Novos Cantos
O HOMEM FORTE
O modesto varão constante e justo Pensa e medita nas lições dos sábios E nos caminhos da justiça eterna Gradua firme os passos.
O brilho da sua lama não mareia A luz do sol, nem do carvão se tisna;
Morre pelo dever, austero e crente, Confessando a virtude.
Pode a calúnia denegrir seus feitos, Negar-lhe a inveja o mérito subido;
Pode em seu dano conspirar-se o mundo E renegá-lo a pátria!
Tão modesto no paço de Lóculo Como encerrado no tonel do Grego, Nem o transtorna a aragem da ventura, Nem a desgraça o abate.
A tiranos preceitos não se humilha, Ante o ferro do algoz não curva a fronte, Não faz calar da consciência o grito, Não nega os seus princípios.
Antes, seguro e firme e confiado No tempo, vingador das injustiças, Co’s pés no cadafalso e a vista erguida Se mostra imperturbável.
Sofre mártir e expira! A pátria em torno Do seu sepulcro o chora, onde a virtude, Afeita ao luto e à dor, de novo carpe Do justo a flébil morte!
DIES IRAE
Jaz o mundo corrupto! – a terra ingrata Frutos de maldição produz somente;
E em quanto os homens ao mercado afluem, Vazio o templo do Senhor se enluta, Empoeira-se o altar, e pelas naves, Gretadas, rotas pela mão do tempo, De cânticos e preces deslembradas, A voz de Deus já não reboa imensa!
Tudo porém conserva o mesmo aspecto:
O sol girando, e na aparência o mesmo, Do ano as quadras compassado alterna;
E os astros, seus irmãos, gravitam sempre D’abóbada celeste. A terra é a mesma;
As aguas pelos vales se deslizam, Ou d’alpestres montanhas se despenham Co’os mesmos sons, co’a mesma queda: as brisas Inda conversam nos soturnos bosques;
A mulher, a mais bela criatura, Nas suas próprias perfeições compraz-se, Como quando, noEden, as pulcras formas Pasmou de ver representadas n’agua, E de as ver se ufanou. Inda conserva O mesmo orgulho e inteligência o homem, O rei da criação, o deus criado, De quando vinham, por pedir-lhe os nomes, Cetáceos, aves e os répteis e aquelas Criaturas-montanhas, que passaram Entre Adão e Noé à flor da terra!
Tudo o mesmo se mostra; mas a alma, Esse mundo interior, esse outro templo, Onde gravara o próprio Deus seu nome, Como os templos de pedra, jaz em lume, Jaz como o prédio a desfazer-se em ruínas.
Onde um guarda solícito não mora, E entregue as aves más, que em chilros pregam, Que ali, na ausência do senhor imperam.
Da divina bondade cheio o vaso Já transborda de cólera i justiça E o largo rio do perdão saudável, Que mais não corra, impece: Santas águas Por cuja causa os séculos já viram, Sem justa punição, ofensas graves;
Que o Senhor consentisse persistirem Os maus no mal, à espera d’emendá-los;
Que triunfasse a malvadeza; e o crime, Vexando os bons, senhoreasse a terra.
Mas Deus, que fora outrora pai clemente, Dando começo ao reino da justiça, Eu austero juiz se há convertido.
Como um carro, que vai d’encontro ao abismo, Perfaz o sol precipite o seu giro, Indo a tocar a temerosa meta Prevista dos profetas. Um arcanjo Com mão robusta inda retém os elos Da cadeia do tempo, em quanto a outra Da vida o livro volumoso sela Com sete brônzeos selos. Deus ofeso Tira os olhos do mundo, e o mundo há sido!
Quem podera pintar as discordâncias Em que labora a natureza! Crescem Da terra ígneos vapores, sufocando O que respira, o que tem vida; os montes Em crateras se rasgam, que vomitam Rumo e lava incessante; o mar s’empola E em fúria ardendo, arroja aos altos cimos Cruzados vagalhões, qual se tentara Sovertê-los; os ventos se contrastam!
Novos prodígios, novos monstros surgem!
O mar se torna em sangue, o sol em fogo, O Universo em mansão d’aflitas fores, O homem sofre, blasfema e desespera, E vendo ou mundos desabar precipiteis, Um grito solta d’horroroso transe, Como de nau, quem alto mar s’afunda E rola os restos n’amplidão das águas.
