis, As tranças lustrosas São laços sutis Que prendem, que enleiam Amante feliz;
É colo de garça A nívea cerviz;
Porém ninguém diz O que é o nariz.
(As faces são tintas De rosa e de liz, Ou já têm de jambo Mimoso matiz;
São cor de safira Os olhos gentis E a cor do nariz Ninguém vo-la diz.)ii Beija-se os cabelos, E os olhos belos, E a boca mimosa, E a face de rosa De fresco matiz;
E nem um só beijo Fica de sobejo P’ro pobre nariz;
Ai! pobre nariz, És bem infeliz!
Entretanto, — notai a sem-razão Do mundo, injusto e vão: —
Entretanto o nariz é do semblante O ponto culminante;
No meio das demais feições do rosto Erguido é o seu posto, Bem como um trono, e acima dessa gente Eleva-se eminente.
Trabalham sempre os olhos; mais ainda A boca, o queixo, os dentes;
E — míseros plebeus — vão exercendo Ofícios diferentes.
Mas o nariz, fidalgo de bom gosto, Desliza brandamente Vida voluptuosa entre as delícias De um doce far-niente.
Sultão feliz, em seu divã sentado A respirar perfumes, De bem-aventurado ócio gozando, Não tem inveja aos numes.
Para ele produz o rico Oriente O cedro, a mirra, o incenso;
Para ele meiga Flora de seus cofres Verte o tesouro imenso.
Amante fiel sua, a mansa aragem As asas meneando Anda p’ra ele nos vergéis vizinhos Aromas apanhando.
E tu, pobre nariz, sofres o injusto Silêncio dos poetas?
Sofres calado? não tocaste ainda Da paciência as metas?
Nariz, nariz, já é tempo De ecoar o teu queixume;
Pois, se não há poesia Que não tenha o seu perfume, Em que o poeta às mãos cheias Os aromas não arrume, Por que razão os poetas, Por que do nariz não falam, Do nariz, p’ra quem somente Esses perfumes se exalam?
Onde, pois, ingratos vates, Acharíeis as fragrâncias, Os balsâmicos odores, De que encheis vossas estâncias, Os eflúvios, os aromas Que nos versos espargis;
Onde acharíeis perfume, Se não houvesse nariz?
Ó vós, que ao nariz negais Os foros de fidalguia, Sabei, que se por um erro Não há nariz na poesia, É por seu fado infeliz, Mas não é porque não haja Poesia no nariz.
Atenção pois aos sons de minha lira, Vós todos, que me ouvis, De minha bem-amada em versos d’ouro Cantar quero o nariz.
O nariz de meu bem é como... oh! céus!...
É como o quê? por mais que lide e sue, Nem uma só asneira!...
Que esta musa está hoje uma toupeira.
Nem uma idéia Me sai do casco!...
Ó miserando, Triste fiasco!!
Se bem me lembra, a Bíblia em qualquer parte Certo nariz ao Líbano compara;iii Se tal era o nariz, De que tamanho não seria a cara?!...
E ai de mim! desgraçado, Se o meu doce bem-amado Vê seu nariz comparado A uma erguida montanha:
Com razão e sem tardança, Com rigores e esquivança, Tomará cruel vingança Por essa injúria tamanha.
Pois bem!... Vou arrojar-me pelo vago Dessas comparações que a trouxe-mouxe Do romantismo o gênio cá nos trouxe, Que p’ra todas as cousas vão servindo;
E à fantasia as rédeas sacudindo, Irei, bem como um cego, Nas ondas me atirar do vasto pego, Que as românticas musas desenvoltas Costumam navegar a velas soltas.
E assim como o coração, Sem ter corda, nem cravelha, Na linguagem dos poetas A uma harpa se assemelha;
Como as mãos de alva donzela Parecem cestos de rosas, E as roupas as mais espessas São em verso vaporosas;
E o corpo de esbelta virgem Tem feitio de coqueiro, E só com um beijo se quebra De tão franzino e ligeiro;
E como os olhos são flechas, Que os corações vão varando;
E outras vezes são flautas Que de noite vão cantando;
P’ra rematar tanta peta O nariz será trombeta...
Trombeta o meu nariz?!! (ouço-a bradando)
Pois meu nariz é trombeta?...
Oh! não mais, Sr. poeta, Com meu nariz s’intrometa.
Perdão por esta vez, perdão, senhora!
Eis nova inspiração me assalta agora, E em honra ao teu nariz Dos lábios me arrebenta em chafariz:
O teu nariz, doce amada, É um castelo de amor, Pelas mãos das próprias graças Fabricado com primor.
