Cancioneiro
1.
Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno depercepção: ao mesmo tempo que tempos consciência dum estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundoexterior num determinado momento da nossa percepção.
2.
Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não sórepresentável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito.
E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem -
pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.
3.
Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva - e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma - é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que "na ausência da amada o sol não brilha", e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecçãode duas paisagens. Tem de ser duas paisagens, mas pode ser - não se querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...]
Abat-Jour A lâmpada acesa (Outrem a acendeu)
Baixa uma beleza Sobre o chão que é meu.
No quarto deserto Salvo o meu sonhar, Faz no chão incerto Um círculo a ondear.
E entre a sombra e a luz Que oscila no chão Meu sonho conduz Minha inatenção.
Bem sei ... Era dia E longe de aqui...
Quanto me sorria O que nunca vi!
E no quarto silente Com a luz a ondear Deixei vagamente Até de sonhar...
Abdicação Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços E chama-me teu filho.
Eu sou um rei que voluntariamente abandonei O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos, Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei Na antecâmara, feitos em pedaços Minha cota de malha, tão inútil, Minhas esporas de um tinir tão fútil, Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma, E regressei à noite antiga e calma Como a paisagem ao morrer do dia.
Abismo Olho o Tejo, e de tal arte Que me esquece olhar olhando, E súbito isto me bate De encontro ao devaneando —
O que é sério, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco, Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco —
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo — eu e o mundo em redor —
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar, E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar Ser, idéia, alma de nome A mim, à terra e aos céus...
E súbito encontro Deus.
A Grande Esfinge do Egito A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro...
Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...
Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena Ser o perfil do rei Quéops ...
De repente paro...
Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...
Ouço a Esfinge rir por dentro O som da minha pena a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme, Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim, E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos, E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo E uma alegria de barcos embandeirados erra Numa diagonal difusa Entre mim e o que eu penso...
Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim! ...
A minha vida é um barco abandonado A minha vida é um barco abandonado Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino De navegar, casado com o seu fado ?
Ah! falta quem o lance ao mar, e alado Torne seu vulto em velas; peregrino Frescor de afastamento, no divino Amplexo da manhã, puro e salgado.
Morto corpo da ação sem vontade Que o viva, vulto estéril de viver, Boiando à tona inútil da saudade.
Os limos esverdeiam tua quilha, O vento embala-te sem te mover, E é para além do mar a ansiada Ilha.
A morte chega cedo A morte chega cedo, Pois breve é toda vida O instante é o arremedo De uma coisa perdida.
O amor foi começado, O ideal não acabou, E quem tenha alcançado Não sabe o que alcançou.
E tudo isto a morte Risca por não estar certo No caderno da sorte Que Deus deixou aberto.
Andei léguas de sombra Andei léguas de sombra Dentro em meu pensamento.
Floresceu às avessas Meu ócio com sem-nexo, E apagaram-se as lâmpadas Na alcova cambaleante.
Tudo prestes se volve Um deserto macio Visto pelo meu tato Dos veludos da alcova, Não pela minha vista.
Há um oásis no Incerto E, como uma suspeita De luz por não-há-frinchas, Passa uma caravana.
Esquece-me de súbito Como é o espaço, e o tempo Em vez de horizontal É vertical.
A alcova Desce não se por onde Até não me encontrar.
Ascende um leve fumo Das minhas sensações.
Deixo de me incluir Dentro de mim. Não há Cá-dentro nem lá-fora.
E o deserto está agora Virado para baixo.
A noção de mover-me Esqueceu-se do meu nome.
Na alma meu corpo pesa-me.
Sinto-me um reposteiro Pendurado na sala Onde jaz alguém morto.
Qualquer coisa caiu E tiniu no infinito.
Ao longe, ao luar Ao longe, ao luar, No rio uma vela, Serena a passar, Que é que me revela ?
Não sei, mas meu ser Tornou-se-me estranho, E eu sonho sem ver Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça ?
Que amor não se explica ?
É a vela que passa Na noite que fica.
Aqui onde se espera Aqui onde se espera - Sossego, só sossego -
Isso que outrora era, Aqui onde, dormindo, -Sossego, só sossegoSe sente a noite vindo, E nada importaria -Sossego, só sossegoQue fosse antes o dia, Aqui, aqui estarei -Sossego, só sossego -
Como no exílio um rei, Gozando da ventura - Sossego, só sossego -
De não ter a amargura De reinar, mas guardando - Sossego, só sossego -
O nome venerando...
