Carrilhões
Sobre a primeira edição:
Lido pela pela primeira vez em público, quando o autor contava com vinte anos, Carrilhões é um livro de adolescência.
Esse fato explica suas hesitações. E explica igualmente suas audácias.
Arvorava ele inicialmente, quando surgiu a lume, esta NOTA INDISPENSÁVEL - Em certas poesias, vai impressa em tipo maior uma ou outra frase, fortemente enfática. Ao contrário, as palavras escritas em tipo menor devem ser lidas brandamente, como num smorzando.
É que eu sentia, então, como agora, ao contrário de muitos poetas que vieram a constituir comigo depois as alas do modernismo, que a pontuação era insuficiente para dar todas as inflexões exigidas pela expressão poética.
Serviam de introdução ao livro estas palavras:
MEUS VERSOS formam simplesmente uma série de emoções ritmadas e assim devem ter ao menos um interesse psicológico.
Meus versos obterão poucos acolhimentos de estímulo ou justiça, tendo eu vivido (aliás por força das circunstâncias e não por qualquer vaidade) longe dos meios literários que geram muitas reputações.
Meus versos se exprimem algumas vezes por formas ainda não usadas, formas intermédias entre a antiga estrofação e a métrica nova, livres às vezes aparentemente ou livres-complementares, ou formando séries com as tônicas deslocadas simetricamente, linha a linha. São tentativas nascidas não da extravagância, mas da insatisfação que nos causam sempre as formas de exprimir.
Meus versos não têm frequentemente bastante clareza; é que a concisão excessiva é uma tendência geral que hoje pesa sobre quase todos os temperamentos: na poesia, futuristas ou saudosistas, um Verhaeren, um Nervo ou um Whitman, são como Debussy na música, Bergson no ensaio ou Rodin na escultura, a vitória da idéia esboçada sobre a idéia desenhada.
Meus versos, dolorosos que sejam, não nasceram nunca de pieguismos artificiais, mas têm uma origem profundamente humana: o sofrimento. E orgulho-me apenas de ter sofrido, porque a adversidade é um título de educação espiritual -é um título que me honra muito.
A crítica nova mais autorizada coroou, todavia, de modo extremamente generoso, as tentativas do estreante.
A crítica rotineira daqueles tempos de tirania métrica, ao contrário, fez grandes restrições às discutidas "extravagâncias do poeta"...
E não eram extravagâncias. Eram as trepidações de um 14-bis, de um primeiro aviãozinho aventureiro, aflito por arrancar-se da planície rasa, tão rasa e tão chã.
Murilo Araújo - texto incluso na edição de Obras Completas (1960)
Carrilhões Sinos de Bronze Agonia Inércia Herói Morto Aos outros Invocação Elegia Visão Escravidão Palpitando Carnaval Impossíveis Baladilha Pobreza Espuma Luminosa Hospital Idade Confissão Coroas Mastros Sinos de Cristal Dois anjos A de outrora Aspiração Sereia Na praia A queixa Sonetilha Exílio Madrugada Ingenuamente Esperança Infância Romance Pastorinha Treno Piedade Mariucha Infinitude Vespertina Sinos de Ouro Adoração Perfeita Essa...
Ternura Espelhos Ninféias Estética Despertar Romanesca Jasmins Epitalâmio Bailado Ilusão Domingo Primitivo Bonança Idealismo Final Carrilhões Sou o tristonho sineiro que moureja fiel às vozes do além, surdo às vozes do chãosou o Quasímodo novo e pobre, em minha igreja Nossa Senhora da Imaginação.
Invisível igreja! Igreja da Lei Nova!
Templo de naves de ouro e pórticos de luar!
Amo o teu campanário espiritual que trova...
(Amem todos o incenso... outros -o altar!)
Amo o teu harmonioso campanário Imaginário e inatingível -a vibrar estas rimas e sons -que, solitário, escuto, limpas, limpo no ar a gorjear.
Amem outros o altar, amem outros ou incenso, sejam mestres -rabis ou deuses da oração...
Serei na torre só.
Sinos! Tudo o que penso Ecoai longe do pó, musicai na amplidão!
Rolando ecos no mundo -oh, versos- ide zoando interpretando a alta e sonora inspiração.
Vozes de ouro e de bronze e de cristal, vozeando -
eu só posso cantar no vosso carrilhão!
... e só posso chorar no vosso carrilhão.
...E so posso chorar... no vosso carrilhão...
Sinos de Bronze SINOS DE BRONZE! o vosso timbre escuto dobrando em luto -
dobrando e soluçando quando tange.
A angústia negra o coração me morde:
O vosso acorde -
a Morte vem zoá-lo como um alfanje?
Eu vos escuto como um choro fundo, quando aprofundo o nada... a vida - e o ser se me confrange.
Sinos de bronze! a vossa voz tão longa, na noite se prolonga como um gemido ao longe... E plange, plange!
Agonia Os cilícios das dores - os cilícios -
eis a norma de bronze do meu culto!
Venham angústias, venham sacrifícios!
Venham profundos males em tumulto!
Venha o choque moral, profundo, heróico, que faz um gênio até de um triste paranóico!
Venha esta água-lustral que é o único batismo:
a água vem da lágrima, a salvar do Abismo!
Venha a luta - essa luta em que me esforço!
Venha a luta que gera a esperança e o esforço!
Venha um maior pesar, que faça achar mais doce a Morte a rir, que me olha afiando a foice!
Venham profundos males em tumulto, venham angústias, venham sacrifícios!
Eis a norma de bronze do meu culto:
os cilícios das dores - os cilícios!
Inércia A cidade! A cidade - em seus rumores!
E a civilização -turbilhoando!
e a vida - em febre forte delirando com furores, clamores e estertores!
E há lutadores ao sol marchando!
ao sol marchando!
Por que só eu não luto ou não comando?
por que sou preso às mágoas interiores com Saudade e Esperança - meus amores -
e com desilusões me acorrentando?!
E há vencedores, há vencendores ao sol cantando!...
Herói morto Ora afinal que vale a vida?... o mundo?
- Quando, com riso desdenhoso e largo, combateste e venceste, o riso, ao fundo era talvez... era decerto amargo!