As suas ventas estreitas São como duas seteiras, Donde ele oculto dispara Agudas flechas certeiras.
Em que sítios te pus, amor, coitado!
Meu Deus, em que perigo?
Se a ninfa espirra, pelos ares saltas, E em terra dás contigo.
Estou já cansado, desisto da empresa, Em versos mimosos cantar-te bem quis;
Mas não o consente destino perverso, Que fez-te infeliz;
Está decidido, — não cabes em verso, Rebelde nariz.
E hoje tu deves Te dar por feliz Se estes versinhos Brincando te fiz.
Rio de Janeiro, 1858 MOTE ESTRAMBÓTICO
Mote Das costelas de Sansão Fez Ferrabrás um ponteiro, Só para coser um cueiro Do filho de Salomão. Glosa Gema embora a humanidade, Caiam coriscos e raios, Chovam chouriços e paios Das asas da tempestade, — Triunfa sempre a verdade, Com quatro tochas na mão.
O mesmo Napoleão, Empunhando um raio aceso, Suportar não pode o peso Das costelas de Sansão.
Nos tempos da Moura-Torta, Viu-se um sapo de espadim, Que perguntava em latim A casa da Môsca-Morta.
Andava, de porta em porta, Dizendo, muito lampeiro, Que, p’ra matar um carneiro, Em vez de pegar no mastro, Do nariz do Zoroastro Fez Ferrabrás um ponteiro.
Diz a folha de Marselha Que a imperatriz da Mourama, Ao levantar-se da cama, Tinha quebrado uma orelha, Ficando manca a parelha.
É isto mui corriqueiro Numa terra, onde o guerreiro, Se tem medo de patrulhas, Gasta trinta-mil agulhas, Só para coser um cueiro.
Quando Horácio foi à China Vender sardinhas de Nantes, Viu trezentos estudantes Reunidos numa tina.
Mas sua pior mofina, Que mais causou-lhe aflição, Foi ver de rojo no chão Noé virando cambotas E Moisés calçando as botas Do filho de Salomão. HINO À PREGUIÇA
... Viridi projectus in antro...
Virgilio Meiga Preguiça, velha amiga minha, Recebe-me em teus braços, E para o quente, conchegado leito Vem dirigir meus passos.
Ou, se te apraz, na rede sonolenta, À sombra do arvoredo, Vamos dormir ao som d’água, que jorra Do próximo rochedo.
Mas vamos perto; à orla solitária De algum bosque vizinho, Onde haja relva mole, e onde se chegue Sempre por bom caminho.
Aí, vendo cair uma por uma As folhas pelo chão, Pensaremos conosco: — são as horas, Que aos poucos lá se vão. —
Feita esta reflexão sublime e grave De sã filosofia, Em desleixada cisma deixaremos Vogar a fantasia, Até que ao doce e tépido mormaço Do brando sol do outono Em santa paz possamos quietamente Conciliar o sono.
Para dormir à sesta às garras fujo Do ímprobo trabalho, E venho em teu regaço deleitoso Buscar doce agasalho.
Caluniam-te muito, amiga minha, Donzela inofensiva, Dos pecados mortais te colocando Na horrenda comitiva. O que tens de comum com a soberba?...
E nem com a cobiça?...
Tu, que às honras e ao ouro dás as costas, Lhana e santa Preguiça?
Com a pálida inveja macilenta Em que é que te assemelhas, Tu, que, sempre tranqüila, tens as faces Tão nédias e vermelhas?
Jamais a feroz ira sanguinária Terás por tua igual, E é por isso, que aos festins da gula Não tens ódio mortal.
Com a luxúria sempre dás uns visos, Porém muito de longe, Porque também não é do teu programa Fazer vida de monge.
Quando volves os mal abertos olhos Em frouxa sonolência, Que feitiço não tens!... que eflúvios vertes De mórbida indolência!...
És discreta e calada como a noute;
És carinhosa e meiga, Como a luz do poente, que à tardinha Se esbate pela veiga.
Quando apareces, coroada a fronte De roxas dormideiras, Longe espancas cuidados importunos, E agitações fragueiras;
Emudece do ríspido trabalho A atroadora lida;
Repousa o corpo, o espírito se acalma, E corre em paz a vida.
Até dos claustros pelas celas reinas Em ar de santidade, E no gordo toutiço te entronizas De rechonchudo abade.
Quem, senão tu, os sonhos alimenta Da cândida donzela, Quando sozinha vago amor delira Cismando na janela?...
Não é também, ao descair da tarde, Que o vate nos teus braços Deixa à vontade a fantasia ardente Vagar pelos espaços?...
