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Textos para uso geral de domínio público.

Madresilvas

Meu Poeta:
Queres duas palavras minhas na primeira pagina do teu livro.
Obedeço.
Sem direito de cidade n'esse mundo, todo teu, da poesia, comprehende-se que eu hesitasse em acudir ao teu honroso reclamo. Mas a rude compostura da fachada póde trazer um realce mais ás linhas harmoniosas da architectura interior.
Eis porque não quiz declinar da incumbencia.
Ainda assim, venho realisal-a, sem a minima pretensão aos fóros de critico, e saudaudo apenas o teu livro com os emboras do amigo e com a brevidade que requerem os interesses meu, teu e de quem lêr ainda introducções, as quaes, aqui entre nós, vão passando de moda. Projecção de um nome saudosamente lembrado na republica litteraria, não devias partir o fio de tão honrosas tradições. O teu livro é prova de que recolheste o triplice legado paterno do talento, do aferro ao trabalho e do amor ás boas lettras.
Estrophes de um poema intimo,— notas da harpa do coração arrancadas no delirio do amor, nos arroubos do enthusiasmo, ou no pungir agri-doce das recordações felizes — eis as Madresilvas.
Vehemencia no sentir e suavidade na fórma é o caracter dominante da sua inspiração. Estrophes ha O do finado Brigadeiro José Joaquim Machado d'O1iveira. que ao proferil-as parece o labio vibrar a um tempo o desespero de um desejo não saciado, e modular o fiebil queixume de uma saudade resignada.
A poesia, diz Villemain, e a leitura do teu livro o confirma, é muitas vezes uma cousa sem nome e sem feições distinctas, um capricho da phantasia, em que a impotencia da analyse é ainda um triumpho do gosto.
N'este caso estão muitas das flores do teu ramalhete de Madresilvas.
Não ha ahi unidade de ideias n'essas impressões de cada dia a se estamparem, sombrias ou alegres, na tua alma de poeta.
As Madresilvas são o écho de uma esperança que sorriu ou de uma illusão que se desfolhou; após o resvalar de uma reminiscencia, o anceio da saudade; ora uma evocação soluçada á beira de um tumulo, ora esse idylio sempre novo do amor. Em todo o quadro, porém, brilha o colorido de uma imaginação delicada e o reverbéro do sentimento — essa contractilidade das fibras d'alma, que se commovem diante do bello e estremecem dedilhadas pela paixão.
Em summa, o teu livro é uma grande esperança e uma brilhante promessa.
Enumerar-lhe aqui bellezas e lacunas, seria desviar-me do proposito que formulei, e prevenir a jurisdicção do publico, julgador mais competente. Devo comtudo dizer que o volume não é isento de defeitos, principalmente no que toca á metrificação. São incertezas do primeiro vôo que o futuro se incumbirá de corrigir.
Em todo o caso, as Madresilvas, florescencia e primicias do teu talento, revelão exuberancia de seiva e uma vitalidade promettedora de fructos ainda mais sazoados.
A minha opinião, que tu desejavas, é essa.
Rio de Janeiro.
AURELIANO COUTINHO. PRIMEIRO LIVRO A volta Elle vinha de longe. Achou deserto o campo, e o lar aberto a extranhos recebia.
Trajava a casa o manto da riqueza.
A mão da natureza alli já não se abria. l6 MADRESILVAS
Ai! se não fôra esse intimo attractivo, na dôr sempre mais vivo, mais vivo na saudade;
esse doce attractivo que nos liga á sombra tão amiga da morta mocidade...
que leva-nos bem longe do tumulto, para prestarmos culto, no altar de uma lembrança, ás risonhas chimeras do passado, tão cedo desfolhado, qual sonho de criança...
por certo passaria — indifferente.
E a saudade silente, das arvores suspensa, MADRESILVAS 17 não lançaria a cinza adormecida na flor d'aquella vida, esteril para a crença !
Mas, ao chegar, alguem inda o notara, e logo perguntara:
quem era? o que buscava?
E essa pergunta lhe doêra tanto!
que em dous fios de pranto seu rosto se molhava!...
Extranho ser! alli, ao pé do ninho, quando a voz de um carinho ouvir talvez pudesse...
Ai! ser extranho, quando alli vivera, e, misero, prendera o amor que não fenece... l8 MADRESILVAS
Ai! ser extranho, quando mesmo a aragem trazia da folhagem não sei que som doído, que lhe vinha fallar, e tanto, tanto!
n'aquelle desencanto de um sonho esvaecido !
E quando tudo lhe inflammava a mente, e a saudade dolente seu coração abria ;
quando rodeado do que mais amara, alguem lhe perguntara:
quem era? o que queria?
É verdade! bem como as borboletas que fogem inquietas do arbusto sacudido, MADRES1LVAS 10 vão-se as lembranças, se no patrio ninho, ou do extranho, ou do espinho o braço tem cahido.
Mas tambem, quando volta o desterrado as sombras do passado agrupão-se ao pé d'elle:
e ao seio que a esperança não fecunda sae da noite profunda um anjo que as impelle Elle vinha de longe. Achou deserto o campo, e o lar aberto a extranhos acolhia.
Em sua mão não viu a mão do amigo, mas Deus n'aquelle abrigo contente o recebia.
São Paulo — 1870. Flor no gelo Pobre criança! entre espinhos tua innocencia agonisa:
o viajante repisa a morta flor dos caminhos.
Deixaste em noite sombria tua grinalda ao relento...
Das flôres... nem sabe o vento que uma a uma as partia! Emquanto em languido riso teus labios puros se abrião aos sonhos que revivião delicias do paraiso, tu nem scismavas, criança, que quando a virgem fenece, a estrella que des'parece leva comsigo a esperança!
Pobre! na alegre deveza d'aquella casinha branca onde tu' irmã, na barranca do rio, chora em tristeza, o campo flor não promette, tudo na dôr se consome;
e o écho esquece teu nome...
nem tua mãe o repete!
22 MADRESILVAS MADRESILVAS 23 A mãe! que noites sem somno!
que mágoas n1 aquelles dias !
que terriveis agonias na dôr d 'aquelle abandono!
Mas, oh! não voltes... O inverno queimou-te as azas depressa:
e onde a irmãzinha adormeça no casto seio materno, não deves buscar asylo;
porque a ramagem do espinho póde estreitar o bercinho que se balança tranquillo!
Bem sei: —ha quédas immensas que uma lagrima resgata;
mas não sei, pobre insensata, se revivem mortas crenças... 24 MADRESILVAS
Se assim fôr, chora, criança!
talvez do pranto que cáia Deus forme a flor d'onde saia o aroma de uma esperança! Ave dourada (N. MARTIN, Mariska)
Um pássaro cantava sobre um ramo que flórido alvejava.
Era uma ave tão de ouro que disseram-n'a — filha peregrina do sol, o amante louro.
Como ao toque uma lamina que vibra, á sua voz crystallina tremia o coração, fibça por fibra. 26 MADRESILVAS
E á minh'alma a esperança entumecia de sonhos... mas o encanto se esvaía.
Ai! quando o verei mais, funda saudade!
o passaro de luz da mocidade! Na walsa (MÉRY)
— Um ' hora.
— A pendula mente, meia-noite vae soar.
— Que baile este attrahente!
— Soberba festa, senhora, festa completa, n ' est ' hora em que estamos a walsar.
— Acha a toilette — brilhante d' aquella loura mulher? 28 M ADRESILVAS
— Oh! n'este suave instante não se desprendem, siquer, meus olhos de uma walsante que é formosa a mais não ser.
— Não agradou-lhe o romance cantado tão bem aqui?
— Só vivo quando walsamos...
portanto nada eu ouvi.
— Esta walsa que dansamos é de Strauss?
— Talvez... depois toda a walsa é tão bonita!
marca o tempo só p'ra dois!
— N'este inverno ha muitos bailes...
— Eu não não frequento, não:
passo a noite ou nos theatros ou no lar junto ao fogão.
— Tão moço! e já de neve a mocidade cobris ? MADRESILVAS 21 — Tenho trint'annos. Passada a primavera dourada, apenas cáe-me esfolhada alguma hora feliz.
— A ideia é nova!
— Tenho outra que é tambem nova p'ra mim.
— Não é segredo ?
— Suspeito que vós sois viuva...
— Sim.
— E desde quando?
— Ha dois annos.
— E gosta da viuvez ?