Forte! Agora sorri no teu letargo final, com um riso plácido e profundo melhor que o riso desdenhoso e largo!
Pois afinal que vale a vida?... o mundo?
Tão nobre, não sofreste entre mesquinhos?
Não tinha abrolhos numa grande parte das palmas que colheste nos caminhos?
As rosas do triunfo na tua arte só agora são limpas dos espinhos para forrar-te o sono e coroar-te!
Aos outros Sabeis o que é ser sombra -oh, vóis que sois o dia?
Sabeis o que sofri, que sofro e sofrerei?
Não! Para vós, o sol -para vós a alegria!
Correi ao bom jardim da esperança.. e colhei!
Colhei risos e mel. Também eu sorriria se soubesse sorrir, pois nem sorrir mais sei...
E agonio de sonho, e sonho de agonia!
Mas por que - para que, se era triste, sonhei?
Invocação Lua elevada, límpida... trêmula e taciturna, és lua, a garça olímpica, pássaro da ilusão!
Lua, és polida e diáfana... Placa espelhar noturna, serves de espelho mágico para a Saudade! não?
Lua de paina alvíssima - paina a florir soturna, que arminhos teus levíssimos hoje me afagarão?
Lua de sonho e mármore! Branca e inefável urna, derrama-me o teu bálsamo! Traze-me a solidão!
Elegia Penso na bruma além-além... No colo da neve - de uma neve eternamente fria sonharia em silêncio... e a alvorada-do-polo no meu sonho de paz esplenderia.
E por que temeria o céu plúmbeo de morte?
E por que temeria o gelo em penedia?
Não: já sofri sereno outro frio mais forte:
certa voz... certo olhar e certo adeus, um dia...
Penso na bruma além-além, no colo da neve - de uma neve eternamente fria...
Oh o inverno sem-fim dos defuntos, num solo onde a cal como neve choveria!
Visão Tenho à noite a visão de que as estrelas de ouro vão descendo ao meu sonho e vêm dançando em coro.
Sinto-as numa nevrose...
numa fascinação... numa alucinação!
Louras, lúcidas, longas, lindas, leves, lentas -quer agonie ou gozeeu as sinto nevoentas, lânguidas e luarentas, uma por uma dando o pálido clarão!
Uma diz: "Chamo-me Apoteose!"
Outra diz: "Chamo-me Afeição"
Outra é, levíssima, a Confiança, outra - a Lembrança, outra - a Ambição...
E assim tenho a visão de que as estrelas de ouro vêm, dançando, ao meu sonho e vão descendo em coro.
Mas choro de aflição...
pois falta a estrela que procuro em choro, falta a que foi na terra um vulto louro, falta a que está no céu, e acha desdouro descer e iluminar-me o coração!...
Escravidão Comparada ao além, a Terra é um calabouço.
Ah! Quando morre alguém, esse dobre eu ouço não dá o sinal para um forçado se livrar?
Morrer... morrer não é de cárcere mudar?!
Oh carcereira Vida, haverá ainda tréguas?
... No sem-fim, cada mundo (alguns milhões de léguas...)
é para o Pensamento a prisão... celular!
Deus só é livre e pode em liberdade voar!
Palpitando Não rodas rudemente e mecanicamente, não rodas rude, rija e mecanicamente, mola viva do ser a bater, a bater?!
Coração, não te pude encordoar de esperança!
Coração, poderei te encordoar de esperança?
Tua corda já cansa a bater, a bater!
Carnaval Noite. Noite infernal: Uiva na rua a multidão febril e rumorosa.
A própria Treva - a treva misteriosa afivelou a máscara... da lua!
Como ri tanto - como ri, vaidosa, a turba alegre, alegre e seminua!
Porque a melancolia se insinua em mim, mais funeral, mas angustiosa?!
Oh, rir, oh rir!... Ri a embriaguez fogosa;
riem canções, rindo a volúpia estua;
rindo a loucura agita-se furiosa!
E em mim um riso mais profundo atua:
É o riso da megera pavorosa que foiça - o riso da caveira nua!
Impossíveis Ah! poeira por poeira e mundo por mundo, o caos redemoinha a vibrar - vibrar!
No céu... na terra... no espaço profundo há os mesmos ions num torvelinhar!
E em febre também num ciclo fecundo há de o nosso ser evolucionar!
... Se se pudesse parar num segundo...?
Que sonho doce e impossível - parar!
Mas toda a força inicial agitada com o movimento é forçada a viver?
Ah, Vive: Pareça paralisada na morte e vive: é cristal ou é ser!
Porque tal lei na matéria plasmada?
Viver não é quase sempre sofrer?!
E sofre-se tanto!... Oh! se houvesse o Nada...
Que sonho impossível: parar-morrer!
Baladilha Que ganhei por cantar? - Breve consolo! A Glória é ilusão-ilusão: a Glória não virá.
(Meu vivo coração vibra mais, palpitando!
... Quem me diz até quando ele palpitará?)
Tanto amei! Sem achar a beleza corpórea:
Perfeição... perfeição onde é que existirá?
Que jovem coração vibra mais, palpitando, que este? e quando? até quando este palpitará?
Ah a aves do pesar, que aninho na memória partirão? - Partirão... A Morte as caçará!
Meu brando coração sofre mais palpitando, mas não sofrerá quando morrer - não sofrerá!
Pobreza Louvo o dinheiro - esse útil soberano.
Louvo esse ideal moderno mercantil.
Sim. Que nobre é o salário! Sim: Que engano é declará-lo vão - julgá-lo vil!
Quem nos couraça neste prélio insano?
Quem forja o laço desta união civil?
Quem mais é a base do bem-fazer humano?
- O ouro, esse sol e seu clarão febril!
Negue-o burguês (que pr´a ganhá-lo sofre...)
Negue-o burguês (depois de cheio o cofre...)
Que importa a moral desse imbecil?!
Só tenho os pobres sonhos na sacola!
Mas louvo a sã riqueza - mãe da esmola e filha do trabalho varonil!
Espuma Sois (e amar-vos é sonhar?)
alva, esguia e encantadora...