Satisfez-se o Senhor. Que resta? – O caos, O horror, a confusão, o vulto enorme Do tempo, que escurece o fundo abismo, Onde por todo o sempre jaz cativo;
E da morte o cadáver gigantesco Quase ocupando a superfície inteira Dum mar de chumbo, escuro e sem rumores.
Da glória do Senhor um raio apenas, Lá dos confins do espaço despedido, Fere da morte o rosto macilento De tudo quanto foi, e quanto existe!
ESPERA
Quem há no mundo que aflições não passe, Que dores não suporte?
Mais ou menos d’angústias cabe a todos, A todos cabe a morte.
A vida é um fio negro d’amarguras E de longo sofrer;
Simelha a noite; mas fagueiros sonhos Podem de noite haver.
Por que então maldiremos este mundo E a vida que vivemos, Se nos tornamos do Senhor mais dignos, Quanto mais dor sofremos?
Quantos cabelos temos, ele o sabe;
Ele pode contar As folhas que há no bosque, os grãos d’areia Que sustentam o mar.
Como pois não será ele conosco No dia da aflição: Como não há de computar as dores Do nosso coração?
Como há de ver-nos, sem piedade, o rosto Coberto d’amargura;
Ele, senhor e pai, conforto e guia Da humana criatura?
Se o vento sopra, se se move a terra Se iroso o mar flutua;
Se o sol rutila, se as estrelas brilha, Se gira a branca lua;
Deus o quis, Deus que mede a intensidade Da dor e da alegria, Que cada ser comporta – num momento D’arroubo ou d’agonia!
Embora pois a nossa vida corra Alheia da ventura!
Além da terra há céus, e Deus protege A toda criatura!
Viajor perdido na floresta à noite, Assim vago na vida;
Mas sinto a voz que me convida.
A SAUDADE
Saudade, ó bela flor, quando te faltem Coração ou jardim, onde tu cresças;
Vem, vem ter comigo;
Deixa os que te não seguem, Terás em peito amigo Lágrimas, que te reguem, Espaços, em que floresças.
Das pegadas da ausência tu despontas, Entre as memórias cresces do passado, Quando um objeto amado, Quando um lugar distante, Noite e dia, Nos enluta e apouquenta a fantasia.
Vem, ó Saudade, vem A mim também Consolar de gemidos suspirosos E de partidos ais!
Oh! seja a punição dos insensíveis Não te sentir jamais!
Propícia Deusa, e se não fosse a esperança, Deusa melhor da vida; qu’insensato, A quem mitigas túrbidos pesares Haverá tão ingrato Que te não queime incenso em teus altares?
O presente o que é? – Breve momento D’incômodo ou desgraça Ou de prazer, que passa Mais veloz que o ligeiro pensamento. Véu escuro, Que nem sempre a ilusão nos adelgaça, Nos encobre os caminhos do futuro.
O que nos resta pois? – Resta a saudade, Que dos passados dias De mágoas e alegrias Bálsamo santo extrai consolador!
Resta a saudade, que alimenta a vida À luz do facho qu adormenta a dor!
Hera do coração, memória dele, Ò Saudade, ó rainha do passado, Simelhas a romântica donzela De roupas alvejantes Nas ruínas de castelo levantado:
Grinaldas flutuantes, Que das fendas brotaram, Movem-se do nordeste Ao sopro agudo e frio;
Em quanto vendo-o ao longe o senhorio, De posses decaído, D’invernos alquebrado, Recorda triste os anos que passaram!
Em que plagas inóspitas e duras Não me tens sido companheira e amiga?
Em que hora, em que instante De folga ou de fadiga Já deixei de sentir o penetrante Espinho teu, a repassar-me todo Dum prazer melancólico e suave?
Pois nasces nos desertos da tristeza, Ó Saudade, ó rainha do passado!
Quando te falte gleba, onde tu cresças, Vem, vem ter comigo;
Deixa os que te não seguem, Terás em peito amigo Lágrimas, que te reguem, Espaço, em que floresças!
Entra em meu coração, ocupa-o todo, Fibra por fibra enlaça-te com ele, Desce com ele à sepultura; e quando Jazer eu na eternidade, Minha flor, minha saudade, Tu procura a aura celeste, Rompe a terra, transforma-te em cipreste.
