Mocidade e Morte
Solevantado o corpo, os olhos fitos, As magras mãos cruzadas sobre o peito, Vede-o, tão moço, velador de angústias, Pela alta noite em solitário leito.
Por essas faces pálidas, cavadas, Olhai, em fio as lágrimas deslizam;
E com o pulso, que apressado bate, Do coração os estos harmonizam.
Ë que nas veias lhe circula a febre:
É que a fronte lhe alaga o suor frio;
É que lá dentro à dor, que o vai roendo, Responde horrível íntimo cicio.
Encostando na mão o rosto aceso, Fitou os olhos húmidos de pranto Na lâmpada mortal ali pendente, E lá consigo modulou um canto.
É um hino de amor e de esperança?
É oração de angústia e de saudade?
Resignado na dor, saúda a morte, Ou vibra aos céus blasfémia d'impiedade?
É isso tudo, tumultuando incerto No delírio febril daquela mente, Que, balouçada à borda do sepulcro, Volve após si a vista longamente.
É a poesia a murmurar-lhe na alma Última nota de quebrada lira;
É o gemido do tombar do cedro;
É triste adeus do trovador que expira.
DESESPERANÇA
Meia-noite bateu, volvendo ao nada Um dia mais, e caminhando eu sigo!
Vejo-te bem, ó campa misteriosa...
Eu vou, eu vou! Breve serei contigo!
Qual tufão, que ao passar agita o pego, Meu plácido existir turvou a sorte:
Hálito impuro de pulmões ralados Me diz que neles se assentou a morte:
Enquanto mil e mil no largo mundo Dormem em paz sorrindo, eu velo e penso, E julgo ouvir as preces por finados, E ver a tumba e o fumegar do incenso.
Se dormito um momento, acordo em sustos;
Pulos me dá o coração no peito, E abraço e beijo de uma vida extinta O último sócio, o doloroso leito.
De um abismo insondado às agras bordas Insanável doença me há guiado, E disse-me: «No fundo o esquecimento:
Desce; mas desce com andar pausado.»
E eu lento vou descendo, e sondo as trevas:
Busco parar; parar um só instante!
Mas a cruel, travando-me da dextra, Me faz cair mais fundo, e grita: «Avante!»
Porque escutar o trânsito das horas?
Alguma delas trar-me-á conforto?
Não! Esses golpes, que no bronze ferem, São pura mim como dobrar por morto.
«Morto!, morto!» me clama a consciência:
Diz-mo este respirar rouco e profundo.
Ai!, porque fremes, coração de fogo, Dentro de um seio corrompido e imundo?
Beber um ar diáfano e suave, Que renovou da tarde o brando vento, E convertê-lo, no aspirar contínuo, Em bafo apodrecido e peçonhento!
Estender para o amigo a mão mirrada, E ele negar a mão ao pobre amigo;
Querer uni-lo ao seio descarnudo, E ele fugir, temendo o seu perigo!
E ver após um dia ainda cem dias, Nus d'esperança, férteis de amargura;
Socorrer-me ao porvir, e achá-lo um ermo, E só, bem lá no extremo, a sepultura!
Agora!... quando a vida me sorria:
Agora!... que meu estro se acendera;
Que eu me enlaçava a um mundo d'esperanças, Como se enlaça pelo choupo a hera, Deixar tudo, e partir, sozinho e mudo;
Varrer-me o nome escuro esquecimento:
Não ter um eco de louvor, que afague Do desgraçado o humilde monumento!
Ó tu, sede de um nome glorioso, Que tão fagueiros sonhos me tecias, Fugiste, e só me resta a pobre herança De ver a luz do Sol mais alguns dias.
Vestem-se os campos do verdor primeiro:
Já das aves canções no bosque ecoam:
Não para mim, que só escuto atento Funéreos dobres que no templo soam!
Eu que existo, e que penso, e falo, e vivo, Irei tão cedo repousar na terra?!
Oh, meu Deus, oh, meu Deus!, um ano ao menos;
Um louro só... e meu sepulcro cerra!
E tão bom respirar, e a luz brilhante Do sol oriental saudar no outeiro!
Ai, na manhã saudá-la posso ainda;
Mas será este Inverno o derradeiro!
Quando de pomos o vergel for cheio;
Quando ondear o trigo na planura;
Quando pender com áureo fruto a vide, Eu também penderei na sepultura.
Dos que me cercam no turbado aspecto, Na voz que prende desusado enleio, No pranto a furto, no fingido riso Fatal sentença de morrer eu leio.
