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Textos para uso geral de domínio público.

Lucrécias

Qual cede um batel sem leme Do mar e vento aos furores, Sem força levar-me deixo De uma torrente de amores.
Amor de Ovídio, de A. F. de Castilho

I
NÓS E VÓS
Amo-vos a todas vós, Raparigas1 , porque nós Dos quinze aos vinte solteiros, Borboletas dos rosais, Somos todos bandoleiros, Como foram nossos pais, Depois de nossos avós.
Amai-me, pois, todas vós, Porque, afinal como nós Dos quinze aos vinte solteiras, Lindas flores dos rosais, Sois tão boas bandoleiras, Como foram vossos pais, Depois de vossas avós.
Agora... casando nós, Bem como casando vós;
— Adeus vida de solteiros, Borboletas e rosais!
E nunca mais bandoleiros! —
E Deus vos guarde dos pais Que inda o são depois de avós...
II
ÀS RAPARIGAS
Travessas, formosas, gentis raparigas, Meus lindos romances atentas ouvi:
Nasci sobre as ondas das águas do norte, E as verdes florestas do norte corri.
Do rio — gigante — que tira o seu nome Daquelas guerreiras dos tempos d'além,2 À margem virente colhi muitos frutos, E flores, e riscos, e... beijos também!
Aos pés das cascatas, em tardes serenas, Ao som dos ruídos das águas, — cismei;
Que cismas de crenças! que sóis d’esperanças!
Que ar de baunilha que ali respirei!
Corri pelas veigas atrás dos galheiros, Os méis das abelhas nos montes bebi;
E à sombra dos cedros altivos, copados, As sestas, saudosas, nas redes dormi.
Ao pino e aos raios do sol que mais queima, Perdido nas brenhas de incultos sertões, Lutei braço a braço co’as onças feroces, Mais bravas, mais feras que os próprios leões!
Delgado, flexível, meu corpo mimoso, Nas tardes calmosas do sol do Equador, Nos lagos, nos rios nadava boiando, Por entre as gaivotas, das águas à flor.
Em noites de lua, ao lar das choupanas, Ouvi dos sertanos as rudes canções;
E as lendas de amores das filhas das selvas, E os ternos segredos de seus corações.
Nas matas, mirei-me nas águas das fontes, Que imagem faceira nas águas sorria!...
Atentas ouvi-me, gentis raparigas, Dizei-me, travessas, se o espelho mentia.
Meus olhos castanhos, sisudos, traquinas, Têm fogo, têm brilho, têm lhana expressão!
Audaces, medrosos, esquivos, quietos...
Meus olhos, dizei-me: formosos não são?
Meus lábios... meus lábios pequenos, risonhos, Uns longes tirando da cor do carmim, Dos méis e perfumes das flores sedentos...
Pois há muitos lábios mimosos assim!...
E os negros cabelos, e as faces de jambo, E os buços macios abrindo-se em flor?
E uns traços de triste que eu tenho na fronte, E o sangue nas veias coando em fervor?...
E a boca tão breve... e as doces palavras, E a idade viçosa as meiga estação?
E as minhas cantigas, e um peito que é terno, E os muitos desejos do meu coração?...
Dizei-me, travessas, gentis raparigas, Dizei-me, formosas, se o espelho mentia?
Tão cheio de dotes e os dotes tão raros, Não era galante o retrato que via?
Pois bem; das florestas, das matas virentes, A mão da ventura me trouxe até aqui;3 Perdido entre as gentes, perdi-me de amores, Por todos os olhos das moças que vi...
E eu ando perdido com os dotes que tenho...
Que sina! que pena! que triste condão!
Se dentre vós uma quisesse se noiva...
Que noivo eu dera, e aí, que noivo então!...
É tempo, e inda há tempo! — é fero destino Perderem-se dotes tão raros assim!
Se dentre vós — uma quiser um marido, Me escreva uma carta dizendo — que sim.
III
THEREZA
Quem vem da igreja? Thereza Que foi casar-se... surpresa!
Não esperava este azar!
Nunca me turbara a idéia Esta lembrança tão feia De que podia casar!
Que não cuidei vejo agora, Por que m’o afirma esta hora, Que inesperada bateu!
Casada! vejo-a casada!
Jesus! como esta mudada!
Pois também mudarei eu.
Cessai, esp’ranças viçosas, Emurcheceu, perfumosas Flores, que eu tanto reguei!
Coração, meu pobre filho, Velho'stas, segue o meu trilho, Enruga como enruguei!