— Sim.
— Porque é repellente um laço eterno, talvez...
O esposo é pouco indulgente...
— Pensai-o, se assim quereis.
— Não, a viuvez não lhe agrada;
seu sorriso assim m'o diz...
— Tambem só, me custa a vida: 30 MADRESILVAS
podemos, pois, de dois males formar destino feliz.
Assim, dá-me a sua mão?
— A minha ?
— Sim; nosso estado não impede uma união.
Seus paes...
— São vivos.
— Qu'importa ?
elles jámais poderão contrariar o destino.
Vivos, na morte elles 'stão.
— Foi seu pedido — apressado!
— Não estamos no paiz da Escossia; e todo noivado de Lammermoor é infeliz...
Não faremos festa alguma de esponsaes: — em bons caminhos não ponho o pé nos espinhos.
Casaremos amanhan...
— Amanhan ?
— Ou nunca! MADRESILVAS 3l — Extranho caso igual inda não vi.
— Que tem? é cousa mais simples que pôr um ponto no i.
— Como se chama?
— Meu nome?
Pedro ou Paulo, qual quizer.
Qu'importa o nome de um moço?
sem ter um, mais posso ter.
Sou rico. Minha fortuna não é mesquinha, nem van:
consta de acções e de apolices...
Findou a walsa.
— Amanhan. Reminiscencias Oh! não toqueis assim n'esse piano...
Essa musica é triste como a morte:
as notas se desprendem, como a lagrima gotteja sobre um tumulo.
A corda chora, e no contacto sente uma outra mão que não a d'elle... morto.
E ao retrahir-se deixa um som que é lugubre, ou um gemido tremulo. 34 MADRESILVAS
Foi seu canto de cysne... Pobre amigo!
nunca pensara desfolhar tão cedo o risonho porvir, e cedo á gloria prender um laço funebre.
Não pensara deixar tão cedo a estrada cuja poeira os louros escondião, e trocar as grinaldas estelliferas pelos goivos funéreos.
Não evoqueis a sombra! no cypreste a rôla da saudade geme ainda.
A aza do tempo sobre o marmor gelido não apagou seu distico.
E é tão doída essa saudade immensa, que eu vos peço, senhora: do piano não arranqueis esse gemido extremo.
Não aperteis a cicatriz que dóe-me contra a lage de um tumulo!
São Paulo — 1871. A Estrela Tu és a vela dourada do azul abysmo dos céus, ilha que vaes embalada ao sopro d'aza de Deus.
Quando a tarde morre, e o monte naufraga em sombrio mar, e as aves dobrão a fronte no occulto ninho a sonhar; 36 MADRESILVAS
sacodes do céu distante com tuas azas de luz uma chuva scintillante sobre os paramos azues.
E corta a quilha encantada do infinito os largos véus, ilha que vaes embalada ao sopro d'aza de Deus.
II
No vasto lençol da vaga peregrina a luz que cáe se estende de plaga em plaga:
é teu arauto que vae, que vae erguer as ondinas, á noite, para apanhar na onda as flores divinas que derramas sobre o mar. MADRESILVAS 37 E cáem scentelhas mimosas do astro que des'rochou, como um punhado de rosas que o vento ao lago atirou.
E brinca a luz desfolhada que sacodes de teus véus, ilha que vaes embalada ao sopro d'za de Deus.
III
Mas, d'onde vens? qual teu norte?
que sina cumpres além?
não te alcança a mão da morte?
o Eterno não te detém?
Qu'importa ? sigo teu passo, peregrina da amplidão, tu és o sonho do espaço, do infinito o coração. 38 MADRESILVAS
Deixa-me, pois, nas caladas da noite, os olhos erguer para as regiões azuladas em que te vejo tremer.
E envolve est'alma apagada n 'um longo brilho dos teus, ilha que vaes embalada ao sopro d'aza de Deus! Uma noite em S. Paulo Minha terra é o paiz das serenatas por noites de luar, emquanto a névoa em tremulas cascatas no rio vem boiar.
As frautas, do violão ao som doído aqui sabem dizer os segredos do amor, saudades vivas dos annos de prazer. 40 MADRESILVAS
Jámais em labios rubros de hespanhola a cantiga gemeu como uma só das bellas serenatas que escuta o nosso céu.
Jámais o gondoleiro do Rialto que a onda acalentou mais doce canto ás auras do Adriatico á noite suspirou.
Em meu paiz o canto do tropeiro sentado ao pé do lar, ou do rancho nos êrmos, onde a lua encontrou-o a sonhar;
a cantiga do escravo suspiroso no exilio do sertão, quando ao dia que morre elle despede sua patria canção;
as tyrannas doídas que a viola chorando desprendeu acordão mais o genio da saudade na sombra d'este céu... MADRESILVAS 41 Nosso canto aprendeu as melodias, seus hymnos virginaes, da cascata no tremulo murmúrio, na voz dos sabiás...
Minha terra é o paiz das serenatas por noites de luar...
Vinde, filhos de além, vêr quanto é doce sob a curva do céu aqui sonhar! Soneto Ella partiu. Sorria-lhe a esperança como um raio de sol do mar á flor;
e aquella nobre fronte de criança cingia os sonhos de um primeiro amor.
Depois eu vi-a. O iris da bonança desfolhava no céu já frouxa luz:
e aquella nobre alma de criança sentia a sombra da primeira cruz. 44 MADRESILVAS
A vida é isto mesmo. Abre-se um dia, desabotôa a caule: — é a mocidade...
Desce da altura magica harmonia.
Depois os sonhos da formosa idade, como as aves que arrasta a ventania, perdem-se além...
Em nós fica a saudade! O beija flor Á SUZANNA
Beijaflor das pennas de ouro que võas de flor em flor, onde é que tens o thesouro da prole do teu amor?
em que florido raminho foste prender o teu ninho? 46 MADRESILVAS
Conheço os arbustos verdes onde as aves vão dormir;
mas tu na selva te perdes quando te quero seguir...
E embalde pela folhagem vejo o rastro da passagem.
Sei o lugar onde insectos em c'rôas se vão formar, e em adejos inquietos poem-se á tardinha a bailar;
só tu me occultas, medroso o teu ninho perfumoso.
Quando esvoaças no prado a rosa treme de amor, e abre o seio córado porque és o noivo da flor...
E desces, desces a ella tanto, tanto! beijaflor! MADRESILVAS 47 E a brisa expulsa do calix onde procuras pousar, a borboleta dos valles e as abelhas do lugar;
p'ra que não saibas que as flores voluveis são nos amores.
E eu, contemplando estas scenas espero que a viração erga-te as azas pequenas para a azulada amplidão, e desça comtigo aonde teu alvo ninho se esconde...
E desça para embalar-te mimoso filho do céu, no berço, que em toda a parte debalde procuro eu...
no berço que eu imagino ser um lyrio pequenino! 48 MADRESILVAS
Beijaflor de pennas de ouro, tu que és o noivo da flor, não escondas o thesouro da prole do teu amor!
Para o seio d'estas rosas traze o ninho, beijaflor! A familia Eu conheço um abrigo, onde a esperança de pennas de ouro revestir-se vae, onde das crenças o evangelho lemos sobre uns joelhos de mãe, e aprendemos a crer na virgindade ao pé de nossa irmã! 50 MADRESILVAS
É o ninho da família.
O desengano mui raras vezes se sentou chorando d'aquella porta ao pé.
E quando ao mundo a aspiração nos leva, ha sempre um beijo que depor, sentido, até no musgo que reveste o muro.
Alli, sobre a criança que respira as aragens do céu, da terra em meio, seu pallido semblante a mãe debruça;
e os olhos dizem o que os labios calão, e o beijo conta o que o amor, baixinho, ao coração segreda.
Sorrindo Deus contempla aquelle grupo...
e abrindo a mão que as esperanças enchem, por sobre o chão derrama os louros fructos da harmonia e do amor, como a chuva no campo orvalha os lyrios.
Depois no lar o sol da mocidade rebenta ao lado do luar dos velhos. A mão rugosa no semblante louro que a aspiração eleva, encontra sempre luz, futuro e crenças, ella — que apalpa da ruina o muro, e enxuga os olhos, cujo pranto é gêlo!
E é tão fecunda a primavera d'alma, de seu thesouro immenso tanta vida prodíga a mocidade, que é menos fria junto d, ella a sombra, menos esteril do sepulchro a terra.