Qu’enlute o meu jazigo;
E ao meneio das ramas funerárias, Meu derradeiro amigo, Descanse morto quem viveu contigo.
NÃO ME DEIXES
Debruçada nas águas dum regato A flor dizia em vão A corrente, onde bela se mirava...
“Ai, não me deixes, não!
“Comigo fica ou leva-me contigo” “Dos mares à amplidão, “Límpido ou turvo, te amarei constante “Mas não me deixes, não!”
E a corrente passava, novas águas Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
“Ai, não me deixes, não!”
E das águas que fogem incessantes À eterna sucessão Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
“Ai, não me deixes, não!”
Por fim desfalecida e a cor murchada, Quase a lamber o chão, Buscava inda a corrente por dizer-lhe Que a não deixasse, não.
A corrente impiedosa a flor enleia, Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
“Não me deixaste, não!”
ZULMIRA
Sonhara-te eu na veiga de Granada, Tapetada de flores e verdura, Onde o Darro e Xenil no lento giro Volvem a linfa pura.
Ali te vejo em leda comitiva Dos gentis cavaleiros do oriente, Quando, deposta a malha do combate, Vestem da paz a seda reluzente.
Ali te vejo num balcão sentada, Grande preço da maura arquitetura, Pejando as asas das noturnas brisas Dum canto de ternura.
Ali te vejo, sim; mas mais me agrada O que se m’afigura noutro instante, Ver-te em vistosa tenda d’ouro e sedas, Levantada no dorso do elefante.
E em roda, ao largo, o séqüito pomposo D’enucos a teu gesto vacilantes Em cujas fontes negras se destacam Alvíssimos turbantes.
E pergunto quem és? – Então me dizem Ciosos de guardar o seu tesouro, Nome tão doce aos lábios, que parece Escever-se em cetim com letras d’ouro.
A UMA POETISA
- Donde vens, viajor?
- De longe venho.
- Que viste?
- Muitas terras.
- E qual delas Mais te soube agradar?
- São todas belas;
Fundas recordações de todas tenho.
- E admiraste o que?
- Ah! onde as flores Cada vez a manhã tornam mais linda, Onde gemeu Paraguaçu de amores E os ecos falam de Moema ainda;
Ali, Safo cristã, vigem formosa, A vida aos sons da lira dulcifica:
D’escutar a sereia harmoniosa O de vê-la, a vontade presa fica!
ANGELINA
É gentil e linda e bela, E eu sei que m’arrouba o vê-la Tão divina:
A lira seus cantos cesse;
Mas minha alma não s’esquece D’Angelina!
Outro louve os seus cabelos, Cante a luz dos olhos belos Que fascina;
E o leve sorrir donoso Que irradia o rosto airoso D’Angelina!
Os dotes diga que apura, Quando em lânguida postura Se reclina;
Que s’ergue, se acaso passa, Sussurro que aplaude a graça D’Angelina!
Que de amor quando suspira O bardo quebrara a lira, De mofina;
Que jamais poderam cantos Pintar no vivo os encantos D’Angelina!
Que da sua alma a pureza Equipara-se à beleza Peregrina;
Que amor seu trono tem posto N’alma, no talhe e no rosto D’Angelina!
Eu que não sei descrevê-la, Só sei que me arrouba o vê-la Tão divina;
A lira seus cantos cesse, Mas minha alma não s’esquece D’Angelina! RÔLA
Desque amor me deu que eu lesse Nos teus olhos minha sina, Ando, como a peregrina Rola, que o esposo perdeu!
Seja noite ou seja dia, Eu te procuro constante:
Vem, oh! vem, ó meu amante, Tua sou e tu és meu!
Vem, oh vem, que por ti clamo;
Vem contentar meus desejos, Vem fartar-me com teus beijos, Vem saciar-me de amor!
Amo-te, quero-te, adoro-te, Abraso-me quando em ti penso, E em fogo voraz, intenso, Anseio louca de amor!
Vem, que te chamo e te aguardo, Vem apertar-me em teus braços, Estreitar-me em doces laços, Vem pousar no peito meu!
Que, se amor me deu que eu lesse Nos teus olhos minha sina, Ando, como a peregrina Rola, que o esposo perdeu.