Casou-se aquela trigueira, Que para vos tão fagueira Se mostrava; já casou!
Aquela mesma Thereza, Que a correr pela devesa, Tantas vezes nos cansou!
Olhem como vem pimpona!
É uma senhora dona, Reparem como ela vem...
Seu marido vem com ela Todo cheio de cautela, Que muitos ciúmes tem!
Olhai-a, como nos foge!
Como mais esquivos hoje Seus olhos fogem de nós!
Agora que’stá casada...
Não irás mais a latada Colher uvas a sós...
Já não veste saias curtas, Como outr’ora a colher murtas, Jambos ou maracujá, Pelos declives dos montes Ia, e depois vinha às fontes, E nós estávamos lá...
Vem? é outra! é outra... olhai-a!
É vestido, não é saia, Thereza a mesma não é!
E que vestido comprido!
Não deixa ver o vestido, Nem a pontinha do pé!...
Adeus senhora Thereza!
Salve o pobre na pobreza, Que isto não lhe fica bem!
Soberba co’o seu marido, Soberba co’o seu vestido, Já não conhece ninguém!
Deixa-se de soberbias, Lembre-se daqueles dias, À sombra dos cafezais...
Descora... não tenha medo!
Vá tranqüila que o segredo Da minha boca... jamais...
Jamais... e jamais suponha Seu marido que a vergonha À casa lhe –hei de eu levar...
Jamais, senhora Thereza, Que eu também tenho a certeza De algum dia me casar.
IV
OS MEUS OLHOS EM LEILÃO
Eu, Beta e Joaninha Eu Compra-me estes olhos, Beta, Vou vendê-los em leilão;
Deita o lance, ó Joaninha, Quanto por eles me dão?
Beta (com desdém)
Quanto a mim, Deus me perdoe, Nem de graça me convém;
Quando o próprio dono os vende, Vejam que préstimo têm...
Fazem-lhe conta, priminha?
Aproveite a ocasião...
Joaninha (com arrufo)
Pois eu lá precisei nunca De olhos de segunda mão?!
Eu Cuidam que vendo estes olhos, Ou que de graça os daria...
Beta (com desprezo)
Quem é que precisa deles?
Joaninha (com escárnio)
Quem é que lhos compraria? Eu (parodiando)
Quem é que precisa deles?
Quem é que m’os compraria?
Quem souber que a sorte grande Lhes saiu na loteria...
Beta (rindo)
A sorte grande!... priminha...
Joaninha (rindo também)
A sorte grande! ora qual...
Eu Olha este bilhete, Beta;
Joaninha, toma o jornal.
Beta (lendo o nº do bilhete)
Cinco mil... e trin...ta e qua...tro... aqui ‘stão...
Vinte contos.
Joaninha (conferindo o jornal)
E trinta... e Qua... tro... aqui... ‘stão...
Vinte contos.
Beta (dramática)
Vinte contos!...

Joaninha (trágica)
É quase um milhão!...
Beta (com pasmo) Vinte contos!... que riqueza!...
Joaninha (dando um passo para mim)
Co’os lindos olhos que tem...
Beta (adiante de Joaninha)
Se eu tivesse uns olhos desses...
Joaninha Eu se os tivesse também...
Beta (com ternura)
Uns olhos tão expressivos...
Joaninha (com meiguice)
Que falam ao coração...
Beta (tomando-me a mão direita)
Que têm raios...
Joaninha (tomando-me a mão esquerda)
Que têm brilho...
Eu (com diplomacia)
E agora quase um milhão...
Beta (con amore)
Deixa que eu ame os seus olhos?
Joaninha (solto voce) Deixe que eu lhes beba a luz?
Eu (profundamente comovido)
Deixo... sim...mas, o bilhete...
Ambas O bilhete?...
Eu É falso...
Ambas Cruz!...
(E ambas deram-me às costas, deixando-me na posição mais cômica de minha vida)
V
MORENINHA
— Moreninha, dás-me um beijo — E o que me dá, meu senhor — Este cravo...
— Ora, esse cravo!
De que me serve uma flor?
Há tantas flores nos campos!
Hei de agora, meu senhor, Dar-lhe um beijo por um cravo?
É barato; guarde a flor.
— Dá-me o beijo, moreninha, Dou-te um corte de cambraia. -
— Por um beijo tanto pano!
Compro de graça uma saia!
Olhe que perde na troca, Como eu perdera co’a flor;
Tanto pano por um beijo...
