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Textos para uso geral de domínio público.

Ficções do interlúdio: para além do outro oceano de Coelho Pacheco.

1 Destinado, igualmente a Orpheu 3, consta dos textos que chegaram a ser compostos. Está assinado por Coelho Pacheco e tem a seguinte dedicatória: "À memória de Alberto Caeiro". Numa nota do punho de Pessoa de um projeto de paginação de Orpheu 3, está assinado Coelho Pacheco.
2 Pacheco é um episódio heterônimo de Fernando Pessoa de quem se não conhece mais nenhuma produção. Estas notas que assina, com uma técnica quase futurista de disposição e pontuação, seguem estranhamente próximo o tipo de raciocínio, forçadamente linear e de associações, de Alberto Caeiro. O conteúdo é, no entanto, mais de um gosto, ainda indiscriminado, a Álvaro de Campos. Não é uma composição de primeiro plano, nem como sentido poético nem como expressão estética.
Porque não está datado, nada se pode concluir da sua feitura. O estar dedicado à memória de Alberto Caeiro pode apenas querer significar que a tal foi destinado à altura da publicação de Orpheu 3. Mais do que uma influência concreta de Alberto Caeiro, esta composição parece antes um quase e indistinto proto-Caeiro-Campos.

NUM SENTIMENTO de febre de ser para além doutro oceano Houve posições dum viver mais claro e mais límpido E aparências duma cidade de seres Não irreais mas lívidos de impossibilidade, consagrados em [pureza e em nudez Fui pórtico desta visão irrita e os sentimentos eram só o desejo [de os ter A noção das coisas fora de si, tinha-as cada um adentro Todos viviam na vida dos restantes E a maneira de sentir estava no modo de se viver Mas a forma daqueles rostos tinha a placidez do orvalho A nudez era um silêncio de formas sem modo de ser E houve pasmos de toda a realidade ser só isto Mas a vida era a vida e só era a vida.
O meu pensamento muitas vezes trabalha silenciosamente Com a mesma doçura duma máquina untada que se move sem [fazer barulho Sinto-me bem quando ela assim vai e ponho-me imóvel Para não desmanchar o equilíbrio que me faz tê-lo desse modo Pressinto que é nesses momentos que o meu pensamento é claro Mas eu não o oiço e silencioso ele trabalha sempre de mansinho Como uma máquina untada movida por uma correia E não posso ouvir senão o deslizar sereno das peças que [trabalham Eu lembro-me às vezes de que todas as outras pessoas devem [sentir isto como eu Mas dizem que lhes dói a cabeça ou sentem tonturas Esta lembrança veio-me como me podia vir outra qualquer Como por exemplo a de que eles não sentem esse deslizar E não pensam em que o não sentem Neste salão antigo em que as panóplias de armas cinzentas São a forma dum arcaboiço em que há sinais doutras eras Passeio o meu olhar materializado e destaco de escondido nas [armaduras Aquele segredo de alma que é a causa de eu viver Se fito na panóplia o olhar mortificado em que há desejos de [não ver Toda a estrutura férrea desse arcaboiço que eu pressinto não sei [por quê Se apossa do meu senti-la como um clarão de lucidez Há som no serem iguais dois elmos que me escutam A sombra das lanças de ser nítida marca a indecisão das palavras Dísticos de incerteza bailam incessantemente sobre mim Oiço já as coroações de heróis que hão de celebrar-me E sobre este vício de sentir encontro-me nos mesmos espasmos Da mesma poeira cinzenta das armas em que há sinais doutras [eras Quando entro numa sala grande e nua à hora do crepúsculo E que tudo é silêncio ela tem para mim a estrutura duma alma É vaga e poeirenta e os meus passos têm ecos estranhos Como os que ecoam na minha alma quando eu ando Por suas janelas tristes entra a luz adormecida de lá de fora E projeta na parede escura em frente as sombras e as penumbras Uma sala grande e vazia é uma alma silenciosa E as correntes de ar que levantam pó são os pensamentos Um rebanho de ovelhas é uma coisa triste Porque lhe não devemos poder associar outras idéias que não [sejam tristes E porque assim é e só porque assim é porque é verdade Que devemos associar idéias tristes a um rebanho de ovelhas Por esta razão e só por esta razão é que as ovelhas são realmente [tristes Eu roubo por prazer quando me dão um objeto de valor E eu dou em troca uns bocados de metal. Esta idéia não é comum [nem banal Porque eu encaro-a de modo diferente e não há relação entre um [metal e outro objeto Se eu fosse comprar latão e desse alcachofras prendiam-me Eu