Vistes vós criminoso, que hão lançado Seus juízes nos trances da agonia, Em oratório estreito, onde não entra Suavíssima luz do claro dia;
Diante a cruz, ao lado o sacerdote, O cadafalso, o crime, o algoz na mente, O povo tumultuando, o extremo arranco, E Céu, e Inferno, e as maldições da gente?
Se adormece, lá surge um pesadelo, Com os martírios da sua alma acorde;
Desperta logo, e à terra se arremessa, E os punhos cerra, e delirante os morde.
Sobre as lájeas do duro pavimento De vergões e de sangue o rosto cobre.
Ergue-se e escuta com cabelos hirtos Do sino ao longe o compassado dobre.
Sem esperança!...
Não! Do cadafalso Sobe as escudas o perdão às vezes;
Porém a mim... não me dirão: «És salvo!»
E o meu suplício durará por meses.
Dizer posso: «Existi: que a dor conheço!»
Do gozo a taça só provei por horas:
E serei teu, calado cemitério, Que engenho, glória, amor, tudo devoras.
Se o furacão rugiu, e o débil tronco De árvore tenra espedaçou passando, Quem se doeu de a ver jazendo em terra?
Tal é o meu destino miserando!
Númen de santo amor, mulher querida, Anjo do Céu, encanto da existência.
Ora por mim a Deus, que há-de escutar-te.
Por ri me salve a mão da Providência.
Vem: aperta-me a dextra... Oh, foge, foge!
Um beijo ardente aos lábios teus voara:
E neste beijo venenoso a morte Talvez este infeliz só te entregara!
Se eu pudesse viver... como teus dias Cercaria de amor suave e puro!
Como te fora plácido o presente;
Quanto risonho o aspecto do futuro!
Porém, medonho espectro ante meus olhos, Como sombra infernal perpétuo ondeia, Bradando-me que vai partir-se o fio Com que da minha vida se urde a teia.
Entregue à sedução enquanto eu durmo, No turbilhão do mundo hei-de deixar-te!
Quem velará por ti, pomba inocente?
Quem do perjúrio poderá salvar-te?
Quando eu cerrar os olhos moribundos Tu verterás por mim pranto saudoso;
Mas quem me diz que não virá o riso Banhar teu rosto triste e lacrimoso?
Ai, o extinto só herda o esquecimento!
Um novo amor te agitará o peito:
E a dura lájea cobrirá meus ossos Frios, despidos sobre térreo leito!...
Ó Deus, porque este cálix de agonia Até as bordas de amargor me encheste?
Se eu devia acabar na juventude, Porque ao mundo e a seus sonhos me prendeste?
Virgem do meu amor, porque perdê-la?
Porque entre nós a campa há-de assentar-se?
Tua suprema paz com gozo ou dores Do mortal, que em ti crê, pode turbar-se?
Não haver quem me salve! e vir um dia Em que de minha o nome ainda lhe desse!
Então, Senhor, o umbral da eternidade, Talvez sem um queixume, transpusesse.
Mas, qual flor em botão pendida e murcha, Sem de fragrâncias perfumar a brisa, Eu poeta, eu amante, ir esconder-me Sob uma lousa desprezada e lisa!
Porquê? Qual foi meu crime, ó Deus terrível?
Em te adorar que fui, senão insano?...
O teu fatal poder hoje maldigo!
O que te chama pai, mente: és tirano.
E se aos pés de teu trono os ais não chegam;
Se os gemidos da terra os ares somem;
Se a Providência é crença vã, mentida, Porque geraste a inteligência do homem?
Porque da virgem no sorrir puseste Santo presságio de suprema dita, E apontaste ao poeta a imensidade Na ânsia de glória que em sua alma habita?
A imensidade!... E que me importa herdá-la, Se na Terra passei sem ser sentido?
Que vale eterno vaguear no espaço, Se nosso nome se afundou no olvido?
O ANJO-DA-GUARDA
Ímpio, silêncio! A tua voz blasfema Da noite a paz perturba.
Verme, que te rebelas Sob a mão do Senhor, Vês os milhões d'estrelas De nítido fulgor, Que, em ordenada turba, A Deus entoam incessantes hinos?
Quantas vezes apaga Do livro da existência Um orbe a mão do Eterno!
E o belo astro que expira Maldiz a Providência, Maldiz a mão que o esmaga?
Acaso pára o cântico superno?
Ou apenas suspira O moribundo, Que se chamava um mundo?
Quem vai pôr uma campa sobre os restos Desse inerte planeta, Que o destrutor cometa Incinerou na rápida passagem?