Sois uma pluma? um luar?
Sois (e amar-vos é chorar...)
alma fria e enganadora!
Sois uma espuma... num Mar!
Luminosa Num templo escuro - (num coração conventual, que um ceticismo brônzeo tranca)
há, como iluminura, em lúcido vitral, serenamente vaga, estranhamente branca, uma silhueta pura.
Traz coroa e burel.
... Sobre ela o sol, que sobe, incide.
É a Arte, em nimbo de ouro e empunhando o laurel!
Só tenho esse vitral na minha escura abside!
Hospital Eis o palácio tristonho e frio -
solar de enfermos, solar de pobres, solar de mortos! Ouvi: Sombrio um sino plange soturnos dobres pelos aflitos que morrem sós!
- Jesus dos tristes, olhai:
Velai por nós! -
Um sino plange soturnos dobres;
Levam defuntos na maca, aos trancos...
... Sofrem humildes e sofrem nobres nesses enormes salões tão brancos!
À noite, rezam a meia-voz: -
"Jesus dos fracos... Meu Pai...
Velai por nós!"
Nestes enormes salões tão brancos, tísicos, cegos, feridos, loucos, leprosos, moucos, pestosos, mancos gemem chorando - não ouvem? - roucos!
Chorando gemem de modo atroz: -
"Jesus... dos doentes... Ai, ai!...
Velai... por nós!"
Gemem chorando - não ouvem? - roucos!
Eis o palácio tristonho e frio!
... Ah! Há alguns que vão definhando aos poucos...
Dizem-lhes no último calafrio:
"A morte é o céu..." E silêncio... Após...?
"Jesus dos mortos, velai!
Velai por nós!"
Idade É um dos erros humanos dar divisões ao tempo, e contá-las após, porque os minutos quotidianos têm bem diversas durações em nós.
Não se envelhece em ais e desenganos?
Não dura o choro e é o rir veloz?
Bons velinhos - por isso eu que tenho 20 anos, sou mais velho que vós!
Confissões ... Sei que perigo é o meu..
Comigo há a Dor que eu urdo.
Meu inimigo surdo fui eu, sou eu, pois eu... Tantas angústias! e ai!
o mal que assim me assombra é apenas minha sombra que é negra-negra. Olhai!
E quanto mais eu for vivendo, e o Sol baixando, a sombra irá ganhando mais cor e mais horror! E cresce... Não se esvai?
O mal que mais me assombra É apenas minha sombra que assim crescendo vai!
Verei quando morrer, verei quando sucumba, a morte, em minha tumba, ser noite e escurecer?!
Noite das noites! Cai!
O mal que mais me assombra Se ao Sol é apenas sombra na Noite some e sai!
Coroas Eu não quero a coroa dos Perfeitos, feita de estrelas, alta e luminar;
nem me faz falta a auréola dos eleitos, nem a dos reis, sublime e rútila a brilhar!
E não quero a de louros da vitória, e nem quero a de mirtos, familiar;
nem mesmo a tua - oh Morte - escura e flórea, de tristeza e de paz e de memória, a perfumar.
Quero a mesma que a fronte me magoa, feita de murchas rosas-de-toucar, porque, se tem espinhos, é a coroa dos que fizeram o crime eterno de sonhar!
Mastros Mastros - são braços de navios - braços frios.
Nas manhãs de ouro e brisa, une-os em jubileus;
nas manhãs de peleja, atalaiam sombrios;
nas manhãs de partida acenam branco adeus;
nas horas de um luar ou santelmo, são mágicos;
nas horas de brilhar embandeiram troféus;
mas nas horas do incêndio, estarrecem-se trágicos, e nas horas do vento esbracejam aos céus!
Mastros - são braços de navios - braços frios.
que, nas horas de horror do naufrágio, meu Deus!
descaem, sem vigor, exânimes, esguios, desamparados para a morte feito os meus!
Sinos de Cristal SINOS DE CRISTAL novo em múrmur euforia!
tinindo soluçai meus ais - na ventania!
De um som tão claro - lembram liras de anjo - os cristalinos hinos, que a Dor ensina amargamente!
Oh sinos!
quanto o vosso gemido é límpido e dolente, quanto soluça em mim branda e languidamente, ... branda e languidamente!...
O grave timbre, tão longínquo, mal infringe o silêncio - pois mal o ouvido humano o atinge Se - vinda a hora do sonho, hora em que o Olimpo flore -
sofro, quer ore ou chore, implore ou rememore, escuto um dobre trêmulo, tremulamente.
Oh sinos de cristal! consoladoramente soluçai! soluçai minha imensa agonia!
Oh ânforas do canto! Oh lírios da harmonia, soluçai mansamente.
Dois anjos Tenho dois anjos por companheiros. E horas sem fim e anos inteiros ando a fitá-los, cheio de spleen.
Meus anjos suaves!
Um de asas brancas como espelhim e um de asas roxas de goivo, graves, tristes enfim.
Um me precede e ou outro me segue.
E se Dor ruim mais me persegue Têm-me desvelos - são bons - oh sim.
Meus anjos de ouro!
PASSADO é o que anda depois de mim;
ao que anda à frente eu chamo VINDOURO.
Ri-se Vindouro e Passado chora...
E eu sigo, assim destino afora, entre asas roxas e de jasmim!
-Ai - quem percorre o ermo em que vou - o ermo em que vim -
com os anjos vive e com os anjos morre cheio de spleen!...
A de outrora Terei sempre de cor o vulto alegre e brando da que eu amei melhor, da que primeiro amei.
E entre rir e chorar hoje estou memorando aquele tempo... aquela a quem como agnus dei do amor - ofereci a hóstia branca desta alma, assim: Tomai e comei.
Ah lembrar e lembrar...!
Essa que não mais vi me parece tão alma!
Vejo-a! (Quem sabe é um anjo que me vem buscar?)
Essa que não mais vi, surge-me perfumosa, a alvorescer, a florescer, a iluminar...
e olha-me, e bate as asas, ciosa, e silenciosa foge, deixando um luar de tristezas pelo ar!
