Textos
Textos para uso geral de domínio público.

Espumas Flutuantes

À memória de Meu Pai, de Minha Mãe e de Meu Irmão O. D. C.

PRÓLOGO
Era por uma dessas tardes, em que o azul do céu oriental — é pálido e saudoso, em que o rumor do vento nas vergas — é monótono e cadente, e o quebro da vaga na amurada do navio —
é queixoso e tétrico.
Das bandas do Ocidente o sol se atufava nos mares “como um brigue em chamas”... e daquele vasto incêndio do crepúsculo alastrava-se a cabeça loura das ondas.
Além... os cerros de granito dessa formosa terra da Guanabara, vacilantes, a lutarem com a onda invasora de azul, que descia das alturas... recortavam-se indecisos na penumbra do horizonte.
Longe, inda mais longe... os cimos fantásticos da serra dos Órgãos embebiam-se na distância, sumiam-se, abismavam-se numa espécie de naufrágio celeste.
Só e triste, encostado à borda do navio, eu seguia com os olhos aquele esvaecimento indefinido e minha alma apegava-se à forma vacilante das montanhas — derradeiras atalaias dos meus arraiais da mocidade.
É que lá, dessas terras do Sul, para onde eu levara o fogo de todos os entusiasmos, o viço de todas as ilusões, os meus vinte anos de seiva e de mocidade, as minhas esperanças de glória e de futuro:... é que dessas terras do Sul, onde eu penetrara “como o moço Rafael subindo as escadas do Vaticano;”... volvia agora silencioso e alquebrado... trazendo por única ambição — a esperança de repouso em minha pátria.
Foi então que, em face destas duas tristezas — a noite que descia dos céus, — a solidão que subia do oceano —, recordei-me de vós, ó meus amigos!
E tive pena de lembrar que em breve nada restaria do peregrino na terra hospitaleira, onde vagara; nem sequer a lembrança desta alma, que convosco e por vós vivera e sentira, gemera e cantara...
Ó espíritos errantes sobre a terra! Ó velas enfunadas sobre os mares!... Vós bem sabeis quanto sois efêmeros... — passageiros que vos absorveis no espaço escuro, ou no escuro esquecimento.
E quando — comediantes do infinito — vos obumbrais nos bastidores do abismo, o que resta de vós?
— Uma esteira de espumas... — flores perdidas na vasta indiferença do oceano. — Um punhado de versos... — espumas flutuantes no dorso fero da vida!...
E o que são na verdade estes meus cantos?... 2 Como as espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos da musa — este sopro do alto; do coração — este pélago da alma.
E como as espumas são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles por vezes rebentaram ao estalar fatídico do látego da desgraça.
E como também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas rutilantes do arco-íris, eles por acaso refletiram o prisma fantástico do entusiasmo — estes signos brilhantes da aliança de Deus com a juventude!
Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima saudosa do marujo... possam eles, ó meus amigos! — efêmeros filhos de minh’alma — levar uma lembrança de mim às vossas plagas!...
São Salvador, fevereiro de 1870 Antônio de Castro Alves DEDICATÓRIA
A pomba d’aliança o vôo espraia Na superfície azul do mar imenso, Rente... rente da espuma já desmaia Medindo a curva do horizonte extenso...
Mas um disco se avista ao longe... A praia Rasga nitente o nevoeiro denso!...
Ó pouso! ó monte! ó ramo de oliveira!
Ninho amigo da pomba forasteira!...
Assim, meu pobre livro as asas larga Neste oceano sem fim, sombrio, eterno...
O mar atira-lhe a saliva amarga, O céu lhe atira o temporal de inverno...
O triste verga a tão pesada carga!
Quem abre ao triste um coração paterno?...
É tão bom ter por árvore — uns carinhos!
É tão bom de uns afetos — fazer ninhos!
Pobre órfão! Vagando nos espaços Embalde às solidões mandas um grito!
Que importa? De uma cruz ao longe os braços Vejo abrirem-se ao mísero precito...
Os túmulos dos teus dão-te regaços!
Ama-te a sombra do salgueiro aflito...
Vai, pois, meu livro! e como louro agreste Traz-me no bico um ramo de... cipreste!
Bahia, janeiro de 1870 3 O LIVRO E A AMÉRICA
Ao Grêmio Literário Talhado para as grandezas, Pra crescer, criar, subir, O Novo Mundo nos músculos Sente a seiva do porvir.
— Estatuário de colossos —
Cansado d’outros esboços Disse um dia Jeová:
“Vai, Colombo, abre a cortina “Da minha eterna oficina...
“Tira a América de lá.”
Molhado inda do dilúvio, Qual Tritão descomunal, O continente desperta No concerto universal.
Dos oceanos em tropa Um — traz-lhe as artes da Europa, Outro — as bagas de Ceilão...
E os Andes petrificados, Como braços levantados, Lhe apontam para a amplidão.
Olhando em torno então brada:
“Tudo marcha!... Ó grande Deus!
“As cataratas — pra terra, “As estrelas — para os céus.
“Lá, do pólo sobre as plagas, “O seu rebanho de vagas “Vai o mar apascentar...
“Eu quero marchar com os ventos, “Com os mundos... co’os firmamentos!!!”
E Deus responde — “Marchar!”
“Marchar!... Mas como?... Da Grécia Nos dóricos Partenons A mil deuses levantando Mil marmóreos Panteons?...
Marchar co’a espada de Roma — Leoa de ruiva coma De presa enorme no chão, Saciando o ódio profundo...
— Com as garras nas mãos do mundo, — Com os dentes no coração?... 4 “Marchar!... Mas como a Alemanha Na tirania feudal, Levantando uma montanha Em cada uma catedral?...
Não!... Nem templos feitos de ossos, Nem gládios a cavar fossos São degraus do progredir...
Lá brada César morrendo:
“No pugilato tremendo “Quem sempre vence é o porvir!”
Filhos do sec’lo das luzes!
Filhos da Grande nação!
Quando ante Deus vos mostrardes, Tereis um livro na mão:
O livro — esse audaz guerreiro Que conquista o mundo inteiro Sem nunca ter Waterloo...
Éolo de pensamentos, Que abrira a gruta dos ventos Donde a Igualdade voou!...
Por uma fatalidade Dessas que descem de além, O séc’lo, que viu Colombo, Viu Guttenberg também.
Quando no tosco estaleiro Da Alemanha o velho obreiro A ave da imprensa gerou...
O Genovês salta os mares...
Busca um ninho entre os palmares E a pátria da imprensa achou...
Por isso na impaciência Desta sede de saber, Como as aves do deserto —
As almas buscam beber...
Oh! bendito o que semeia Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n’alma É gérmen — que faz a palma, É chuva — que faz o mar.
Vós, que o templo das idéias Largo — abris às multidões, Pra o batismo luminoso Das grandes revoluções, Agora que o trem de ferro 5 Acorda o tigre no cerro E espanta os caboc’los nus, Fazei desse “rei dos ventos”
— Ginete dos pensamentos, — Arauto da grande luz!...
Bravo! a quem salva o futuro Fecundando a multidão!...
Num poema amortalhada Nunca morre uma nação.
Como Goëthe moribundo Brada “Luz!” o Novo Mundo Num brado de Briareu...
Luz! pois, no vale e na serra...
Que, se a luz rola na terra, Deus colhe gênios no céu!...
Bahia HEBRÉIA
Flos campi et lilium convalium. Cântico dos Cânticos Pomba d’esp’rança sobre um mar d’escolhos!
Lírio do vale oriental, brilhante!
Estrela vésper do pastor errante!
Ramo de murta a rescender cheirosa!...
Tu és, ó filha de Israel formosa...
Tu és, ó linda, sedutora Hebréia...
Pálida rosa da infeliz Judéia Sem ter o orvalho, que do céu deriva!
Por que descoras, quando a tarde esquiva Mira-se triste sobre o azul das vagas?
Serão saudades das infindas plagas, Onde a oliveira no Jordão se inclina?
Sonhas acaso, quando o sol declina, A terra santa do oriente imenso?
E as caravanas no deserto extenso?
E os pegureiros da palmeira à sombra?!...
Sim, fora belo na relvosa alfombra, Junto da fonte, onde Raquel gemera, Viver contigo qual Jacó vivera Guiando escravo teu feliz rebanho... 6 Depois nas águas de cheiroso banho — Como Susana a estremecer de frio —
Fitar-te, ó flor do Babilônio rio, Fitar-te a medo no salgueiro oculto...
Vem pois!... Contigo no deserto inculto Fugindo às iras de Saul embora, Davi eu fora, — se Micol tu foras, Vibrando na harpa do profeta o canto...
Não vês?... Do seio me goteja o pranto Qual da torrente do Cedrón deserto!...
Como lutara o patriarca incerto Lutei, meu anjo, mas caí vencido.
Eu sou o Lótus para o chão pendido.
Vem ser o orvalho oriental, brilhante!...
Ai! guia o passo ao viajor perdido, Estrela vésper do pastor errante!...
Bahia, 1866 QUEM DÁ AOS POBRES, EMPRESTA A DEUS
Ao Gabinete Portuguez de Leitura, por ocasião de oferecer o produto de um benefício às famílias dos soldados mortos na guerra Eu, que a pobreza de meus pobres cantos Dei aos heróis — aos miseráveis grandes —, Eu, que sou cego, — mas só peço luzes...
Que sou pequeno, — mas só fito os Andes...
Canto nest’hora, como o bardo antigo Das priscas eras, que bem longe vão, O grande NADA dos heróis, que dormem Do vasto pampa no funéreo chão...
Duas grandezas neste instante cruzam-se!
Duas realezas hoje aqui se abraçam!...
Uma — é um livro laureado em luzes...
Outra — uma espada, onde os lauréis se enlaçam.
Nem cora o livro de ombrear co'o sabre...
Nem cora o sabre de chamá-lo irmão...
Quando em loureiros se biparte o gládio Do vasto pampa no funéreo chão.
E foram grandes teus heróis, ó pátria, — Mulher fecunda, que não cria escravos —, 7 Que ao trom da guerra soluçaste aos filhos:
“Parti — soldados, mas voltai-me — bravos!”
E qual Moema desgrenhada, altiva, Eis tua prole, que se arroja então, De um mar de glórias apartando as vagas Do vasto pampa no funéreo chão.
E esses Leandros do Helesponto novo Se resvalaram — foi no chão da história...
Se tropeçaram — foi na eternidade...
Se naufragaram — foi no mar da glória...
E hoje o que resta dos heróis gigantes?...
Aqui — os filhos que vos pedem pão...
Além — a ossada, que branqueia a lua, Do vasto pampa no funéreo chão.
Ai! quantas vezes a criança loura Seu pai procura pequenina e nua, E vai, brincando co'o vetusto sabre, Sentar-se à espera no portal da rua...
Mísera mãe, sobre teu peito aquece Esta avezinha, que não tem mais pão!...
Seu pai descansa — fulminado cedro —
Do vasto pampa no funéreo chão.
Mas, já que as águias lá no Sul tombaram E os filhos d’águias o Poder esquece...
É grande, é nobre, é gigantesco, é santo!...
Lançai — a esmola, e colhereis — a prece!...
Oh! dai a esmola... que, do infante lindo Por entre os dedos da pequena mão, Ela transborda... e vai cair nas tumbas Do vasto pampa no funéreo chão.
Há duas coisas neste mundo santas:
— O rir do infante, — o descansar do morto...
O berço — é a barca, que encalhou na vida, A cova — é a barca do sidéreo porto...
E vós dissestes para o berço — Avante! —
Enquanto os nautas, que ao Eterno vão, Os ossos deixam, qual na praia as âncoras, Do vasto pampa no funéreo chão.
É santo o laço, em qu’hoje aqui se estreitam De heróicos troncos — os rebentos novos —!
É que são gêmeos dos heróis os filhos Inda que filhos de diversos povos!
Sim! me parece que n’est'hora augusta Os mortos saltam da feral mansão... 8 E um “bravo!” altivo de além-mar partindo Rola do pampa no funéreo chão!...
São Salvador, 31 de outubro de 1867 O LAÇO DE FITA
Não sabes, criança? ‘Stou louco de amores...
Prendi meus afetos, formosa Pepita.
Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?!
Não rias, prendi-me Num laço de fita.
Na selva sombria de tuas madeixas, Nos negros cabelos da moça bonita, Fingindo a serpente qu’enlaça a folhagem, Formoso enroscava-se O laço de fita.
Meu ser, que voava nas luzes da festa, Qual pássaro bravo, que os ares agita, Eu vi de repente cativo, submisso Rolar prisioneiro Num laço de fita.
E agora enleada na tênue cadeia Debalde minh’alma se embate, se irrita...
O braço que rompe cadeias de ferro, Não quebra teus elos, Ó laço de fita!
Meu Deus! As falenas têm asas de opala, Os astros se libram na plaga infinita.
Os anjos repousam nas penas brilhantes...
Mas tu... tens por asas Um laço de fita.
Há pouco voavas na célere valsa Na valsa que anseia, que estua e palpita.
Por que é que tremeste? Não eram meus lábios...
Beijava-te apenas...
Teu laço de fita.
Mas ai! findo o baile, despindo os adornos N’alcova onde a vela ciosa... crepita, Talvez da cadeia libertes as tranças Mas eu... fico preso 9 No laço de fita.
Pois bem! Quando um dia na sombra do vale Abrirem-me a cova... formosa Pepita!
Ao menos arranca meus louros da fronte, E dá-me por c’roa...
Teu laço de fita.
São Paulo, julho de 1868 AHASVERUS E O GÊNIO
Ao poeta e amigo J. Felizardo Júnior Sabes quem foi Ahasverus?... — o precito, O mísero judeu, que tinha escrito Na fronte o selo atroz!
Eterno viajor de eterna senda...
Espantado a fugir de tenda em tenda Fugindo embalde à vingadora voz!
Misérrimo! Correu o mundo inteiro, E no mundo tão grande... o forasteiro Não teve onde... pousar.
Co'a mão vazia — viu a terra cheia.
O deserto negou-lhe — o grão de areia, A gota d’água — rejeitou-lhe o mar.
D’Ásia as florestas — lhe negaram sombra A savana sem fim — negou-lhe alfombra O chão negou-lhe o pó!...
Tabas, serralhos, tendas e solares...
Ninguém lhe abriu a porta de seus lares E o triste seguiu só.
Viu povos de mil climas, viu mil raças, E não pôde entre tantas populaças Beijar uma só mão...
Desde a virgem do norte à de Sevilhas Desde a inglesa à crioula das Antilhas Não teve um coração!...
E caminhou!... E as tribos se afastavam E as mulheres tremendo murmuravam Com respeito e pavor.
Ai! Fazia tremer do vale à serra...
Ele que só pedia sobre a terra — Silêncio, paz e amor! — 10 No entanto à noite, se o Hebreu passava, Um murmúrio de inveja se elevava, Desde a flor da campina ao colibri.
“Ele não morre” a multidão dizia...
E o precito consigo respondia:
— “Ai! mas nunca vivi!” —
O gênio é como Ahasverus... solitário A marchar, a marchar no itinerário Sem termo de existir.
Invejado! A invejar os invejosos.
Vendo a sombra dos álamos frondosos...
E sempre a caminhar... sempre a seguir...
Pede u’a mão de amigo — dão-lhe palmas:
Pede um beijo de amor — e as outras almas Fogem pasmas de si.
E o mísero de glória em glória corre...
Mas quando a terra diz: — “Ele não morre”
Responde o desgraçado: “Eu não vivi!...”
São Paulo, outubro de 1868 MOCIDADE E MORTE
E perto avisto o porto Imenso, nebuloso e sempre noite Chamado — Eternidade. —
Laurindo Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate.
Dante Oh! eu quero viver, beber perfumes Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minh’alma adejar pelo infinito, Qual branca vela n’amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
— Árabe errante, vou dormir à tarde À sombra fresca da palmeira erguida.
Mas uma voz responde-me sombria:
Terás o sono sob a lájea fria.
Morrer... quando este mundo é um paraíso, E a alma um cisne de douradas plumas: 11 Não! o seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das espumas.
Vem! formosa mulher — camélia pálida, Que banharam de pranto as alvoradas.
Minh’alma é a borboleta, que espaneja O pó das asas lúcidas, douradas...
E a mesma voz repete-me terrível, Com gargalhar sarcástico: — impossível!
Eu sinto em mim o borbulhar do gênio.
Vejo além um futuro radiante:
Avante! — brada-me o talento n’alma E o eco ao longe me repete — avante! —
O futuro... o futuro... no seu seio...
Entre louros e bênçãos dorme a glória!
Após — um nome do universo n’alma, Um nome escrito no Panteon da história.
E a mesma voz repete funerária:
Teu Panteon — a pedra mortuária!
Morrer — é ver extinto dentre as névoas O fanal, que nos guia na tormenta:
Condenado — escutar dobres de sino, — Voz da morte, que a morte lhe lamenta —
Ai! morrer — é trocar astros por círios, Leito macio por esquife imundo, Trocar os beijos da mulher — no visco Da larva errante no sepulcro fundo.
Ver tudo findo... só na lousa um nome, Que o viandante a perpassar consome.
E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito Um mal terrível me devora a vida:
Triste Ahasverus, que no fim da estrada, Só tem por braços uma cruz erguida.
Sou o cipreste, qu’inda mesmo flórido, Sombra de morte no ramal encerra!
Vivo — que vaga sobre o chão da morte, Morto — entre os vivos a vagar na terra.
Do sepulcro escutando triste grito Sempre, sempre bradando-me: maldito! —
E eu morro, ó Deus! na aurora da existência, Quando a sede e o desejo em nós palpita...
Levei aos lábios o dourado pomo, 12 Mordi no fruto podre do Asfaltita.
No triclínio da vida — novo Tântalo —
O vinho do viver ante mim passa...
Sou dos convivas da legenda Hebraica, O estilete de Deus quebra-me a taça.
É que até minha sombra é inexorável, Morrer! morrer! soluça-me implacável.
Adeus, pálida amante dos meus sonhos!
Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos!
Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga Os prantos de meu pai nos teus cabelos.
Fora louco esperar! fria rajada Sinto que do viver me extingue a lampa...
Resta-me agora por futuro — a terra, Por glória — nada, por amor — a campa.
Adeus!... arrasta-me uma voz sombria Já me foge a razão na noite fria!...
1864 AO DOUS DE JULHO
Recitada no teatro de S. João É a hora das epopéias, Das Ilíadas reais.
Ruge o vento — do passado Pelos mares sepulcrais.
É a hora, em que a Eternidade Dialoga a Imortalidade...
Fala o herói com Jeová!...
E Deus — nas celestes plagas —
Colhe da glória nas vagas Os mortos de Pirajá.
Há destes dias augustos Na tumba dos Briareus.
Como que Deus baixa à terra Sem mesmo descer dos céus.
É que essas lousas rasteiras São — gigantes cordilheiras Do senhor aos olhos nus.
É que essas brancas ossadas São — colunas arrojadas Dos infinitos azuis. 13 Sim! Quando o tempo entre os dedos Quebra um sec’lo, uma nação...
Encontra nomes tão grandes Que não lhe cabem na mão!...
Heróis! Como o cedro augusto Campeia rijo e vetusto Dos sec’los ao perpassar, Vós sois os cedros da história, À cuja sombra de glória Vai-se o Brasil abrigar.
E nós, que somos faíscas Da luz desses arrebóis, Nós, que somos borboletas — Das crisálidas de avós, Nós, que entre as bagas dos cantos, Por entre as gotas dos prantos Inda os sabemos chorar, Podemos dizer: “Das campas Sacudi as frias tampas!
Vinde a Pátria abençoar!...”
Erguei-vos, santos fantasmas!
Vós não tendes que corar...
(Porque eu sei que o filho torpe Faz o morto soluçar...)
Gemem as sombras dos Gracos, Dos Catões, dos Espartacos Vendo seus filhos tão vis...
Dize-o tu, soberbo Mário!
Tu, que ensopas o sudário Vendo Roma — meretriz!...
Ai! Que lágrimas candentes Choram órbitas sem luz! —
Que idéia terá Leônidas Vendo Esparta nos pauis?!...
Alta noite, quando pena Sobre Árcole, sobre Iena, Bonaparte — o rei dos reis —, Que dor d’alma lhe rebenta, — Ao ver su’águia sangrenta No sabre de Juarez!?...
Porém aqui não há grito, Nem pranto, nem ai, nem dor...
O presente não desmente Do seu ninho de condor... 14 Mãos, que, outrora de crianças A rir — dentaram as lanças Dos velhos de Pirajá...
De homens hoje, as empunhando, Nas batalhas afiando, Vão caminho de Humaitá!...
Basta!... Curvai-vos, ó povo!...
Ei-los os vultos sem par, Só de joelhos podemos N’est’hora augusta fitar Riachuelo e Cabrito, Que sobem para o infinito Como jungidos leões, Puxando os carros dourados Dos meteoros largados Sobre a noite das nações.
Bahia, 1867 OS TRÊS AMORES
I
Minh’alma é como a fronte sonhadora Do louco bardo, que Ferrara chora...
Sou Tasso!... a primavera de teus risos De minha vida as solidões enflora...
Longe de ti eu bebo os teus perfumes, Sigo na terra de teu passo os lumes...
— Tu és Eleonora...
II
Meu coração desmaia pensativo, Cismando em tua rosa predileta.
Sou teu pálido amante vaporoso, Sou teu Romeu... teu lânguido poeta!...
Sonho-te às vezes virgem... seminua...
Roubo-te um casto beijo à luz da lua...
— E tu és Julieta...
III
Na volúpia das noites andaluzas O sangue ardente em minhas veias rola...
Sou D. Juan!... Donzelas amorosas, Vós conheceis-me os trenos na viola!
Sobre o leito do amor teu seio brilha...
Eu morro, se desfaço-te a mantilha... 15 Tu és — Júlia, a Espanhola!...
Recife, setembro de 1866 O FANTASMA E A CANÇÃO
Orgulho! desce os olhos dos céus sobre ti mesmo; e vê como os nomes mais poderosos vão se refugiar numa canção.