Maldigam-te outros; eu, na minha lira Mil hinos cantarei Em honra tua, e ao pé de teus altares Sempre cochilarei.
Nasceste outrora em plaga americana À luz de ardente sesta, Junto de um manso arroio, que corria À sombra da floresta.
Gentil cabocla de fagueiro rosto, De índole indolente, Sem dor te concebeu entre as delícias De um sonho inconsciente.
E nessa hora as auras nem buliam Nas ramas do arvoredo, E o rio a deslizar de vagaroso Quase que estava quedo.
Calou-se o sabiá, deixando em meio O canto harmonioso, E para o ninho junto da consorte Voou silencioso.
A águia, que, adejando sobre as nuvens, Dos ares é princesa, Sentiu frouxas as asas, e do bico Deixou cair a presa.
De murmurar, manando entre pedrinhas A fonte se esqueceu, E nos imóveis cálices das flores A brisa adormeceu.
Por todo o mundo o manto do repouso Então se desdobrou, E até dizem, que o sol naquele dia Seu giro retardou. E eu também já vou sentindo agora A mágica influência De teu condão; os membros se entorpecem Em branda sonolência.
Tudo a dormir convida; a mente e o corpo Nesta hora tão serena Lânguidos vergam; dos inertes dedos Sinto cair-me a pena.
Mas ai!... dos braços teus hoje me arranca Fatal necessidade!...
Preguiça, é tempo de dizer-te adeus, Ó céus!... com que saudade!
DILÚVIO DE PAPEL
Sonho de um jornalista poeta I
Que sonho horrível! — gélidos suores Da fronte inda me escorrem;
Eu tremo todo! — crebros calafrios Os membros me percorrem.
Eu vi sumir-se a natureza inteira Em pélago profundo;
Eu vi, eu vi... acreditai, vindouros, Eu vi o fim do mundo!...
E que fim miserando!... que catástrofe Tremenda e singular, Como nunca os geólogos da terra Ousaram nem sonhar.
Não foram, não, do céu as cataratas, Nem as fontes do abismo, Que alagando este mundo produziram Tão feio cataclismo.
Nem foi longo cometa amplo-crinito, Perdido nos espaços, Que sanhudo investiu nosso planeta, E o fez em mil pedaços.
E nem tão pouco, em roxas labaredas, Ardeu como Gomorra, Ficando reduzido a lago imundo De flutuante borra.
Nada disso: — porém cousa mais triste Senão mais temerosa, Foi da visão, que a mente atormentou-me, A cena pavorosa.
II
Já o sol se envolvia em seus lençóis De fofas nuvens, resplendentes d’ouro, Como o cabelo de um menino louro, Que se enrosca em dourados caracóis.
Dos róseos arrebóis A luz suave resvalava apenas Nos topes dos outeiros E dos bosques nas cúpulas amenas.
E eu, que os dias sempre passo inteiros, Rodeado de folhas de papel, Que de todos os cantos aos milheiros Noite e dia me assaltam de tropel, Qual o gafanhotal bando maldito Com que Deus flagelou o velho Egito:
Eu que vivo de um pálido aposento Na lôbrega espelunca, Não vendo quase nunca Senão por uma fresta o firmamento, E as campinas, e os montes e a verdura, Flóreos bosques, encanto da natura;
Das vestes sacudindo A importuna poeira, que me encarde, Longe das turbas, num recesso lindo Fui respirar os bálsamos da tarde.
Ao pé de uma colina, Ao sussurro da fonte, que golfeja Sonora e cristalina, Fui-me sentar, enquanto o sol dardeja Frouxos raios por sobre os arvoredos, E da serra nos últimos fraguedos, Meu pensamento longe se embrenhava Em páramos fantásticos, E do mundo e dos homens me olvidava, Sem ter medo de seus risos sarcásticos.
Mas, ó surpresa!... ao tronco recostada De um velho cajueiro vi sentada, De mim não mui distante, Uma virgem de aspecto vislumbrante;
Sobre os nevados ombros lhe tombava A basta chuva do cabelo louro, E a mão, como a descuido, repousava Por sobre uma harpa de ouro Engrinaldada de virente louro.
Cuidei que era uma estátua ali deixada Que em noite de tremendo temporal Pela fúria dos ventos abalada Tombou do pedestal.
Mas o engano durou só um momento;
Eu a vi desdobrar o ebúrneo braço, E percorrendo as cordas do instrumento De melífluas canções encher o espaço.