gostava de ouvir qualquer pessoa expor e explicar O modo como se pode deixar de pensar em que se pensa que [se faz uma coisa E assim perderia o receio que tenho de que um dia venha a saber Que o pensar eu em coisas e no pensar não passa duma coisa [material e perfeita A posição dum corpo não é indiferente para o seu equilíbrio E a esfera não é um corpo porque não tem forma Se é assim e se todos ouvimos um som em qualquer posição Infiro que ele não deve ser um corpo Mas os que sabem por intuição que o som não é um corpo Não seguiram o meu raciocínio e essa noção assim não lhes [serve para nada Quando me lembro que há pessoas que jogam as palavras para [fazerem espírito E se riem por isso e contam casos particulares da vida de cada [um Para assim se desenfastiarem e que acham graça aos palhaços de [circo E se incomodam por lhes cair uma nódoa de azeite no fato novo Sinto-me feliz por haver tanta coisa que eu não compreendo Na arte de cada operário vejo toda uma geração a esbater-se E por isso eu não compreendo arte nenhuma e vejo essa geração O operário não vê na sua arte nada duma geração E por isso ele é operário e conhece a sua arte O meu físico é muitas vezes causa de eu me amargurar Eu sei que sou uma coisa e porque não sou diferente de uma [coisa qualquer Sei que as outras coisas serão como eu e têm de pensar que eu [sou uma coisa comum Se portanto assim é eu não penso mas julgo que penso E esta maneira de me eu acondicionar é boa e alivia-me Eu amo as alamedas de árvores sombrias e curvas E ao caminhar em alamedas extensas que o meu olhar afeiçoa Alamedas que o meu olhar afeiçoa sem que eu saiba como Elas são portas que se abrem no meu ser incoerente E são sempre alamedas que eu sinto quando o pasmo de ser [assim me distingue Muitas vezes oculto-me sensações e gostos E então elas variam e estão em acordo com as dos outros Mas eu não as sinto e também não sei que me engano Sentir a poesia é a maneira figurada de se viver Eu não sinto a poesia não porque não saiba o que ela é Mas porque não posso viver figuradamente E se o conseguisse tinha de seguir outro modo de me acondicionar A condição da poesia é ignorar como se pode senti-la Há coisas belas que são belas em si Mas a beleza íntima dos sentimentos espelha-se nas coisas E se elas são belas nós não as sentimos Na seqüência dos passos não posso ver mais que a seqüência dos [passos E eles seguem-se como se eu os visse seguirem-se realmente Do fato deles serem tão iguais a si-mesmo E de não haver uma seqüência de passos que o não seja É que eu vejo a necessidade de nos não iludirmos sobre o sentido [claro das coisas Assim havíamos de julgar que um corpo inanimado sente e vê [diferentemente de nós E esta noção pode ser admissível demais seria incômoda e fútil Se quando pensamos podemos deixar de fazer movimento e de [falar Para que é preciso supor que as coisas não pensam Se esta maneira de as ver é incoerente e fácil para o espírito?
Devemos supor e este é o verdadeiro caminho Que nós pensamos pelo fato de o podermos fazer sem nos [mexermos nem falar Como fazem as coisas inanimadas Quando me sinto isolado a necessidade de ser uma pessoa qual-
[quer surge E redemoinha em volta de mim em espirais oscilantes Esta maneira de dizer não é figurada E eu sei que ela redemoinha em volta de mim como uma bor-
[boleta em volta de uma luz Vejo-lhe sintomas de cansaço e horrorizo-me quando julgo que [ela vai cair Mas de nunca suceder isso acontece eu estar às vezes isolado Há pessoas a quem o arranhar das paredes impressiona E outras que se não impressionam Mas o arranhar das paredes é sempre igual E a diferença vem das pessoas. Mas se há diferença entre este [sentir Haverá diferença pessoal no sentir das outras coisas E quando todos pensem igual duma coisa é porque ela é diferente [para cada um A memória é a faculdade de saber que havemos de viver Portanto os amnésicos não podem saber que vivem Mas eles são como eu infelizes e eu sei que estou vivendo e hei [de viver Um objeto que se atinge um susto que se tem São tudo maneiras de se viver para os outros Eu desejaria viver ou ser adentro de mim como vivem ou são [os espaços Depois de comer quantas pessoas se sentam em cadeiras de [balanço Ajeitam-se nas almofadas fecham os olhos e deixam-se viver Não há luta entre o viver e a vontade de não viver Ou então — e isto é horroroso para mim — se há realmente essa [luta Com um tiro de pistola matam-se tendo primeiro escrito cartas Deixar-se viver é absurdo como um falar em segredo Os artistas de circo são superiores a mim Porque sabem fazer pinos e saltos mortais a cavalo E dão os saltos só por os dar E se eu desse um salto havia de querer saber por que o dava —