Depois... lá vêm os annos da ventura, abrindo os braços, murmurar: adeus!
e nós partimos, tristes, impellidos, como folhas — no dorso das enchentes, como nuvens — nas azas do tufão!...
MADRESILVAS 5l Antonio de Castro Alves RECITADA NA SESSÃO FÚNEBRE QUE, EM MEMORIA DO POETA, CELEBRARÃO OS ACADÉMICOS DE SÃO PAULO, NO DIA 8 DE AGOSTO DE 187I.
É tarde! é muito tarde! o templo é negro...
O fogo-santo já no altar não arde.
Vestal! não venhas tropeçar nas pyras...
É tarde! é muito tarde!
CASTRO ALVES — Espumas fluctuantes.
É tarde! é muito tarde! nos caminhos elle cedo encontrou a noite escura:
e unidas, como irmãs no mesmo berço, 'stavão a lyra e a cruz na sepultura... 54 MADRESILVAS
É tarde! é muito tarde! o seu futuro como luz se atufou no mar profundo.
E Deus na terra estende uma mortalha para um talento mais do novo mundo.
Quanto sonho gelado n'uma noite!
quanta estrella tombada n'um momento!
quando ella, — a noiva negra, recebia o poeta — da cruz do soffrimento!
O futuro era vasto. Como o passaro soerguido no pincaro dos Andes imbebe o olhar na dupla immensidade do grande espaço e das savanas grandes...
elle sentira desdobrar-se immenso por sobre o mundo o céu da liberdade;
e presentíra as vozes do futuro na acclamação febril da mocidade.
E a mão repleta a transbordar de louros, a fronte ungida a derramar ideias, na dupla cruz do povo e dos escravos elle traçou sublimes epopeias. MADRESILVAS 55 Erguêra os redivivos. Do passado lançou as glorias — do porvir ás telas, e sobre as cinzas desfolhou cantando do seu talento as magicas estrellas...
No emtanto uma ave negra enverga as azas, as fibras do sonhar gemendo estalão, e, flores derramadas na corrente, vinte annos no tumulo resvaláo...
É tarde! é muito tarde! que mais resta da explendorosa luz que o sol derrama?
como negra mortalha o céu é negro, vaga nas selvas funeraária chamma...
Da grande náu as vergas estaladas boião na face escura do oceano;
e ao latego do vento a onda aberta sente o baque de um corpo soberano. 56 MADRESILVAS
É tarde! mas na flor do firmamento Deus abre agora estrellas fulgurantes...
e sobre a vaga adormecida, ao longe passão boiando — Espumas fluctuantes! Jaraguá É este o meu patrio monte que junto ao rio cresceu, e que envolve a idosa fronte nos nevoeiros do céu.
Não temas, não, viajante, ao vêl-o erguido no sul:
tem aguias — são andorinhas, e seu hombro é todo azul. 58 MADRESILVAS
Primeiro beija-lhe a aurora a larga fronte sem par, indo após suas coroas uma por uma espalhar;
como uma filha que beija de seu pae a velha mão, e depois vae as cortinas correr do berço do irmão.
Circulando o vulto immenso, ao sol que tombando vae, uma auréola de incendios fulgurante d'elle sáe.
Altivo, como na America, do condor aos colibris, tudo é soberbo, arrogante, sentindo o sol do paiz;
bem como um velho cacique de seus guerreiros ao pé, elle guarda a cordilheira que azulada além se vê... MADRESILVAS 59 Guarda nos labios de pedra de arruinadas gerações os échos de mil triumphos, o canto das tradições.
Quantas tribus desgarradas de seus pés em derredor vierão erguer as tabas sonhando um valle melhor!
E este foi seu patrio monte, estes valles forão seus...
O monte, os valles ficárão...
dos indios... só sabe Deus!
Oh viajante, não temas ao vêl-o erguido no sul, a fronte, cheia de nevoas, nos hombros um manto azul. Ruinas Agora, cresce o cardo, o espinho estreita n'um abraço de morte minhas flores;
a serpente sem medo agora espreita a vinda dos dourados beijaflores.
Sem firmeza, os quebrados jasmineiros, que outrora balançavão-se no muro, esmagão a violeta dos canteiros onde saltão os grillos pelo escuro. 62 MADRESILVAS
Embalde ha primavera: é tudo inerme, tudo cedeu á cólera dos annos...
apenas eu fiquei para envolver-me no circulo fatal dos desenganos.
Ao pé da fonte a trepadeira pende, e a terra se esboroa d'ella-em volta:
o esteio que a ramagem lhe suspende em pouco tempo vae deixal-a solta.
Não vejo mais alegres passarinhos que á tarde vinhão me saudar cantando;
planta bravía cresce nos caminhos, e o musgo vae nas pedras se alastrando...
Deserta a casa está. Como andorinhas, andorinhas que vão morrer no exílio, os habitantes... ai! lembranças minhas, como sabeis doêr n'alma de um filho!... MADRESILVA.S 63 Meu pae e minha mãe... ambos partírão, ambos partírão e não mais tornarão!
Prantos, riso, após elles me fugírão...
depois apenas lagrimas voltárão...
Nos momentos então da despedida, ao fechar-se p'ra sempre aquelle abrigo, senti perder metade d'esta vida, e maior a tristeza ir-se commigo...
Cada pedra do muro uma lembrança resguardava solícita de outr'ora:
ou talhada por dedos de criança, e portanto festiva como a aurora;
ou turgida de mágoa, dôr immensa, mas inda assim, meu Deus, deixando aberto o caminho por onde a loura crença pudésse vir de nós brilhar mais perto! 64 MADRESILVAS
No emtanto a noite desce. Os vagalumes não vêm mais trebelhar n'estas devezas:
o silencio apagou da noite os lumes no manto das tristezas.
É preciso esquecer as primaveras, arrancar da colmêa as abelhinhas, entregar ao sereno, ao cardo, ás heras, o ninho de andorinhas.
É preciso partir, deixar sentido as auras que alegrárão-me o retiro;
derramar este pranto dolorido, suspiro por suspiro!
E eu deixo o lar entregue ás noites frias...
do esquecimento ? não, meu pobre ninho, embora ao meu encontro despedisses apenas a saudade...
quando podia achar tanto carinho! O drama AO ACTOR, LUIZ C. DE AMOÊDO
Ella é bella... bem sei! mas não se move!
É sombra — e não mulher!
CASTRO ALVES.
O drama é uma estátua erguida. Bella e morta, tem labios e não ri; tem olhos, mas não vê.
O palco é o pedestal augusto... mas qu'importa?
se a vida não palpita, e marmor' tudo é!
5 66 MADRESILVAS
Mas se no pedestal, no placido proscenio, o artista solta a voz e falia o coração, a estátua reconhece o influxo do genio, e chora e canta e ri na estranha commoção.
A pedra um'alma sente; o marmore estremece:
é vida o que era morte; o que era gelo é flor;
e a agitação do genio em torno cresce e cresce no embate da paixão, no impeto do amor...
Então o drama é livro: o palco é uma escóla.
Dá vida, não corrompe; eleva, não desfaz:
os prantos da virtude... enxuga-os e consola...
os arrancos do vicio... algema-os, tenaz!
Do paço até a miseria a vida inteira alcança...
ruge em cólera aqui, além falia em clemência:
n'alma do perseguido — entreabre uma esperança!
no espirito do algoz — desperta a consciencia! MADRESILVAS 67 E emquanto em tua mão palpita e vive o drama, e a estátua cobra vida, — enfloras os lauréis que em toda a parte o povo explendido derrama quando ergue-se no palco um genio... como és!
Piracicaba — 1876. A margem Era na margem do rio.
Por cima, das trepadeiras abrem-se as flores primeiras;
em baixo o abysmo sombrio, todo enredado de espinhos, onde o rio ergue no fundo seu ronco, — o baixo profundo na orchestra dos passarinhos, I 70 MADRESILVAS
que no alto abrem as pennas da aurora ás luzes serenas, borboletas junto á flor!
São trepadeiras — os sonhos, o abysmo — a vida, risonhos cantão poetas o amor!
II
Depois transmuda-se o quadro.
As pet'las cáem na voragem, o ramo sem a folhagem figura um despido altar.
Mas no fundo a mesma vaga negra na rêde de espinhos...
eis o tum'lo; mas os ninhos?...
onde as aves vão cantar? MADRESILVAS 71 E pela margem apenas abrem-se as flores pequenas do musgo dos pedregáes...