E ouvi, cheio de espanto, Que era a musa, que a mim se endereçava Com mavioso canto, E com severo acento, que inda abala Té agora o meu peito, assim cantava, — Que a musa canta sempre, e nunca fala.
III
Canto da musa, recitativo Que vejo? junto a meu lado Um desertor do Parnaso, Que da lira, que doei-lhe Faz hoje tão pouco caso, Que a deixa pendurada numa brenha, Como se fora rude pau de lenha?!
Pobre infeliz; em vão lhe acendi n’alma, De santa inspiração o facho ardente;
Em vão da glória lhe acenei co’a palma, A nada se moveu esse indolente, E de tudo sorriu-se indiferente.
Ingrato! ao ver-te, sinto tal desgosto, Que fico possuída de ruim sestro, Me sobe o sangue ao rosto;
E em estado, que até me falta o estro, Em vão estafo os bofes, Sem poder regular minhas estrofes.
Por que deixaste, desditoso bardo, As aras, em que outrora De tua alma queimaste o puro incenso?
Como podes levar da vida o fardo Nesse torpor, que agora Te afrouxa a mente, e te anuvia o senso, E as flores desprezar de tua aurora, Ricas promessas de um porvir imenso?
Nossos vergéis floridos Trocas por esse lúgubre recinto, Onde os dias te vão desenxabidos Em lânguido marasmo;
Onde se esvai quase de todo extinto, O fogo do sagrado entusiasmo;
Onde estás a criar cabelos brancos Na lide ingloriosa De alinhavar a trancos e a barrancos Insulsa e fria prosa!
Ária Pobre bardo sem ventura, Que renegas tua estrela;
— Oh! que estrela tão brilhante!
Nem tu merecias vê-la!
Pobre bardo, que da glória Os louros calcas aos pés, Deslembrado do que foste, Serás sempre, o que tu és?
Já não ouves esta voz, Que te chama com amor?
Destas cordas não escutas O magnético rumor?
Nenhum mistério decifras No rugir deste arvoredo?
Esta fonte, que murmura Não te conta algum segredo? Não entendes mais as vozes Destes bosques, que te falam.
No rumorejo das folhas.
E nos perfumes que exalam?
Nesta brisa que te envio Não sentes a inspiração Roçar-te pelos cabelos, E acordar-te o coração?
Não vês lá nos horizontes Uma estrela refulgir?
É a glória, que rutila Pelos campos do porvir!
É ela, que te sorri Com luz vívida e serena;
E com sua nobre auréola Lá do horizonte te acena.
IV
Estes acentos modulava a musa Com voz tão maviosa, Qual borbotando geme de Aretusa A fonte suspirosa, Da Grécia os belos tempos recordando, Que já no esquecimento vão tombando.
Encantada de ouvi-la, a mesma brisa O vôo suspendeu;
E o travesso regato de seu curso Quase que se esqueceu.
Os bosques aos seus cantos aplaudiram Com brando rumorejo;
E o gênio das canções, na asa das auras, Mandou-lhe um casto beijo.
Enquanto a mim, senti correr-me os membros Estranho calafrio;
Mas procurei chamar em meu socorro Todo o meu sangue-frio.
Qual ministro de estado interpelado, Não quis ficar confuso;
E da parlamentar nobre linguagem Busquei fazer bom uso.
Como homem que entende dos estilos, Impávido me ergui, Passei a mão na fronte, e sobranceiro Assim lhe respondi:
V
Musa da Grécia, amável companheira De Hesíodo, de Homero e de Virgílio, E que de Ovídio as mágoas consolaste Em seu mísero exílio;
Tu, que inspiraste a Píndaro os arrojos De altiloqüentes, imortais canções, E nos jogos olímpicos lhe deste Brilhantes ovações;
Tu, que a Tibulo os hinos ensinaste De inefável volúpia repassados, E do patusco Horácio bafejaste Os dias regalados;
Que com Anacreonte conviveste Em galhofeiro, amável desalinho, Entre mirtos e rosas celebrando Amor, poesia e vinho;
Que tens a voz mais doce que a da fonte Que entre cascalhos trépida borbulha, Mais meiga que a da pomba que amorosa Junto do par arrulha;
E também, se te apraz, tens da tormenta A voz troante, o brado das torrentes, O zunir dos tufões, do raio o estouro, O silvo das serpentes;
Tu bem sabes, que desde minha infância Rendi-te sempre o culto de minh’alma;
Ouvi-te as vozes e aspirei constante A tua nobre palma.
Mas, ah!.. devo eu dizer-te?... o desalento N’alma apagou-me a inspiração celeste, E fez cair das mãos esmorecidas A lira que me deste!... Peregrina gentil, de que te serve Andar vagando aqui nestes retiros, Na solidão dos bosques exalando Melódicos suspiros?...