Aspiração Para que eu sinta - na saudade e no abandono da morte - um luar em meu olhar algente...
para que eu sinta a noite clara que ambiciono -
põe tu as tuas mãos de lua albente em meus cílios - cerrando as pálpebras ao sono -
trêmulas... em silêncio... umidamente para que eu sinta, na saudade e no abandono da morte, um luar em meu olhar algente!
Sereia Sereia, andei te esperando...
Mas que erro grande esperar!
Sabes que andei te esperando triste até desesperar?
Se me levasses sonhando longe?... no abismo do mar?!
Se me levasses sonhando quem dera abismos e mar!
Na praia A tarde corava no ar...
Coravas tu, mais ainda que a tarde. Cismavas. Linda, cismavas diante do mar.
Não escreveste na areia teu nome? - Pois com um olhar escreveste-o mais, sereia, no meu sonho. E vinha o mar...
A maré pôs-se a aumentar:
subiu... consumiu teu nome;
mas qual o mar que o consome no meu sonho? qual o mar?
Cá tem de ficar escrito...
Sim: Nada o pode apagar, nada: nem meu infinito mar de lágrimas - um mar!
A queixa Quando eu era menino - oh mãe - não te deixava;
Então nunca sem mim conseguiste sair:
Tivestes de ir à rua, e embirrando eu chorava;
e ralhavas: "eu volto" e eu: leva-me! quero ir!
Pois se eras o meu sol.. Tua ausência enoitava, e a noite era terror... Como à noite sorrir?
Mas ante a minha teimosia infantil justa e brava fugia-te, sem mim, o ânimo de partir.
Porque naquela vez - na última somente foste só - sem me ver, num protesto veemente chorar como em criança ou com maior pesar?
- Mãe! é longe aonde vais? Oh leva-me contigo...
Leva... Quero ir lá longe... ir também ao Jazigo...
E lá foste a sorrir sem querer me levar!
Sonetilha Que bom voltar do campo, ir para o lar cantando pela seara: -
Sobe redonda a lua clara.
Semeie agora O que na altura semeia estrelas à fartura! Que bom agora ir-se dormir!
E no silêncio e na doçura e na penumbra o grão germina.
... O céu semeando se ilumina:
o céu tem grãos de flor a abrir!
Porque não vens, Sorriso Louro, semear a vida em pólens de ouro para o ideal também florir?!
Exílio Num reino lindo, reino sem nome, há pomos na Árvore da Ciência, pomos em franca maturescência...
E tenho fome!
Na areia fofa como uma rede e clara, clara como um garimpo lá há Paz, que é um rio infinito e limpo e tenho sede!
Lá até no inverno e até pelo estio há alegres flores e passarinhos.
(Oh os sóis eternos e seus carinhos!)
e tenho frio!
Sinto horas lassas e de abandono...
Não me preparam, no reino, um leito tépido, branco, brando e bem feito?
E tenho sono!
Perdi meu reino... (Vê se o descobres, Morte!). Perdi-me na estrada, e vim a ser mais pobre que os outros pobres -
pobre de mim!
Madrugada Galo, cantas alegre, em voz canora, para saudar os dias à nascença:
A aurora é que te inspira, oh ave! a aurora!
E eu canto, mas a voz é comovida.
E eu vejo a noite densa - a noite imensa.
Quando a aurora virá na minha vida?!
Ingenuamente Sob o teto de estrelas - sob a treva escura -
nós vemos a via láctea das quimeras, pura, e o oiro da ilusão com o oiro do luar!
Oh noite desce! Desce! Anjo-dos-anjos lindo, não sonharás dormindo, o mesmo que sorrindo eu sonhar a velar?
Esperança Noite.
Disse a Alma no Céu: - "Depois da vida, oh Céu, voarei ao caos? ao Paraíso?
A Morte vence? A Morte é que é vencida?!"
Houve uma pausa...
E, noite já passada, o Céu deu-lhe a resposta de um sorriso:
Era o sorriso alegre da alvorada!...
Infância À noite (e lá por fora ia a tormenta...)
eu pedia à Mamãe: Conta uma história!
E ouvia... Cabecinha sonolenta, via os reinos de fadas - via a Glória.
(Havia a ventania e a merencória chuvarada, nas telhas, barulhenta.)
-"Era uma vez..." É incenso na memória aquela voz embaladora e lenta!
Hoje (que diferente é cada idade!)
Mamãe foi ver as fadas... foi talvez morar no Reino da Felicidade!
Hoje sou homem, sou, vejam vocês.
Ai! vindo a noite e vindo a tempestade só da Saudade escuto ERA UMA VEZ!
Romance Pobre Marina! Amava, amava tanto o Bento...
e o Bento-Pescador amava quem? - o Mar.
Pobre! Só de o trazer assim no pensamento entrou a definhar... entrou a definhar...
À tarde, hoje, está mal: É chegado o momento...
E ei-la a arquejar na praia, ei-la triste a aguardar a volta dos galeões pescadores ao vento!
pois morre; e quer morrer depois que ele voltar.
Trêmula tosse, tosse... A febre forte a cansa...
e nada! uma estrelinha apenas, alta, avança na opala e no ouro do ar crespuscular!
Desce uma calma fria à baía em bonança;
verdinho, o mar diz bem com sorriso e esperança...
ela pensa, porém: "Que me resta a esperar?!"
E olha o horizonte além... Acha o mundo uma afronta:
pois terá de expirar sozinha?! É bem atroz!
... Mas quem vem lá? É vela?... Ai não: é uma ave tonta!
... E acolá não será? Nada: um fumo veloz!
... E mais longe? É uma nau dourada que desponta?
Não: é a lua a raiar num silêncio feroz!
... E agora?! Ah até que enfim ei-lo que aponta! Aponta!!
Ei-lo! Parece voar fazendo 80 nós!
Já agora vem do barco a fala masculina...
O Bento manda orçar: -"Orçar! Voga a bolina!"
Ina! ina... sussura ao vento a voz...
Ela crê na ilusão que ele a chamou: "Marina!"
e na ilusão de o ter tão feliz se reclina que assim morre sorrindo embora morra a sós!
Pastorinha -Pastora, ao luar dormias...