Sai-lhe caro, meu senhor. — Anda cá... ouve um segredo...
— Ai, pois quer fiar-se em mim?
Deus o livre, eu falo muito, Toda mulher é assim...
E um segredo... ora um segredo...
Pelos modos que lhe vejo Quer o meu beijo de graça, Um segredo por um beijo!?
— Quero dizer-te aos ouvidos Que tu és uma rainha...
— Acha, pois? e o que tem isso?
Quer ser rei, por vida minha?
— Quem dera que tu quisesses...
— Não duvide, que o farei;
Meu senhor, case com ela, A rainha o fará rei...
— Casar-me? ... ainda sou tão moço...
— Como é criança esta ovelha!
Pois eu p’ra beijar crianças, Adeusinho, já sou velha.
VI
FLORA
Agora... agora!... murmurei baixinho Nos ouvidos de Flora, a gentil Flora!
Não ha tempo a perder, é pouco o tempo!
Dá-me o beijo de amor... agora!... agora!...
Agora... agora!.. que propício instante Para o beijo de amor que Amor implora!
Esconde o rosto por detrás do leque, Como quem não me viu... agora...agora!..
Há mais de um ano que este amor faminto na esperança de um beijo se vigora!
Há tanto tempo!.. meu amor... meu anjo!
Agora... agora! dá-me o beijo... agora!..
Voltou seu rosto: por detrás do leque Por um triz eu beijava a gentil Flora, Se o maldito do pai não vem saudar-me, Perguntando a sorrir — não dança agora?! Ha mais de um ano que este amor faminto Na esperança de um beijo se vigora;
E quando cuido havê-lo bate asas...
Leve-te a breca o pai, querida Flora!
VII
O CALOTE
(imitação do francês)4 Saí da oficina Inda não era o sol posto:
Em meio ao caminho encontrei Trigueira, gentil menina Toda inteira de meu gosto:
Fui — junto dela parei.
Tomei-lhe as mãos trigueirinhas, (Que macias mãos aquelas!)
Beijei-as com frenesi...
— De todas as moreninhas, Lhe disse, de todas elas És a mais linda que vi!
— Vamos aos bosques, morena?
Vamos ver os arvoredos, Que muitos há para ver!
A tarde vai tão serena...
E eu tenho tantos segredos Que t’os queria dizer...
Fui-lhe do braço travando, Sem mostrar constrangimento, Que eu a levasse deixou;
Porém, aos bosques chegando, Com ares de sofrimento, Em pranto se desatou.
— Que tens, por que choras, bela?
Eu não te fiz resistência, Tu mesma o podes dizer?...
— Ai! soluçou, pobre dela!
Eu choro a minha inocência...
Que vais deitar a perder...—
— Esta bem, por Deus, não chores!
Não tocarei a inocência que Deus manda respeitar;
Tornemos ao campo: as flores Vai colher da adolescência, Vai pelos campos saltar.
— Livre’stás, podes agora, Lhe disse ao campo chegando, Podes rir, podes brincar;
Vai ela, com voz sonora, Negros olhos requebrando Pôs-se zombando a cantar.
— Que tens p’ra cantar, trigueira?
Responde, por vida minha, Que tens para assim cantar?
Respondeu: — A sua asneira!
Teve entre as mãos a galinha E não soube depenar!...
VIII
A FILHA DO MESTRE ANSELMO
Mestre Anselmo — sapateiro, No seu ofício o primeiro, (O primeiro remendão), Tinha uma filha formosa, Chamava-se a filha Rosa, E era rosa em botão Como um trono assentado, Mestre Anselmo repimpado Na tripeça era um sultão;
Mas, míngua de fregueses, Passava meses e meses Sem remontar um tacão.
Um dia o rei da craveira Nomeia a filha caixeira, E põe a filha ao balcão:
Acabaram-se os reveses, Mestre Anselmo tem fregueses, Já não pode medir mão.
De tão grande freguesia O mundo todo dizia Ter ganho o mestre um milhão;
Não que lho desse a craveira, Mas os olhos da caixeira Que tinha posto ao balcão... Certo ou não certo o comento, Por minha vez acrescento, E tenho certa razão...
Mestre Anselmo enriqueceu, Mas a filha... empobreceu No melhor do seu quinhão!...
______
Quem quiser no seu ofício, De mesquinho benefício, Ser rico do pé p’ra mão:
Tenha uma filha formosa, E, como o patrão de Rosa, Vá pondo a filha ao balcão.