Não vês que o tempo assim perdes embalde, Que tuas imortais nobres canções Entre os rugidos, abafadas morrem, Dos rápidos vagões?
Neste país de ouro e pedrarias O arvoredo de Dáfnis não medra;
E só vale o café, a cana, o fumo E o carvão de pedra.
Volta aos teus montes; vai volver teus dias Lá nos teus bosques, ao rumor perene, De que povoa as sombras encantadas A límpida Hipocrene.
Mas se desejas hoje alcançar palmas, Deixa o deserto; exibe-te na cena;
Ao teatro!... lá tens os teus triunfos;
Lá tens a tua arena.
Tu és formosa, e cantas como um anjo!
Que furor não farias, que de enchentes, Quanto ouro, que jóias não terias, E que reais presentes!...
Serias excelente prima-dona Em cavatinas, solos e duetos:
E ajustarias de cantar em cena Somente os meus libretos.
Se soubesses dançar, oh! que fortuna!
Com essas bem moldadas, lindas pernas, Teríamos enchentes caudalosas Entre ovações eternas.
Em vez de ser poeta, quem me dera, Que me tivesse feito o meu destino Pelotiqueiro, acrobata, ou funâmbulo, Harpista ou dançarino.
Pelos paços reais eu entraria De distinções e honras carregado, E pelo mundo inteiro o meu retrato Veria propagado.
E sobre minha fronte pousariam C’roas aos centos, não de estéril louro, Como essas que possuis, mas de maciças, Brilhantes folhas de ouro.
Esse ofício, que ensinas, já não presta;
Vai tocar tua lira em outras partes;
Que aqui nestas paragens só têm voga Comércio, indústria e artes.
Não tem aras a musa; — a lira e o louro Já andam por aí de pó cobertos, Quais vãos troféus de um túmulo esquecido Em meio dos desertos.
Ó minha casta, e desditosa musa, Da civilização não estás ao nível;
Com pesar eu to digo, — nada vales, Tu hoje és impossível.
VI
De santa indignação da musa ao rosto Rubor celeste assoma;
De novo a lira, que repousa ao lado, Entre seus braços toma.
E essa lira, inda agora tão suave, Desfere voz rouquenha, Desprendendo canções arrrpiadas De vibração ferrenha.
Eu julguei que escutava entre coriscos Troar a voz do raio;
Em pávido desmaio Tremem os arvoredos;
De medrosos mais rápidos correram Os trépidos regatos, e os rochedos Parece que de horror estremeceram.
“Maldição, maldição ao poeta, Que renega das musas o culto, E que cospe o veneno do insulto Sobre os louros da glória sagrados!
Ao poeta, que em frio desânimo Já descrê dos poderes da lira, E que à voz que o alenta e inspira, Se conserva de ouvidos cerrados!
Maldição ao poeta, que cede À torrente do século corrupto, E nas aras imundas de Pluto Sem pudor os joelhos inclina!
Que com cínico riso escarnece Dos celestes acentos da musa, E com tosco desdém se recusa A beber da Castália divina.
E agora, ó descrido poeta, Que o alaúde sagrado quebraste, E da fronte os lauréis arrancaste Qual insígnia de ignóbil baldão, Já que a minha vingança provocas, Neste instante tremendo verás Os terríveis estragos que faz A que vibro, fatal maldição!”
VII
Calou-se a musa, e envolvida Em tênue vapor de rosa, Qual sombra misteriosa Nos ares se esvaeceu;
E de aromas divinais Todo o éter recendeu.
Qual zunido do látego vibrado Por mãos de algoz cruento, Nos ouvidos troou-me aquele acento, E me deixou de horror petrificado.
Já ia arrependido aos pés prostrar-me Da irritada, frenética deidade, Cantar-lhe a palinódia, e em triste carme Pedir-lhe piedade!...
Em vão eu lhe bradava: “Musa, ó musa!
Não me castigues, não; atende, escusa A minha estranha audácia;
Um momento isso foi de irreflexão, Em que não teve parte o coração, E não serei mais réu por contumácia.”
Mal dou um passo, eis no mesmo instante Encontro por diante Jornal imenso de formato largo, Aos meus primeiros passos pondo embargo.
Vou desviá-lo, e em sua retaguarda Encontro um Suplemento;
Porém, pondo-me em guarda Para a direita opero um movimento, E encontro frente a frente o Mercantil.