Que lindos sonhos fazias?
-"Eu que sonhei que pastoreava para Deus, no céu. Guardava a lua, que era a ovelhinha.
... De astros fiz uma touquinha para por nas romarias..."
-Pois olha: a touca ficou:
Pastora, enquanto dormias o orvalho te coroou.
Bem lindos sonhos fazias!
E que mais sonhando vias?
-"Sonhei, depois, que noivava:
Tão satisfeita eu mostrava os meus vestidos...! Oh! tinha uma grinalda branquinha mais um véu de pregarias!"
-E a grinalda te assentou:
Pastora, enquanto dormias o luar te engrinaldou!
Mas que outros sonhos fazias, sonhadora de alegrias?
-"Sonhei.. Sonhei... que reinava!
Tão bom! Como cintilava a coroa de rainha!"
-E não vales, pastorinha, coroas e pedrarias?
Queres meu reino? Eu te dou.
-"Sim?!"
-Sim; e enquanto dormias um beijo te coroou!
Treno Oh sofrimento! oh meu sofrimento divino, a que céu levarás minha consagração?
Oh sofrimento! oh meu sofrimento divino!
Teus espinhos - coroa! - ainda mais sangrarão?
As fibras do que sou deram sons de violino, pois a Dor que as torceu lhes deu afinação.
As fibras do que sou deram sons de violino...
Não as tanja, Destino: Elas se partirão!
Piedade Penso - num dia assim como este de hoje, (quando inda há pouco a tormenta estrondava e zunia!)...
penso- quando vejo árvores vergando trêmulas, es esfolhando à ventania...
penso nas almas onda há a Dor chorando, chorando como climas de invernia, e onde há as ramas da verde esperança baixando quebradas todas por um vento de agonia!
Mariucha ...Que lindas festas havia na igrejinha do arraial!
Não me esquecerei do dia...
não: da noite - noite ideal -
em que, de virgem, Maria coroou a Virgem Maria!
Inda era eu feliz então.
Hoje... é muito diferente!
No tempo em que o coração mal sente amor ou não o sente, amei na infância, pois não!
Ah! amor assim é oração!
Ela sorria aos 12 anos;
sorria aos 12 anos eu também;
e éramos dois soberanos:
(quem não o é em criança? quem?!)
Que ditosos meus enganos!
Que formosos meus 12 anos!
Que mês de maio! O arraial corria à noite às novenas;
a igreja branca de cal floria em luzes serenas, doce, nova e alegre qual nova açucena no val.
Rezava-se à Virgem. Ora quando eu mais pensei no céu foi quando (inda a vejo agora!)
vi Mariucha (e de véu parecia uma senhora!)
coroando Nossa Senhora!
Ela cantava... Escutei:
E eu, que os hinos repetia, vendo-a sorrir murmurei:
Teus louvores cantarei!...
Vede! Até hoje inda penso na luz de Deus que senti vendo-a, lá, no altar imenso, subir... misto de anjo e huri que fosse voando suspenso, leve, entre neves de incenso!
Nos brancos véus de coroar, ela era a aurora - uma aurora que se vestia de luar!
Dizei-me - Nossa Senhora -
dizei-me, inda a posso achar?
e ainda é pura, de luar?!
Infinitude Noite negra - teu vulto funeral nunca me evoca a morte:
evoca a vida imemorial e universal!
Meu coração, na sombra, é a lente-forte, o espelho de uma equatorial onde aprofundo o caos profundo, a leste, a oeste, ao sul, ao norte!
Noite - mãe da Verdade misteriosa!
Noite - estudo contigo a Vida prodigiosa, a desdobrar-se luxuriosa em toda a parte, nublada em Vênus, regulada em Marte, decadente na Lua ou nascente em Saturno!
Noite - estudo contigo o segredo noturno de universos maiores, a milhões de milhas, das ilhas do éter - dessas miríficas ilhas -
maravilhas de luz, grandeza e sons que não sei conceber!
Noite - estudo contigo e ponho-me a tremer!...
É a mais santa emoção:
é um orgulho (perante o ritmo fundo, o prodígio perpétuo da criação)
orgulho de - inda sendo átomo vão -
ter sido, ser e sempre ser de um mundo...
no Mundo!!
Vespertina Rezam cigarras; vão gemendo lentamente, sonoramente, no ar crespuscular.
Abrem-se os lábios rubros do Oriente num místico sorrir de pérolas - o luar!
Eu fico a imaginar (sobre esplêndida a lua)
noutra lua a alvoroçar - a culminar na vida - enorme assim, lavada e nua como a lua no mar;
eu fico a imaginar noutra lua opalina e errante, que ilumina, que faz sorrir e faz também chorar:
pois, como a lua, agora me domina a Saudade, no céu, sonâmbula a me olhar!
... Rezam cigarras: vão gemendo lentamente, sonoramente, no ar crepuscular...
A Paz me beija tão profundamente...
Creio assim ser a morte, e receio acordar!
Sinos de Ouro SINOS DE OURO da glória da alegria e do bem -
cantai minha vitória, que o mal o venci também!
Foi triste a minha história!
... Sofri como ninguém.
Mas, sus! a vida é flórea:
A dor é transitória à alegria que vem!
Cantai minha vitória que o mal venci também!
Cantai minha vitória tão longa e meritória, oh rimas de ouro em glória carrilhoando além!!
Adoração Oh Virgem-Mãe-Senhora dos Empíreos oh Virgem-Mãe de auréolas e de rendas por quem meus olhos foram como círios ardendo ao pé do altar entre oferendas!
quem dera encontrar eu por estas sendas, que são as sendas longas dos martírios, alguém branquinha como as vossas lendas por quem meus olhos fossem como círios!
alguém tão alta e pura que, se a amasse, o meu cajado de pastor brotasse como o de São José lírios e lírios...
alguém tendo a voss'alma e a vossa face, e a quem todas as noites eu rezasse vossa oração feliz nos meus delírios: -
Oh tu que regerás a vida minha branda, boa e bela - salve, Rainha!
Deste val-de-lágrimas aos teus risos como ao sol florirão meus paraísos!
Como os teus raios são! como comovem todo o virgem céu, toda a terra jovem!