Byron — Quem bate? —“A noite é sombria!”
— Quem bate? — “É rijo o tufão!...
Não ouvis? a ventania Ladra à lua como um cão.”
— Quem bate? — “O nome qu’importa?
Chamo-me dor... abre a porta!
Chamo-me frio... abre o lar!
Dá-me pão... chamo-me fome!
Necessidade “é o meu nome!”
— Mendigo! podes passar!
“Mulher, se eu falar, prometes A porta abrir-me?” — Talvez.
— “Olha... Nas cãs deste velho Verás fanados lauréis.
Há no meu crânio enrugado O fundo sulco traçado Pela c’roa imperial.
Foragido, errante espectro, Meu cajado — já foi cetro!
Meus trapos — manto real!”
— Senhor, minha casa é pobre...
Ide bater a um solar!
— “De lá venho... O rei fantasma Baniram do próprio lar.
Nas largas escadarias, Nas vetustas galerias, Os pajens e as cortesãs, Cantavam!... Reinava a orgia!...
Festa! Festa! E ninguém via O rei coberto de cãs!”
— Fantasma! Aos grandes que tombam, É palácio o mausoléu!
— “Silêncio! De longe eu venho...
Também meu túmulo morreu. 16 O sec’lo — traça que medra Nos livros feitos de pedra —
Rói o mármore, cruel.
O tempo — Átila terrível Quebra co'a pata invisível Sarcófago e capitel.
“Desgraça então para o espectro, Quer seja Homero ou Solon, Se, medindo a treva imensa Vai bater ao Panteon...
O motim — Nero profano —
No ventre da cova insano Mergulha os dedos cruéis.
Da guerra nos paroxismos Se abismam mesmo os abismos E o morto morre outra vez!
“Então, nas sombras infindas, S’e esbarram em confusão Os fantasmas sem abrigo Nem no espaço, nem no chão...
As almas angustiadas, Como águias desaninhadas, Gemendo voam no ar.
E enchem de vagos lamentos As vagas negras dos ventos, Os ventos do negro mar!
“Bati a todas as portas Nem uma só me acolheu!...”
— Entra! — Uma voz argentina Dentro do lar respondeu.
— Entra, pois! Sombra exilada, Entra! O verso — é uma pousada Aos reis que perdidos vão.
A estrofe — é a púrpura extrema, Último trono — é o poema!
Último asilo — a Canção!...
Bahia, 13 de dezembro de 1869 O GONDOLEIRO DO AMOR
Barcarola DAMA NEGRA 17 Teus olhos são negros, negros, Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos, Como o negrume do mar;
Sobre o barco dos amores, Da vida boiando à flor, Douram teus olhos a fronte Do Gondoleiro do amor.
Tua voz é a cavatina Dos palácios de Sorrento, Quando a praia beija a vaga, Quando a vaga beija o vento;
E como em noites de Itália, Ama um canto o pescador, Bebe a harmonia em teus cantos O Gondoleiro do amor.
Teu sorriso é uma aurora.
Que o horizonte enrubesceu, — Rosa aberta com o biquinho Das aves rubras do céu;
Nas tempestades da vida Das rajadas no furor, Foi-se a noite, tem auroras O Gondoleiro do amor.
Teu seio é vaga dourada Ao tíbio clarão da lua, Que, ao murmúrio das volúpias, Arqueja, palpita nua;
Como é doce, em pensamento, Do teu colo no langor Vogar, naufragar, perder-se O Gondoleiro do amor!?
Teu amor na treva é — um astro, No silêncio uma canção, É brisa — nas calmarias, É abrigo — no tufão;
Por isso eu te amo, querida, Quer no prazer, quer na dor,...
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor! 18 Recife, janeiro de 1867 SUB TEGMINE FAGI
A Melo Morais Dieu parle dans le calme plus haut que dans la tempête.
Mickiewicz Deus nobis haec otia fecit.
Virgílio Amigo! O campo é o ninho do poeta...
Deus fala, quando a turba está quieta, Às campinas em flor.
— Noivo — Ele espera que os convivas saiam...
E n’alcova onde as lâmpadas desmaiam Então murmura — amor —
Vem comigo cismar risonho e grave...
A poesia — é uma luz... e alma — uma ave...
Querem — trevas e ar.
A andorinha, que é a alma — pede o campo A poesia quer sombra — é o pirilampo...
Pra voar... pra brilhar.
Meu Deus! Quanta beleza nessas trilhas...
Que perfume nas doces maravilhas, Onde o vento gemeu!...
Que flores d’ouro pelas veigas belas!
... Foi um anjo co’a mão cheia de estrelas Que na terra as perdeu.
Aqui o éter puro se adelgaça...
Não sobe esta blasfêmia de fumaça Das cidades para o céu.
E a terra é como um inseto friorento Dentro da flor azul do firmamento, Cujo cálice pendeu!...
Qual no fluxo e refluxo, o mar em vagas Leva a concha dourada... e traz das plagas Corais em turbilhão, A mente leva a prece a Deus — por pérolas E traz, volvendo após das praias cérulas, — Um brilhante — o perdão! 19 A alma fica melhor no descampado...
O pensamento indômito, arrojado Galopa no sertão, Qual nos estepes o corcel fogoso Relincha e parte turbulento, estoso, Solta a crina ao tufão.
Vem! Nós iremos na floresta densa, Onde na arcada gótica e suspensa Reza o vento feral.
Enorme sombra cai da enorme rama...
É o Pagode fantástico de Brama Ou velha catedral.
Irei contigo pelos ermos — lento —
Cismando, ao pôr-do-sol, num pensamento Do nosso velho Hugo.
— Mestre do mundo! Sol da eternidade!...
Para ter por planeta a humanidade, Deus num cerro o fixou.
Ao longe, na quebrada da colina, Enlaça a trepadeira purpurina O negro mangueiral...
Como no Dante a pálida Francesca, Mostra o sorriso rubro e a face fresca Na estrofe sepulcral.
O povo das formosas amarílis Embala-se nas balsas, como as Wilis Que o Norte imaginou.
O antro — fala... o ninho s’estremece...
A dríade entre as folhas aparece...
Pã na flauta soprou!...
Mundo estranho e bizarro da quimera, A fantasia desvairada gera Um paganismo aqui.
Melhor eu compreendo então Virgílio...
E vendo os Faunos lhe dançar no idílio, Murmuro crente: — eu vi! —
Quando penetro na floresta triste, Qual pela ogiva gótica o antiste, Que procura o Senhor, Como bebem as aves peregrinas Nas ânforas de orvalho das boninas, Eu bebo crença e amor!... 20 E à tarde, quando o sol — condor sangrento —, No ocidente se aninha sonolento, Como a abelha na flor...
E a luz da estrela trêmula se irmana Co’a fogueira noturna da cabana, Que acendera o pastor, A lua — traz um raio para os mares...
A abelha — traz o mel... um treno aos lares Traz a rola a carpir...
Também deixa o poeta a selva escura E traz alguma estrofe, que fulgura, Pra legar ao porvir!...
Vem! Do mundo leremos o problema Nas folhas da floresta, ou do poema, Nas trevas ou na luz...
Não vês?... Do céu a cúpula azulada, Como uma taça sobre nós voltada, Lança a poesia a flux!...
Boa Vista, 1867 AS TRÊS IRMÃS DO POETA
Traduzido de E. Berthoud É noite! as sombras correm nebulosas.
Vão três pálidas virgens silenciosas Através da procela irrequieta.
Vão três pálidas virgens... vão sombrias Rindo colar num beijo as bocas frias...
Na fronte cismadora do — Poeta —
“Saúde, irmão! Eu sou a Indiferença.
Sou eu quem te sepulta a idéia imensa, Quem no teu nome a escuridão projeta...
Fui eu que te vesti do meu sudário...
Que vais fazer tão triste e solitário?...
— “Eu lutarei!” — responde-lhe o Poeta.
“Saúde, meu irmão! Eu sou a Fome.
Sou eu quem o teu negro pão consome...
O teu mísero pão, mísero atleta!
Hoje, amanhã, depois... depois (qu’importa?)
Virei sempre sentar-me à tua porta...” 21 — “Eu sofrerei!” — responde-lhe o Poeta.
“Saúde, meu irmão! Eu sou a Morte!
Suspende em meio o hino augusto e forte.
Marquei-te a fronte, mísero profeta!
Volve ao nada! Não sentes neste enleio Teu cântico gelar-se no meu seio?!...”
— “Eu cantarei no céu” — diz-lhe o Poeta!
São Paulo, 25 de agosto de 1868 O VÔO DO GÊNIO
À atriz Eugênia Câmara Um dia, em que na terra a sós vagava Pela estrada sombria da existência, Sem rosas — nos vergéis da adolescência, Sem luz d’estrela — pelo céu do amor, Senti as asas de um arcanjo errante Roçar-me brandamente pela fronte, Como o cisne, que adeja sobre a fonte Às vezes toca a solitária flor.
E disse então: “Quem és, pálido arcanjo!
Tu, que o poeta vens erguer do pego?
Eras acaso tu, que Milton cego Ouvia em sua noite erma de sol?
Quem és tu? Quem és tu? — “Eu sou o gênio”
Disse-me o anjo “vem seguir-me o passo, Quero contigo me arrojar no espaço, Onde tenho por c’roas o arrebol!”
“Onde me levas, pois!...” — Longe te levo Ao país do ideal, terra das flores, Onde a brisa do céu tem mais amores E a fantasia — lagos mais azuis...”
E fui... e fui... ergui-me no infinito, Lá onde o vôo d’águia não se eleva...
Abaixo — via a terra — abismo em treva!
Acima — o firmamento — abismo em luz!
“Arcanjo! arcanjo! que ridente sonho!”
— “Não, poeta, é o vedado paraíso, Onde os lírios mimosos do sorriso Eu abro em todo o seio, que chorou, Onde a loura comédia canta alegre, 22 Onde eu tenho o condão de um gênio infindo, Que a sombra de Molière vem sorrindo Beijar na fronte, que o Senhor beijou...”
“Onde me levas mais, anjo divino?”
— “Vem ouvir, sobre as harpas inspiradas, O canto das esferas namoradas, Quando eu encho de amor o azul dos céus, Quero levar-te das paixões nos mares.
Quero levar-te a dédalos profundos, Onde refervem sóis... e céus... e mundos...
Mais sóis... mais mundos, e onde tudo é meu...”
“Mulher! mulher! Aqui tudo é volúpia:
A brisa morna, a sombra do arvoredo, A linfa clara, que murmura a medo, A luz que abraça a flor e o céu ao mar.
Ó princesa, a razão já se me perde, És a sereia da encantada Sila, Anjo, que transformaste-te em Dalila, Sansão de novo te quisera amar!
“Porém não páras neste vôo errante!
A que outros mundos elevar-me tentas?
Já não sinto o soprar de auras sedentas, Nem bebo a taça de um fogoso amor.
Sinto que rolo em báratros profundos...
Já não tens asas, águia da Tessália, Maldição sobre ti... tu és Onfália, Ninguém te ergue das trevas e do horror.
“Porém silêncio! No maldito abismo, Onde caí contigo criminosa, Canta uma voz, sentida e maviosa, Que arrependida sobe a Jeová!
Perdão! Perdão! Senhor, pra quem soluça, Talvez seja algum anjo peregrino...
... Mas não! inda eras tu, gênio divino, Também sabes chorar, como Eloá!
“Não mais, ó serafim! suspende as asas!
Que, através das estrelas arrastado, Meu ser arqueja louco, deslumbrado, Sobre as constelações e os céus azuis.
Arcanjo! Arcanjo! basta... Já contigo Mergulhei das paixões nas vagas cérulas...
Mas nos meus dedos — já não cabem — pérolas —
Mas na minh’alma — já não cabe — luz!...”
Recife, maio de 1866 23 O “ADEUS” DE TERESA
A vez primeira que eu fitei Teresa, Como as plantas que arrasta a correnteza, A valsa nos levou nos giros seus...
E amamos juntos... E depois na sala “Adeus” eu disse-lhe a tremer co’a fala...
E ela, corando, murmurou-me: “adeus”.
Uma noite... entreabriu-se um reposteiro...
E da alcova saía um cavaleiro Inda beijando uma mulher sem véus...
Era eu... Era a pálida Teresa!
“Adeus” lhe disse conservando-a presa...
E ela entre beijos murmurou-me: “adeus:”
Passaram tempos... sec’los de delírio Prazeres divinais... gozos do Empíreo...
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse — “Voltarei!... descansa!...”
Ela, chorando mais que uma criança, Ela em soluços murmurou-me: “adeus:”
Quando voltei... era o palácio em festa!...
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei!... Ela me olhou branca... surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!...
E ela arquejando murmurou-me: “adeus!”
São Paulo, 28 de agosto de 1868 A VOLTA DA PRIMAVERA
Aime, et tu renaîtras; fais-toi fleur pour éclore.
Après avoir souffert, il faut souffrir encore.
Il faut aimer sans cesse, après avoir aimé.
Alfred de Musset Ai não maldigas minha fronte pálida, 24 E o peito gasto ao referver de amores.
Vegetam louros — na caveira esquálida E a sepultura se reveste em flores.
Bem sei que um dia o vendaval da sorte Do mar lançou-me na gelada areia.
Serei... que importa? o D. Juan da morte Dá-me o teu seio — e tu serás Haidéia!
Pousa esta mão — nos meus cabelos úmidos!...
Ensina à brisa ondulações suaves!
Dá-me um abrigo nos teus seios túmidos!
Fala!... que eu ouço o pipilar das aves!
Já viste às vezes, quando o sol de Maio Inunda o vale, o matagal e a veiga?
Murmura a relva: “Que suave raio.”
Responde o ramo: “Como a luz é meiga!”
E, ao doce influxo do clarão do dia, O junco exausto, que cedera à enchente, Levanta a fronte da lagoa fria...
Mergulha a fronte na lagoa ardente...
Se a natureza apaixonada acorda Ao quente afago do celeste amante, Diz!... Quando em fogo o teu olhar transborda, Não vês minh’alma reviver ovante?
É que teu riso me penetra n’alma —
Como a harmonia de uma orquestra santa —
É que teu riso tanta dor acalma...
Tanta descrença!... Tanta angústia!... Tanta!
Que eu digo ao ver tua celeste fronte:
“O céu consola toda dor que existe.
“Deus fez a neve — para o negro monte!
“Deus fez a virgem — para o bardo triste!”
Rio de Janeiro, junho de 1869 A MACIEL PINHEIRO
Dieu soit en aide au pieux pélerin.
Bouchard Partes, amigo, do teu antro de águias, Onde gerava um pensamento enorme, 25 Tingindo as asas no levante rubro, Quando nos vales inda a sombra dorme...
Na fronte vasta, como um céu de idéias, Aonde os astros surgem mais e mais...
Quiseste a luz das boreais auroras...
Deus acompanhe o peregrino audaz.
Verás a terra da infeliz Moema, Bem como a Vênus se elevar das vagas;
Das serenatas ao luar dormida, Que o mar murmura nas douradas plagas.
Terra de glórias, de canções e brios, Esparta, Atenas, que não tem rivais...
Que, à voz da pátria, deixa a lira e ruge...
Deus acompanhe o peregrino audaz.
E quando o barco atravessar os mares, Quais pandas asas, desfraldando a vela, Há de surgir-te esse gigante imenso, Que sobre os morros campeando vela...
Símbolo de pedra, que o cinzel dos raios Talhou nos montes, que se alteiam mais...
Atlas com a forma do gigante povo...
Deus acompanhe o peregrino audaz.
Vai nas planícies dos infindos pampas Erguer a tenda do soldado vate...
Livre... bem livre a Marselhesa aos ecos Soltar bramindo no feroz combate...
E após do fumo das batalhas tinto Canta essa terra, canta os seus gerais, Onde os gaúchos sobre as éguas voam...
Deus acompanhe o peregrino audaz.
E nesse lago de poesia virgem, Quando boiares nas sutis espumas, Sacode estrofes, qual do rio a garça Pérolas solta das brilhantes plumas.
Pálido moço — como o bardo errante —
Teu barco voa na amplidão fugaz.
A nova Grécia quer um Byron novo...
Deus acompanhe o peregrino audaz.
E eu, cujo peito como uma harpa homérica Ruge estridente do que é grande ao sopro, Saúdo o artista, que ao talhar a glória, Pega da espada, sem deixar o escopro.
Da caravana guarda a areia a pegada:
No chão da história o passo teu verás... 26 Deus, que o Masepa nos estepes guia...
Deus acompanhe o peregrino audaz.
Recife, 1865 A UMA TAÇA FEITA DE UM CRÂNIO HUMANO
Traduzido de Byron “Não recues! De mim não foi-se o espírito...
Em mim verás — pobre caveira fria —
Único crânio, que ao invés dos vivos, Só derrama alegria.
Vivi! amei! bebi qual tu: Na morte Arrancaram da terra os ossos meus.
Não me insultes! empina-se!... que a larva Tem beijos mais sombrios do que os teus.
Mas val guardar o sumo da parreira Do que ao verme do chão ser pasto vil;
— Taça — levar dos deuses a bebida, Que o pasto do reptil.
Que este vaso, onde o espírito brilhava, Vá nos outros o espírito acender.
Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro ... Podeis de vinho o encher!
Bebe, enquanto inda é tempo! Uma outra raça, Quando tu e os teus fordes nos fossos, Pode do abraço te livrar da terra, E ébria folgando profanar teus ossos.
E por que não? Se no correr da vida Tanto mal, tanta dor aí repousa?
É bom fugindo à podridão do lodo Servir na morte enfim pra alguma coisa!...
Bahia, 15 de dezembro de 1869 PEDRO IVO
Sonhava nesta geração bastarda Glórias e liberdade!...
.....................................................
Era um leão sangrento, que rugia, 27 Da glória nos clarins se embriagava, E vossa gente pálida recuava, Quando ele aparecia.
Álvares de Azevedo I
Rebramam os ventos... Da negra tormenta Nos montes de nuvens galopa o corcel...
Relincha — troveja... galgando no espaço Mil raios desperta co'as patas revel.
É noite de horrores... nas grunas celestes, Nas naves etéreas o vento gemeu...
E os astros fugiram, qual bando de garças Das águas revoltas do lago do céu.
E a terra é medonha... As árvores nuas Espectros semelham fincados de pé, Com os braços de múmias, que os ventos retorcem, Tremendo a esse grito, que estranho lhes é.
Desperta o infinito... Co’a boca entreaberta Respira a borrasca do largo pulmão.
Ao longe o oceano sacode as espáduas — Encélado novo calcado no chão.
É noite de horrores... Por ínvio caminho Um vulto sombrio sozinho passou, Co’a noite no peito, co’a noite no busto Subiu pelo monte, — nas cimas parou.
Cabelos esparsos ao sopro dos ventos, Olhar desvairado, sinistro, fatal, Diríeis estátua roçando nas nuvens, Pra qual a montanha se fez pedestal.
Rugia a procela — nem ele escutava!...
Mil raios choviam — nem ele os fitou!
Com a destra apontando bem longe a cidade, Após largo tempo sombrio falou!...
II
Dorme, cidade maldita, Teu sono de escravidão!...
Dorme, vestal da pureza, Sobre os coxins do Sultão!...
Dorme, filha da Geórgia Prostituta em negra orgia Sê hoje Lucrécia Bórgia 28 Da desonra no balcão!...
Dormir?!... Não! Que a infame grita Lá se alevanta fatal...
Corre o champagne e a desonra Na orgia descomunal...
Na fronte já tens o laço...
Cadeia de ouro no braço, De pérolas um baraço, — Adornos da saturnal!
Louca!... Nem sabe que as luzes, Que acendeu pra as saturnais, São do enterro de seus brios Tristes círios funerais...
Que o seu grito de alegria É o estertor da agonia, A que responde a ironia Do riso de Satanás!...
Morreste... E ao teu saimento Dobra a procela no céu.
E os astros — olhar dos mortos —
A mão da noite escondeu.
Vê!... Do raio mostra a lampa Mão de espectro, que destampa Com dedos de ossos a campa, Onde a glória adormeceu.
E erguem-se as lápidas frias, Saltam bradando os heróis:
“Quem ousa da eternidade Roubar-nos o sono a nós?”
Responde o espectro: A desgraça!
Que a realeza, que passa, Com o sangue da vossa raça, Cospe o lodo sobre vós!...”
Fugi, fantasmas augustos!
Caveiras que coram mais, Do que essas faces vermelhas Dos infames párias!...
Fugi do solo maldito...
Embuçai-vos no infinito!...
E eu por detrás do granito Dos montes ocidentais...
Eu também fujo... Eu fugindo!!...
Mentira desses vilões! 29 Não foge a nuvem trevosa Quando em asas de tufões, Sobe dos céus à esplanada, Para tomar emprestada De raios uma outra espada, À luz das constelações!...
Como o tigre na caverna Afia as garras no chão, Como em Elba amola a espada Nas pedras — Napoleão, Tal eu — vaga encapelada, Recuo de uma passada, Pra levar de derribada Rochedos, reis, multidões...!
III
“Pernambuco! Um dia eu vi-te Dormindo imenso ao luar, Com os olhos quase cerrados, Com os lábios — quase a falar...
Do braço o clarim suspenso, — O punho no sabre extenso De pedra — recife imenso, Que rasga o peito do mar...
E eu disse: Silêncio, ventos!
Cala a boca, furacão!
No sonho daquele sono Perpassa a Revolução!
Este olhar que não se move Stá fito em — Oitenta e nove —
Lê Homero — escuta Jove...
— Robespierre — Dantão.
Naquele crânio entra em ondas O verbo de Mirabeau...
Pernambuco sonha a escada, Que também sonhou Jacó...
Cisma a República alçada, E pega os copos da espada, Enquanto em su’alma brada:
“Somos irmãos, Vergniaud.”
Então repeti ao povo:
— Desperta do sono teu!
Sansão — derroca as colunas!
Quebra os ferros — Prometeu!
Vesúvio curvo — não pares, 30 Ígnea coma solta aos ares, Em lavas inunda os mares, Mergulha o gládio no céu.
República!... Vôo ousado Do homem feito condor!
Raio de aurora inda oculta, Que beija a fronte ao Tabor!
Deus! Por que enquanto que o monte Bebe a luz desse horizonte, Deixas vagar tanta fronte, No vale envolto em negror?!...
Inda me lembro... Era, há pouco, A luta!... Horror!... Confusão!...
A morte voa rugindo Da garganta do canhão!...
O bravo a fileira cerra!...
Em sangue ensopa-se a terra!...
E o fumo — o corvo da guerra —
Com as asas cobre a amplidão...
Cheguei!... Como nuvens tontas, Ao bater no monte — além, Topam, rasgam-se, recuam...
Tais a meus pés vi também Hostes mil na luta inglória...
... Da pirâmide da glória São degraus... Marcha a vitória, Porque este braço a sustém.