IX
INGENUIDADE
— Pedi-lhe um beijo coraste!
Teus olhos no chão fitaste, E a rosinha desfolhaste Que te dei!
Foi um pedido inocente, Impulso de afeto ardente;
Ofendi-te, seriamente Não pensei!
— Pois eu também não cuidava, Quando a rosa desfolhava, Que tanta mágoa lhe dava Que lhe dei!
O senhor pediu-me um beijo.
Eu também tinha desejo...
Mas, quando quis veio o pejo, E... eu... corei!
— Inocente!... teve um pejo!
Agora então, dás-me o beijo?
É tão grande este desejo Com que ’stou!...
— Não se amofina comigo?
— Ah! não vês? sou teu amigo...
— Veja o que diz!...
— É o que digo...
— Não lhe dou!
— Quisera que me dissesses Que novos modos são esses De tratar-me... só mereces Meu desdém!
Já não preciso do beijo, Ou seja inocência ou pejo, Boas-festas lhe desejo, Passar bem!
— Não ralhe comigo que me entristeço!
O seu desdém não mereço...
Olhe — vê... como ingordeço...5 Olhe bem...
Não olha? ‘stá mal comigo?
Olhe, para meu castigo Veio tarde, meu amigo, Vou... ser mãe!
— É crível? na flor dos anos Pode haver entre os humanos Quem ousasse... desenganos!
É tal e qual!
Reparei... tinha uma pança Aquela pobre criança, Que poria em contradança Um arsenal!
——
Do sentimento no excesso Maldisse a luz do progresso, Que deixa ver pelo avesso As ilusões!
Doido, sensivelmente, Deixei aquela inocente Dizendo piedosamente Co’os meus botões:
— Pobre menina! tão cedo!
Abuso do século!... ai!
(Há de ser linda criança...
Se, ao menos, eu fosse o pai?!)
X
LAURA
— D’onde vens, Laura?
— De casa. — Vais á festa?
— Já se vê?
— Tão sozinha?
— O que tem com isso?
— Vou contigo...
— Para quê?
— Para ensinar-te o caminho...
— Agradeço-lhe o favor;
Eu sei de cor estas bandas, Obrigada, meu senhor.
— Olha o Demo se te encontra...
— Pergunto ao Demo; o que quer?
— E se ele quiser um beijo?
— Dou-lhe até mais, se quiser.
— Ora, anda cá; dá-me o beijo, Porque o Demônio em mim vês...
— Já me’stava parecendo...
Ficará para outra vez.
— Vá d’esta vez um abraço...
— Abraço?..
— Sim, o que tem?
— Mamãe me disse outro dia...
— O que te disse a mamãe?
— Que uma rapariga solteira Em abraçando um rapaz...
Ferve-lhe o sangue nas veias, E depois...
— E depois?
— Zás!
_________
Arregaçando o vestido Deitou-se Laura a correr;
Deixando-me boquiaberto Co’o sangue todo a ferver!
XI
MAL DE UM BEIJO
— Dá-me um beijo! pode um beijo Deixar-me acaso senão? Eu sei beijar tão leve...
Dá-me o beijo, Lídia?
— Não.
Mesquinha! pródigas outras Quantos beijos aí dão?...
Não sejas pródiga, emb’ora, Mas... um beijo ao menos?
— Não.
— Não te peço um sacrifício Em paga d’este vulcão, Que trago dentro do peito, Dá-me um beijo em paga?
— Não.
— Inferno! Que amante és Lídia, Pois sempre a dizer-me não, Quando um beijo te suplico Nos ardores da paixão?...
— Que me pedes para prova De minha extrema paixão?
Vai dizendo, verás, Lídia, Que não sei dizer-te — Não.
— Há de compor um romance, Que fale somente em mim, Que acima das moças todas Me punha em beleza?
— Sim.
— Não há de deixar que eu viva Por muitos meses assim Aborreço o meu estado...
— Sim, Lídia, três vezes sim.
É toda a minha ventura Casar-me, meu serafim;
Assim queiras... queres?
— Quero!
— Está dito... beijo?
— Sim!
———
E beijei-a... Mas o beijo Arrefeceu-me a paixão...
Hei de compor-lhe o romance;
Mas casar com Lídia? — Não. XII
FRANCINA
No templo de Deus, Francina Devota rezando ‘stava;
Seus negros olhos fitava No lenho da redenção:
E silêncio revelava As preces do coração.