Salve, estrela-do-mar clara entre as claras!
Santa-Virgem-do-Sonho que me amparas!
A ti - o altar, a prece e a ladainha...
oh vida, doçura e esperança... minha!
Aroma! afago! hino do céu! luz de alvas!
Salve, Rainha! Salve a ti que salvas!
A imagem mais linda não te descreve!
És entre nós - entre o lodo imundo -
nenúfar alvinho - garça de neve.
És a ave solta entre o abismo profundo...
És divina amostra do céu, na terra!
És a alga em flor nas marés deste mundo...
És a água-santa em abrupta serra!
És, para os meus olhos, uma enfermeira, meus sonhos - doentes que a Mágoa aterra!
Oh antiga e nova - oh suprema e primeira!
Oh turibulário de glória. Oh flora a enflorescer de ilusões minha leira!
Raio de ouro puro da minha aurora!
Ave pousada na flor de esperança!
... Oh numa hóstia-santa Nossa Senhora!
"Virgem das virgens translúcida e mansa!
Torre de marfim! Virgem doce e amável!
Morada de ouro... Minha Arca da Aliança!
Rainha dos anjos!... Rainha admirável!
Minha Esperança! Esperança do incréu!
Mística roseira! Vaso honorável!
Estrela-Matinal... Porta do Céu!"
Perfeita Quem és, Perfeita?
Um fantasma caro?
Sigo teus rastros a andar, a andar!
Meu canto é o eco de teu rir claro;
o amor?
perfume que deixas no ar!
Sigo à procura do teu amparo:
Se me encontrares...
se eu te encontrar...
Teus rastros levam a um mundo raro...
Não vens à estrada me iluminar?
Essa...
Essa que a estrela de ouro que idealizo conduz à minha tenda, e cujo riso é a mais linda e mais rútila oferenda;
essa que vem como um celeste aviso!
essa que vem como talismã tão doce afugentar a luta, o mal, a peste...
essa que vem na estrada além, e trouxe flores talvez de uma árvore celeste;
essa que após um sono de maus sustos acena-me com um límpido "bom dia" -
essa vira com o resplendor dos justos e a varinha das fadas algum dia!...
Virá de par com a Bem-aventurança!
Virá na unção dos anjos, comovida!
Virá como os linhos novos da bonança vestida!
... Entre aves de ouro aparecida!...
... essa virá como o arco-de-aliança serenando (tão boa!) o dilúvio da vida!
Ternura Em nosso amor, dois anjos cantarão em coro!
Vem, Sonhada! E com o dia eternamente louro rejuvenescerá (tão límpido, tão bom, tão duradouro!)
o meu jardim que é verde já!
Se em minha vida a água do choro era outrora uma chuva longa e má, depois da mágoa, no ouro de um sol novo o jardim melhor florescerá!
E em nosso amor o coro dos anjos - cantará!-
Espelhos Bendito amor! Jardim, pomar, eden, garimpo, de nossa vida, irmã!
Oh! cada qual de nós é um cristal limpo que espelha um outro, irmã!
Claros espelhos frente a frente duplicando a luz de uma feérica manhã -
as almas vão o amor recíproco aumentando.
É assim que fulge - é assim que cresce o lume brando do sonho nosso, irmã!
Ninféias Noite. O manso estelário é dormida lagoa fosforescente de ouro, onde - oh lua - evoluis...
onde - oh lua alva e cheia - enlanguesses à toa como um nenúfar branco entre as águas azuis.
E no lago do parque, onde a vaga estremece, oh senhora - outra lua à flor da vaga - afluis...
É lindo! O corpo nu boiando resplandece como um nenúfar branco entre as águas azuis!
... E longe - lá no Sonho (outra água morta e alma, que o amor adormece e onde - Musa, mem influis)
voga minh'alma assim... voga. Voga, oh minh'alma, como um nenúfar branco... entre as águas azuis...
Estética Oh! dever te amar num templo de Corinto, branco, em frente do mar, num feérico decor...
como o ar luarento e leve odorando a jacinto, ou o crepúsculo de ouro e ametista ao redor!
O vento, como incenso... As aves - em retretas...
Fontes de nectar a cantar entre o verdor...
... Tu virias, toucada a fronte em violetas, e sonharias nua... os olhos em fervor...
Pois que sinto em meu sonho a graça grega, e sinto que teu sonho é maior que o dos deuses - maior! -
eu deveria te amar num templo de Corinto...
E este amor é por si nosso templo melhor!...
Despertar É a alvorada, a alvorada!
É o dia! O dia resplende - e esplende a fantasmagoria gloriosa da amplidão transfigurada!
A gloriosa da amplidão transfigurada!
A luz na ânfora azul do céu transborda.
A Vida adormecida acorda:
É a Vida.
Meus palácios de estrelas desmorono!
E à aurora, essa neblina enrubescida não é - partindo agora a desmedida cavalgata de imagens do meu sono?!
Alvorada! As Quimeras mentirosas, nuas, cabelos de ouro ao vento, airosas, vão alto -
vão nos cavalos de asas de espavento deixando o mundo e regressando ao céu!
Alvorada! Antes que a Vida o enfrente, o grupo das Quimeras vai fugindo, até sumir-se de repente -
incerto -
incerto e lindo, arrebatadamente ao sol, ao sol aberto!
Romanesca Na alta varanda, alta, alva e romanesca, a noiva tem uma tristeza branda na beleza da tarde ideal e fresca, e olha a folhagem amarelecer...
(-Noiva tristonha, quem te fez sofrer?)
E rodeiam-na as coisas sempre várias, as coisas sempre belas e a sorrir.
Há árvores... rosas... pizicatos e árias d'água a cair...
No espaço há arminho frouxo!
Há tênues as primeiras luminárias no céu dourado, emperolado e roxo!
Mas para a que cismando olha entre as heras e entre os florões da alta varanda, além, que valem céus? que valem primaveras?
- Nada: no mundo só existe alguém...
(-Noiva tristonha, quem será teu bem?)
Sonha em silêncio, num silêncio doce de oração;
(no jardim a água calou-se)
sonha em silêncio e em adoração...