São flores mortas os sonhos, o abysmo — a vida; tristonhos os poetas não cantão mais! Rosa mystica A EMÍLIO DO LAGO
Rosa mystica é um nome que resvala perfumoso nos labios da criança, e que baixinho nos ouvidos sôa como um hymno suave de esperança.
Rosa mystica é um extasi divino que em nossas almas entreabre flores, e nos conduz sobre douradas azas para o paiz do encanto e dos amores. 74 MADRESILVAS
Rosa mystica é a lagrima da aurora, nas folhas da açucena á madrugada;
passa a brisa do campo, a gotta brinca no alvo seio da flor immaculada.
Rosa mystica é um canto mysterioso que n'alma imprime um não sei quê de santo;
nota chorosa que dos labios foge deixando os olhos sob um véu de pranto.
Rosa mystica é a prece no perigo, a oração de uma mãe junto do berço;
o marinheiro a lê no céu dos mares quando o espaço na noite fica immerso.
Rosa mystica é a gotta perfumada que a borboleta entre as florinhas pede;
astro nas sombras; no rochedo — fonte onde o passaro vae matar a sede.
Rosa mystica é a pagina dourada em que primeiro o coração soletra;
pagina santa que se imprime n'alma, como ensinos de mãe, letra por letra. MADRESILVAS 75 Rosa mystica é a voz que ainda falla da vida aberta ao sol das innocencias, e no exilio nos faz abrir o livro onde Deus escreveu — reminiscencias! Velho Thema Tudo assim vae: a luz p'ra o ádito sombrio, o verme para o fructo, a flor para o paul;
as azas sobre a chamma; o ninho pelo rio;
o espirito na sombra, as nuvens pelo azul;
o fonte para a pedra, a lagrima nos cilios, nos labios o soluço, o coração na dôr;
a nena compassando o canto dos idyllios, neblina sobre luz, ciume sobre amor; 78 MADRESILVAS
a neve em campo azul, os lyrios e a saudade, o tédio, o soffrimento em plena mocidade, dos espinhos no ramo, em bando, os colibris...
No emtanto quando vem da morte a imagem nua, ave tonta, noss'alma em lagrimas recúa, se debatendo ao pé do tumulo... feliz! Miserere AO AMIGO, PADRE F. DE PAULA RODRIGUES
Oh! lembrai-vos, Senhor, de minhas dores, d'esses élos de ferro que me apertão:
dos olhos meus as lagrimas desertão d'esta febre aos queimores.
Meu pensamento fixo n'rma ideia, dolorosa, fatal, profunda, immensa, vê minh'alma entornando, crença a crença, seu thesouro na areia... 80 MADRESILVAS
E da lucta tremenda em que me estorço tenho medo, Senhor, porque succumbo.
Em minhas veias, derretido chumbo, vae meu ultimo esforço.
E sinto-me suspenso sobre um êrmo...
ólho em volta de mim... tudo calado!
apenas vêm as azas do passado bater meu rosto enfermo...
Vêm as azas tão frias, ensopadas da negra noite na fatal geleira, apagar minha estrella derradeira, minhas visões douradas.
E esqueceis, oh meus Deus! em minha vida não ha sonho, esperança que não tenha sua gotta de luz, e que não venha de minha mãe querida!
Foi por ella, eu me lembro... um dia ergui-me, depuz dos hombros o mundano manto, e me entreguei no sacrifício santo a vosso amor sublime. MADRES1LVAS 8l Foi por ella, Senhor... troquei as flores da corôa da gloria por espinhos:
e fui erguer da sombra dos caminhos os lassos viajores...
Foi só por ella... abandonei contente as emoções suaves da família:
da humanidade, vossa grande filha, fiz-me apostolo ardente.
Oh! tudo foi por ella... Emtanto agora n'est'alma vindes derramar a morte;
fraco tornastes quem se cria forte, nos arrancos d'ess'ora.
Pois bem, Senhor, vossa vontade é santa, sois o infinito, eu... peregrino e fraco;
mas se com lagrimas vos não aplaco minh'alma se aquebranta...
Vêde... é tão doído não ter seio onde a força p'ra dôr se recupera...
e n'um tum'lo sentarmo-nos á espera do derradeiro anceio... 82 MADRES1LVAS
Oh Christo! não ter mãe é tão doído, vem tão profundo o golpe que me déstes, que cuido inda ter mãe! e dos cyprestes fujo ao triste gemido!...
Mas, ai! quando a illusão cede o terreno, e escuto ainda o verbo da desgraça, sinto que o coração se despedaça, que p'ra dôr é pequeno.
Do meio então da soledade extranha, para o céu minhas supplicas se elevão:
— ao galho e ninho que as enchentes levão o passaro acompanha.
Entretanto de vossa lei divina não mais se queixarão os labios meus...
Mas antes de partires, peregrina, alma! dize, chorando:
oh minha mãe... adeus! Pelo rio Sobre a vaga resvalando corre brando, corre brando, meu barquinho seductor:
tens a põpa toda em flores, dentro — amores, den tro — amores do ditoso remador. 84 MADRESILVAS
Inda é cedo; as estrellinhas vêm sósinhas, vêm sósinhas nos seguindo lá do céu.
Do barranco os vagalumes, em cardumes, em cardumes, luzem no sombrio véu.
D'este rio na planura, noite escura, noite escura não encontra o teu senhor ;
d'aquella volta o arvoredo mette medo, mette medo na dona do meu amor.
Erão duas criancinhas, que sósinhas, que sósinhas inquietas forão brincar MADRESILVAS 85 no fundo de uma canoa, que tão bôa, que tão bôa nenhuma houve no lugar.
Mas passou a correnteza, não mais prêsa, não mais prêsa foi a canôa e fugiu...
E as criancinhas, sorrindo, ião indo, ião indo, até que á volta do rio, a canôa sem um remo n'esse extremo, n'esse extremo a corredeira encontrou...
E a canôa foi virando, se afundando, se afundando as criancinhas matou! 86 MADRESILVAS
Por isso dizem que á noite não se afoite, não se afoite mulher no rio a passar...
Passando alli, não ha moça que não ouça, que não ouça de criancinha o chorar.
Como frades se debrução e solução, e solução os cerrados taquaraes;
e luzinhas do outro mundo sáem do fundo, sáem do fundo dos visinhos pantanaes.
D'este rio na planura, noite escura, noite escura não encontra o teu senhor: MADRESILVA 87 d'aquella volta o arvoredo mette medo, mette medo na dona do meu amor.
E quando sem ella eu passo, frouxo o braço, frouxo o braço, o remo não gyra mais;
e nós no rio passamos, como os ramos, como os ramos que vós, enchentes, levais.
Corre... corre... ella me espera na tapera, na tapera lá da beira do sertão.
Ouve inquieta o murmúrio que do rio, que do rio as brisas levando vão. 88 MADEESILVAS
Das florestas nas clareiras, forasteiras, forasteiras as pombinhas vivem sós?
não têm ellas em seus ninhos seus carinhos, seus carinhos ?
pois, como ellas somos nós...
Sobre as aguas resvalando, corre brando, corre brando, meu barquinho seductor:
tens a popa toda em flores, dentro — amores, dentro — amores do ditoso remador. Piracicaba Sacóde os hombros nús, oh noiva da collina, que a luz da madrugada encheu o largo céu;
e arranca-te das mãos o manto da neblina que ondula sobre o rio, enorme e solto véu...
Ergue-te, oh noiva! a aurora acorda e orvalha os ninhos, beija o vasto horisonte e a pequenina flor;
levantão-se no espaço em bando os passarinhos, descem de além frescura, luz e paz e amor. 90 MADRESILVAS
Aberta pelo vento, a humida palmeira agita o verde leque em fundo todo azul;
como o cocar do indio, em pé na cordilheira, se abria em pleno ar, á viração do sul...
Envoltas pela noite, as perolas celestes se deixarão levar a outras amplidões:
mas eis que surge além, entre douradas vestes, o sol, bordando a ti de magicos listrões.
Desperta, oh india, ao sol! O rio o corpo estende e anilado a teus pés vae murmur se quebrar...
ai! vendo que a alvorada em sonhos te surpr'hende n'est'hora em que parece á terra o céu baixar.