De joelhos de mãos postas Para o céu as levantava, E mais formosa ficava Nessa humilde posição:
Eu, que herege a contemplava, Tinha fé e devoção...
De mãos postas, a seu modo Eu também me ajoelhava, Com devoção... com fervor.
Mas... de Deus não me lembrava Naqueles salmos d’amor!
Não me lembrava de Deus...
Não! o Deus, que eu adorava, De quem a graça implorava Nas preces do coração, Seus negros olhos fitava No lenho da redenção...
Era, sim, meu Deus, Francina Que a devoção me inspirava Era Deus, que eu adorava Das orações no fervor...
Como devoto rezava Eu rebelde pecador!...
“Rezas para Deus, Francina?
Eu, Francina, para ti!
Minhas culpas, querubim, Me pesam no coração!
Perdoa se te ofendi Amando com devoção A esses olhos serenos, A esses lábios — rubins, a essas faces — jasmins, Essa toda — perfeição!
Pequei, pequei! ai de mim Se morro sem teu perdão!
Volve teus olhos piedosos Para o pecador — cristão!
Dá-lhe um riso! salvação Para esperanças d’amor, Que às hordas do inferno ‘stão, Com elas o pecador!
Pelo amor d’esses teus olhos, Que fanais d’amores são, Eu te exoro o meu perdão D’amar-te com tanto amor!
Francina, tem compaixão!
Graça, graça ao pecador!”
De mãos postas, a seu modo Eu também me ajoelhava, E d’este modo rezava Com devoção, com fervor;
Quem sabe se eu me salvava Sendo sempre pecador?...
XIII
IGNEZ
— Lembras-te Ignez?
À sombra d’esta mangueira aquela vez?
— Eras então mais fagueira, Não eras má!
E a vida mais prazenteira Do que hoje ‘stá!
— Tinhas talvez...
Tinhas... quantos anos tinhas, Lembras-te, Ignez?
“ São coisas das Afonsinhas, Já lá se vão...
Eu sei cá essas coisinhas De quanto são.
— Que desamor!
Não te lembras do passado?
“ Eu não, senhor. “ Anda-me o tempo ocupado Dos dias meus Co’o meu maridinho amado, O sô Mateus.
— Casaste, pois?
“ Tal e qual...
— Tens bom marido?
“ Vale por dois, “ Seja-me o fado servido De o conservar, Como até hoje o tem sido Desde o altar, “ E eu lhe direi Se a sorte de outra casada Lhe invejarei.
“ Também fiel, desvelada Mulher assim, Não lhe há de ser apontada Depois de mim.
— Com que então, Fizeste um bom casamento?
“ Foi de encher a mão!
“ E tenho o contentamento De lhe dizer Que irei morrer num convento Se ele morrer.
— Ora esta Ignez!
E há quantos anos casaste?
“ Vai fazer um mês.
— Há poucos dias...
“ Afaste!
Veja o que faz! Querer em beijar? sô traste!
É muito audaz!
— Como és cruel!
Não quero beijar-te, quero Dar-te este anel.
“ Vá-se d’aí...
Como é fero Teu coração!
Não há peito mais austero, Por Deus, que não!
“ Prezo-me assim...
Já não és a Ignez d’outrora...
“ Pois sim, pois sim!
— Adeus, Ignez, vou-me bem’ora, Deixa-te, ‘star!...
Toma o anel; deita-o fora E este colar.
“ Lá isso não, Por soberba não rejeito O que me dão.
— Então aceitas?
“ Aceito...
— Querida Ignez!
“ Eu não... Talvez...
Valha-me Deus!
Quem vem aqui manquejando?
É sô Mateus!...
“ Fuja, fuja! vá-se andando Com pés de lan...
— Adeus, Ignez... até quando?
“ Volte amanhan...

XIV
LUCIA CÉPTICA
— Formosa Lúcia, confesso A teus olhos que não peço Outro beijo a mais ninguém, Desde esta hora bendita...
— Não acredito...
— Acredita, Juro-te, Lúcia...
— Por quem?
— Por este amor...
— Basta, basta;
Juramento d’essa casta Falham muito...
— Se eu jurar Por um vestido de folhos Que te prometo?
— Meus olhos Querem ver p’ra acreditar!
XV
ADEUS ÀS RAPARIGAS
Sabeis, raparigas! a mãe de Felícia, Felícia a risonha, gentil costureira Com quem pela Páscoa, sem ser por malícia, Gastei muitas notas de minha carteira;
Felícia a dos olhos mais negros que hei visto, De faces coradas, cintura maneira, E uns lábios de favos... de favos, é isto!