(-Noiva tristonha! Quem... no coração?)
Pombas e pombas erguem-se - asas plenas, erguem-se voando, alvorejando as penas, breves, subindo em roda no horizonte, leves, (que lindo!) coroando-a no ar!
E agora é a lua enorme além do monte!
Ah! a dama - um cavaleiro vago a idear -
não o vê na lua, qual no espelho-mago, não vê na lua um cavaleiro a andar?!
(-Noiva tristonha, fica alegre: há luar!)
Jasmins Suave um jasmineiro resplandece e anima a noite de suave cheio.
Paz. Solidão. Silêncio. A lua tece zaínfe etéreo de ouro verdadeiro.
E evoco, olhando o branco jasmineiro, teu corpo na verdura, que esmaece, teu corpo sob o luar alviçareiro que languidece, resplandece e desce.
Mais doce que a noturna claridade, na forma escultural da antiguidade teu corpo, imaginado, me aparece como se, num prodígio desusado, fosse um maior jasmim desabrochado no jardim, que adormece e florece!
Epitalâmio Salve! Este amor no arminho te reveste Contra a dor - contra o mal! Salve! Coros, cantai!...
Salve! O amor vindo, vai-se e dor agreste!
Disseste - amigo - ao vê-la: "Eu sonho!" E a luz celeste...
a luz celeste que te surge e atrai...
ilumina-te a noite - a amargura - o perigo com que a vida nos trai!
E eis a bem terna que florirá jardins no pedregal antigo!
Eis a velar por ti - sonhar comigo -
outra irmã... outra irmã... outra sombra materna!
Eis a maga que encanta e desencanta!
Eis a que te dará (roubando à bruxa Dor)
três maravilhas de virtude santa, (que são: a Ave-que-fala, e a Árvore-que-canta e a Fonte-azul,) por um condão de amor!
E a Ave murmurará num gorgeio: "Coragem!";
a Árvore cantará teu nome e loa;
e a Fonte espelhará céus puros em miragem!
Ei-la! Feliz, oh! beija-lhe a roupagem, com sorrisos na fronte e rosas na coroa!
Bailado A noite odora, é mansa a flora;
e andam em dança três virgens, fora na sombra mansa.
Uma, a Esperança, (implora ou ora?)
tem as mãos juntas...
Outra, que avança, me beija (e cora...)
e faz perguntas.
E outra, a Lembrança, silente chora suas defuntas!
Mas quando a aurora aflora, mansa, vão logo embora, vão logo em dança na sombra mansa.
Ilusão Oh como é linda a lua atrás da frança daquele jasmineiro! Vista assim, parece quase estar na vizinhança, quase na rama até! como um jasmim!
É por tudo isso que às vezes a criança como a querê-la aponta o céu... (Pois sim...
A lua está bem longe, está. Descança, pequeno! O céu é longe do jardim...)
Sob a árvore do Sonho, à semelhança, quem não crê que a Felicidade alcança?
Qual outra lua a vejo quase em mim...
Sei que é longe... e sonhá-la quase cansa...
Mas oh! mesmo sonhada e longe, é mansa e por sonhá-la sou feliz enfim!
Domingo Domingo.
Ontem choveu: Não têm os ramos, hoje, inda um brilho trêmulo e um respingo?
Oh! que manhã!
Vamos à missa! Vamos?
A hora é cristã:
Hoje é Dia de Ramos, domingo.
Choveu, e eis a atmosfera mais sonora:
e inda nas folhas sente-se um balanço.
Mas que ar! Tão claro! Até parece agora que andam nele anjos... pois é um anjo a aurora, afianço!
Vamos à missa.
É linda, na colina, a alva igreja em caliça!
É lá: estão vendo?
E oiço o sino! A caminho entre a campina!
A caminho!... Oh o sino ao longe! É uma surdina, plangendo!
E ei-nos no templo! "Entrai!" -
diz essa imagem -
"cantai e orai!"
E eu (certo que a Deus prezo)
mas... fico à porta: adoro-O na paisagem.
Fico: é sonhando ao sol, como um selvagem, que rezo.
Que val! Que céu, além!
... E as andorinhas vieram também!
Cá estão em bando errando:
vieram também...
... Trinam as avezinhas (diling! dlém!)
ou são as campainhas tocando?!
Eram as campainhas: rezam a "Ave".
Como parece a nave uma floresta, assim cheia de folhas, verde e grave, banhada em sombras, a silente nave em festa!
Acabou-se.
As mulheres e as crianças com os homens saem em ledo sobressalto, e erguem as palmas - as verdinhas franças -
e erguem - num gesto doce -
as esperanças ao alto!
E no alto, no alto é de ouro o panorama!
O Santo-Espírito-do-Sol luzindo nos manda, como a apóstolos de fama, as línguas evangélicas da chama.
Sol lindo.
Nesta manhã de fantasmagoria -oh palmas do domingo-santo, oh palmasfloristes uma flor de alegoria:
é a flor cujo perfume dá alegria às almas!
Primitivo Oh amar na floresta!
O dia era alvo e bom.
Domingo. Um sino ao longe entoava, limpo, um som.
Eu a olhava sorrir deitada entre ervas brabas, avencas e cipós, palmas e trapoeirabas, e através da ramada ela olhava o matiz tão azul, tão azul do céu deste país.
Em fresta o sol a escoar da verde clarabóia punha-lhe à frente loura o disco de uma jóia.
E ouvindo o pipilar dos tiês nos cafezais, e ouvindo o vento chiar nas folhas mais e mais, e ouvindo o tintinar sonoro de uma fonte adormecemos lado a lado e fronte a fronte.
... Quando acordamos, tarde, era a tarde em final;
era o céu glauco; a luz - um velário nupcial;
da Fazenda chegava um gemer de sanfona...
Vinha a noite odorando a malva e a mangerona.
Os astros eram como orvalho luminar suspenso limpo no ar, brilhando limpo no ar.
... E ela beijou-me tão amorável, tão nua que no céu veio um anjo espreitá-la: era a lua.
Eu tive então um ingênuo ciúme do luar...