E tu, átomo obscuro, Que varre à tarde a aragem, Soltas do seio impuro Maldição insensata, Porque o teu Deus te evoca à eternidade?
Que é o viver? O umbral, a que um momento O espírito, surgindo Das solidões do nada À voz do Criador, se encosta, e atento Contempla a luz e o céu; donde desata Seu voo à imensidade.
Geme acaso o passarinho De saudade, Quando as asas expande, e deixa o ninho A vez primeira, a mergulhar nos ares?
Volve olhos lacrimosos Aos mares tormentosos O navegante, quando aproa às plagas Da pátria suspirada?
Porque morres?! Pergunta à Providência Porque te fez nascer.
Qual era o teu direito a ver o mundo;
Teu jus à existência?
Olha no Outono o ulmeiro Que o vendaval agita, E cujas ténues folhas Aos centos precipita.
São a folha do ulmeiro o nome e a fama, E o amar dos humanos:
Ao nada do que foi assim se atiram No vórtice dos anos.
Que é a glória na Terra? Um eco frouxo, Que somem mil ruídos.
E a voz da Terra o que é, na voz imensa Dos orbes reunidos?
Amor!, amor terreno!... Ai, se pudesses Compreender a amargura, Com que te choro, ó alma transviada!
Eu, que te amei do berço, e qual doçura Há no afecto que liga o anjo ao homem, Rindo despiras esse corpo enfermo, Paru te unir a mim, para aspirares O gozo celestial de amor sem termo!
Alma triste, que mesquinha Te debruças sobre o Inferno, Ouve o anjo, pobrezinha;
Vem ao gozo sempiterno.
Resigna-te e espera, e os dias de prova Serão para o crente quais breves instantes.
Tomar-te-ei nos braços no trance da morte, Fendendo o infinito coas asas radiantes.
Depois, das alturas teu térreo vestido Sorrindo veremos na Terra guardar E ao hino de Hossana nos coros celestes A voz de um remido iremos juntar.
A GRAÇA
Que harmonia suave É esta, que na mente Eu sinto murmurar, Ora profunda e grave, Ora meiga e cadente, Ora que faz chorar?
Porque da morte a sombra, Que para mim em tudo Negra se reproduz, Se aclara, e desassombra Seu gesto carrancudo, Banhada em branda luz?
Porque no coração Não sinto pesar tanto O férreo pé da dor, E o hino da oração, Em vez de irado canto, Me pede íntimo ardor?
És tu, meu anjo, cuja voz divina Vem consolar a solidão do enfermo, E a contemplar com placidez o ensina De curta vida o derradeiro termo?
Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,.
Da aurora à frouxa luz, Me dizias: «Acorda, inocentinho, Faz o sinal da Cruz.»
És tu, que eu via em sonhos, nesses anos De inda puro sonhar, Em nuvem d'ouro e púrpura descendo Coas roupas a alvejar.
És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga, Junto ao bosque fremente, Me contavas mistérios, harmonias Dos Céus, do mar dormente.
És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta Modulavas o canto, Que de noite, ao luar, sozinho erguia Ao Deus três vezes santo.
És tu, que eu esqueci na idade ardente Das paixões juvenis, E que voltas a mim, sincero amigo, Quando sou infeliz.
Sinta a tua voz de novo, Que me revoca a Deus:
Inspira-me a esperança, Que te seguiu dos Céus!...
RESIGNAÇÃO
No teu seio, reclinado Dormirei, Senhor, um dia, Quando for na terra fria Meu repouso procurar;
Quando a lousa do sepulcro Sobre mim tiver caído, E este espírito afligido Vir a tua luz brilhar!
No teu seio, de pesares O existir não se entretece;
Lá eterno o amor florece;
Lá florece eterna paz:
Lá bramir junto ao poeta Não irão paixões e dores, Vãos desejos, vãos temores Do desterro em que ele jaz.
Hora extrema, eu te saúdo!
Salve, ó trevas da jazida, Donde espera erguer-se à vida Meu espírito imortal!
Anjo bom, não me abandones Neste trance dilatado;
Que contrito, resignado, Me acharás na hora fatal.
E depois... perdoa, ó anjo, Ao amor do moribundo, Que só deixa neste mundo Pouco pó, muito gemer.
Oh... depois... diz à mesquinha Um segredo de doçura:
Que na pátria o amor se apura, Que o desterro viu nascer.
Que é o Céu a pátria nossa;
Que é o mundo exílio breve;
Que o morrer é cousa leve;
Que é princípio, não é fim:
Que duas almas que se amaram Vão lá ter nova existência, Confundidas numa essência, A de um novo querubim.