AINDA UMA VEZ – ADEUS! –
I
Enfim te vejo! – enfim posso, Curvado a teus pés, dizer-te, Que não cessei de querer-te, Pesar de quanto sofri.
Muito penei! Cruas ânsias, Dos teus olhos afastado, Houveram-me acabrunhado, A não lembrar-me de ti!
II
Dum mundo a outro impelido, Derramei os meus lamentos Nas surdas asas dos ventos, Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte Em terra estranha, entre gente, Que alheios males não sente, Nem se condói do infeliz!
III
Louco, aflito, a saciar-me D’gravar minha ferida, Tomou-me tédio da vida, Passos da morte senti; Mas quase no passo extremo, No último arcar da esp’rança, Tu me vieste à lembrança:
Quis viver mais e vivi!
IV
Vivi; pois Deus me guardava Para este lugar e hora!
Depois de tanto, senhora, Ver-te e falar-te outra vez;
Rever-me em teu rosto amigo, Pensar em quanto hei perdido, E este pranto dolorido Deixar correr a teus pés.
V
Mas que tens? Não me conheces?
De mim afastas teu rosto?
Pois tanto pode o desgosto Transformar o rosto meu?
Sei a aflição quanto pode, Sei quanto ela desfigura, E eu não vivi na ventura...
Olha-me bem, que sou eu!
VI
Nenhuma voz me diriges!...
Julgas-te acaso ofendida?
Deste-me amor, e a vida Que ma darias – bem sei;
Mas lembrem-te aqueles feros Corações, que se meteram Entre nós; e se venceram, Mas sabes quanto lutei!
VII
Oh! se lutei!...mas devera Expor-te em pública praça, Como um alvo à populaça, Um alvo aos dictérios seus!
Devera, podia acaso Tal sacrifício aceitar-te Para no cabo pagar-te, Meus dias unindo aos teus?
VIII
Devera, sim; mas pensava, Que de mim t’esquecerias, Que, sem mim, alegres dias T’esperavam; e em favor De minhas preces, contava Que o bom Deus me aceitaria O meu quinhão de alegria Pelo teu quinhão de dor!
IX Que me enganei, ora o vejo;
Nadam-te os olhos em pranto, Arfa=te o peito, e no entanto Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime, Não te esqueci, eu to juro:
Sacrifiquei meu futuro, Vida e glória por te amar!
X
Tudo, tudo; e na miséria Dum martírio prolongado, Lento, cruel, disfarçado, Que eu nem a ti confiei;
“Ela é feliz (me dizia)
Negou-me a sorte mesquinha...
Perdoa, que me enganei!
XI
Tantos encantos me tinham, Tanta ilusão me afagava De noite, quando acordava, De dia em sonhos talvez!
Tudo isso agora onde pára?
Onde a ilusão dos meus sonhos?
Tantos projetos risonhos, Tudo esse engano desfez!
XII
Enganei-me!... – Horrendo caos Nessas palavras se encerra, Quando do engano, quem erra, Não pode voltar atrás!
Amarga irrisão! reflete:
Quando eu gozar-te pudera, Mártir quis ser, cuidei qu’era...
E um louco fui, nada mais!
XIII
Louco, julguei adornar-me Com palmas d’alta virtude!
Que tinha eu bronco e rude Co’o que se chama ideal?
O meu eras tu, não outro;
Estava em deixar minha vida Correr por ti conduzida, Pura, na ausência do mal XIV
Pensar eu que o teu destino Ligado ao meu, outro fora, Pensar que te vejo agora, Por culpa minha, infeliz;
Pensar que a tua ventura deus ab eterno a fizera, No meu caminho a pusera... E eu! eu fui que a não quis!
XV
És doutro agora, e p’ra sempre!
Eu a mísero desterro Volto, chorando o meu erro, dói-te de mim, pois me encontras Em tanta miséria posto, Que a expressão deste desgosto Será um crime ante Deus!
XVI
Dói-te de mim, qu t’imploro Perdão, a teus pés curvado;
Perdão!... de não ter ousado Viver contente e feliz!
Perdão da minha miséria, Da dor que me rala o peito, e se do mal que te hei feito, Também do mal que me fiz!