Foi uma luta de bravos, Como a luta do jaguar.
De sangue enrubesce a terra, — De fogo enrubesce o ar!...
... Oh!... mas quem faz que eu não vença?
— O acaso... — avalanche imensa, Da mão do Eterno suspensa, Que a idéia esmaga ao tombar!...
Não importa! A liberdade É como a hidra, o Anteu.
Se no chão rola sem forças, Mais forte do chão se ergueu...
São os seus ossos sangrentos Gládios terríveis, sedentos...
E da cinza solta aos ventos Mais um Graco apareceu!... 31 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Dorme, cidade maldita!
Teu sono de escravidão!
Porém no vasto sacrário Do templo do coração, Ateia o lume das lampas, Talvez que um dia dos pampas Eu surgindo quebre as campas, Onde te colam no chão.
Adeus! Vou por ti maldito Vagar nos ermos pauis.
Tu ficas morta, na sombra, Sem vida, sem fé, sem luz!...
Mas quando o povo acordado Te erguer do tredo valado, Virá livre, grande, ousado, De pranto banhar-me a cruz!...
IV
Assim falara o vulto errante e negro, Como a estátua sombria do revés.
Uiva o tufão nas dobras de seu manto, Como um cão do senhor ulula aos pés...
Inda um momento esteve solitário Da tempestade semelhante ao deus, Trocando frases com os trovões no espaço Raios com os astros nos sombrios céus...
Depois sumiu-se dentre as brumas densas Da negra noite — de su’alma irmã...
E longe... longe... no horizonte imenso Ressonava a cidade cortesã!...
Vai!... Do sertão esperam-te as Termópilas A liberdade inda pulula ali...
Lá não vão vermes perseguir as águias, Não vão escravos perseguir a ti!
Vai!... Que o teu manto de mil balas roto É uma bandeira, que não tem rival.
— Desse suor é que Deus faz os astros...
Tens uma espada, que não foi punhal.
Vai, tu que vestes do bandido as roupas, Mas não te cobres de uma vil libré Se te renega teu país ingrato O mundo, a glória tua pátria é!... 32 ..............................................................
V
E foi-se... E inda hoje nas horas errantes, Que os cedros farfalham, que ruge o tufão, E os lábios da noite murmuram nas selvas E a onça vagueia no vasto sertão.
Se passa o tropeiro nas ermas devesas, Caminha medroso, figura-lhe ouvir O infrene galope d’Espectro soberbo, Com um grito de glória na boca a rugir.
Que importa se o túm’lo ninguém lhe conhece?
Nem tem epitáfio, nem leito, nem cruz?...
Seu túmulo é o peito do vasto universo, Do espaço — por cúpula — as conchas azuis!...
... Mas contam que um dia rolara o oceano Seu corpo na praia, que a vida lhe deu...
Enquanto que a glória rolava sua alma Nas margens da história, na areia do céu!...
Recife, maio de 1865 OITAVAS A NAPOLEÃO
Tradução de Lozano Águia das solidões!... Ninho atrevido Foram-te as borrascosas tempestades, Flamígero cometa suspendido Sobre o céu infinito das idades.
Tu que, no lago intérmino do olvido, Lançaste tuas régias claridades...
Deus caído do trono dos mais deuses...
Quem recebeu teus últimos adeuses?...
Não foram as pirâmides, que ouviram De teus passos o som e se inclinaram...
Nem as águas do Nilo, que te viram, E co'as ondas teu nome murmuraram...
Não foram as cidades, que brandiram As torres como facho... e te aclararam...
Quem foi? Silêncio!... tremulo de medo Vejo apenas — um mar... vejo — um rochedo...
A terra, o mar, os céus... espaço estreito 33 Eram pra tua planta de gigante.
Para teto dos paços teus foi feito O firmamento colossal, flutuante Como diadema — os sóis... E como leito O antártico pólo de diamante...
Teu féretro qual foi?... Titão do Sena, O penhasco fatal de Santa Helena...
Assassina do Encélado da guerra Só tu foste, Albion... do mar senhora...
Por quê? Por um pedaço aí de terra Foi pedir-te o gigante em negra hora...
E lhe deste um penhasco... Oh! Lá s’encerra Tua lenda mais hórrida... Traidora!
Lá seu espectro envolto na mortalha Aos quatro céus a maldição espalha...
Ao leão, que temias, enjaulaste;
E de longe escutando seu rugido, Tu, senhora do mar... tu desmaiaste!
Pelo punhal traidor ele ferido Caiu-te aos pés... Então tu respiraste, Cobarde vencedora do vencido...
Nem mesmo todo o oceano poderia Lavar este padrão de covardia...
Tu não és tão culpada!... Aonde estava A França tão potente e tão temida?...
Oh! Por que o não salvou?... se o contemplava Lá do gelo dos Alpes — soerguida!?...
E ele que a fez tão grande?... Ela folgava!...
Enquanto ao longe do colosso a vida Como um vulcão antigo e moribundo Lento expirava nesse mar profundo.
São Paulo BOA-NOITE
Veux-tu doné partir? Le jour est encore éloigné;
C’etait le rossignol et non pas l’alouette, Dont le chant a frappé ton oreille inquiète;
Il chante la nuit sur les branches de ce grenadier, Crois-moi, cher ami, c’etait le rossignol.
Shakespeare Boa-noite, Maria! Eu vou-me embora.
A lua nas janelas bate em cheio. 34 Boa-noite, Maria! É tarde... é tarde...
Não me apertes assim contra teu seio.
Boa-noite!... E tu dizes — Boa-noite.
Mas não digas assim por entre beijos...
Mas não mo digas descobrindo o peito, — Mar de amor onde vagam meus desejos.
Julieta do céu! Ouve... a calhandra Já rumoreja o canto da matina.
Tu dizes que eu menti?... pois foi mentira...
... Quem cantou foi teu hálito, divina!
Se a estrela-d’alva os derradeiros raios Derrama nos jardins do Capuleto, Eu direi, me esquecendo d’alvorada:
“É noite ainda em teu cabelo preto...”
É noite, ainda! Brilha na cambraia — Desmanchado o roupão, a espádua nua —
O globo de teu peito entre os arminhos Como entre as névoas se balouça a lua...
É noite, pois! Durmamos, Julieta!
Recende a alcova ao trescalar das flores.
Fechemos sobre nós estas cortinas...
— São as asas do arcanjo dos amores.
A frouxa luz da alabastrina lâmpada Lambe voluptuosa os teus contornos...
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos Ao doudo afago de meus lábios mornos.
Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos Treme tua alma, como a lira ao vento, Das teclas de teu seio que harmonias, Que escalas de suspiros, bebo atento!
Ai! Canta a cavatina do delírio Ri, suspira, soluça, anseia e chora...
Marion! Marion!... É noite ainda.
Que importa os raios de uma nova aurora?!...
Como um negro e sombrio firmamento, Sobre mim desenrola teu cabelo...
E deixa-me dormir balbuciando:
— Boa-noite! —, formosa Consuelo!...
São Paulo, 27 de agosto de 1868 35 ADORMECIDA
Ses longs cheveux épars la couvrent sonie entière.
La croix de son collier repose dans sa main, Comme pour témoigner qu’elle a fait sa prière.
Et qu’elle va la faire en s’éveillant demain.
Alfred de Musset Uma noite, eu me lembro... Ela dormia Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão.... solto o cabelo E o pé descalço do tapete rente.
‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte, Via-se a noite plácida e divina.
De um jasmineiro os galhos encurvados, Indiscretos entravam pela sala, E de leve oscilando ao tom das auras, Iam na face trêmulos — beijá-la.
Era um quadro celeste!... A cada afago Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...
Dir-se-ia que naquele doce instante Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes, Fazia-lhe ondear as negras tranças!
E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio, Pra não zangá-la... sacudia alegre Uma chuva de pétalas no seio...
Eu, fitando esta cena, repetia Naquela noite lânguida e sentida:
“Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
“Virgem! — tu és a flor de minha vida!...”
São Paulo, novembro de 1868 36 JESUÍTAS
Século XVIII
Ó mes frères, je viens vous apporter mon Dieu, Je viens vous apporter ma tête!
Chátiments — Victor Hugo Quando o vento da Fé soprava Europa, Como o tufão, que impele ao ar a tropa Das águias, que pousavam no alcantil;
Do zimbório de Roma — a ventania O bando dos Apost’los sacudia Aos cerros do Brasil.
Tempos idos! Extintos luzimentos!
O pó da catequese aos quatro ventos Revoava nos céus...
Floria após na Índia, ou na Tartária, No Mississipi, no Peru, na Arábia Uma palmeira — Deus! —
O navio Maltês, do Lácio a vela, A lusa nau, as quinas de Castela, Do Holandês a galé Levavam sem saber ao mundo inteiro Os vândalos sublimes do cordeiro, Os átilas da fé.
Onde ia aquela nau? — Ao Oriente.
A outra? — Ao Pólo. A outra? — Ao Ocidente.
Outra? — Ao Norte. Outra? — Ao Sul.
E o que buscava? A foca além do pólo;
O âmbar, o cravo do indiano solo, Mulheres em ’Stambul.
Ouro — na Austrália; pedras — em Misora!...
“Mentira!” respondia em voz canora O filho de Jesus...
“Pescadores!... nós vamos no mar fundo “Pescar almas pra o Cristo em todo o mundo, “Com um anzol — a cruz —!”
Homens de ferro! Mal na vaga fria Colombo ou Gama um trilho descobria Do mar nos escarcéus, Um padre atravessava os equadores, Dizendo: “Gênios!... sois os batedores Da matilha de Deus.” 37 Depois as solidões surpresas viam Esses homens inermes, que surgiam Pela primeira vez.
E a onça recuando s’esgueirava Julgando o crucifixo... alguma clava Invencível talvez!
O martírio, o deserto, o cardo, o espinho, A pedra, a serpe do sertão maninho, A fome, o frio, a dor, Os insetos, os rios, as lianas, Chuvas, miasmas, setas e savanas, Horror e mais horror...
Nada turbava aquelas frontes calmas, Nada curvava aquelas grandes almas Voltadas pra amplidão...
No entanto eles só tinham na jornada Por couraça — a sotaina esfarrapada...
E uma cruz — por bordão.
Um dia a taba do Tupi selvagem Tocava alarma... embaixo da folhagem Rangera estranho pé...
O caboc’lo da rede ao chão saltava, A seta ervada o arco recurvava...
Estrugia o boré.
E o tacape brandindo, a tribo fera De um tigre ou de um jaguar ficava à espera Com gesto ameaçador...
Surgia então no meio do terreiro O padre calmo, santo, sobranceiro, O Piaga do amor.
Quantas vezes então sobre a fogueira, Aos estalos sombrios da madeira, Entre o fumo e a luz...
A voz do mártir murmurava ungida “Irmãos! Eu vim trazer-vos — minha vida...
Vim trazer-vos — Jesus!”
Grandes homens! Apóstolos heróicos!...
Eles diziam mais do que os estóicos:
“Dor, — tu és um prazer!
“Grelha, — és um leito! Brasa, — és uma gema!
“Cravo, — és um cetro! Chama, — um diadema “Ó morte, — és o viver!” 38 Outras vezes no eterno itinerário O sol, que vira um dia no Calvário Do Cristo a santa cruz, Enfiava de vir achar nos Andes A mesma cruz, abrindo os braços grandes Aos índios rubros, nus.
Eram eles que o verbo de Messias Pregavam desde o vale às serranias, Do Pólo ao Equador...
E o Niágara ia contar aos mares...
E o Chimboraço arremessava aos ares O nome do Senhor!...
São Paulo, 1868 POESIA E MENDICIDADE
No álbum da Ex.ma Sr.a d. Maria Justina Proença Pereira Peixoto I
Senhora! A poesia outrora era a Estrangeira, Pálida, aventureira, errante a viajar, Batendo em duas portas — ao grito das procelas —
Ao céu — pedindo estrelas, à terra — um pobre lar!
Visão — de áureos lauréis — porém de manto esquálido, Mulher — de lábio pálido — e olhar — cheio de luz.
Seus passos nos espinhos em sangue se assinalam...
E os astros lhe resvalam — à flor dos ombros nus...
II
Olhai! O sol descamba... A tarde harmoniosa Envolve luminosa a Grécia em frouxo véu.
Na estrada ao som da vaga, ao suspirar do vento, De um marco poeirento um velho então se ergueu.
Ergueu-se tateando... é cego... o cego anseia...
Porém o que tateia aquela augusta mão?...
Talvez busca pegar o sol, que lento expira!...
Fado cruel..., mentira!... Homero pede pão!
III
Mas ai! volvei, Senhora, os vossos belos olhos Daquele mar de abrolhos, a um novo quadro! olhai!
Do vasto salão gótico eu ergo o reposteiro...
O lar é hospitaleiro... Entrai, Senhora, entrai! 39 Estamos na média idade. Arnês, gládio, armadura Servem de compostura à sala vasta e chã.
A um lado um galgo esvelto ameiga e acaricia A mão suave, esguia — a loura castelã.
Vai o banquete em meio... O bardo se alevanta Pega da lira... canta... uma canção de amor...
Ouvi-o! Para ouvi-lo a estrela pensativa Alonga pela ogiva um raio de langor!
Dos ramos do carvalho a brisa se debruça...
Na sala alguém soluça... (amor, ou languidez?)
Súbito a nota extrema anseia, treme, rola...
Alguém pede uma esmola... Senhora, não olheis!...
Assim nos tempos idos a musa canta e pede...
Gênio e mendigo... vede!... o abismo de irrisões!
Tasso implora um olhar! Vai Ossian mendicante...
Caminha roto o Dante! e pede pão Camões.
IV
Bem sei, Senhora, que ao talento agora Surgiu a aurora de uma luz amena.
Hoje há salário pra qualquer trabalho, Cinzel, ou malho, ferramenta ou pena!
Melhor que o Rei sabe pagar o pobre Melhor que o nobre — protetor verdugo —!
Foi surdo um trono... à maior glória vossa...
Abre-se a choça aos “Miseráveis” de Hugo.
Porém não sei se é por costume antigo, Que inda é mendigo do cantor o gênio.
Mudem-se os panos do cenário a esmo O vulto é o mesmo... num melhor proscênio...
V
Hoje o Poeta — caminheiro errante, Que tem saudades de um país melhor.
Pede uma pérola — à maré montante, Do seio às vagas — pede — um outro amor.
Alma sedenta de ideal na terra Busca apagar aquela sede atroz!
Pede a harmonia divinal, que encerra Do ninho o chilro... da tormenta a voz!
E o rir da folha, o sussurrar da fala, 40 Trenos da estrela no amoroso estio, Voz que dos poros o Universo exala Do céu, da gruta, do alcantil, do rio!
Pede aos pequenos, desde o verme ao tojo, Ao fraco, ao forte... — preces, gritos, uivos...
Pede das águias o possante arrojo, Para encontrar os meteoros ruivos.
Pede à mulher que seja boa e linda — Vestal de um tipo que o ideal revela...
Pois ser formosa é ser melhor ainda...
Se és boa — és luz... mas se és formosa — estrela...
E pede à sombra, pra aljôfar de orvalhos A fronte azul da solidão noturna, E pede às auras, pra afagar os galhos.
E pede ao lírio, pra enfeitar a furna.
Pede ao olhar a maciez suave Que tem o arminho e o edredom macio, O aveludado da penugem d’ave, Que afaga as plumas no palmar sombrio.
...............................................................
E quando encontra sobre a terra ingrata Um reverbero do clarão celeste, — Alma formada de uma essência grata, Que a lua — doura, e que um perfume veste;
Um rir, que nasce como o broto em maio, Mostrando seivas de bondade infinda, Fronte que guarda — a claridade e o raio, — Virtude e graça — o ser bondosa e linda...
Então, Senhora, sob tanto encanto Pede o Poeta (que não tem renome)
— Versos — à brisa pra vos dar um canto...
Raios ao sol — pra vos traçar o nome!...
Bahia, 26 de janeiro de 1870 HINO AO SONO
Ó sono! ó noivo pálido Das noites perfumosas, 41 Que um chão de nebulosas Trilhas pela amplidão!
Em vez de verdes pâmpanos, Na branca fronte enrolas As lânguidas papoulas, Que agita a viração.
Nas horas solitárias, Em que vagueia a lua, E lava a planta nua Na onda azul do mar, Com um dedo sobre os lábios No vôo silencioso, Vejo-te cauteloso No espaço viajar!
Deus do infeliz, do mísero!
Consolação do aflito!
Descanso do precito, Que sonha a vida em ti!
Quando a cidade tétrica De angústias e dor não geme...
É tua mão que espreme A dormideira ali.
Em tua branca túnica Envolves meio mundo...
É teu seio fecundo.
De sonhos e visões, Dos templos aos prostíbulos, Desde o tugúrio ao Paço, Tu lanças lá do espaço Punhados de ilusões!...
Da vida o sumo rúbido, Do hatchiz a essência O ópio, que a indolência Derrama em nosso ser, Não valem, gênio mágico, Teu seio, onde repousa A placidez da lousa E o gozo do viver...
Ó sono! Unge-me as pálpebras...
Entorna o esquecimento Na luz do pensamento, Que abrasa o crânio meu.
Como o pastor da Arcádia, Que uma ave errante aninha... 42 Minh’alma é uma andorinha...
Abre-lhe o seio teu.
Tu, que fechaste as pétalas Do lírio, que pendia, Chorando a luz do dia E os raios do arrebol, Também fecha-me as pálpebras...
Sem Ela o que é a vida?...
Eu sou a flor pendida Que espera a luz do sol.
O leite das eufórbias Pra mim não é veneno...
Ouve-me, ó Deus sereno!
Ó Deus consolador!
Com teu divino bálsamo Cala-me a ansiedade!
Mata-me esta saudade.
Apaga-me esta dor.
Mas quando, ao brilho rútilo Do dia deslumbrante, Vires a minha amante Que volve para mim, Então ergue-me súbito...
É minha aurora linda...
Meu anjo... mais ainda...
É minha amante enfim!
Ó sono! Ó Deus noctívago!
Doce influência amiga!
Gênio que a Grécia antiga Chamava de Morfeu Ouve!... E se minha súplicas Em breve realizares...
Voto nos teus altares Minha lira de Orfeu!...
São Paulo, 12 de julho de 1868 NO ÁLBUM DO ARTISTA LUÍS C. AMOÊDO
Nos tempos idos... O alabastro, o mármore Reveste as formas desnuadas, mádidas De Vênus ou Friné.
Nem um véu p’ra ocultar o seio trêmulo, 43 Nem um tirso a velar a coxa pálida...
O olhar não sonha... vê!
Um dia o artista, num momento lúcido, Entre gazas de pedra a loura Aspásia Amoroso envolveu.
Depois, surpreso!... viu-a inda mais lânguida...
Sonhou mais doudo aquelas formas lúbricas...
Mais nuas sob um véu.
É o mistério do espírito... A modéstia É dos talentos reis a santa púrpura...
Artista, és belo assim...
Este santo pudor é só dos gênios! —
Também o espaço esconde-se entre névoas...
E no entanto é... sem fim!
São Paulo, abril de 1868 VERSOS DE UM VIAJANTE
Ai! nenhum mago da Caldéia sábia A dor abrandará que me devora.
Fagundes Varela Tenho saudade das cidades vastas, Dos ínvios cerros, do ambiente azul...
Tenho saudade dos cerúleos mares, Das belas filhas do país do sul!
Tenho saudade de meus dias idos — Pét’las perdidas em fatal paul —
Pet’las, que outrora desfolhamos juntos, Morenas filhas do país do sul!
Lá onde as vagas nas areias rolam, Bem como aos pés da oriental ‘Stambul...
E da Tijuca na nitente espuma Banham-se as filhas do país do sul.
Onde ao sereno a magnólia esconde Os pirilampos “de lanterna azul”, Os pirilampos, que trazeis nas coifas, Morenas filhas do país do sul.
Tenho saudades... ai de ti, São Paulo, — Rosa de Espanha no hibernal Friul —
Quando o estudante e a serenata acordam 44 As belas filhas do país do sul.
Das várzeas longas, das manhãs brumosas, Noites de névoa, ao rugitar do sul Quando eu sonhava nos morenos seios, Das belas filhas do país do sul.
Em caminho, fevereiro de 1870 ONDE ESTÁS?
É meia-noite... e rugindo Passa triste a ventania, Como um verbo de desgraça, Como um grito de agonia.
E eu digo ao vento, que passa Por meus cabelos fugaz:
“Vento frio do deserto, Onde ela está? Longe ou perto?
Mas, como um hálito incerto, Responde-me o eco ao longe:
“Oh! minh’amante, onde estás?...
Vem! É tarde! Por que tardas?
São horas de brando sono, Vem reclinar-te em meu peito Com teu lânguido abandono!...
‘Stá vazio nosso leito...
‘Stá vazio o mundo inteiro;
E tu não queres qu’eu fique Solitário nesta vida...
Mas por que tardas, querida?...
Já tenho esperado assaz...
Vem depressa, que eu deliro Oh! minh’amante, onde estás?...
Estrela — na tempestade, Rosa — nos ermos da vida, Íris — do náufrago errante, Ilusão — d’alma descrida, Tu foste, mulher formosa!
Tu foste, ó filha do céu!...
... E hoje que o meu passado Para sempre morto jaz...
Vendo finda a minha sorte, Pergunto aos ventos do norte...
“Oh! minh’amante, onde estás?” 45 Bahia A BOA VISTA
Sonha, poeta, sonha! Aqui sentado No tosco assento da janela antiga, Apóias sobre a mão a face pálida, Sorrindo — dos amores à cantiga.
Álvares de Azevedo Era uma tarde triste, mas límpida e suave...
Eu — pálido poeta — seguia triste e grave A estrada, que conduz ao campo solitário, Como um filho, que volta ao paternal sacrário, E ao longe abandonando o múrmur da cidade — Som vago, que gagueja em meio à imensidade —, No drama do crepúsculo eu escutava atento A surdina da tarde ao sol, que morre lento.
A poeira da estrada meu passo levantava, Porém minh’alma ardente no céu azul marchava E os astros sacudia no vôo violento — Poeira, que dormia no chão do firmamento.
A pávida andorinha, que o vendaval fustiga, Procura os coruchéus da catedral antiga.
Eu — andorinha entregue aos vendavais do inverno, Ia seguindo triste pra o velho lar paterno.