E não os dando entristecia-me Eles não são capazes de dizer como é que os dão Mas saltam como só eles sabem saltar E nunca perguntaram a si-mesmos se realmente saltam Porque eu quando vejo alguma coisa Não sei se ela se dá ou não nem posso sabê-lo Só sei que para mim é como se ela acontecesse porque a vejo Mas não posso saber se vejo coisas que não aconteçam E se as visse também podia supor que elas sucediam Uma ave é sempre bela porque é uma ave E as aves são sempre belas Mas uma ave sem penas é repugnante como um sapo E um montão de penas não é belo Deste fato tão nu em si não sei induzir nada E sinto que deve haver nele alguma grande verdade O que eu penso duma vez nunca pode ser igual ao que eu penso [doutra vez E deste modo eu vivo para que os outros saibam que vivem Às vezes ao pé dum muro vejo um pedreiro a trabalhar E a sua maneira de existir e de poder ser visto é sempre diferente [do que julgo Ele trabalha e há um incitamento dirigido que move os seus [braços Como é que acontece estar ele trabalhando por uma vontade que [tem disso E eu não esteja trabalhando nem tenha vontade disso E não possa ter compreensão dessa possibilidade?
Ele não sabe nada destas verdades mas não é mais feliz do que [eu com certeza Em áleas doutros parques pisando as folhas secas Sonho às vezes que sou para mim e que tenho de viver Mas nunca passa este ver-me de ilusão Porque me vejo afinal nas áleas desse parque Pisando as folhas secas que me escutam Se pudesse ao menos ouvir estalar as folhas secas Sem ser eu que as pisasse ou sem que elas me vissem Mas as folhas secas redemoinham e eu tenho de as pisar Se ao menos nesta travessia eu tivesse um outro como toda a [gente Uma obra-prima não passa de ser uma obra qualquer E portanto uma obra qualquer é uma obra-prima Se este raciocínio é falso não é falsa a vontade Que eu tenho de que ele seja de fato verdadeiro E para os usos do meu pensar isso me basta Que importa que uma idéia seja obscura se ela é uma idéia E uma idéia não pode ser menos bela do que outra Porque não pode haver diferença entre duas idéias E isto é assim porque eu vejo que isto tem de ser assim Um cérebro a sonhar é o mesmo que pensa E os sonhos não podem ser incoerentes porque não passam de [pensamentos Como outros quaisquer. Se vejo alguém olhando-me Começo sem querer a pensar como toda a gente E é tão doloroso isso como se me marcassem a alma a ferro em [brasa Mas como posso eu saber se é doloroso marcar a alma a ferro em [brasa Se um ferro em brasa é uma idéia que eu não compreendo O descaminho que levaram as minhas virtudes comove-me Compunge-me sentir que posso notar se quiser a falta delas Eu gostava de ter as minhas virtudes gostosas que me preenchessem Mas só para poder gozar e possuí-las e serem minhas essas [virtudes Há pessoas que dizem sentir o coração despedaçado Mas não entrevistam sequer o que seria de bom Sentir despedaçarem-nos o coração Isso é uma coisa que se não sente nunca Mas não é essa a razão por que seria uma felicidade sentir o [coração despedaçado Num salão nobre de penumbra em que há azulejos Em que há azulejos azuis colorindo as paredes E de que o chão é escuro e pintado e com passadeiras de juta Dou entrada às vezes coerente por demais Sou naquele salão como qualquer pessoa Mas o sobrado é côncavo e as portas não acertam A tristeza das bandeiras crucificadas nos entrevãos das portas É uma tristeza feita de silêncio desnivelada Pelas janelas reticuladas entre a luz quando é dia Que entorpece os vidros das bandeiras e recolhe a recantos [montões de negrume Correm às vezes frios ventosos pelos extensos corredores Mas há cheiro a vernizes velhos e estalados nos recantos [dos salões E tudo é dolorido neste solar de velharias Alegra-me às vezes passageiramente pensar que hei de morrer E serei encerrado num caixão de pau cheirando a resina O meu corpo há de derreter-se para líquidos espantosos As feições desfar-se-ão em vários podres coloridos E irá aparecendo a caveira ridícula por baixo Muito suja e muito cansada a pestanejar FIM
DE "PARA ALÉM DOUTRO OCEANO DE COELHO PACHECO"


Domínio Público Gov.BR


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