XVII
Adeus qu’eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo Passar a vida contigo, Ter sepultura entre os meus;
Negou-me nesta hora extrema, `por extrema despedida, Ouvir-te a voz comovida Soluçar um breve Adeus!
XVIII
Lerás porém algum dia Meus versos, d’alma arrancados, D’amargo pranto banhados, Com sangue escritos; - e então Confio que te comovas, Que a minha dor te apiede, Que chores, não de saudade, Nem de amor, - de compaixão.
SONO
Nas horas da noite, se junto a meu leito Houveres acaso, meu bem, de chegar, Verás derepente que aspecto risonho Que toma o meu sonho, Se o vens bafejar!
O anjo, que ao sono preside tranqüilo, Ao anjo da terra não ceda o lugar;
Mas deixe-o amoroso chegar-se ao meu leito, Unir-me a seu peito, D’amor ofegar.
As notas que exalam as harpas celestes, Os gozos, que os anjos só podem gozar, Talvez também frua, se ao meu peito unida T’encontro, ó querida, No meu acordar!
SE EU FOSSE QUERIDO!
Se eu fosse querido dum rosto formoso, Se um peito extremoso – pudesse encontrar, E uns lábios macios, que expiram amores E abrandam as dores – de alheio penar;
A tantos encantos minha alma rendida, Votara-lhe a vida – que Deus me quis dar:
Constante a seu lado, seus sonhos divinos Aos sons dos meus hinos – quisera embalar.
Depois, quando a morte viesse impiedosa Da amante extremosa – meus dias privar, De funda saudade minha alma rendida Votara-lhe a vida – que Deus me quis dar.
A FLOR DO AMOR
já lento o passo, no cair da tarde, Lá nos desertos d’abrasada areia, Que o vento agita, porém não recreia, da caravana o condutor parou.
Armam-se à pressa tendas alvejante, Rumina plácido o frugal camelo;
Porém a nuvem d’árabes errantes Se achega à presa, que de longe olhou.
E já, tomada a refeição noturna, Junto a fogueira, que derrama vida, Descansam todos da penosa lida À voz canora, que o cantor alçou!
Confuso o ouvido um burburinho alcança, As armas toma o árabe prudente;
Mas logo pensa, rejeitando a lança:
“Foi o grunhido que o chacal soltou.”
Ouvidos todo e curioso enlevo, torna de novo a retomar seu posto;
Pela fogueira alumiado o rosto, Bebendo as vozes que o cantor soltou;
Simelha a terra, quando aberta em fendas Da noite o orvalho sequiosa espera;
E o corcel árabe encostado às tendas Os sons lhe escuta, e de os ouvir folgou.
“Algures cresce (o trovador cantava)
Sempre fresca e virente e sempre bela, Por influxo e poder de maga estrela, Mimosa, pura e delicada flor!
Jazendo em sítio escuso e solitário, Esforços é mister p’ra conhece-la, Que diz a forte lei do seu fadário Que a não descubra acaso o viajor. “Alva do albor dos lírios odorosos, Tem a modéstia da violeta esquiva, e o pronto retrair da sensitiva, Que parece vestir-se de pudor!
Assim, à luz da cambiante aurora, Mudando um poço a resplendente alvura, De uns toque de carmim s’esmalta e cora A graciosa e pudibunda flor.
“Faz-me mais puro o ar, mais brando o clima, Onde cresce; amenizam-se os lugares, Tornam-se menos agros os pesares E menos viva, e quase nula a dor;
Fresca e branda alcatifa o chão matiza, Com doce murmúrio as aguas correm, e o leve sopro do correr da brisa Volúpia embebe em mágico frescor!
“Feliz aquele que a encontrou na vida, Que onde ela nasce tímida e fagueira Não s’enovela a mó d’atra poeira, Tangida pelo simum abrasador!
Ali sorri-se oásis venturoso, Qu’entre deleites o viver matiza, E ao que vai triste, aflito e sem repouso Chama a descanso de comprido error!
“Feliz e mais que se, perdido, achara Conforto e auxilio no catá, seu guia, Que o leva a fonte perenal e fria Onde se apaga o sitibundo ardor.
Tão feliz, qual talvez se o precedesse Que por fanal noturno lhe acendesse Maga estrela de límpido fulgor.