Como a águia, que do ninho talhado no rochedo Ergue o pescoço calvo por cima do fraguedo, — (Pra ver no céu a nuvem, que espuma o firmamento, E o mar, — corcel, que espuma ao látego do vento...)
Longe o feudal castelo levanta a antiga torre, Que aos raios do poente brilhante sol escorre!
Ei-lo soberbo e calmo o abutre de granito Mergulhando o pescoço no seio do infinito, E lá de cima olhando com seus clarões vermelhos Os tetos, que a seus pés parecem de joelhos!...

Não! minha velha torre! Oh! atalaia antiga, Tu olhas esperando alguma face amiga, E perguntas talvez ao vento, que em ti chora:
“Por que não volta mais o meu senhor d’outrora?
Por que não vem sentar-se no banco do terreiro Ouvir das criancinhas o riso feiticeiro, E pensando no lar, na ciência, nos pobres 46 Abrigar nesta sombra seus pensamentos nobres?
..............................................................................
Onde estão as crianças — grupo alegre e risonho — Que escondiam-se atrás do cipreste tristonho...
Ou que enforcaram rindo um feio Pulchinello, Enquanto a doce Mãe, que é toda amor, desvelo, Ralha com um rir divino o grupo folgazão.
Que vem correndo alegre beijar-lhe a branca mão?...”