Beijei-os um dia, mas por brincadeira;
Felícia que há meses, comigo jogando, Da mãe às ocultas, sentada na esteira, Em vendo que a vela se’stava apagando Desmaia nos meus braços... de certa maneira...
Felícia, a acoitada! que teve a desgraça De ser descendente de velha parteira, Que dizem (mas isto não chegue à praça), Compor elixires de moça solteira...
Sabeis, raparigas! a tal criatura Quer hoje que a filha professe de freira!
Porque? vêem a birra? da filha a cintura Não vê que como outr’ora delgada e maneira?!
E nisto a pé firme jurando bentinhos, Não cede a pedidos nem a choradeira!
E o mais? não vos conto!... não disse aos vizinhos Que eu era o culpado da filha ir ser freira?
Que tem a cintura comigo, Dizei, raparigas, não é forte asneira?
Mas isto é já sério, tão sério, tão sério, vos digo, Que tiro a desforra de tal maroteira!
Adeus, raparigas, estou decidido...
Não sou mais quem era, mudei de carreira;
Pois façam de conta que tenho morrido, Que eu vou-me ser frade no claustro da freira. NOTAS ÀS LUCRÉCIAS
Falha-me aqui a pachorra para dar explicações sobre esse título.

1 Amo-vos a todas vós, Raparigas, — vers. 1 e 2. etc.
A respeito da palavra rapariga de que usou o sr. dr. Antônio Feliciano Castilho na esmerada tradução dos Amores de Ovídio, ouçamos o que diz, com aquele vasto saber e erudição de que é tão vantajosamente cheio, o seu digno irmão o sr. dr. José Feliciano de Castilho, em uma das preciosas notas da Grinalda Ovidiana, com que deu maior valor àquela tradução:
“Rapariga! rapariga! Santo breve de marca! que palavra tão plebéia!”
Sim?! Ora que tem, senhores acoimadores, que dizer de rapariga, para a proibirem aos poetas? quanto a nós, não só é palavra decente (não obstante o tomar-se em algumas partes de Portugal, como termo de pouco mais ou menos, no Brasil se atirar às escravas), senão que a temos por muito graciosa e eufônica. Não sabemos vocábulo nosso, dando sentido que traz, muitras vezes, nas poesias namoradas dos latinos, o diminutivo puella. Chamarem pobre à língua (que não o é), e depois quererem proscrever dela, sem nehuma razão, termos necessários, formosos e gentis, é contradição que não se absolve, etc, etc.”
2 Do rio gigante, que tira o seu nome Daquela guerreiras dos tempos d’além, vers.5 e 6.
3 Pois bem; das florestas, das matas virentes, A mão da ventura me trouxe até aqui, vers. 13 e 14.
Declaro, entretanto, que não sou neto de nenhum Botucudo.
4 O calote.
O original é o seguinte, ignoro o nome do autor:
LA PROMENADE
Aprés ma journée faite, Je m’en fus promener;
En mon chemin rencontre Une fille à mon gré.
Je las pris as main blanche, Dans les bois je l’ai menée.
Quant elle fut dans les bois, Elle se mit à pleurer:
“ Ah! qu’avez-vous la belle?
Qu’avez-vous à pleurer?
“Je pleure mon innocence...
Que vous allez m’ôter.”
“Ne pleurez pas tant, la belle, Je vous la laisserai.”
Je la pris par sa main blanche Dans les champs je l’ai menée.
Quand elle fut dans les champs, Elle se mit à chanter.
“Ah! qu’avez-vous la belle?
Qu’avez-vous à chanter”
“Je chante votre bêtise De me laisser aller;
Quand on tenait la poule, Il fallai la plumer.”
5 O seu desdém não mereço...
Olhe... vê... como ingordeço? — vers. 8 e 9.
Não foi a força da consoante que ali pôs aquele ingordeço, acreditem.
O fato deu-se e a ingênua não sabia gramática (o que não admira, porque gramática não é para todos). Aqui tinha eu pano para mangas se quisesse tomar contas a certo literatos a barbas enxutas, como aquele chama o sr. Alexandre Herculano a esses quindnas da família dos parlapatães. Mas, Deus lhes perdoe, já que, como diz ainda o mesmo senhor, são eruditos que lendo ainda por abixo, passam nas trevas como a coruja.


Domínio Público Gov.BR


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