“Ai! porém do que a vê, e a não conhece, Do que a suspira em vão, e a em vão procura, Ou que achando-a, desiste da ventura Por não entrar no oásis sedutor.
Essa flor descoberta por acerto Nunca mais a verás! colhe, insensato, Colhe abrolhos da vida no deserto;
Pois desprezaste a que produz o amor!”
Assim cantava o trovador; e todos Ouvem-no com prazer de dor travado, Que mais do que um talvez terá deixado Atrás de si a pudibunda flor!
No entanto a nuvem d’árabes errantes Chega-se à presa, que avistou de longe;
E dos corcéis, que alentam ofegante, Precede a marcha túrbido pavor!
E, nado o sol, aquele que passava Pelos desertos d’abrasada areia, Que o rubro sangue de cruor roxeia, A um lado o rosto pálido, voltou!
Ninguém as mortes lastimáveis chora, Ninguém recolhe os restos insepultos, E o mesmo orvalho, que goteja a aurora, Sem borrifa-los, no areal ficou! Quem saberá do seu destino agora?
Ninguém! Somente em climas apartados Miseranda mulher lastima os fados De filho ou esposo, que jamais tornou!
Talvez porém, trás de montões d’areia, Nobre corcel sem cavaleiro assoma, E alonga avista, de pesares cheia, Te onde a vida seu senhor deixou!
A SUA VOZ
Ouvi-a! A sua voz me despertava Tudo quanto de bom conservo n’alma.
Retratado o pudor tinha no rosto, E um suave dizer, um timbre doce De voz, uma piedade estreme e santa, Que as mais profundas chagas amimava, D’ambrosia e de mel lhe ungia os lábios.
Ouvi-a! A sua voz era mais branda, Mais impressiva que o cantar das aves!
A aragem qu1entre flores se desliza E mal remexe a tímida folhagem, A veia de cristal que triste soa, O saudoso arrulhar de mansas pombas, As próprias notas dum cantar longínquo Ou de instrumento a conversar co’a noite, Menos que a sua voz impressionavam!
Menos que a sua voz! – Os dois mais fortes, Os dois mais puros sentimentos nossos - A saudade e o amor, - as mais profundas Das merencórias solidões da terra -As florestas e o mar, - um cismar vago, Um devaneio, um êxtasis sem termo D1alma perdida por um cu de amores, Tanto como a sua voz não arroubavam!
Tanto como a sua voz! – somente o foram Dulces notas de místicos saltérios Te nós de um astro em outro repetidas.
Foi isto o que senti, quando a escutava, Fluente, harmoniosa, discorrendo Em prática singela, sobre assuntos Diversos, sobre flores, menos belas Do que o seu rosto, e céus, com ela, puros.
Mas quem na ouvira conversar de amores, Trouxera n1alma como uma harpa cólia, Dia e noite vibrando, Como um cantar dos anjos Do coração a estremecer-lhe as fibras!
SE MORRE DE AMOR
Se se morre de amor! – Não, não se morre, Quando é fascinação que nos surpreende De ruidoso sarau entre os festejos;
Assomos de prazer nos raiam n1alma, Que embelezada e solta em tal ambiente No que ouve, e no que vê prazer alcança!
Simpáticas feições, cintura breve, Graciosa postura, porte airoso, Uma fita, uma flor entre os cabelos, Um quê mal definido, acaso podem Num engano d’amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio, Devaneio, ilusão, que se esvaece Ao som final da orquestra, ao derradeiro Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam, D1amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente Alma, sentidos, coração – abertos Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos, D’altas virtudes, te capaz de crimes!
Compr’ender o infinito, a imensidade, E a natureza e Deus; gostar dos campos, D’ave, flores, murmúrios solitários;
buscar tristeza, a soledade, o ermo, E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma Fontes de pranto intercalar se custo;
Conhecer o prazer e a desventura No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto O ditoso, o misérrimo dos entes:
Isso é amor, e desse amor se morre!
Amar, e não saber, não ter coragem Para dizer que amor que em nós sentimos;
Temer qu’olhos profanos nos devassem O templo, onde a melhor poção da vida Se concentra; onde avaros recatamos Essa fonte de amor, esses tesouros Inesgotáveis, d’ilusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora Compr’ender, sem lhe ouvir, seus pensamentos, Segui-la, sem poder fitar seus olhos, Ama-la, sem ousar dizer que amamos, E, temendo roçar os seus vestidos, Arder por afoga-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!