É nisto que tu cismas, ó torre abandonada, Vendo deserto o parque e solitária a estrada.
No entanto eu — estrangeiro, que tu já não conheces —
No limiar de joelhos só tenho pranto e preces.
Oh! deixem-me chorar!... Meu lar... meu doce ninho!
Abre a vetusta grade ao filho teu mesquinho!
Passado — mar imenso!... inunda-me em fragrância!
Eu não quero lauréis, quero as rosas da infância.
Ai! Minha triste fronte, aonde as multidões Lançaram misturadas glórias e maldições...
Acalenta em teu seio, ó solidão sagrada!
Deixa est’alma chorar em teu ombro encostada!
Meu lar está deserto... Um velho cão de guarda Veio saltando a custo roçar-me a testa parda Lamber-me após os dedos, porém a sós consigo Rusgando com o direito, que tem um velho amigo...
Como tudo mudou-se!... O jardim ‘stá inculto As roseiras morreram do vento ao rijo insulto...
A erva inunda a terra; o musgo trepa os muros A urtiga silvestre enrola em nós impuros Uma estátua caída, em cuja mão nevada A aranha estende ao sol a teia delicada!...
Mergulho os pés nas plantas selvagens, espalmadas, As borboletas fogem-me em lúcidas manadas...
E ouvindo-me as passadas tristonhas, taciturnas, Os grilos, que cantavam, calaram-se nas furnas...
Oh! jardim solitário! Relíquia do passado!
Minh’alma, como tu, é um parque arruinado!
Morreram-me no seio as rosas em fragrância, Veste o pesar os muros dos meus vergéis da infância.
A estátua do talento, que pura em mim s’erguia, Jaz hoje — e nela a turba enlaça uma ironia!...
Ao menos como tu, lá d’alma num recanto Da casta poesia ainda escuto o canto, 47 — Voz do céu, que consola, se o mundo nos insulta, E na gruta do seio murmura um treno oculta.
Entremos!... Quantos ecos na vasta escadaria, Nos longos corredores respondem-me à porfia!...
Oh! casa de meus pais!... A um crânio já vazio, Que o hóspede largando deixou calado e frio, Compara-te o estrangeiro — caminhando indiscreto Nestes salões imensos, que abriga o vasto teto.
Mas eu no teu vazio — vejo uma multidão Fala-me o teu silêncio — ouço-te a solidão!...
Povoam-se estas salas...
E eu vejo lentamente No solo resvalarem falando tenuamente Dest’alma e deste seio as sombras venerandas Fantasmas adorados — visões sutis e brandas...
Aqui... além... mais longe... por onde eu movo o passo, Como aves, que espantadas arrojam-se ao espaço, Saudades e lembranças s’erguendo — bando alado —
Roçam por mim as asas voando pra o passado.
Boa Vista, 18 de novembro de 1867 A UMA ESTRANGEIRA
Lembrança de uma noite no mar Sens-tu mon coeur, comme il palpite?
Le tien comme il battait gaiement!
Je m’en vais pourtant, ma petite, Bien loin, bien vite, Toujours t’aimant.
Chanson Inês! nas terras distantes, Aonde vives talvez, Inda lembram-te os instantes Daquela noite divina?...
Estrangeira, peregrina, Quem sabe? — Lembras-te, Inês?
Branda noite! A noite imensa Não era um ninho? — Talvez!...
Do Atlântico a vaga extensa Não era um berço? — Oh! se o era... 48 Berço e ninho... ai, primavera!
O ninho, o berço de Inês.
Às vezes estremecias...
Era de febre? Talvez!...
Eu pegava-te as mãos frias Pra aquentá-las em meus beijos...
Oh! palidez! Oh! desejos!
Oh! longos cílios de Inês Na proa os nautas cantavam;
Eram saudades?... Talvez!
Nossos beijos estalavam Como estala a castanhola...
Lembras-te acaso, espanhola?
Acaso lembras-te, Inês?
Meus olhos nos teus morriam...
Seria vida? — Talvez!
E meus prantos te diziam:
“Tu levas minh’alma, ó filha, Nas rendas desta mantilha...
Na tua mantilha, Inês!”
De Cádiz o aroma ainda Tinhas no seio... — Talvez!
De Buenos Aires a linda, Volvendo aos lares, trazia As rosas de Andaluzia Nas lisas faces de Inês!
E volvia a Americana Do Plata às vagas... Talvez?
E a brisa amorosa, insana Misturava os meus cabelos Aos cachos escuros, belos, Aos negros cachos de Inês!
As estrelas acordavam Do fundo do mar... Talvez!
Na proa as ondas cantavam.
E a serenata divina Tu, com a ponta da botina, Marcavas no chão... Inês!
Não era cumplicidade Do céu, dos mares? Talvez!
Dir-se-ia que a imensidade — Conspiradora mimosa — 49 Dizia à vaga amorosa:
“Segreda amores à Inês!”
E como um véu transparente, Um véu de noiva... talvez, Da lua o raio tremente Te enchia de casto brilho...
E a rastos no tombadilho Caía a teus pés... Inês!...
E essa noite delirante Pudeste esquecer? — Talvez...
Ou talvez que neste instante, Lembrando-te inda saudosa, Suspires, moça formosa!...
Talvez te lembres... Inês!
Curralinho, 2 de julho de 1870 PERSEVERANDO
A Regueira Costa Tradução de Victor Hugo A águia é o gênio... Da tormenta o pássaro, Que do monte arremete o altivo píncaro, Qu’ergue um grito aos fulgores do arrebol, Cuja garra jamais se peia em lodo, E cujo olhar de fogo troca raios — Contra os raios do sol.
Não tem ninho de palhas... tem um antro — Rocha talhada ao martelar do raio, — Brecha em serra, ant’a qual o olhar tremeu...
No flanco da montanha — asilo trêmulo, Que sacode o tufão entre os abismos — O precipício e o céu.
Nem pobre verme, nem dourada abelha Nem azul borboleta... sua prole Faminta, boquiaberta espera ter...
Não! São aves da noite, são serpentes, São lagartos imundos, que ela arroja Aos filhos pra viver.
Ninho de rei!... palácio tenebroso, Que a avalanche a saltar cerca tombando!... 50 O gênio aí enseiva a geração...
E ao céu lhe erguendo os olhos flamejantes Sob as asas de fogo aquenta as almas Que um dia voarão.
Por que espantas-te, amigo, se tua fronte Já de raios pejada, choca a nuvem?...
Se o reptil em teu ninho se debate?...
É teu folgar primeiro... é tua festa!...
Águias! Pra vós cad’hora é uma tormenta, Cada festa um combate!...
Radia!... É tempo!... E se a lufada erguer-se Muda a noite feral em prisma fúlgido!
De teu alto pensar completa a lei!...
Irmão! — Prende esta mão de irmão na minha!
Toma a lira — Poeta! Águia! — esvoaça!
Sobe, sobe, astro-rei!...
De tua aurora a bruma vai fundir-se Águia! faz-te mirar do sol, do raio;
Arranca um nome no febril cantar.
Vem! A glória, que é o alvo de vis setas, É bandeira arrogante, que o combate Embeleza ao rasgar.
O meteoro real — de coma fúlgida —
Rola e se engrossa ao devorar dos mundos...
Gigante! Cresces todo dia assim!...
Tal teu gênio, arrastando em novos trilhos No curso audaz constelações de idéias, Marcha e recresce no marchar sem fim!...
Santo Amaro, Pernambuco, 1867 O CORAÇÃO
O coração é o colibri dourado Das veigas puras do jardim do céu.
Um — tem o mel da granadilha agreste, Bebe os perfumes, que a bonina deu.
O outro — voa em mais virentes balsas, Pousa de um riso na rubente flor.
Vive do mel — a que se chama — crenças —, Vive do aroma — que se diz — amor. —
Recife, 1865 51 MURMÚRIOS DA TARDE
Écoute! tout se tait; songe à ta bien aimée, Ce soir, sous les tilleuls, à la sombre ramée, Le rayon du couchant laisse un adieu plus doux;
Ce soir, tout va fleurir: l’immortelle nature Se remplit de parfums, d’amour et de murmure, Comme le lit joyeux de deux jeunes époux.
Alfred de Musset Rosa! Rosa de amor purpúrea e bela.
Garrett Ontem à tarde, quando o sol morria, A natureza era um poema santo.
De cada moita a escuridão saía, De cada gruta rebentava um canto, Ontem à tarde, quando o sol morria.
Do céu azul na profundeza escura Brilhava a estrela, como um fruto louro, E qual a foice, que no chão fulgura, Mostrava a lua o semicírc’lo d’ouro, Do céu azul na profundeza escura.
Larga harmonia embalsamava os ares!
Cantava o ninho — suspirava o lago...
E a verde pluma dos sutis palmares Tinha das ondas o murmúrio vago...
Larga harmonia embalsamava os ares.
Era dos seres a harmonia imensa Vago concerto de saudade infinda!
“Sol — não me deixes” diz a vaga extensa.
“Aura — não fujas” diz a flor mais linda;
Era dos seres a harmonia imensa!
“Leva-me! leva-me em teu seio amigo”
Dizia às nuvens o choroso orvalho, “Rola que foges” diz o ninho antigo, “Leva-me ainda para um novo galho...
“Leva-me! leva-me em teu seio amigo.”
“Dá-me inda um beijo, antes que a noite venha!”
“Inda um calor, antes que chegue o frio...”
E mais o musgo se conchega à penha 52 E mais à penha se conchega o rio...
“Dá-me inda um beijo, antes que a noite venha!”
E tu no entanto no jardim vagavas, Rosa de amor, celestial Maria...
Ai! como esquiva sobre o chão pisavas, Ai! como alegre a tua boca ria...
E tu no entanto no jardim vagavas.
Eras a estrela transformada em virgem!
Eras um anjo, que se fez menina!
Tinhas das aves a celeste origem.
Tinhas da lua a palidez divina, Eras a estrela transformada em virgem!
Flor! Tu chegaste de outra flor mais perto.
Que bela rosa! que fragrância meiga!
Dir-se-ia um riso no jardim aberto, Dir-se-ia um beijo, que nasceu na veiga...
Flor! Tu chegaste de outra flor mais perto!...
E eu, que escutava o conversar das flores, Ouvi, que a rosa murmurava ardente:
“Colhe-me, ó virgem, — não terei mais dores, “Guarda-me, ó bela, no teu seio quente...”
E eu escutava o conversar das flores.
“Leva-me! leva-me, ó gentil Maria!”
Também então eu murmurei cismando...
“Minh’alma é rosa, que a geada esfria...
“Dá-lhe em teus seios um asilo brando...
“Leva-me! leva-me, ó gentil Maria!...”
Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1869 PELAS SOMBRAS
Ao padre Francisco de Paula C’est que je suis frappé du doute C’est que l’étole de la foi N’éclaire plus ma noire route:
Tout est abîme autour de moi!
La Morvonnais Senhor! A noite é brava... a praia é toda escolhos Ladram na escuridão das Circes as cadelas...
As lívidas marés atiram, a meus olhos, Cadáveres, que riem à face das estrelas! 53 Da garça do oceano as ensopadas penas O mórbido suor enxugam-me da testa.
Na aresta do rochedo o pé se firma apenas...
No entanto ouço do abismo a rugidora festa!...
Nas orlas de meu manto o vendaval s’enrola...
Como invisível destra açoita as faces minhas...
Enquanto que eu tropeço... um grito ao longe rola...
“Quem foi?” perguntam rindo as solidões marinhas.
Senhor! Um facho ao menos empresta ao caminhante.
A treva me assoberba... Ó Deus! dá-me um clarão!

E uma Voz respondeu nas sombras triunfante:
“Acende, ó Viajor! — o facho da Razão!”
........................................................................
Senhor! Ao pé do lar, na quietação, na calma Pode a flama subir brilhante, loura, eterna;
Mas quando os vendavais, rugindo, passam n’alma, Quem pode resguardar a trêmula lanterna?
Torcida... desgrenhada aos dedos da lufada Bateu-me contra o rosto... e se abismou na treva.
Eu vi-a vacilar... e minha mão queimada A lâmpada sem luz embalde ao raio eleva.
Quem fez a gruta — escura, o pirilampo cria!
Quem fez a noite — azul, inventa a estrela clara!
Na fronte do oceano — acende uma ardentia!
Com o floco do Santelmo — a tempestade aclara!
Mas ai! Que a treva interna — a dúvida constante —
Deixaste assoberbar-me em funda escuridão!...