O rio é teu amante. Irrompe entre collinas, como o jaguar que avista a companheira e vae...
mas vendo-te, ao chegar, quão bella te reclinas, estaca de repente, e a furia o arroja, e cae!
E a furia o arroja, e cae... Do precipicio ao fundo atira o corpo e cava as pedras a bramar:
e espedaçado sóbe, e espedaçado afunda no abysmo que se alarga e tenta-o suffocar! MADRESILVAS 91 E o dorso bate a pedra, enraiva-se a torrente que em cascatas do throno erguido resvalou...
E salta a espuma branca em chuva alvinitente onde o iris do céu em curva se formou...
Pela bôca do abysmo as aguas repellidas enchem a vastidão de ronco atroador:
— e rolão pelo rio a plagas não sabidas os murmurios da onda, a voz do tombador!
Depois abre-se a cava enorme onde o combate só n'o conhece o rio e o abysmo que o attrahe:
em baixo ferve a lucta: a onda a cóva bate...
por cima a calma fria: a onda sóbe e vae...
a onda sóbe e vae serena, extenuada, depois de pelejar perder-se além, além;
e sente á tona d'agua a quilha já cansada trazendo o pescador que rio acima vem.
E tu, formosa india, em pé sobre a collina, sentes da onda azul o languido bater;
emquanto sob o véu da tremula neblina ruge a cascata além, sem vir interromper... 92 MADRESILVAS
sem vir interromper a paz, em que te embalas, o amor, a luz, a graça — adornos que são teus.
Cercou-te o Creador de peregrinas galas...
deu-te uma terra em flor, cheios de luz os céus.
Deu-te o horisonte azul que tem a minha terra, minha terra natal, meu ninho encantador.
Só a c'rôa não tens d'essa saudosa serra que cerca em meu paiz, a varzea toda em flor.
A tua noite envolve as mesmas estrellinhas, a mesma poesia, a mesma luz divina;
como lá, eu bem sei, o bando de andorinhas, aqui recorta o céu, na hora vespertina!
Deixa-me, pois, que eu sonhe, ao vêr-te reclinada banhando os alvos pés, do rio n'onda azul, que eu sonhe a minha terra, a perola dourada suspensa longe... longe... entre as névoas do sul! Destino Ai! borboletas de negra cor, que andais buscando da noite a flor, que dos lampirios seguís após, porque scentelhas não tendes vós, 94 M ADRES1LVAS
Deus — nossos fados prendeu n7 um só:
luctar nas sombras e cahir no pó! O derradeiro adeus AO AMIGO, DR. AURELIANO COUTINHO
Mais feliz do que nós...
Não sentirás n'este areal deserto — Na morte d'alma a vida ;
No vivo coração tua propria tumba !
JOSÉ BONIFACIO.
Na sala mortuaria, em meio de soluços, pállida, fria, morta, em fúnebre caixão, ella estava estendida. Aos olhos semi-abertos lançava branca luz das velas o clarão. 96 MADRESILVAS
E o Chrísto alli curvava o lívido semblante, como um pae contemplando a filha agonizante.
Ninguem chegava alli, qual fria testemunha de quanto o desespero tem de esmagador...
Ao pé d'aquella morta erguia-se a saudade e se achava pequena em frente de uma dor!...
tanto soube cavar da morte a mão escura n'um thalamo de amor. — profunda sepultura...
Mas quem succumbe assim? quem desce para os mortos pisando sobre o chão que humedecido está d'esse orvalho da dor, que lagrima se chama, do expontaneo chorar que o sentimento dá?
Quem volve ao céu banhada em luzes de uma estrella e deixa o pobre lar em lagrimas por ella?
Oh! não, não pergunteis... É o anjo da família que as azas recolheu e vae-se debruçar aonde não mais desce o halito da vida, aonde a eternidade estende o longo mar... MADRESILVAS 97 e deixa após de si a noite no seu pouso por mãe dos filhos seus, por anjo de um esposo!
É a ave que do ninho erguido entre perfumes cahiu ferida ao chão... depois não mais se ergueu;
e veio o pobre esposo achar o ninho — frio, e os filhinhos chorando ao pé do leito seu...
Desfolhárão-se a um tempo as c'rôas da ventura, quando ella, esposa e mãe, descia á sepultura...
Não mais d'aquelle seio estanque pela morte Deus ha-de abrir o fóco explendido do amor:
duas vezes na vida aos labios não se leva d'este nectar divino o calix seductor.
Se flores dér o valle — o frio ha de tolhêl-as, ha de a nuvem passar — se surgem as estrellas! 98 MADRES1LVAS
No emtanto é vinda a hora! a eterna despedida!
o beijo derradeiro, o derradeiro adeus!
e á porta um vulto negro, e tremulo, chorando, repentino assomou por entre os filhos seus.
Silencio... era elle, o esposo estremecido e terno, que ia á morta dizer o seu adeus eterno!
Quando elle appareceu, e foi a passos lentos caminhando, e do esquife ao pé mudo parou, ergueu convulso a ponta ao mortuario crepe, e, sublime na dôr, o beijo desatou...
E o derradeiro olhar cahiu tão doloroso!
ultimo vôo d'alma, e d'alma de um esposo!...
Depois, quando elle ergueu a pequenina filha que tambem vinha alli da mãe se despedir, e pelo seu semblante a dôr cahiu em lagrimas, que então foi mais tremenda a hora do partir:
houve um momento alli de commocão tão forte, que, se não fôra tarde, abalaria a morte!... MADRESILVAS 99 Depois tudo findou-se. A virgem da saudade, de goivos coroada, ás supplicas conduz ao Christo que, suspenso ao muro solitario, parecia dizer: — já não 'stou só na cruz!
São Paulo — 1871. Bem sei que á sepultura do proscripto ave alguma do céu, em vôo errante, passando saudará;
que apenas do cypreste gottejante sobre a lapida fria de granito um pranto rolará.
Desillusão 102 MADRESILVAS
Bem sei que pelos paços da memoria ninguem repetirá de minha historia a pagina ao porvir;
que mortas cahirão no esquecimento as flores que meu pallido talento poude distribuir.
Oh! nem eu quero, não, em fastos d'ouro ter meu nome cingido por um louro de gloria, e gloria van:
eu, que rosas colhi pisando espinhos, posso ainda seguir n'estes caminhos, hebreu sem Chanaan.
De meu berço na cupola sombria apenas uma cruz eu distinguia pendida sobre mim.
Carreguei-a, sósinho, amargurado;
e a minha companheira no passado segue-me ainda... oh! sim!... MADRESILVA 103 Qu'importa que sómente a luz da lua bata sombria pela pedra núa que sobre mim vier?
que uma aragem carregue em noite escura flores, que junto á minha sepultura o amigo depuzer?
Eu sei que tudo é vão... bem pouco vales, oh flor da gloria, que entreabriste o calix ao meu doudo aspirar...
Como flor, sopra o vento e te desfolha!
e pelo chão, depois, folha por folha, alguem te vae pisar...
Oh! nem eu quero, não, sobre o futuro transformar o meu nome, — um ponto escuro, na estrella da manhan...
Eu me envolvo no manto do passado, vendo o deserto immenso, illimitado, hebreu sem Chanaan! S E GUNDO LIVRO MARIA LEOPOLDINA
Ergue este ramo solto em teu caminho, Sei que em teu seio asylo encontrará;
Só tu conheces o secreto espinho Que dentro d'alma me pungindo está!
F. VARELLA .
.... sauvez de 1'oubli quelques-uns de mes vers.
M I L L E V O Y E.
Sobre as azas da esperança meus versos timidos vão buscando um berço, criança, em teu virgem coração.
A Humidos vão de pranto, ou dourados pela luz...
a luz é tua, portanto, a lagrima é d'esta cruz.
E eu sei que não m'os repelles...
pois nascêrão todos elles á sombra do teu amor:
são pennas para um só ninho, vozes de um mesmo carinho, abelhas da mesma flor!
110 MADRESILVAS Alvorecer Rolai pelas brancas plagas, vagas por onde a lua nua arrasta um véu de pallor;
rolai! eu desprendo as vélas...
Derramai luzes, estrellas!
surgi, puríssimas perolas, das ondas,cerulas á flor! 112 MADRESILVAS
Quando a amorosa esperança cansa de orvalhar o coração, devemos erguer um canto, pranto ás eras que lá se vão...
Oh! deixem, pois, que eu descante, cante a aurora de um sonho meu.