Que mais quer quem descansa - Sossego, só sossego -
Da dor e da esperança, Que ter a negação - Sossego, só sossego -
De todo o coração ?
As horas pela alameda As horas pela alameda Arrastam vestes de seda, Vestes de seda sonhada Pela alameda alongada Sob o azular do luar...
E ouve-se no ar a expirar -
A expirar mas nunca expira -
Uma flauta que delira, Que é mais a idéia de ouvi-la Que ouvi-la quase tranqüila Pelo ar a ondear e a ir...
Silêncio a tremeluzir...
As minhas Ansiedades As minhas ansiedades caem Por uma escada abaixo.
Os meus desejos balouçam-se Em meio de um jardim vertical.
Na Múmia a posição é absolutamente exata.
Música longínqua, Música excessivamente longínqua, Para que a Vida passe E colher esqueça aos gestos.
Assim, sem nada feito e o por fazer Assim, sem nada feito e o por fazer Mal pensado, ou sonhado sem pensar, Vejo os meus dias nulos decorrer, E o cansaço de nada me aumentar.
Perdura, sim, como uma mocidade Que a si mesma se sobrevive, a esperança, Mas a mesma esperança o tédio invade, E a mesma falsa mocidade cansa.
Tênue passar das horas sem proveito, Leve correr dos dias sem ação, Como a quem com saúde jaz no leito Ou quem sempre se atrasa sem razão.
Vadio sem andar, meu ser inerte Contempla-me, que esqueço de querer, E a tarde exterior seu tédio verte Sobre quem nada fez e nada quere.
Inútil vida, posta a um canto e ida Sem que alguém nela fosse, nau sem mar, Obra solentemente por ser lida, Ah, deixem-se sonhar sem esperar!
As tuas mãos terminam em segredo As tuas mãos terminam em segredo.
Os teus olhos são negros e macios Cristo na cruz os teus seios (?) esguios E o teu perfil princesas no degredo...
Entre buxos e ao pé de bancos frios Nas entrevistas alamedas, quedo O vendo põe o seu arrastado medo Saudoso o longes velas de navios.
Mas quando o mar subir na praia e for Arrasar os castelos que na areia As crianças deixaram, meu amor, Será o haver cais num mar distante...
Pobre do rei pai das princesas feias No seu castelo à rosa do Levante !
Às vezes entre a tormenta Às vezes entre a tormenta, quando já umedeceu, raia uma nesga no céu, com que a alma se alimenta.
E às vezes entre o torpor que não é tormenta da alma, raia uma espécie de calma que não conhece o langor.
E, quer num quer noutro caso, como o mal feito está feito, restam os versos que deito, vinho no copo do acaso.
Porque verdadeiramente sentir é tão complicado que só andando enganado é que se crê que se sente.
Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham folhas caídas que secam.
Atravessa esta paisagem o meu sonho Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios Que largam do cais arrastando nas águas por sombra Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma Que se levanta e se ergue como um muro, E os navios passam por dentro dos troncos das árvores Com uma horizontalidade vertical, E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada, Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto, E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro, E passa para o outro lado da minha alma...
Autopsicografia O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.
(?) Azul ou verde ou roxo Azul, ou verde, ou roxo quando o sol O doura falsamente de vermelho, O mar é áspero (?), casual (?) ou mol(e), É uma vez abismo e outra espelho.
Evoco porque sinto velho O que em mim quereria mais que o mar Já que nada ali há por desvendar.
Os grandes capitães e os marinheiros Com que fizeram a navegação, Jazem longínquos, lúgubres parceiros Do nosso esquecimento e ingratidão.
Só o mar às vezes, quando são Grandes as ondas e é deveras mar Parece incertamente recordar.
Mas sonho... O mar é água, é água nua, Serva do obscuro ímpeto distante Que, como a poesia, vem da lua Que uma vez o abate outra o levanta.
Mas, por mais que descante Sobre a ignorância natural do mar, Pressinto-o, vasante, a murmurar.
Quem sabe o que é a alma ? Quem conhece Que alma há nas coisas que parecem mortas.
Quanto em terra ou em nada nunca esquece.
Quem sabe se no espaço vácuo há portas?