E uma Voz respondeu nas sombras triunfante:
“Acende, ó Viajor! a Fé no Coração!...”
Curralinho, 5 de junho de 1870 ODE AO DOUS DE JULHO
Recitada no teatro de São Paulo 54 Era no Dous de Julho. A pugna imensa Travara-se nos serros da Bahia...
O anjo da morte pálido cosia Uma vasta mortalha em Pirajá.
“Neste lençol tão largo, tão extenso, “Como um pedaço roto do infinito...
O mundo perguntava erguendo um grito:
“Qual dos gigantes morto rolará?!...
Debruçados do céu... a noite e os astros Seguiam da peleja o incerto fado...
Era a tocha — o fuzil avermelhado!
Era o circo de Roma — o vasto chão!
Por palmas — o troar da artilharia!
Por feras — os canhões negros rugiam!
Por atletas — dous povos se batiam!
Enorme anfiteatro — era a amplidão!
Não! Não eram dous povos, que abalavam Naquele instante o solo ensangüentado...
Era o porvir — em frente do passado, A liberdade — em frente à escravidão.
Era a luta das águias — e do abutre, A revolta do pulso — contra os ferros, O pugilato da razão — com os erros, O duelo da treva — e do clarão!...
No entanto a luta recrescia indômita...
As bandeiras — como águias eriçadas —
Se abismavam com as asas desdobradas Na selva escura da fumaça atroz...
Tonto de espanto, cego de metralha O arcanjo do triunfo vacilava...
E a glória desgrenhada acalentava O cadáver sangrento dos heróis!...
..............................................................
..............................................................
Mas quando a branca estrela matutina Surgiu do espaço... e as brisas forasteiras No verde leque das gentis palmeiras Foram cantar os hinos do arrebol, Lá do campo deserto da batalha Uma voz se elevou clara e divina:
Eras tu — liberdade peregrina!
Esposa do porvir — noiva do sol!...
Eras tu que com os dedos ensopados 55 No sangue dos avós mortos na guerra, Livre sagravas a Colúmbia terra, Sagravas livre a nova geração!
Tu que erguias, subida na pirâmide, Formada pelos mortos do Cabrito, Um pedaço de gládio — no infinito...
Um trapo de bandeira — n’amplidão!...
São Paulo, julho de 1868 A DUAS FLORES
São duas flores unidas, São duas rosas nascidas Talvez no mesmo arrebol, Vivendo no mesmo galho, Da mesma gota de orvalho, Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas Das duas asas pequenas De um passarinho do céu...
Como um casal de rolinhas, Como a tribo de andorinhas Da tarde no frouxo véu Unidas, bem como os prantos, Que em parelha descem tantos Das profundezas do olhar...
Como o suspiro e o desgosto, Como as covinhas do rosto, Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera Numa eterna primavera Viver, qual vive esta flor.
Juntar as rosas da vida Na rama verde e florida, Na verde rama do amor!
Curralinho, março de 1870 O TONEL DAS DANAIDES
Diálogo 56 Na torrente caudal de seus cabelos negros Alegre eu embarquei da vida a rubra flor.
— Poeta! Eras o Doge o anel lançando às ondas...
Ao fundo de um abismo... arremessaste o amor.
Depois minh’alma ao som da Lira de cem vozes Sublimes fantasias em notas desfolhou.
— Cleópatra também pra erguer no Tibre a espuma As pérolas do colar nas vagas desfiou!
Depois fiz de meu verso a púrpura escarlate Por onde ela pisasse em marcha triunfal!
— Como Hércules, volveste aos pés da insana Onfália O fuso feminil de uma paixão fatal.
Um dia ela me disse: “Eu sou uma exilada!”
Ergui-me... e abandonei meu lar e meu país...
— Assim o filho pródigo atira as vestes quentes E treme no caminho aos pés da meretriz.
E quando debrucei-me à beira daquela alma Pra ver toda riqueza e afetos que lhe dei!...
— Ai! nada mais achaste! o abismo os devorara...
O pego se esqueceu da dádiva do Rei!
Na gruta do chacal ao menos restam ossos...
Mas tudo sepultou-me aquele amor cruel!
— Poeta! O coração da fria Messalina É das fatais Danaides o pérfido Tonel!
14 de outubro de 1869 A LUÍS
No dia de seu natalício A imaginação, com o vôo ousado, aspira a princípio à eternidade... Depois um pequeno espaço basta em breve para os destroços de nossas esperanças iludidas!...
Goethe Como um perfume de longínquas plagas 57 Traz o vento da pátria ao peregrino, Ó meu amigo! que saudade infinda Tu me trazes dos tempos de menino!
É o ledo enxame de sutis abelhas Que vem lembrar à flor o mel d’aurora...
Acres perfumes de uma idade ardente Quando o lábio sorri... mas nunca chora!
Que tempos idos! que esperanças louras!
Que cismas de poesia e de futuro!
Nas páginas do triste Lamartine Quanto sonho de amor pousava puro!...
E tu falavas de um amor celeste, De um anjo, que depois se fez esposa...
— Moça, que troca os risos de criança Pelo meigo cismar de mãe formosa.
Oh! meu amigo! neste doce instante O vento do passado em mim suspira, E minh’alma estremece de alegria, Como ao beijo da noite geme a lira.
Tu paraste na tenda, ó peregrino!
Eu vou seguindo do deserto a trilha;
Pois bem... que a lira do poeta errante Seja a bênção do lar e da família.
Rio, fevereiro de 1868 DALILA
Fair defect of nature Paradise Lost — Milton Foi desgraça, meu Deus!... Não!... Foi loucura Pedir seiva de vida — à sepultura, Em gelo — me abrasar, Pedir amores — a Marco sem brio, E a rebolcar-me em leito imundo e frio — A ventura buscar.
Errado viajor — sentei-me à alfombra E adormeci da mancenilha à sombra Em berço de cetim...
Embalava-me a brisa no meu leito...
Tinha o veneno a lacerar-me o peito 58 — A morte dentro em mim...
Foi loucura!... No ocaso — tomba o astro;
A estátua branca e pura de alabastro — Se mancha em lodo vil...
Quem rouba a estrela — à tumba do ocidente?
Que Jordão lava na lustral corrente O marmóreo perfil?...
.....................................................................
Talvez!... Foi sonho!... Em noite nevoenta Ela passou sozinha, macilenta Tremendo a soluçar...
Chorava — nenhum eco respondia...
Sorria — a tempestade além bramia...
E ela sempre a marchar.
E eu disse-lhe: Tens frio? — arde minha alma.
Tens os pés a sangrar? — podes em calma Dormir no peito meu.
Pomba errante — é meu peito um ninho vago!
Estrela — tens minha alma — imenso lago —
Reflete o rosto teu!...
E amamos... Este amor foi um delírio...
Foi ela minha crença, foi meu lírio, Minha estrela sem véu...
Seu nome era o meu canto de poesia, Que com o sol — pena de ouro — eu escrevia Nas lâminas do céu.
Em seu seio escondi-me... como à noite Incauto colibri, temendo o açoite Das iras do tufão, A cabecinha esconde sob as asas, Faz seu leito gentil por entre as gazas Da rosa do Japão.
E depois... embalei-a com meus cantos Seu passado esqueci... lavei com prantos Seu lodo e maldição...
... Mas um dia acordei... E mal desperto Olhei em torno a mim... — Tudo deserto...
Deserto o coração...
Ao vento, que gemia pelas franças Por ela perguntei... de suas tranças À flor que ela deixou... 59 Debalde... Seu lugar era vazio...
E meu lábio queimado e o peito frio, Foi ela que o queimou...
Minha alma nodoou no ósculo imundo, Bem como Satanás — beijando o mundo —
Manchou a criação, Simum — crestou-me da esperança as flores...
Tormenta — ela afogou nos seus negrores A luz da inspiração...
Vai, Dalila!... É bem longa tua estrada...
É suave a descida — terminada Em báratro cruel.
Tua vida — é um banho de ambrosia...
Mais tarde a morte e a lâmpada sombria Pendente do bordel.
Hoje flores... A música soando...
As perlas do Champagne gotejando Em taças de cristal.
A volúpia a escaldar na louca insônia...
Mas sufoca os festins de Babilônia A legenda fatal.
Tens o seio de fogo e a alma fria.
O cetro empunhas lúbrico da orgia Em que reinas tu só!...
Mas que finda o ranger de uma mortalha, A enxada do coveiro que trabalha A revolver o pó.
Não te maldigo, não!... Em vasto campo Julguei-te — estrela, — e eras — pirilampo Em meio à cerração...
Prometeu — quis dar luz á fria argila...
Não pude... Pede a Deus, louca Dalila, A luz da redenção!!...
Recife, 1864 AS DUAS ILHAS
Sobre uma página da poesia de Victor Hugo, com o mesmo título Quando à noite — às horas mortas —
O silêncio e a solidão 60 — Sob o dossel do infinito —
Dormem do mar n’amplidão, Vê-se, por cima dos mares, Rasgando o teto dos ares Dous gigantescos perfis...
Olhando por sobre as vagas, Atentos, longínquas plagas Ao clarear dos fuzis.
Quem os vê, olha espantado E a sós murmura: “O que é?
Ai! que atalaias gigantes, São essas além de pé?...”
Adamastor de granito Co’a testa roça o infinito E a barba molha no mar;
E de pedra a cabeleira Sacudind’a onda ligeira Faz de medo recuar...
São — dous marcos miliários, Que Deus nas ondas plantou.
Dous rochedos, onde o mundo Dous Prometeus amarrou!...
— Acolá... (Não tenhas medo!...)
É Santa Helena — o rochedo Desse Titã, que foi rei!...
— Ali... (Não feches os olhos!...)
Ali... aqueles abrolhos São a ilha de Jersey!...
São eles — os dous gigantes No século de pigmeus.
São eles — que a majestade Arrancam da mão de Deus.
— Este concentra na fronte Mais astros — que o horizonte, Mais luz — do que o sol lançou!...
— Aquele — na destra alçada Traz segura sua espada — Cometa, que ao céu roubou!...
E olham os velhos rochedos O Sena, que dorme além...
E a França, que entre a caligem Dorme em sudário também...
E o mar pergunta espantado:
“Foi deveras desterrado Buonaparte — meu irmão?...” 61 Diz o céu astros chorando:
“E Hugo?...” E o mundo pasmando Diz: “Hugo... Napoleão!...”
Como vasta reticência Se estende o silêncio após...
És muito pequena, ó França, Pra conter estes heróis...
Sim! que estes vultos augustos Para o leito de Procustos Muito grandes Deus traçou...
Basta os reis tremam de medo Se a sombra de algum rochedo Sobre eles se projetou!...
Dizem que, quando, alta noite, Dorme a terra — e vela Deus, As duas ilhas conversam Sem temor perante os céus.
— Jersey curva sobre os mares À Santa Helena os pensares Segreda do velho Hugo...
— E Santa Helena no entanto No Salgueiro enxuga o pranto E conta o que Ele falou...
E olhando o presente infame Clamam: “Da turba vulgar Nós — infinitos de pedra —
Nós havemo-los vingar!...”
E do mar sobre as escumas, E do céu por sobre as brumas, Um ao outro dando a mão...
Encaram a imensidade Bradando: “A Posteridade!...”
Deus ri-se e diz: “Inda não!...
Recife, 1865 AO ATOR JOAQUIM AUGUSTO
Um dia Pigmalião — o estatuário Da oficina no tosco santuário Pôs-se a pedra a talhar...
Surgem contornos lânguidos, amenos...
E dos flocos de mármore outra Vênus Surge dest’outro mar. 62 De orgulho o mestre ri... A estátua é bela!
Da Grécia as filhas por inveja dela Vão nas grutas gemer...
Mas o artista soluça: “Ó Grande Jove!
“Ela é bela... bem sei — mas não se move!
“É sombra — e não mulher!”
Então do excelso Olimpo o deus-tonante Manda que desça um raio fulgurante À tenda do escultor.
Vive a estátua! Nos olhos — treme o pejo, Vive a estátua!... Na boca — treme um beijo, Nos seios — treme amor.
O poeta é — o moderno estatuário Que na vigília cria solitário Visões de seio nu!
O mármore da Grécia — é o novo drama!
Mas o raio vital quem lá derrama?...
É Júpiter!... És tu!...
Como Gluck nas selvas aprendia Ao som do violoncelo a melodia Da santa inspiração, Assim bebes atento a voz obscura Do vento das paixões na selva escura Chamada — multidão.
Gargalhadas, suspiros, beijos, gritos, Cantos de amor, blasfêmias de precitos, Choro ou reza infantil, Tudo colhes... e voltas co’as mãos cheias, — O crânio largo a transbordar de idéias E de criações mil.
Então começa a luta, a luta enorme.
Desta matéria tosca, áspera, informe, Que na praça apanhou, Teu gênio vai forjar novo tesouro...
O cobre escuro vai mudar-se em ouro, Como Fausto o sonhou!
Glória ao mestre! Passando por seus dedos Dói mais a dor... os risos são mais ledos...
O amor é mais do céu...
Rebenta o ouro desta fronte acesa!
O artista corrigiu a natureza!
O alquimista venceu! 63 Então surges, Ator! e do proscênio Atiras as moedas do teu gênio Às pasmas multidões.
Pródigo enorme! a tua enorme esmola Cunhada pela efígie tua rola Nos nossos corações.
Por isso agora, no teu almo dia, Vieram dando as mãos à Poesia E o povo, bem o vês;
Como nos tempos dessa Roma antiga Aos pés desse outro Augusto a plebe amiga Atirava lauréis...
Augusto! E o nome teu não se desmente...
O diadema real na vasta frente Cinges... eu bem o sei!
Mandas no povo deste novo Lácio...
E os poetas repetem como Horácio:
“Salve! Augusto! Rei!”
São Paulo, outubro de 1868 OS ANJOS DA MEIA-NOITE
Fotografias I
Quando a insônia, qual lívido vampiro, Como o arcanjo da guarda do Sepulcro, Vela à noite por nós, E banha-se em suor o travesseiro, E além geme nas franças do pinheiro Da brisa a longa voz...
Quando sangrenta a luz no alampadário Estala, cresce, expira, após ressurge, Como uma alma a penar;
E canta aos guizos rubros da loucura A febre — a meretriz da sepultura —
A rir e a soluçar...
Quando tudo vacila e se evapora, Muda e se anima, vive e se transforma, Cambaleia e se esvai...
E da sala na mágica penumbra... 64 Um mundo em trevas rápido se obumbra...
E outro das trevas sai...