Antes que a morte o apague, vague meu pensamento no céu...
Rompe a luz, tudo se agita.
Vem! que a semente bemdita do amor quer teus seios — por terreno, os teus prantos — por sereno, quer os teus labios—por flor! MADRESILVAS 113 Além nas praias remotas, notas a tua estrella polar ?
pois bem: fujamos das plagas, vagas, trazei-me os cantos do mar... A Mulher Ha pelos mundos um pendor divino da luz p'ra o céu, da viração p'ra a flor, do fio d'agua p'ra as campinas verdes, de nossas almas... respondei, amor!
Do berço á cova, do sorriso á lagrima ha sempre um sonho que nos chama e quér.
E nós cahimos descuidados, prêsos nos róseos dêdos de gentil mulher. 116 MADRESILVAS
Podem as auras não abrir os lyrios, o rio, o mar não reflectir o céu:
mas dentro em nós, ai! não ha flores mortas, se amor as cobre com dourado véu...
Visão perpetua, borboleta branca, o amor tem azas mas se foi prender...
no sol? na treva? na amplidão? no abysmo?...
nos róseos dêdos de gentil mulher.
Por isso quando nós, crianças doudas interrogamos do porvir o mar, colhendo louros — onde as urzes nascem, pedindo aromas — ao deserto altar;
não são bem d'alma as illusões creadas tem pouca vida o que se fez nascer, se não prendemos, como estrella, o sonho nos róseos dêdos de gentil mulher.
E se a esperança não mentir, se alegres vêmos o fructo do trabalho após;
se presentimos o futuro cheio d'essa ventura que palpita em nós; MADRESILVAS 117 essas primicias — que nos deu a gloria, as flóreas palmas — que o porvir nos der, engrinaldadas, oh! serão por elles...
os róseos dêdos de gentil mulher.
E como a vida é esse mixto enorme de pranto e riso, de veneno e flor, quando a lufada nos lançar á noite, martyr ás feras, peregrino á dôr;
então assoma junto a nós, sublime, um vulto, a esposa que nos vê soffrer...
E Deus suspende uma esperança ainda nos róseos dedos de gentil mulher! Entre sonhos Adormecias, Mimosa, e na orla côr de rosa de tua bôca divina o riso formava ainda uma curva pequenina...
Oh! talvez que um sonho d'ouro que vinha, pleno thesouro de aromas do paraiso, ficasse preso em teus labios, — flor de um sonho e de um sorriso! 120 MADRESILVAS
Jamais com tal abandono a mão do flaccido somno fecha os olhos á criança, como cerrava os teus olhos e te desprendia a trança...
Sob a gaze de escomilha tremião-te os seios, filha, qual ninho de beijaflores, sob o véu dos nevoeiros, cheio de puros olores.
Elle ajoelhou-se.
Tremente passou seu labio tão rente de tua bôca em um beijo que estremeceste, Mimosa, toda banhada de pejo... MADRESILVAS 121 E quando elle o noivo, tremulo, disse baixinho: sou eu...
ella, as palpebras, cerrando, murmurou-lhe suspirando:
— eu te amo!...
E adormeceu. A flor Rompendo as alvas neblinas, como uma noiva — seu véu, desperta a flor das campinas banhada em prantos do céu..
Abre as folhas, uma a uma, dourado o seio mostrou, qual linda bolha de espuma que um raio do sol córou. 124 MADRESILVAS
Mas veio n'aza do vento um insecto friorento, pediu-lhe o seio e desceu...
Da noite á primeira estrelia, a flor do campo singela, a flor murchou e morreu. O abandono Era a sua casinha aquella que apparece em meio do arvoredo, á beira do caminho...
Agora sobre o muro as trepadeiras morrem, e não se enfeita mais a cruz do terreirinho.
Depois que ella partiu, as pombas não vierão em bandos agitar as arvores defronte;
e as estrellas de além sumião-se mais cedo atraz d'aquella serra erguida no horisonte. 126 MADRE SILVAS
Depois que ella partiu, não mais o viajante achava longa a estrada, ao sol do meío-dia, para alli se apear, ao vêl-a tão bonita, cahido o seu cabello em onda luzidia...
E á noite quando a lua assoma na montanha, as aragens do val não ouvem mais cantigas:
nem mais da visinhança acodem os violeiros para fazer dansar as lindas raparigas.
Depois que ella cazou... das bandas lá do rio não mais veio alegrar o primitivo ninho...
Era a sua casinha aquella que apparece em meio do arvoredo, á beira do caminho. Te Esqueceste !
Uma noite junto ao lago, onde as estrellas brilhavão, nossas mãos, uma na outra, não sei porque palpitavão, n'aquella noite de estio em que as ondas murmuravão. 128 MADRESILVAS
Quando dizia: eu te amo!
tu suspiravas baixinho e estremecião teus seios, medrosas pombas no ninho...
e como em sonhos de virgem tu suspiravas baixinho.
Da fímbria dos horisontes os anjos nos espreitávão doudos por vêrem teus olhos que de pejo se baixavão...
n'aquella noite de estio em que as ondas murmuravão.
E depois quando partimos, as virações da campina nos seguião pela estrada ouvindo-te a voz divina...
e teu nome repetião as virações da campina. MADRESILVAS 129 Chegados á encruzilhada nós balbuciamos um beijo, tão depressa me fugias, enrubecida de pejo...
Sob o véu dos teus cabellos nós balbuciamos um beijo!
No emtanto, se aquella noite pudésse embora fallar...
do lago, do céu, do beijo, d'aquelle mago sonhar.
eu sei que não te lembraras...
Ai! não sabias amar! Oh! se eu pudésse engrinaldar de flores o vulto negro d'esta nossa cruz, e nos caminhos, onde crescem dores, em vez de prantos derramar a luz;
oh! se eu pudésse, por um só momento, sentir o sonho do futuro em mim, — o sonho... gotta no areal sedento, folha perdida pelo mar sem fim:
Entre Sombras 102 MADRES1LVAS
eu não achára tantas vezes — pranto d'esses teus olhos no formoso céu, e sobre labios que me fallão tanto!
eu não achára da tristeza o véu...
Não encontrei da promissão os valles, e como as plantas que de frio morrem, vejo meu sonho entrefechando o calix longe do clima onde os orvalhos correm.
E sobre mim, ai! tu debalde estendes as duas azas do teu grande amor:
é tarde! o mal que me corróe e offende se esconde n'alma, como verme em flor.
Sim, minha amiga! as estrellinhas forão, aves errantes, se expandir além:
fiquei com os prantos que teus olhos chorão, fiquei com as sombras que minh'alma tem! Serenata É noite. A lua suspensa d'entre cortinas azues sonha rodeada de estrellas, soltas grinaldas de luz...
Pois bem: eu troco esta noite que te encanta, minha flor, pela noite de teus olhos cheia de estrellas de amor! A fralda da camisa Eu vi-a n'uma tarde. Ergui-a ao collo...
beijo-lhe a bôca, e a tímida Florisa de envergonhada esconde o rosto inteiro na pontinha da fralda da camisa.
Fil-a dansar depois: graciosa e bella algumas voltas deu na walsa lisa:
mas com as duas mãos de leve erguia a pontinha da fralda da camisa. 138 MADRESILVAS
Encontrei-a uma noite: ella chorava;
afaguei-a de prompto, e indecisa a derradeira lagrima perdeu-se na pontinha da fralda da camisa.
Fui vêl-a n'outro dia. Entre roseiras ora a cantar fugia, douda brisa, ora apanhava flores no regaço que fizera na fralda da camisa.
Mas, o botão abriu-se em linda rosa...
o pé sob o vestido agora pisa...
E eu, ai! não vi mais, nem por descuido, a pontinha da fralda da camisa! Saudosa Era uma flor de espuma que o vento abre na vaga, o véu de um'alva bruma que o menor sopro estraga;
luzinha que reçuma do céu e já se apaga-
, miragem que se esfuma do mar na linha vaga; 140 MADRESILVAS
era taça, partiu-se;
vela branca, sumiu-se nos véus da immensidade, aquella nossa esp'rança...
Se o não era, criança, porque veio a saudade? Os Anjos Á noite, quando as neblinas boiando á luz do luar silentes passão nas plagas, a flor das múrmures vagas forma-se um anjo no mar.