Para evitá-lo esgueiro-me sutil, Buscando flanqueá-lo, e vejo ao lado O Diário do Rio de Janeiro Que todo desdobrado Ante mim se apresenta sobranceiro;
Com brusco movimento impaciente Me volto de repente E quase que me achei todo embrulhado No Diário do Rio Oficial.
Então compreendi toda a extensão E força do meu mal, E o sentido satânico e fatal Que encerrava da musa a maldição.
Eis-me pelos jornais de todo o lado Em assédio formal engaiolado!
Assédio, que depois foi um Vesúvio, Que arrojou das entranhas um dilúvio.
Porém o sangue-frio inda não perco, Co’a ponta da bengala Romper procuro o cerco Que obstinado em torno se me instala.
Sobre o inimigo intrépido me atiro;
Brandindo uma estocada Varo o Jornal, e mortalmente o firo;
E de uma cutilada Denodado rasguei de meio a meio O Mercantil e o Oficial Correio;
Co’as botas ao Diário faço guerra, E debaixo dos pés o calco em terra.
Mas ai de mim! em batalhões espessos, Ao longe como ao perto, Resistindo a meus rudes arremessos O inimigo rebenta em campo aberto.
Debalde lhes desfecho denodado Mil golpes repetidos;
Debalde vou deixando o chão coalhado De mortos e feridos.
E quanto mais o meu furor se assanha, Mais a coorte cresce e se arrebanha!
Bem como nuvem densa, Eu vejo chusma imensa De folhas de papel, que o espaço coalham, Que lépidas farfalham, Que trêmulas chocalham, Nos ares se tresmalham, E sobre a fronte passam-me, e repassam, E em contínuo vórtice esvoaçam.
Aturdido procuro abrir caminho, Demandando o pacífico aposento, Onde refúgio encontre a tão mesquinho E mísero tormento.
E espreitando a custo pelos claros, Que entre as nuvens da espessa papelada, Já me luziam raros, Procuro orientar-me pela estrada, Que me conduza à casa suspirada.
E através das ondas, que recrescem A cada instante, e os ares escurecem, De Mercantis, Correios e Jornais, De Ecos do Sul, do Norte, de Revistas, De Diários, de Constitucionais, De Coalições, de Ligas Progressistas, De Opiniões, Imprensas, Nacionais, De Novelistas, Crenças, Monarquistas, De mil Estrelas, Íris, Liberdades, De mil Situações, e Atualidades;
Através de Gazetas de mil cores, De Correios de todos os países, De Crônicas de todos os valores, De Opiniões de todos os matizes, De Ordens, Épocas, Nautas, Liberais, Do Espectador da América do Sul, De Estrelas do Norte, e outros que tais, Que me encobrem de todo o céu azul, A custo rompo, e chego esbaforido Ao sossegado albergue, e precavido A porta logo tranco, E de um só arranco Com as escadas íngremes invisto.
Mas! oh! desgraça! oh! caso não previsto!
As folhas entre as pernas se embaralham, E todo me atrapalham, E quase de uma queda me escangalham.
Mas salvei-me sem risco, e subo ao quarto Do meu repouso, e onde me descarto De tudo que me zanga e me atrapalha.
Cansado já do excesso De golpe me arremesso Sobre o colchão de fresca e fofa palha;
Mas apenas encosto na almofada A fronte afadigada, Eis começa de novo o atroz vexame;
Como importunas vespas, De folhas me acomete novo enxame, Zumbindo pelo ar co’as asas crespas, Agravando à porfia o meu martírio A ponto de me pôr quase em delírio.
Já das gavetas E dos armários Surgem gazetas, Surgem diários;
Uns do tablado Lá vêm subindo, Ou do telhado Descem rugindo;
Dentro da rede Sobre o dossel, Pela parede Tudo é papel.
Folhas aos centos Pare a canastra, E o pavimento Delas se alastra.
Té as cadeiras E os castiçais, E escarradeiras Parem jornais. Saem do centro Dos meus lençóis, E até de dentro Dos ouri...iv Já me sentia quase sufocado Do turbilhão no meio, E já tendo receio De ficar ali mesmo sepultado, Para sair de trance tão amargo Resolvi-me a de novo pôr-me ao largo, Salto da cama, rodo pela escada E procuro safar-me da rascada, Já não andando, Porém nadando Ou mergulhando Co’esse quinto elemento em guerra crua.
Cheguei enfim à rua Que de papel achei toda inundada!
E bracejando Espernegando Entrei em luta acerba Contra a enchente fatal, que me assoberba, Até que a muito custo surjo à tona Do horrendo turbilhão Que túrbido se entona E no mundo se arroja de rondão.