......................................................................
Então... nos brancos mantos, que arregaçam Da meia-noite os Anjos alvos passam Em longa procissão!
E eu murmuro ao fitá-los assombrado:
São os Anjos de amor de meu passado Que desfilando vão...
Almas, que um dia no meu peito ardente Derramastes dos sonhos a semente, Mulheres, que eu amei!
Anjos louros do céu! virgens serenas!
Madonas, Querubins, ou Madalenas!
Surgi! aparecei!
Vinde, fantasmas! Eu vos amo ainda;
Acorde-se a harmonia à noite infinda Ao roto bandolim...
..................................................................
E no éter, que em notas se perfuma, As visões s’alteando uma por uma...
Vão desfilando assim!...
1ª SOMBRA
Marieta Como o gênio da noite, que desata O véu de rendas sobre a espádua nua, Ela solta os cabelos... Bate a lua Nas alvas dobras de um lençol de prata...
O seio virginal, que a mão recata, Embalde o prende a mão... cresce, flutua...
Sonha a moça ao relento... Além na rua Preludia um violão na serenata!...
... Furtivos passos morrem no lajedo...
Resvala a escada do balcão discreta...
Matam lábios os beijos em segredo...
Afoga-me os suspiros, Marieta!
Oh surpresa! oh palor! oh pranto! oh medo!
Ai! noites de Romeu e Julieta!... 65 2ª SOMBRA
Bárbara Erguendo o cálixe, que o Xerez perfuma, Loura a trança alastrando-lhe os joelhos, Dentes níveos em lábios tão vermelhos, Como boiando em purpurina escuma;
Um dorso de Valquíria... alvo de bruma, Pequenos pés sob infantis artelhos, Olhos vivos, tão vivos, como espelhos, Mas como eles também sem chama alguma;
Garganta de um palor alabastrino, Que harmonias e músicas respira...
No lábio — um beijo... no beijar — um hino;
Harpa eólia a esperar que o vento a fira, — Um pedaço de mármore divino...
E o retrato de Bárbara — a Hetaira.—
3ª SOMBRA
Ester Vem! no teu peito cálido e brilhante O nardo oriental melhor transpira!...
Enrola-te na longa caxemira, Como as Judias moles do Levante, Alva a clâmide aos ventos — roçagante..., Túmido o lábio, onde o saltério gira...
Ó musa de Israel! pega da lira...
Canta os martírios de teu povo errante!
Mas não... brisa da pátria além revoa, E ao delamber-lhe o braço alabastro, Falou-lhe de partir... e parte... e voa...
Qual nas algas marinhas desce um astro...
Linda Ester! teu perfil se esvai... s’escoa...
Só me resta um perfume... um canto... um rastro...
4ª SOMBRA
Fabíola Como teu riso dói... como na treva Os lêmures respondem no infinito:
Tens o aspecto do pássaro maldito, 66 Que em sânie de cadáveres se ceva!
Filha da noite! A ventania leva Um soluço de amor pungente, aflito...
Fabíola! É teu nome!... Escuta... é um grito, Que lacerante para os céus s’eleva!...
E tu folgas, Bacante dos amores, E a orgia, que a mantilha te arregaça, Enche a noite de horror, de mais horrores...
É sangue, que referve-te na taça!
É sangue, que borrifa-te estas flores!
E este sangue é meu sangue... é meu... Desgraça!
5ª e 6ª SOMBRAS
Cândida e Laura Como no tanque de um palácio mago, Dous alvos cisnes na bacia lisa, Como nas águas, que o barqueiro frisa, Dous nenúfares sobre o azul do lago, Como nas hastes em balouço vago Dous lírios roxos, que acalenta a brisa, Como um casal de juritis, que pisa O mesmo ramo no amoroso afago..., Quais dous planetas na cerúlea esfera, Como os primeiros pâmpanos das vinhas, Como os renovos nos ramais da hera, Eu vos vejo passar nas noites minhas, Crianças, que trazeis-me a primavera...
Crianças, que lembrais-me as andorinhas!...
7ª SOMBRA
Dulce Se houvesse ainda talismã bendito, Que desse ao pântano — a corrente pura, Musgo — ao rochedo, festa — à sepultura, Das águias negras — harmonia ao grito..., Se alguém pudesse ao infeliz precito Dar lugar no banquete da ventura...
E trocar-lhe o velar da insônia escura No poema dos beijos — infinito..., 67 Certo... serias tu, donzela casta, Quem me tomasse em meio do Calvário A cruz de angústias, que o meu ser arrasta!...
Mas se tudo recusa-me o fadário, Na hora de expirar, ó Dulce, basta Morrer beijando a cruz de teu rosário!...
8ª SOMBRA
Último Fantasma Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso, Que te elevas da noite na orvalhada?
Tens a face nas sombras mergulhada...
Sobre as névoas te libras vaporoso...
Baixas do céu num vôo harmonioso!...
Quem és tu, bela e branca desposada?
Da laranjeira em flor a flor nevada Cerca-te a fronte, ó ser misterioso!...
Onde nos vimos nós?... És doutra esfera?
És o ser que eu busquei do sul ao norte...
Por quem meu peito em sonhos desespera?...
Quem és tu? Quem és tu? — És minha sorte!
És talvez o ideal que est’alma espera!
És a glória talvez! Talvez a morte!...
Santa Isabel, agosto de 1870 O HÓSPEDE
Choro por ver que os dias passam breves E te esqueces de mim quando te fores;
Como as brisas que passam doudas, leves, E não tornam atrás a ver as flores.
Teófilo Braga “Onde vais estrangeiro! Por que deixas O solitário albergue do deserto?
O que buscas além dos horizontes?
Por que transpor o píncaro dos montes, Quando podes achar o amor tão perto?...
“Pálido moço! Um dia tu chegaste De outros climas, de terras bem distantes...
Era noite!... A tormenta além rugia... 68 Nos abetos da serra a ventania Tinha gemidos longos, delirantes.
“Uma buzina restrugiu no vale Junto aos barrancos onde geme o rio...
De teu cavalo o galopar soava, E teu cão ululando replicava Aos surdos roncos do trovão bravio.
“Entraste! A loura chama do brasido Lambia um velho cedro crepitante.
Eras tão triste ao lume da fogueira...
Que eu derramei a lágrima primeira Quando enxuguei teu manto gotejante!
“Onde vais, estrangeiro? Por que deixas Esta infeliz, misérrima cabana?
Inda as aves te afagam do arvoredo...
Se quiseres... as flores do silvedo Verás inda nas tranças da serrana.
“Queres voltar a este país maldito Onde a alegria e o riso te deixaram?
Eu não sei tua história... mas que importa?...
... Bóia em teus olhos a esperança morta Que as mulheres de lá te apunhalaram.
“Não partas, não! Aqui todos te querem!
Minhas aves amigas te conhecem.
Quando à tardinha volves da colina Sem receio da longa carabina De lajedo em lajedo as corças descem!
“Teu cavalo nitrindo na savana Lambe as úmidas gramas em meus dedos.
Quando a fanfarra tocas na montanha, A matilha dos ecos te acompanha Ladrando pela ponta dos penedos.
“Onde vais, belo moço? Se partires Quem será teu amigo, irmão e pajem?
E quando a negra insônia te devora, Quem na guitarra que suspira e chora.
Há de cantar-te seu amor selvagem?
“A choça do desterro é nua e fria!
O caminho do exílio é só de abrolhos!
Que família melhor que meus desvelos?...
Que tenda mais sutil que meus cabelos 69 Estrelados no pranto de teus olhos?...
“Estranho moço! Eu vejo em tua fronte Esta amargura atroz que não tem cura.
Acaso fulge ao sol de outros países, Por entre as balsas de cheirosas lises, A esposa que tua alma assim procura?
“Talvez tenhas além servos e amantes, Um palácio em lugar de uma choupana.
E aqui só tens uma guitarra e um beijo, E o fogo ardente de ideal desejo Nos seios virgens da infeliz serrana!...”
No entanto Ele partiu!... Seu vulto ao longe Escondeu-se onde a vista não alcança...
... Mas não penseis que o triste forasteiro Foi procurar nos lares do estrangeiro O fantasma sequer de uma esperança!...
Curralinho, 29 de abril de 1870 AS TREVAS
A meu amigo, o dr. Franco Meireles, inspirado tradutor das Melodias Hebraicas Traduzido de Lord Byron Tive um sonho que em tudo não foi sonho!...
O sol brilhante se apagara: e os astros, Do eterno espaço na penumbra escura, Sem raios, e sem trilhos, vagueavam.
A terra fria balouçava cega E tétrica no espaço ermo de lua.
A manhã ia, vinha... e regressava...
Mas não trazia o dia! Os homens pasmos Esqueciam no horror dessas ruínas Suas paixões. E as almas conglobadas Gelavam-se num grito de egoísmo Que demandava “luz”. Junto às fogueiras Abrigavam-se... e os tronos e os palácios, Os palácios dos reis, o albergue e a choça Ardiam por fanais. Tinham nas chamas As cidades morrido. Em torno às brasas Dos seus lares os homens se grupavam, Pra à vez extrema se fitarem juntos. 70 Feliz de quem vivia junto às lavas Dos vulcões sob a tocha alcantilada!
Hórrida esp'rança acalentava o mundo!
As florestas ardiam!... de hora em hora Caindo se apagavam; crepitando, Lascado o trono desabava em cinzas.
E tudo... tudo as trevas envolviam.
As frontes ao clarão da luz doente Tinham do inferno o aspecto... quando às vezes As faíscas das chamas borrifavam-nas.
Uns, de bruços no chão, tapando os olhos Choravam. Sobre as mãos cruzadas — outros —
Firmando a barba, desvairados riam.
Outros correndo à toa procuravam O ardente pasto pra funéreas piras.
Inquietos, no esgar do desvario, Os olhos levantavam pra o céu torvo, Vasto sudário do universo — espectro —, E após em terra se atirando em raivas, Rangendo os dentes, blasfemos, uivavam!
Lúgubre grito os pássaros selvagens Soltavam, revoando espavoridos Num vôo tonto co’as inúteis asas!
As feras ’stavam mansas e medrosas!
As víboras rojando s’enroscavam Pelos membros dos homens, sibilantes, Mas sem veneno... a fome lhes matavam!
E a guerra, que um momento s’extinguira, De novo se fartava. Só com sangue Comprava-se o alimento, e após à parte Cada um se sentava taciturno, Pra fartar-se nas trevas infinitas!
Já não havia amor!... O mundo inteiro Era um só pensamento, e o pensamento Era a morte sem glória e sem detença!
O estertor da fome apascentava-se Nas entranhas... Ossada ou carne pútrida Ressupino, insepulto era o cadáver.
Mordiam-se entre si os moribundos:
Mesmo os cães se atiravam sobre os donos, Todo exceto um só... que defendia O cadáver do seu, contra os ataques Dos pássaros, das feras e dos homens, Até que a fome os extinguisse, ou fossem Os dentes frouxos saciar algures!
Ele mesmo alimento não buscava... 71 Mas, gemendo num uivo longo e triste Morreu lambendo a mão, que inanimada Já não podia lhe pagar o afeto.
Faminta a multidão morrera aos poucos.
Escaparam dous homens tão-somente De uma grande cidade. E se odiavam.
... Foi junto dos tições quase apagados De um altar, sobre o qual se amontoaram Sacros objetos pra um profano uso, Que encontraram-se os dous... e, as cinzas mornas Reunindo nas mãos frias dos espectros, De seus sopros exaustos ao bafejo Uma chama irrisória produziram!...
Ao clarão que tremia sobre as cinzas Olharam-se e morreram dando um grito.
Mesmo da própria hediondez morreram, Desconhecendo aquele em cuja fronte Traçara a fome o nome de Duende!
O mundo fez-se um vácuo. A terra esplêndida, Populosa tornou-se numa massa Sem estações, sem árvores, sem erva, Sem verdura, sem homens e sem vida, Caos de morte, inanimada argila!
Calaram-se o oceano, o rio, os lagos!
Nada turbava a solidão profunda!
Os navios no mar apodreciam Sem marujos! os mastros desabando Dormiam sobre o abismo, sem que ao menos Uma vaga na queda alevantassem.
Tinham morrido as vagas! e jaziam As marés no seu túmulo... antes delas A lua que as guiava era já morta!
No estagnado céu murchara o vento;
Esvaíram-se as nuvens. E nas trevas Era só trevas o universo inteiro.
Bahia, 23 de dezembro AVES DE ARRIBAÇÃO
Pensava em ti nas horas de tristeza Quando estes versos pálidos compus.
Cercavam-me planícies sem beleza, Pesava-me na fronte um céu sem luz.
Ergue este ramo solto no caminho. 72 Sei que em teu seio asilo encontrará.
Só tu conheces o secreto espinho Que dentro d’alma me pungindo está!
Fagundes Varela Aves, é primavera! à rosa! à rosa!
Tomás Ribeiro I
Era o tempo em que as ágeis andorinhas Consultam-se na beira dos telhados, E inquietas conversam, perscrutando Os pardos horizontes carregados...
Em que as rolas e os verdes periquitos Do fundo do sertão descem cantando...
Em que a tribo das aves peregrinas Os Zíngaros do céu formam-se em bando!
Viajar! viajar! A brisa morna Traz de outro clima os cheiros provocantes.
A primavera desafia as asas, Voam os passarinhos e os amantes!...
II
Um dia Eles chegaram. Sobre a estrada Abriram à tardinha as persianas;
E mais festiva a habitação sorria Sob os festões das trêmulas lianas.
Quem eram? Donde vinham? — Pouco importa Quem fossem da casinha os habitantes.
— São noivos —: as mulheres murmuravam!
E os pássaros diziam: — São amantes — !
Eram vozes — que uniam-se co’as brisas!
Eram risos — que abriam-se co’as flores!
Eram mais dous clarões — na primavera!
Na festa universal — mais dous amores!
Astros! Falai daqueles olhos brandos.
Trepadeiras! Falai-lhe dos cabelos!
Ninhos d’aves! dizei, naquele seio, Como era doce um pipilar d’anelos.
Sei que ali se ocultava a mocidade...
Que o idílio cantava noite e dia...
E a casa branca à beira do caminho Era o asilo do amor e da poesia. 73 Quando a noite enrolava os descampados, O monte, a selva, a choça do serrano, Ouviam-se, alongando a paz dos ermos, Os sons doces, plangentes de um piano.
Depois suave, plena, harmoniosa Uma voz de mulher se alevantava...
E o pássaro inclinava-se das ramas E a estrela do infinito se inclinava.
E a voz cantava o tremolo medroso De uma ideal sentida barcarola...
Ou nos ombros na noite desfolhava As notas petulantes da Espanhola!
III
Às vezes, quando o sol nas matas virgens A fogueira das tardes acendia, E como a ave ferida ensangüentava Os píncaros da longa serrania, Um grupo destacava-se amoroso, Tendo por tela a opala do infinito, Dupla estátua do amor e mocidade Num pedestal de musgos e granito.
E embaixo o vale a descantar saudoso Na cantiga das moças lavadeiras!...
E o riacho a sonhar nas canas bravas, E o vento a s’embalar nas trepadeiras.
Ó crepúsculos mortos! Voz dos ermos!
Montes azuis! Sussurros da floresta!
Quando mais vós tereis tantos afetos Vicejando convosco em vossa festa?...
E o sol poente inda lançava um raio Do caçador na longa carabina...
E sobre a fronte d’Ela por diadema Nascia ao longe a estrela vespertina.
IV
É noite! Treme a lâmpada medrosa Velando a longa noite do poeta...
Além, sob as cortinas transparentes Ela dorme... formosa Julieta!
Entram pela janela quase aberta 74 Da meia-noite os preguiçosos ventos E a lua beija o seio alvinitente — Flor que abrira das noites aos relentos.
O Poeta trabalha!... A fronte pálida Guarda talvez fatídica tristeza...
Que importa? A inspiração lhe acende o verso Tendo por musa — o amor e a natureza!
E como o cácto desabrocha a medo Das noites tropicais na mansa calma, A estrofe entreabre a pétala mimosa Perfumada da essência de sua alma.
No entanto Ela desperta... num sorriso Ensaia um beijo que perfuma a brisa...
... A Casta-diva apaga-se nos montes...
Luar de amor! acorda-te, Adalgisa!
V
Hoje a casinha já não abre à tarde Sobre a estrada as alegres persianas.
Os ninhos desabaram... no abandono Murcharam-se as grinaldas de lianas.
Que é feito do viver daqueles tempos!
Onde estão da casinha os habitantes?
... A primavera, que arrebata as asas..., Levou-lhe os passarinhos e os amantes!...
Curralinho, 1870 OS PERFUMES
A L.
O sândalo é o perfume das mulheres de Istambul, e das huris do profeta; como as borboletas, que se alimentam do mel, a mulher do Oriente vive com as gotas dessa essência divina.
José de Alencar O perfume é o invólucro invisível, Que encerra as formas da mulher bonita.
Bem como a salamandra em chamas vive, Entre perfumes a sultana habita.
Escrínio aveludado onde se guarda 75 — Colar de pedras — a beleza esquiva, Espécie de crisálida, onde mora A borboleta dos salões — a Diva.
Alma das flores — quando as flores morrem, Os perfumes emigram para as belas, Trocam lábios de virgens — por boninas, Trocam lírios — por seios de donzelas!
E ali — silfos travessos, traiçoeiros Voam cantando em lânguido compasso Ocultos nesses cálices macios Das covinhas de um rosto ou dum regaço.
Vós, que não entendeis a lenda oculta, A linguagem mimosa dos aromas, De Madalena a urna olhais apenas Como um primor de orientais redomas E não vedes que ali na mirra e nardo Vai toda a crença da Judia loura...
E que o óleo, que lava os pés do Cristo, É uma reza também da pecadora.
Por mim eu sei que há confidências ternas, Um poema saudoso, angustiado, Se uma rosa de há muito emurchecida, Rola acaso de um livro abandonado.
O espírito talvez dos tempos idos Desperta ali como invisível nume...
E o poeta murmura suspirando:
“Bem me lembro... era este o seu perfume!”
E que segredo não revela acaso De uma mulher a predileta essência?
Ora o cheiro é lascivo e provocante!
Ora casto, infantil, como a inocência!
Ora propala os sensuais anseios D’alcova de Ninon ou Margarida, Ora o mistério divinal do leito, Onde sonha Cecília adormecida.
Aqui, na magnólia de Celuta Lambe a solta madeixa, que se estira.
Unge o bronze do dorso da caboc’la, E o mármore do corpo da Hetaira. 76 É que o perfume denuncia o espírito Que sob as formas feminis palpita...
Pois como a salamandra em chamas vive, Entre perfumes a mulher habita.
Curralinho, 21 de junho de 1870 IMMENSIS ORBIBUS ANGUIS
Sibila lambebant linguis vibrantibus ora.
Virgílio I
Resvala em fogo o sol dos montes sobre a espalda, E lustra o dorso nu da índia americana...
Na selva zumbe entanto o inseto de esmeralda, E pousa o colibri nas flores da liana.
Ali — a luz cruel, a calmaria intensa!
Aqui — a sombra, a paz, os ventos, a cascata...
E a pluma dos bambus a tremular imensa...
E o canto de aves mil... e a solidão ... e a mata...
E a hora em que, fugindo aos raios da esplanada, A indígena, a gentil matrona do deserto Amarra aos palmeirasis a rede mosqueada, Que, leve como um berço, embala o vento incerto...