Quando a aurora sopra as nuvens, as nuvens de rubra côr, resvala do orvalho a gotta, e em cada arbusto que brota forma-se um anjo na flor. 142 MADRESILVAS
Á tarde, as névoas descambão pela montanha a rolar:
o vento sacóde as azas, e em cada floço de gazas fórma-se um anjo no ar.
Da mulher nos labios puros, quando reza o coração, como da rosa — o perfume, como a luz — d'entre o negrume, nasce o anjo da oração.
E quando ás vezes contemplo teu semblante seductor, formosa, ao sol dos meus sonhos, n'esses teus olhos risonhos forma-se o anjo do amor! Amor e medo (SOBRE UMA PAGINA DE CASIMIRO DE ABREU)
Ao pé de ti, quando eu contemplo tremulo o teu semblante de morena côr, e os labios teus onde a innocencia falia e o riso brinca endoudecendo o amor;
não sei que raio de loucura passa por minha fronte enfebrccida então...
e eu tenho medo de perder tu'alma, vendo entre as minhas palpitar-te a mão! 144 MADRESILVAS
Oh minha amante! muita flor do campo quando a queimada abrasadora vôa não vê o incendio calcinar-lhe as folhas e o seu perfume a se esvair atôa...
Mas tu bem sabes pelo céu da vida abrem-se estrellas de mortal clarão...
e eu tenho medo de sentir teu halito vendo entre as minhas palpitar-te a mão!
Tu não tens medo de fitar o abysmo onde a cascata se quebrando alveja?
abrir o seio ás virações do inverno quando o luar os teus cabellos beija?
O amor tambem o seu abysmo esconde, ergue as estrellas e resfria o chão...
por isso eu temo envenenar teus sonhos, vendo entre as minhas palpitar-te a mão...
Quando o futuro illuminar a vida, nós dormiremos sob o mesmo céu;
e eu te prometto de minh'alma os louros para as coroas do noivado teu... MADRESILVAS 145 E as andorinhas perpassando tímidas ao pé de nós a suspirar virão por entenderem meus colloquios doces, vendo entre as minhas palpitar-te a mão!
Do prado as auras, da floresta os passaros, que outr'ora ouvirão de meu canto a voz, e as borboletas do paiz dos lyrios irão ás flores perguntar por nós...
E quando á tarde nas roseiras languidas vier o vento murmurar em vão, as estrellinhas se erguerão mais cedo, vendo entre as minhas palpitar-te a mão!
Depois, á noite, no silencio augusto que se derrama no abençoado lar, quando vieres, com os cabellos soltos, tremula a voz, a languidez no olhar, então mil vezes beijarei teus labios, louco, encendido, na febril paixão...
e os anjos todos descerão á terra, vendo entre as minhas palpitar-te a mão! A borboleta I
Abriu-se o lyrio. Virgineo de orvalho o calix se encheu, e no tapete gramíneo corre a brisa e a flor pendeu.
E o rócio cahiu em perolas, a luz se expandiu no céu...
Do lyrio nas folhas cérulas de um'aza se estende o véu.. 148 MADRESI LVAS
Não tremas, flor, que não pousa a triste da maripôsa no teu seio avelludado...
É tua amante dilecta, a dourada borboleta, a peregrina do prado.
II
Veio a tarde. Ao sol poente canta o sabiá dolente nas larangeiras do rio;
e rente ao chão da campina da flor a caule se inclina, como um tumulo vazio. MADRESILVAS 149 A amante junto agoniza...
as azas levou-lhe a brisa, levou-lhe a brisa — o amor;
mas o destino que fere-a fez-lhe uma cupla funerea do calix da mesma flor! O berço Alvo ninho pequenino entre corymbo de flores, cheio de inquietos rumores, cheio de aroma divino, move-se o berço á toada de cantilenas suaves, como a cantiga das aves no seio da madrugada. l 5 l MADRESILVAS
No véu que alli se balança a brisa doce resvala:
e para não acordal-a nem sequer beija a criança.
De suas azas sacode todo o perfume que trouxe se a criancinha agitou-se, e a mãe tremendo o acode.
E sobre ella se estendem entre cortinas mimosas, como azas brancas, sedosas, dous braços que se suspendem.
Ouvindo o canto que sôa de quando em quando a criança, ergue as mãos a vêr se alcança um anjo que longe vôa...
e o mais alegre sorriso lhe franze a bôca vermelha:
e o materno olhar espelha uma luz do paraiso. MADRESILVAS 153 Um mixto de amor profundo e de vaidade divina deslisa e brando illumina o seu semblante jucundo.
Oh! n'esse momento immerso nas delicias do carinho, o passaro junto ao ninho, a mãe ao pé de seu berço, derramão toda a ternura que no amor se continha...
E Deus d'alli se avisinha, tanto sóbe a creatura!
Bemdito o lar onde eu ouço nas horas mortas do somno, como em languido abandono, um expressivo balouço. 154 MADRESILVAS
N'aquelle santo momento a noite vôa baixinho, como na beira do ninho deslisa tremulo o vento...
Entrai! na alcova se agita molle perfume; no meio, como uma pomba no seio de sua amiga dormita, sonha o filhinho á toada de cantilenas suaves, como a cantiga das aves na hora da madrugada !
Novembro do 1871. Partindo...
É tempo de quebrar esse thesouro d'onde tanta illusão se desprendia!
Foi bem longo o dormir;*mas vem o dia entornando no mar o cálix d'ouro.
Se outr'ora a seduccão roçou-me as faces, como um raio que passa pelo escuro;
se eu embalde criei o meu futuro, minhas glorias de amor, sombras fugaces; tudo, mulher, fugio da mocidade cujo sonho a desgraça despedio...
e ás vagas entreguei meu lenho esguio erguendo a ti um brado de saudade.
E dura a provação; mas a mortalha que envolve o coração é Deus quem corta:
tambem do ramo cáe a folha morta, e a perola dos mares se esmigalha.
156 MADRESILVAS Junto ao piano Era de noite. Ao piano ella sentou-se e cantava.
Nem uma estrella a escutava que negro era o ceu então...
Apenas longe, entreabrindo as peflas do devaneio estremecia de anceio uma flor, — o coração! l 5 8 MADRESILVAS
Ai! que era um canto suave, como não canta uma ave da primavera ao fulgor...
Dize-me agora, baixinho:
nunca sentiste o carinho da leve aza do amor?
II
Aquelle canto tristonho só nos labios da saudade geme assim. A mocidade desfere um hymno risonho.
A voz onde estala o trino da alegria e da esperança, ai! não, ai! não alcança aquelle thema divino. É preciso ter soffrido, ter chorado, ter gemido nos estos de alguma dôr...
Dize-me agora baixinho:
nunca sentiste o espinho que tem da saudade a flor?
III
Quem sabe se no declive, em que tu desces agora, alguma fonte sonora da illusão inda derive?
se em tu'alma angustiada um raio da primavera entreabrir inda pudéra do porvir a luz amada?...
MADRESILVAS 159 160 MADRESILVAS
E se assim fôra, chorosa com a saudade não gemeras aquelles doídos ais!
Depois, c'roada de rosas, aquella noite esqueceras...
ai! não cantarias mais! Nocturno Se no ninho côr de rosa a mimosa avesinha vae pousar, — abre-me as duas mãosinhas deixa-me a fronte inclinar...
Assim, n'est'hoa silente, em que rente do azul o sonho nos vae, quando a mulher para a estrella volve os olhos e a luz cáe;
11 162 MADRESILVAS
quando a névoa estende a gaza, como uma aza aberta pela amplidão:
deixa-me junto a teus seios, junto do teu coração...
Sonhemos... a noite é calma;
a mnh'alma geme de amores por ti.
As vagas sonhão nos mares, vamos nós sonhar aqui.
Canta as cantigas de outr'ora, n'esta hora de amor e santo luar:
troco a harmonia da noite pelo teu mago cantar.
Não ouves? a mim parece que além desce um murmúrio divinal das estrellas para as ondas, do céu azul sobre o val. MADRESILVAS 163 Na vaga das harmonias, fugidias brincão ondinas de amor, como os insectos da tarde das enchentes ao rumor!
Por beijar a tua bôca, ave louca voa minh'alma, não vê?
em quanto marcas compasso com a pontinha do pé. Nunca mais !
Ella cantava:
« Saudade!