Às vagas meto o ombro, Até achar dos céus a claridade.
Oh! céus! que cena horrível! oh! que assombro!
Em todo o seu horror e majestade A mais triste catástrofe contemplo, De que jamais no mundo houvera exemplo.
Fiquei transido de terror mortal, Pois vi que era um dilúvio universal.
Das bandas do Oriente Avistei densas nuvens conglobadas, Que sobre o americano continente Arrojavam camadas e camadas De fofas papeladas.
E lá vinha de Times nuvem densa Com um sussuro horrendo No ar as pandas asas estendendo, Derramando nos mares sombra imensa. E após vinha em vastíssima coorte O Pais, a Imprensa, o Globo, o Mundo, O Este, e o Oeste, o Sul, e o Norte, Esvoaçando sobre o mar profundo, Jornais de toda a língua, e toda sorte, Que no hemisfério nosso vêm dar fundo, Gazetas alemãs com tipos góticos, E mil outras com títulos exóticos.
Outras nuvens, também do sul, do norte, Mas não tão carregadas, se encaminham, E lentas se avizinham Com horroroso frêmito de morte.
Da tormenta fatal recresce o horror!
Até do interior Como um bando de leves borboletas Lá vêm surgindo lépidas gazetas, À desastrosa enchente Fornecer seu pequeno contingente.
Julguei que sem remédio este era o dia Da ira do Senhor; — pois parecia, Que se abriam do céu as cataratas E os abismos da terra, vomitando Em borbotões, em túrbidas cascatas, De hedionda praga o inextinguível bando.
Enquanto esbaforido luto, e ofego Contra as ondas, que sempre recresciam, Já sobre o farfalhante, imenso pego As casas abafadas se sumiam.
Em torno a vista estendo, E vejo então, que esse dilúvio horrendo Já tendo submergido as baixas terras Ameaçava os píncaros das serras.
E nem diviso barca de Noé Que me conduza aos cimos de Arará!
O mal é sem remédio!... já perdida Toda esperança está!...
Mas não!... eis voga além batel ligeiro, Os fofos escarcéus assoberbando;
Impávida e com rosto sobranceiro Uma ninfa gentil o vai guiando, De angélica beleza;
E vi então... que pasmo! que surpresa!
Que a dona, dêsse nunca visto lago Sem mais nem menos era A ninfa linda e fera Que ainda há pouco em um momento aziago Aos sons de uma canção Fulminou-me tremenda maldição.
Era-lhe barco a concha mosqueada De tartaruga enorme, Com engenhoso esmero trabalhada De lavor preciosa e multiforme.
Com remo de marfim, mimoso pulso Ao leve barco dá fácil impulso.
E enquanto fende as chocalheiras ondas Desse pego, que em torno se lhe empola, Vai cantando em estrofes mui redondas Esta estranha e tremenda barcarola:
VIII
Já tudo se vai sumindo!...
Já desparecem as terras;
Pelos outeiros e serras Sobem ondas a garnel...
E neste geral desastre Somente a minha piroga Ligeira sem risco voga Sobre as ondas de papel!
Sobre estes estranhos mares, Voga, voga, meu batel!...
Para a triste humanidade Não resta mais esperança;
O dilúvio cresce, e avança, Leva tudo de tropel!...
Já imensa papelada As terras e os mares coalha;
Já o globo se amortalha Em camadas de papel.
Mas sobre elas resvalando Vai vogando o meu batel.
Pobre idade, testemunha Desta pavorosa cheia Que dos tempos na cadeia Vê quebrar-se o extremo anel!...
Oh! século dezenove, Ó tu, que tanto reluzes, És o século das luzes, Ou século de papel?!...
Sobre estas estranhas ondas, Voga, voga, meu batel!...
Debaixo de teu sudário Dorme, ó triste humanidade!
Que eu chorarei de piedade Sobre teu fado cruel!
E ao futuro irei dizendo Sentada na tua lousa:
— Todo o mundo aqui repousa Sob um montão de papel! —
Meu batel, eia! ligeiro, Voga, voga, meu batel!
IX
Calou-se, e a um golpe do ebúrneo remo Impele a concha, que veloz desliza;
Eu nesse trance extremo, Como quem outra esperança não divisa, Meu afrontoso fim tão perto vendo, A musa os braços súplices estendo.
“Perdão! perdão! bradei —; musa divina, Recebe-me a teu bordo; — é o teu vate, A quem sempre tu foste o único norte, Que entre estas fofas ondas se debate Entre as vascas da morte.”