Então ela abandona-lhe ao beijo apaixonado A perna a mais formosa — o corpo o mais macio, E, as pálpebras cerrando, ao filho bronzeado Entrega um seio nu, moreno, luzidio.
Porém dentre os espatos esguios do coqueiro, Do verde gravatá nos cachos reluzentes, Enrosca-se e desliza um corpo sorrateiro E desce devagar pelos cipós pendentes.
E desce... e desce mais... à rede já se chega...
Da índia nos cabelos a longa cauda some...
Horror! aquele horror ao peito eis que se apega!
A baba — quer o leite! — A chaga — sente fome!
O veneno — quer mel! — A escama quer a pele!
Quer o almíscar — perfume! — O imundo quer — o belo!
A língua do reptil — lambendo o seio imbele!...
Uma cobra — por filho... Horrível pesadelo!... 77 II
Assim, minh’alma, assim um dia adormeceste Na floresta ideal da ardente mocidade...
Abria a fantasia — a pétala celeste...
Zumbia o sonho d‘ouro em doce obscuridade...
Assim, minh’alma deste o seio (ó dor imensa!)
Onde a paixão corria indômita e fremente!
Assim bebeu-te a vida, a mocidade e a crença Não boca de mulher... mas de fatal serpente!...
Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1869 A UMA ATRIZ
No seu benefício Branco cisne, que vogavas Das harmonias no mar, Pomba errante de outros climas, Vieste aos cerros pousar.
Inda bem. Sob os palmares Na voz do condor, dos mares, Das serranias, dos céus...
Sente o homem, — que é poeta.
Sente o vate — que é profeta.
Sente o profeta — que é Deus.
Há alguma cousa de grande Deste mundo na amplidão, Como que a face do Eterno Palpita na criação...
E o homem que olha o deserto, Diz consigo: “Deus stá perto Que a grandeza é o Criador.”
E, sob as paternas vistas, Larga rédeas às conquistas, Pede as asas ao condor.
Inda bem. A glória é isto...
É ser tudo... é ser qual Deus...
Agitar as selvas d’alma Ao sopro dos lábios teus...
Dizer ao peito — suspira!
Dizer à mente — delira!
A glória inda é mais: É ver Homens, que tremem — se tremes!
Homens, que gemem — se gemes! 78 Que morrem — se vais morrer!
A glória é ter com o tridente Refreada a multidão, — Oceano de pensamentos Que tu agitas co’a mão!
— Montanha feita de idéias, Que sustenta as epopéias Que é do gênio pedestal!
— Harpa imensa feita de almas, Que rompe em hinos e palmas, Ao teu toque divinal.
Mas esqueceste... Não basta “Chegar, olhar e vencer”
Do gênio a maior grandeza O ser divino é sofrer.
Diz!... Quando ouves a torrente Do entusiasmo na enchente Vir espumar-te lauréis;
Nest’hora grande não sentes Longe os silvos das serpentes, Que tentam morder-te os pés?
Inda é a glória — rainha Que jamais caminha só.
Ai! Quem sobe ao Capitólio Vai precedido de pó.
Porém tu zombas da inveja...
Se à noite o raio lampeja Tu fazes dele um clarão!
Pela tormenta embalada Ao som da orquestra arroubada Vais te perder n’amplidão.
Recife, 27 de setembro de 1866 CANÇÃO DO BOÊMIO
Recitativo da “Meia Hora de Cinismo”
COMÉDIA DE COSTUMES ACADÊMICOS
Música de Emílio do Lago Que noite fria! Na deserta rua Tremem de medo os lampiões sombrios.
Densa garoa faz fumar a lua Ladram de tédio vinte cães vadios. 79 Nini formosa! por que assim fugiste?
Embalde o tempo à tua espera conto.
Não vês, não vês?... Meu coração é triste Como um calouro quando leva ponto.
A passos largos eu percorro a sala Fumo um cigarro, que filei na escola...
Tudo no quarto de Nini me fala Embalde fumo... tudo aqui me amola.
Diz-me o relógio cinicando a um canto “Onde está ela que não veio ainda?”
Diz-me a poltrona “por que tardas tanto?
Quero aquecer-te, rapariga linda.”
Em vão a luz da crepitante vela De Hugo clareia uma canção ardente;
Tens um idílio — em tua fronte bela...
Um ditirambo — no teu seio quente...
Pego o compêndio... inspiração sublime Pra adormecer... inquietações tamanhas...
Violei à noite o domicílio, ó crime!
Onde dormia uma nação... de aranhas...
Morrer de frio quando o peito é brasa...
Quando a paixão no coração se aninha!?...
Vós todos, todos, que dormis em casa, Dizei se há dor, que se compare à minha!...
Nini! o horror deste sofrer pungente Só teu sorriso neste mundo acalma...
Vem aquecer-me em teu olhar ardente...
Nini! tu és o cache-nez dest’alma.
Deus do Boêmio!... São da mesma raça As andorinhas e o meu anjo louro...
Fogem de mim se a primavera passa Se já nos campos não há flores de ouro...
E tu fugiste, pressentindo o inverno, Mensal inverno do viver boêmio...
Sem te lembrar que por um riso terno Mesmo eu tomara a primavera a prêmio...
No entanto ainda do Xerez fogoso Duas garrafas guardo ali... Que minas!
Além de um lado o violão saudoso 80 Guarda no seio inspirações divinas...
Se tu viesses... de meus lábios tristes Rompera o canto... Que esperança inglória!...
Ela esqueceu o que jurar-lhe vistes Ó Paulicéia, ó Ponte grande, ó Glória!...
Batem!... Que vejo! Ei-la afinal comigo...
Foram-se as trevas... fabricou-se a luz...
Nini! pequei... dá-me exemplar castigo!
Sejam teus braços... do martírio a cruz!
São Paulo, junho de 1868 É TARDE!
Olha-me, ó virgem, a fronte Olha-me os olhos sem luz A palidez do infortúnio Por minhas faces transluz;
Olha, ó virgem — não te iludas —
Eu só tenho a lira e a cruz.
Junqueira Freire É tarde! É muito tarde!
Mont’Alverne É tarde! É muito tarde! O templo é negro...
O fogo-santo já no altar não arde.
Vestal! não venhas tropeçar nas piras...
É tarde! É muito tarde!
Treda noite! E minh’alma era o sacrário, A lâmpada do amor velava entanto, Virgem flor enfeitava a borda virgem Do vaso sacrossanto;
Quando Ela veio — a negra feiticeira —
A libertina, lúgubre bacante, Lascivo olhar, a trança desgrenhada, A roupa gotejante.
Foi minha crença — o vinho dessa orgia, Foi minha vida — a chama que apagou-se, Foi minha mocidade — o toro lúbrico, Minh’alma — o tredo alcouce.
E tu, visão do céu! Vens tateando 81 O abismo onde uma luz sequer não arde?
Ai! não vás resvalar no chão lodoso...
É tarde! É muito tarde!
Ai! não queiras os restos do banquete!
Não queiras esse leito conspurcado!
Sabes? meu beijo te manchara os lábios Num beijo profanado.
A flor do lírio de celeste alvura Quer da lucíola o pudico afago...
O cisne branco no arrufar das plumas Quer o aljôfar do lago.
É tarde! A rola meiga do deserto Faz o ninho na moita perfumada...
Rola de amor! não vás ferir as asas Na ruína gretada.
Como o templo, que o crime encheu de espanto, Ermo e fechado ao fustigar do norte, Nas ruínas d’esta alma a raiva geme...
E cresce o cardo — a morte —.
Ciúme! dor! sarcasmo! — Aves da noite!
Vós povoais-me a solidão sombria, Quando nas trevas a tormenta ulula Um uivo de agonia!...
................................................................
É tarde! Estrela-d’alva! o lago é turvo.
Dançam fogos no pântano sombrio.
Pede a Deus que dos céus as cataratas Façam do brejo — um rio!
Mas não!... Somente as vagas do sepulcro Hão de apagar o fogo que em mim arde...
Perdoa-me, Senhora!... eu sei que morro...
É tarde! É muito tarde!...
Rio de Janeiro, 3 de novembro de 1869 A MEU IRMÃO GUILHERME DE
CASTRO ALVES
Na cordilheira altíssima dos Andes 82 Os Chimboraços solitários, grandes Ardem naquelas hibernais regiões.
Ruge embalde e fumega a solfatara...
É dos lábios sangrentos da cratera Que a avalanche vacila aos furacões.
A escória rubra com os geleiros brancos Misturados resvalam pelos flancos Dos ombros friorentos do vulcão...
..............................................................
Assim, Poeta, é tua vida imensa, Cerca-te o gelo, a morte, a indiferença...
E são lavas lá dentro o coração.
Curralinho, julho de 1870 QUANDO EU MORRER...
Eu morro, eu morro. A matutina brisa Já não me arranca um riso. A fresca tarde Já não me doura as descoradas faces Que gélidas se encovam.
Junqueira Freire Quando eu morrer... não lancem meu cadáver No fosso de um sombrio cemitério...
Odeio o mausoléu que espera o morto, Como o viajante desse hotel funéreo.
Corre nas veias negras desse mármore Não sei que sangue vil de messalina, A cova, num bocejo indiferente, Abre ao primeiro a boca libertina.
Ei-la a nau do sepulcro — o cemitério...
Que povo estranho no porão profundo!
Emigrantes sombrios que se embarcam Para as plagas sem fim do outro mundo.
Tem os fogos — errantes — por santelmo.
Tem por velame — os panos do sudário...
Por mastro — o vulto esguio do cipreste, Por gaivotas — o mocho funerário...
Ali ninguém se firma a um braço amigo Do inverno pelas lúgubres noitadas... 83 No tombadilho indiferentes chocam-se E nas trevas esbarram-se as ossadas...
Como deve custar ao pobre morto Ver as plagas da vida além perdidas, Sem ver o branco fumo de seus lares Levantar-se por entre as avenidas!...
Oh! perguntai aos frios esqueletos Por que não tem o coração no peito...
E um deles vos dirá: “Deixei-o há pouco De minha amante no lascivo leito.”
Outro: “Dei-o a meu pai.” Outro: “Esqueci-o Nas inocentes mãos de meu filhinho.”...
... Meus amigos! Notai... bem como um pássaro O coração do morto volta ao ninho!...
São Paulo, de março 1869 UMA PÁGINA DE ESCOLA REALISTA
Drama cômico em quatro palavras A tragédia me faz rir; a comédia me faz chorar.
E o drama? Nem rir, nem chorar...
Pensamento de Carnioli CENÁRIO
A alcova é fria e pequena Abrindo sobre um jardim.
A tarde frouxa e serena Já desmaia para o fim.
No centro um leito fechado Deixa o longo cortinado Sobre o tapete rolar...
Há, nas jarras deslumbrantes, Camélias frias, brilhantes, Lembrando a neve polar.
Livros esparsos por terra, Uma harpa caída além;
E essa tristeza, que encerra O asilo, onde sofre alguém.
Fitas, máscaras e flores Não sei que vagos odores Falam de amor e prazer.
Além da frouxa penumbra Um vulto incerto ressumbra 84 — O vulto de uma mulher.
Vous, qui volez lá-bas, legères hirondelles Dites-moi, dites-moi, pourquoi vais je mourir.
Alfred de Musset MÁRIO
(no leito)
É tarde! é tarde! Abri-me estas cortinas Deixai que a luz me acaricie a fronte!...
Ó sol, ó noivo das regiões divinas, Suspende um pouco a luz neste horizonte!
SÍLVIA
(abrindo a janela)
Da noite o frio vento te regela O mórbido suor...
MÁRIO
Oh! que me importa?
A tarde doura-me o suor da fronte...
— Último louro desta vida morta!
Crepusc’lo! mocidade! natureza!
Inundai de fulgor meu dia extremo...
Quero banhar-me em vagas de harmonia, Como no lago se mergulha o remo!
E que amores que sonham as esferas!
A brisa é de volúpia um calafrio.
A estrela sai das folhas do infinito, Sai dos musgos o verme luzidio...
Tudo que vive, que palpita e sente Chama o par amoroso para a sombra.
O pombo arrula — preparando o ninho, A abelha zumbe — preparando a alfombra.
As trevas rolam como as tranças negras, Que a andaluza desmancha em mago enleio;
E entre rendas sutis surge medrosa A lua plena, qual moreno seio.
Abre-se o ninho... o cálice.... o regaço...
Anfitrite, corando, aguarda o noivo...
(longa pausa)
E tu também esperas teu esposo, 85 Ó morte! Ó moça, que engrinalda o goivo!
SÍLVIA
(à meia voz, acompanhando-se na guitarra)
Dizem as moças galantes Que as rolas são tão constantes...
Pois será?
Que morrendo-lhe os amantes, Morrem de fome, arquejantes, Quem dirá?
Dizem sábios arrogantes Que nestas terras distantes, Não por cá, Sobre piras fumegantes Morrem viúvas constantes, Pois será?
Não creio nos navegantes Nem nas histórias galantes, Que há por lá.
Fome e fogueiras brilhantes Cá não há...
Mas inda morrem amantes De saudades lacerantes, Quem dirá?
(aos últimos harpejos cai-lhe uma lágrima)
MÁRIO
(vendo-a chorar)
Sílvia! Deixa rolar sobre a guitarra, Da lágrima a harmonia peregrina!
Sílvia! cantando — és a mulher formosa!
Sílvia! chorando — és a mulher divina!
Oh! lágrimas e pérolas! — aljôfares Que rebentais no interno cataclismo, Do oceano — este dédalo insondável!
Do coração — este profundo abismo!
Sílvia! dá-me a beber a gota d’água, Nessa pálpebra roxa como o lírio...
Como lambe a gazela o brando orvalho Nas largas folhas do deserto assírio.
E quando est’alma desdobrando as asas Entrar do céu na região serena, Como uma estrela eu levarei nos dedos 86 Teu pranto sideral, ó Madalena!...
SÍLVIA
(tem-se ajoelhado aos pés do leito)
Meus prantos sirvam apenas Pra umedecer teus cabelos, Como da corça nos velos Fresco orvalho a resvalar!
Pra molhar a flor, que aspires Rolem prantos de meus olhos, Pra atravessar os escolhos Meus prantos manda rolar!...
Meus prantos sirvam apenas Pra a terra, em que tu pisares, Pra a sede, em que te abrasares, Terás meu sangue, Senhor!
Meus prantos são óleo humilde Que eu derramo a tuas plantas...
(Mário estende-lhe os braços)
Mas se acaso me levantas Meus prantos dizem-te amor!...
MÁRIO
(tendo-a contra o seio)
Sentir que a vida vai fugindo aos poucos Como a luz, que desmaia no ocidente...
E boiar sobre as ondas do sepulcro, Como Ofélia nas águas da corrente...
Sentir o sangue espadanar do peito — Licor de morte — sobre a boca fria, E meu lábio enxugar nos teus cabelos, Como Rola nas tranças de Maria, De teus braços fazer o diadema De minha vida, que desmaia insana, Esquecer o passado em teu regaço, Como Byron aos pés da Italiana;
Em teu lábio molhado e perfumoso O licor entornar de minha vida...
Escutar-te nas vascas da agonia, Como Fausto as canções de Margarida!... 87 Eis como eu quero — na embriaguez da morte —
Do banquete no chão pender a fronte...
Inda a taça empunhando de teus beijos Sob as rosas gentis de Anacreonte!...
(a noite tem descido pouco a pouco, o luar penetrando pela alcova alumia o grupo dos amantes)
SÍLVIA
Que palidez, meu poeta, Se estende na face tua!...
MÁRIO
São os raios descorados, Os alvos raios da lua!
SÍLVIA
Mas um suor de agonia Teu peito ardente tressua...
MÁRIO
São os orvalhos, que descem Ao frio clarão da lua.
SÍLVIA
Que mancha é esta sangrenta, Que no teu lábio flutua?
MÁRIO
São as sombras de uma nuvem Que tolda a face da lua!
SÍLVIA.
Como teus dedos esfriam Sobre minha espádua nua!...
MÁRIO
(distraído)
Não vês um anjo, que desce, No frouxo clarão da lua?...
SÍLVIA
Mário? Não vês quem te chama?...
Tua amante... Sílvia... a tua...
MÁRIO
(desmaiando)
É a morte que me leva 88 Num frio raio de lua!...
(o poeta cai semimorto sobre o leito.
No espasmo sua mão contraída prende uma trança da moça)
SÍLVIA
Teus brancos dedos fecharam De meu cabelo a madeixa, Tua amante não se queixa...
Bem vês... cativa ficou!
Mas não se prende o desejo Que n’alma acaso se aninha!...
Nunca vistes a andorinha, Que alegre o fio quebrou?
(Ouve-se um relógio dar horas)
Já! tão tarde! E embalde tento Abrir-te os dedos fechados...
Como frios cadeados, Que o teu amor me lançou.
Porém se aqui me cativas Minh’alma foge-te asinha...
Nunca vistes a andorinha, Que alegre o fio quebrou!...
(debruça-se a escrever numa carteira)
“Paulo! Vem à meia-noite...
Mário morre! Mário expira!
Vem que minh’alma delira E embalde cativa estou...”
MÁRIO (que tendo lido por cima de seu ombro)
Sílvia! a morte abre-me os dedos, És livre, Sílvia... caminha!
(morrendo)
Minh’alma é como a andorinha, Que alegre o fio quebrou.
1870 COUP D’ÉTRIER 89 É preciso partir! Já na calçada Retinem as esporas do arrieiro;
Da mula a ferradura taxeada Impaciente chama o cavaleiro;
A espaços ensaiando uma toada Sincha as bestas o lépido tropeiro...
Soa a celeuma alegre da partida, O pajem firma o loro e empunha a brida.
Já do largo deserto o sopro quente Mergulha perfumado em meus cabelos.
Ouço das selvas a canção cadente Segredando-me incógnitos anelos.
A voz dos servos pitoresca, ardente Fala de amores férvidos, singelos...
Adeus! Na folha rota de meu fado Traço ainda um — adeus — ao meu passado.
Um adeus! E depois morra no olvido Minha história de luto e de martírio, As horas que eu vaguei louco, perdido Das cidades no tétrico delírio;
Onde em pântano turvo, apodrecido D’íntimas flores não rebenta um lírio...
E no drama das noites do prostíbulo É mártir — alma... a saturnal — patíbulo!
Onde o gênio sucumbe na asfixia Em meio à turba alvar e zombadora;
Onde Musset suicida-se na orgia, E Chatterton na fome aterradora!
Onde, à luz de uma lâmpada sombria, O Anjo da Guarda ajoelhado chora, Enquanto a cortesã lhe apanha os prantos Pra realce dos lúbricos encantos!...
Abre-me o seio, ó Madre Natureza!
Regaços da floresta americana, Acalenta-me a mádida tristeza Que da vaga das turbas espadana.
Troca dest’alma a fria morbideza Nessa ubérrima seiva soberana!...
O Pródigo... do lar procura o trilho...
Natureza! Eu voltei... e eu sou teu filho!
Novo alento selvagem, grandioso Trema nas cordas desta frouxa lira.
Dá-me um plectro bizarro e majestoso, Alto como os ramais da sicupira. 90 Cante meu gênio o dédalo assombroso Da floresta que ruge e que suspira, Onde a víbora lambe a parasita...
E a onça fula o dorso pardo agita!
Onde em cálix de flor imaginária A cobra de coral rola no orvalho, E o vento leva a um tempo o canto vário D’araponga e da serpe de chocalho...
Onde a soidão é o magno estradivário...
Onde há músculos em fúria em cada galho, E as raízes se torcem quais serpentes...
E os monstros jazem no ervaçal dormentes.
E se eu devo expirar... se a fibra morta Reviver já não pode a tanto alento...
Companheiro! Uma cruz na selva corta E planta-a no meu tosco monumento!...
Da chapada nos ermos... (o qu’importa?)
Melhor o inverno chora... e geme o vento.
E Deus para o poeta o céu desata Semeado de lágrimas de prata!...

Curralinho, 1 de junho de 1870


Domínio Público Gov.BR


Compartilhe esse texto!

O que você achou desse texto?

Comente abaixo e participe!

0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
Os comentários não representam a opinião do site e seus parceiros. A responsabilidade do conteúdo da mensagem é unicamente do autor do comentário.