« ergue-te e vôa após elle:
« o brando sopro que impelle « as folhas na immensidade « ha de levar-te. E, chorando, « como em murmúrio amoroso, « dirás a meu nobre esposo « que longe vae: até quando... 166 MA D RE SILVAS
« até quando aos meus suspiros «responderá dos retiros «sómente o écho fugaz?...
« Quando o verei?... »
Entre as flores como que uns vagos rumores murmurárão: — nunca mais ! — Ave Maria!
A SUZANNA
Eu sei, filha! és pequenina, tua bôca balbucia...
mas n?
esta hora divina tem a flor, o rio, o vento, a nuvem do firmamento — as azas de uma harmonia!
Junta assim tuas mãosinhas...
o sino das igrejinhas dobra longe Ave Maria! 168 MADRESILVAS
Vem rezar. Deixa que o riso se esfolhe aos pés do Senhor:
sorrindo, pede a criança, sorrindo, abre-se a flor...
Se a lagrima é como a baga da semente que germina, e cáe a névoa divina no coração que a verteu:
o rir da criança é ambula que uns alvos sonhos encerra:
attrahe as brisas da terra, attrahe os anjos do céu...
n'esta hora de harmonia, quando pousão andorinhas na torre das igrejinhas ao dobre de Ave Maria...
Vem rezar. Além, formosa, te escuta a Virgem sorrindo;
e o seu anjinho mais lindo beija-te as faces de rosa. MADRESILVAS 169 Agora as nuvens que passão vêem, como um iris distante, tua oração balbuciante prendendo meu lar ao céu.
Mais tarde quando sonhares entre as gazes da cortina verás uma aza divina aberta no ninho teu...
Oh! como és bella rezando!
encruzadas as mãosinhas, loura a cabeça inclinando;
emquanto ao mar echoando o sino das igrejinhas dobra ao longe Ave Maria!
Vem junto a mim. Duas ancoras á minh'lma Deus prendeu :
— tua mãe, aqui na terra, e Maria, além no ceu... I70 MADRESILVAS
Encruza, pois, as mãosinhas ;
que compassão-te a harmonia as auras do fim do dia que levão das igrejinhas o dobre da Ave Maria!
E quando cresceres, filha, n'esta hora melodiosa, que a prece orvalhe a rosa que em tu'alma rebentar...
Deve ter o céu — estrellas, deve ter o mar — ondinas, mas n'alma as vagas divinas da oração devem cantar...
quando ao valle as andorinhas abater a noite fria, e o sino das igrejinhas dobrar longe Ave Maria! A fita rubra ... arranca meus louros da fronte e dá-me por c'rôa... teu laço de fita!
C A S T RO ALVES .
A vez primeira em que te vi sorrindo, olhos erguidos n'um scismar do céu, prendi as azas de meu sonho — a gloria na fita rubra do cabello teu. 172 MADRESILVAS
Flores que a aurora fez brotar de um ramo, grupo de anjinhos que ao altar se ergueu, as esperanças se entrelação todas na fita rubra do cabello teu.
Não vês nas folhas da vermelha rosa brilhando as per'las que a neblina deu?
assim meus sonhos se balanção, brincão na fita rubra do cabello teu...
Na trepadeira o colibrí formoso seu alvo ninho junto á flor teceu...
eu tenho um ninho de illusões, que prendo na fita rubra do cabello teu!
Ai! quanto seio a palpitar no mundo!
quanta estrellinha sobre o mar nasceu !
minh'alma vive de teus olhos bellos, na fita rubra do cabello teu.
Eu, que não era mais que o pobre insecto que foge á luz, que a viração temeu, eu sinto agora a elevação do vôo na fita rubra do cabello teu ! MADRESILVAS 173 E quando um dia eu te disser: és minha!
ás nossas crenças cobre o mesmo véu...
ao pé dos anjos que sorrindo beijão a fita rubra do cabello teu, tu acharás no meu thesouro d'alma sonhos e gloria, e no porvir no céu verás teu nome, como estrellas, preso na fita rubra do cabello teu. Sensitiva Não soltes dos cabellos o véu sedoso, escuro que rola ao seio puro em flaccidos novellos.
A sombra cobre os ninhos, a onda é sob a espuma:
o beijo não perfuma nem um dos meus carinhos! 170 M ADRESILVAS
Se fujo... eu sei que choras!
se volto... encantadoras as luzes da esperança desmaião em segredo...
e sentes tanto medo, oh pállida criança!
II
No emtanto puro e calmo o meu amor se agita, e se terno palpita mais terno ha de ficar, ai! quando tu prenderes a tua mão captiva na minha, e compassiva tu'alma se inclinar MADRESILVAS 177 á minha obscuridade tão cheia de saudade, tão erma de esperança.
Então no meu degredo...
mas, ai! tens tanto medo, oh pállida criança!... Doentinha !
Dormia. Abandonada cahia-lhe a mão mimosa, qual a murcha tuberosa á beira d'agua inclinada.
Pela bôca peregrina nem um riso estremecia;
o olhar se amortecia na embaciada retina. 180 MADRESILVAS
O seu offegante peito como a custo respirava:
o pesadêlo estirava as azas sobre seu leito...
Ai, de mim! pállido, afflicto, na dôr immensa abatido chorava a cada gemido...
ia-me n'alma o seu grito...
E via ao pé da cortina de seu berço, outr'ora em flores, sua mãe, cheia de dores, no desespero... divina!
Ergui-me. A noite era bella :
murmúrios d' aura na terra, névoas na crista da serra, luzes no seio da estrella.
Dobrei os joelhos... chorava em face do azul risonho:
era um rochedo tristonho que, um mar de luz destacava... MADRESILVAS 181 E agora, meu louro anjinho, que este lar quasi perdeu, não troques mais teu bercinho por duas azas no céu! Quando esses olhos tão bellos levantas ao firmamento e desenrola-se ao vento a onda dos teus cabellos;
e tua boca palpita n'uma supplica divina, como a rosa matutina abrindo a caule se agita;
Na reza 184 MADRESILVAS
oh minh'amada, nem pensas nas alegrias immensas que inundão meu coração, se tu murmuras baixinho, na ternura de um carinho, meu nome em tua oração! Elisa FRAGMENTO
(L. VEUILLOT)
Agora, de vagar. É tua vez, Elisa.
Vem só. É malicioso e meigo esse teu ar.
Uma ave ia fugir, mas p'ra escutar-te volta...
ai! pobre menestrel, não vás te apaixonar!
Esfrolada de manso, a relva se levanta para melhor sentir o vôo de teus pés...
E em tu' alma, poeta, a musa agita um sonho que não se esquece, não, mas tem-se uma só vez! 186 MADRESILVAS
Assim dansão no mar os fogos encantados, assim a nuvem branca embala-se no céu;
assim a primavera em sopro lento e brando nos arbustos em flor derrama o seu tropheu.
E a nuvem se desfaz no azul do firmamento, os perfumes, a luz se perdem a voar...
e tu, moça innocente, ai! possas como elles após tua manhan na terra não tocar! 184 MADRESILVAS
oh minh'amada, nem pensas nas alegrias immensas que inundão meu coração, se tu murmuras baixinho, na ternura de um carinho, meu nome em tua oração! 188 MADRESILVAS
Tu és no céu da tarde a nuvem côr de rosa que leva as orações que a virgem desprendeu e vae depor além a offrenda mysteriosa...
o crepusc'lo sou eu.
Tu és o beijaflor de pennas iriadas cruzando da campina o perfumoso véu;
seguem-n'o a luz, o aroma, as auras encantadas...
a ave triste sou eu.
Tu és de uma visão a imagem attrahente que em afagos envolve o ser que a mereceu, e nos vae collocar, do paraíso rente...
pesadêlo sou eu.
Tu és a flora azul do amor e da esperança, que o frio não tocou, que o vento não bateu.
Eterna é a primavera ao pé de ti, criança...
a lagrima sou eu. MADRESILVAS 189 Pois bem; ha um proscripto e pede-te um abrigo:
tem frio, quer o sol; no ábysmo, implora o céu...
Abre-lhe da esperança o lar, divino, amigo...
O proscripto sou eu! NOTA
ROSA MYSTICA
Esta poesia foi offerecida ainda em vida do desditoso artista— que falleceu em São Paulo, a 7 de Janeiro de 1871.
A Rosa mystica foi a penúltima gemma de sua invejável corôa de composições musicaes; corôa, onde se enlação — as Reminiscencias e Lagrimas da aurora, a que a poesia allude.


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