E para que ela não o conseguisse avistar cobria-a com meu corpo, insaciável de amar.
Bonança 1 Manhã. -Raios do dia, em meus hinos brilhai com o tom celeste da alegria!
Oh risos, soai!
Risos, voltai como volta a ave à calmaria!
Pelo ar - cetins, no mar - cristais na luz...
E na vida - alegria!
A Alegria erra a flux do mar, com rastros de ouro e fantasmagoria!
Oh! Olhar nas ondas movediças florações!
Cheirar o iodo e o sal das acres virações!
Escutar, em tom brando, os ventos, pelo olimpo, como um trêmolo de violões...
ou, junto ao cais, o marulho da vaga em notas musicais!
E eu impo de entusiasmo! impo de sonhos! impo!
Espelha - oh coração - espelha, como o olhar, o remanso da terra, o descanso do mar e do céu limpo!
Oh Vida, Vida - és uma jóia às vezes! De teu mal às vezes eu me vingo, ficando alegre como um rosal ou um domingo, se o céu traz grande gala e a manhã no alto bóia, se tenho, como agora, a fazer-me sorrir, a me desentediar - a fazer-me florir -
meu bom amigo - o Sol, ou meu amigo - o Atlântico!
Que manhã de alegria!
Encobrindo-me o spleen sinto hoje uma esperança em mim, verde e sem fim como esse verde mar de alegoria e cântico!
2 Meio dia. Tremula e ondula na água a lã da manada marinha - a espumarada vã.
Saio a vogar. Desprendo um bote e largo a amarra.
E sigo além, sem rumo - ou antes - rumo além!
Sou menino outra vez neste berço ao vai-vem do vento e das marés, que me impelem à barra.
O sol beija-me a fronte, o mar beija-me os pés, e eu brinco entre água e sol ao sabor das marés!
Gozo a paisagem - gozo-a com os nervos e com a vista!
Remo. Luz cada pingo em que o remo passou.
No bote a água borbulha: o respingo o molhou.
Mas olhai para a praia e o que nela se avista!
É o banho. Nadam longe uns corpos de mulher tão lindos, que até o mar sente um tremor qualquer à carícia auroral daquelas formas cheias!
Surgem louras no fundo azul! louras assim como algas a enflorar o oceânico jardim!
- São banhistas, dizeis: eu digo: são sereias.
Agora olhai mais longe, acima do debrum do horizonte: lá vão pássaros, um por um.
Como as gaivotas no ar, leves-leves revoam, tão alvinhas ao léo!
Alvas, da água a partir, parecem quase espuma em flocos a subir com o vento, em flocos alvos, para o céu!
Revoam!
Inversamente - o mar se irisa de liriais, e a espumarada lembra aves brancas e ideais que andam nele e o coroam.
A gambiarra do sol banha-me a fronte e o mar banha-me os pés...
E o bote se desgarra, ao sabor das marés, ao sabor das marés, que o impelem à barra!
3 Noite. O céu é outro mar coalhado de faróis, e o mar, que fosforesce é um céu cheio de sóis:
A água viva é um rebanho argênteo de lampíreos.
Noite. Lá vão, lá vêm ao largo os pescadores, rudes heróis!
Do mar regressam vencedores, e o mar flore onde vão fosforecentes lírios.
Noite.
Pesa o sono do mundo. Mais soturno, escuto o coração no silêncio noturno ansiar, se o vento cai, ou se o mar solta um ai...!
...Mas no horizonte... lá... qualquer coisa esplendora no espelho d'água! Olhai!
É um rosto louro? (Cora...)
É uma nau de ouro? (Alvóra)
Ah é a lua: ah sonhai!
Ei-la: Pousa no céu como um claro besouro!
Ei-la: Tudo é melhor!
Mar - oh mar-sorvedouro -
ao manso plenilúnio louro és o decor apenas de visões, de ilusões, de legendas, mar - cenário onde o luar é a cortina de rendas!
Meu mestre Mar, que tens tantas rimas de cor!
Mestre cantor da lua!-
A minha história é a tua, oh meu irmão!
Que mau destino te recua, e afunda para sempre uma flórea região e forma além uma ilha nua, oh meu irmão?
E que destino afunda a minha alta ambição para formar o abrolho da desilusão?!
... Mas, oh! crer-se feliz - eis a felicidade:
e hei de ser feliz, hei!
Vai-te embora, Saudade!
Vai-te embora, Amargura - eu já te abandonei:
Hoje, ao sol, eu sorri... Hoje é tão doce tudo!
Sei que sonhos perdi: Com esses não me iludo...
mas com um outro maior talvez me iludirei!
Sus! Findo qualquer sonho inda fica a Esperança verde e quieta sem fim como, ao sol, a bonança -
como hoje o verde mar de canto e alegoria, como hoje o quieto mar de rendas e legendas!
Sus! Oxalá que todo dia em mim resplendas como hoje resplendeste, Alegria!
Alegria!
Idealismo Antigos - que (de murta e louro à fronte)
cantastes Baco, em ledos parreirais, louvando as uvas, como Anacreonte, e o vinho e o mel e o beijo materiais -
passastes!... E passaram vossas trovas e a vossa musa numa hidrópica - a Taverna!
Nós, os novos, cantamos odes novas ao suco novo de uma Vinha Eterna!
As vossas vinhas - foi-vos fácil tê-las...
mais ai! aquelas a que temos jus...!
Se é tão longe a parreira das estrelas, quando seremos bêbados... de Luz?!
Um dia, um dia erguidos no horizonte, transfigurados pela Morte (ah quando?)
nós chegaremos (louro e murta à fronte)
aos céus, à nossa parreira - cantando!
Final Sinos de bronze, de ouro e de cristal! confundo num adeus de aflição vossas vozes, enfim.
Já plangestes a minha adoração:
segundo era triste ou alegre, ereis dobre ou clarim!
Sinos da inspiração! quando eu for moribundo - sinos da Torre Além - quando passar meu fim...
- sinos! - cem Carrilhões não vibrarão no mundo, orando, murmurando...
ou chorando por mim?!
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado e gentilmente cedido por:
Artur Araújo
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações
acima sejam mantidas.