Se tal paixão enfim transborda, Se tem na terra o galardão devido Em recíproco afeto; e unidas, uma, Dois seres, duas vidas se procuram, Entendem-se, confundem-se e penetram Juntas – em puro céu d’êxtasis puros;
Se logo a mão do fado as torna estranhas, Se os duplica e separa, quando unidos A mesma vida circulava em ambos;
Que será do que fica, e do que longe Serve às borrascas de ludíbrio e escárnio?
Pode o raio num píncaro caindo, Torna-lo dois, e o mar correr entre ambos;
Pode rachar o tronco levantado E dois cimos depois verem-se erguidos, Sinais mostrando da aliança antiga;
Dois corações porem, que juntos batem, Que juntos vivem, - se os separam, morrem;
Ou se entre o próprio estrago inda vegetam, Ânsias cruas resumem do proscrito, Que busca achar no berço a sepultura!
Esse, que sobrevive a própria ruína, Ao seu viver do coração, - às gratas Ilusões, quando em leito solitário, Entre as sombras da noite, em larga insônia, Devaneando, a futurar venturas, Mostra-se e brinca a apetecida imagem;
Esse, que à dor tamanha não sucumbe, Inveja a quem na sepultura encontra Dos males seus o desejado termo!
A MORTE É VÁRIA
A morte é vária e multiforme, e muda De trajes e de máscaras mais vezes Qu’uma cansada atriz;
Nem sempre é, qual se pinta, o negro espectro D’irônico sorriso e brancos dentes, E d’hórrido cariz.
Nem todos seus vassalos são poeira No ressalto de pedra adormecidos Por sob as arcarias;
A pálida libré nem todos vestem, Nem sobre todos jaz murada a porta Nas criptas sombrias!
Diversa a natureza é doutros mortos:
Nestes que a sânie e podridão consomem, Vê-se o nada palpável;
Vê-se o enojo, o horror, a sombra espessa E o esfaimado esquife, abrindo as fauces, Qual monstro insaciável!
Cabe a outros porém que se dor vemos Passar, girar no turbilhão dos vivos, De carne inda vestidos, O nada inda encoberto; cabe a interna Morte, que ninguém sabe, nem chora, Nem mesmo os mais queridos!
Pois, se vamos ver nos cemitérios As campas, ou ilustres ou sem nome, De mármore ou torrão;
Ou tenhamos ali amiga pálpebra, Ou não, - do teixo à sombra descansada, Quer choremos, que não!
“Jazem” dizemos. Os nomes desaparecem Sob a relva; o verme nesses olhos Enreda a teia crua!
Por entre as pranchas do caixão despontam Hirtos cabelos, e em pó funéreo envolta Branqueja a ossada nua.
Os herdeiros não temem que mais volte;
Esqueceram-no já: seus cães se lembram, Soltando uivos de dor!
Acama-se a poeira em seus retratos:
Já não tem mais rivais, não tem amigos, Nem ódios, nem amor!
Da morte o anjo, em lágrimas de pedra Vemos sozinho e mudo a pranteá-lo, Estátua da aflição:
A cova toma o corpo, o olvido o nome Tem pó lençóis seis pés d’úmida terra...
Mortos, bem mortos são!
E dos olhos talvez se voz deslize O pranto sobre a relva, pelo orvalho E chuva umedecida;
Que na triste mansão os regozije, E por essa oblação enternecidos Um resto achem de vida.
Mortos do coração ninguém os chora, Ninguém, se a um destes vê, lhe diz piedoso:
“Seja o Senhor contigo.”
Curam do morto, lavam-lhe as feridas;
Mas a alma estala em que alguém se doa, Nem mesmo o mais amigo!
Há contudo pungentes agonias Nunca sabidas, dores horrorosas Mais do que se não crê;
Almas há que tem cruz e passamento, Sem auréola d’oiro e a mulher pálida E desgrenhada – ao pé.
Fonte:
DIAS, Gonçalves. Poesia completa e prosa escolhida. Rio de Janeiro : José Aguilar, 1959. p.259-281.
(Biblioteca Luso-Brasileira, Série Brasileira).
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Roberto Dauar – São Paulo /SP
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