Mas de minha fervente rogativa Não fez caso nenhum a ninfa esquiva;
Sem ao menos a mim volver o rosto As secas ondas corta;
Continuando a remar muito a seu gosto Comigo nem se importa.
E ei-la que continua a cantarola De sua endiabrada barcarola:
“Meus altares abjuraste, Agora sofre o castigo, Que eu não posso dar abrigo A quem me foi infiel.
Morre em paz, infeliz bardo, E sem maldizer teu fado Fica p’ra sempre embrulhado Nesse montão de papel!...”
Eia, rompe as secas ondas, Voga, voga, meu batel!...
X
Fiquei aniquilado!...
Horror! horror! há nada mais cruel, Do que morrer a gente sufocado Debaixo de uma nuvem de papel?!
Mas eis que de repente A mais atroz lembrança O desespero me sugere à mente, Que exulta em seus desejos de vingança.
Veio-me à idéia de Sansão o exemplo, Com seus robustos braços abalando As colunas do templo, E sob suas ruínas esmagando A si e aos inimigos Para evitar seus pérfidos castigos.
“Pois bem!... já que esperança alguma temos, O mundo, e eu com ele, acabaremos, Mas não por esta sorte;
Morrerei; mas também tu morrerás, Ó ninfa desalmada, Porém um outro gênero de morte Comigo sofrerás:
A mim e a ti verás, E a toda tua infanda papelada Reduzidos a pó, a cinza, a nada!”
Enquanto isto eu dizia, da algibeira Uma caixa de fósforos tirava, Que por felicidade então trazia;
E já chama ligeira Aqui e além lançava Com o pequeno archote que acendia;
Eis já o voraz fogo se propaga, Como em madura, tórrida macega, E co’as rúbidas línguas lambe e traga A seca papelada que fumega.
Como Hércules em cima da fogueira Por suas próprias mãos alevantada, Eu com serena face prazenteira Vejo lavrar a chama abençoada.
Espesso fumo em túrbidos novelos Os ares escurece.
E a rubra labareda, que recresce, Já me devora as vestes e os cabelos.
Em tão cruel tortura Horrenda me aparece Da morte a catadura, E a coragem de todo me falece.
“Perdão! perdão! ó musa! ai!... a teu bordo...
O fumo me sufoca... eu morro...” acordo!...
XI
Ainda bem, que esse quadro tão medonho Não foi mais do que um sonho.
PARECER DA COMISSÃO DE ESTATÍSTICA A
RESPEITO DA FREGUESIA DA MADRE-DE-DEUS-DO ANGU
Diga-me cá, meu compadre, Se na sagrada escritura Já encontrou, porventura, Um Deus que tivesse madre?
Não pode ser o Deus-Padre, Nem tão pouco o Filho-Deus;
Só se é o Espírito-Santo, De quem falam tais judeus.
Mas esse mesmo, entretanto, De que agora assim se zomba, Deve ser pombo, e não pomba, Segundo os cálculos meus.
Para haver um Deus com madre, Era preciso um Deus fêmea;
Mas isto é forte blasfêmia, Que horroriza mesmo a um padre.
Por mais que a heresia ladre, Esse dogma tão cru, — De um Deus de madre de angu, —
Não é obra de cristão, E não passa de invenção Dos filhos de Belzebu. E, se há um Deus do Angu, Pergunto: — Por que razão Não há um Deus do Feijão, Seja ele cozido ou cru?
De feijão se faz tutu, Que não é mau bocadinho;
Mas não se seja mesquinho:
Como o feijão sem gordura É coisa que não se atura, Deve haver Deus do Toicinho.
Desta tríplice aliança Nascerá uma trindade, Com que toda a humanidade Há de sempre encher a pança;
Porém, para segurança, Como o angu é dura massa, E o feijão nunca tem graça Regado com água fria.
Venha para a companhia Também um Deus da Cachaça.
Mas, segundo a opinião De uma minha comadre, Nunca houve Deus de madre, Nem de angu, nem de feijão.
Tem ela toda a razão.
Pelos raciocínios seus, Que são conformes aos meus, Isto é questão de panela, E Deus não deve entrar nela, E nem ela entrar em Deus.
E, portanto, aqui vai uma emenda, Que tudo remenda:
Vai aqui oferecida Uma emenda supressiva:
Suprime a madre, que é viva, Fica o angu, que é comida.
A comissão, convencida Pelos conselhos de um padre, Que conversou com a comadre, Propõe que, desde este dia, Chame-se a tal freguesia A do Angu de Deus, sem Madre. Sala das Comissões, aos tantos de setembro.
(Estão assinados os membros)


Domínio Público Gov.BR


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