O sonho que me exortas A meditar assim a voz do mar, Ensina-me a saber-te meditar.
Capitães, contramestres - todos nautas Da descoberta infiel de cada dia Acaso vos chamou de igonotas flautas A vaga e impossível melodia.
Acaso o vosso ouvido ouvia Qualquer coisa do mar sem ser o mar Sereias só de ouvir e não de achar?
Qeum atrás de intérminos oceanos Vos chamou à distância ou quem Sabe que há nos corações humanos Não só uma ânsia natural de bem Mas, mais vaga, mais sutil também Uma coisa que quer o som do mar E o estar longe de tudo e não parar.
Se assim é e se vós e o mar imenso Sois qualquer coisa, vós por o sentir E o mar por o ser, disto que penso;
Se no fundo ignorado do existir Há mais alma que a que pode vir À tona vã de nós, como à do mar Fazei-me livre, enfim , de o ignorar.
Dai-me uma alma transposta de argonauta, Fazei que eu tenha, como o capitão Ou o contramestre, ouvidos para a flauta Que chama ao longe o nosso coração, Fazei-me ouvir , como a um perdão, Numa reminiscência de ensinar, O antigo português que fala o mar!
Baladas de uma outra terra Baladas de uma outra terra, aliadas Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos, Retinem lívidas ainda aos ouvidos Dos luares das altas noites aladas...
Pelos canais barcas erradas Segredam-se rumos descridos...
E tresloucadas ou casadas com o som das baladas, As fadas são belas e as estrelas São delas... Ei-las alheadas...
E sao fumos os rumos das barcas sonhadas, Nos canais fatais iguais de erradas, As barcas parcas das fadas, Das fadas aladas e hiemais E caladas...
Toadas afastadas, irreais, de baladas...
Ais...
Bate a luz no cimo...
Bate a luz no cimo Da montanha, vê...
Sem querer eu cismo Mas não sei em quê....
Não sei que perdi Ou que não achei...
Vida que vivi, Que mal eu a amei !...
Hoje quero tanto Que o não posso ter, De manhã há o pranto E ao anoitecer...
Tomara eu ter jeito Para ser feliz...
Como o mundo é estreito, E o pouco que eu quis !
Vai morrendo a luz No alto da montanha...
Como um rio a flux A minha alma banha, Mas não me acarinha, Não me acalma nada...
Pobre criancinha Perdida na estrada !...
Brilha uma Voz na Noute...
Brilha uma voz na noute De dentro de Fora ouvi-a...
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria Deste pavor, do archote Se apagar, que me guia!
Cinzas de idéia e de nome Em mim, e a voz:Ó mundo, Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco demim, me inundo De ondas de negro lume Em que pra Deus me afundo.
Canção Silfos ou gnomos tocam?...
Roçam nos pinheirais Sombras e bafos leves De ritmos musicais.
Ondulam como em voltas De estradas não sei onde Ou como alguém que entre árvores Ora se mostra ou esconde.
Forma longínqua e incerta Do que eu nunca terei...
Mal oiço e quase choro.
Por que choro não sei.
Tão tênue melodia Que mal sei se ela existe Ou se é só o crepúsculo, Os pinhais e eu estar triste.
Mas cessa, como uma brisa Esquece a forma aos seus ais;
E agora não há mais música Do que a dos pinheirais.
Cansa Sentir Quando se Pensa Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar Há uma solidão imensa Que tem por corpo o frio do ar.
Neste momento insone e triste Em que não sei quem hei de ser, Pesa-me o informe real que existe Na noite antes de amanhecer.
Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim Um negro astral silêncio surdo E não poder viver assim.
(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negror sem fim, Mundo mudo, silêncio mudo -
Ah, nada é isto, nada é assim!)
Cerca de grandes muros quem te sonhas Conselho Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim Através do portão de grade dada, Põe quantas flores são as mais risonhas, Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.
Faze canteiros como os que outros têm, Onde os olhares possam entrever O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém, Deixa as flores que vêm do chão crescer E deixa as ervas naturais medrar.
Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa Saber mais que um jardim de quem tu és -
Um jardim ostensivo e reservado, Por trás do qual a flor nativa roça A erva tão pobre que nem tu a vês...
Cessa o teu canto!
Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto O ouvi, ouvia Uma outra voz Com que vindo Nos interstícios Do brando encanto Com que o teu canto Vinha até nós.
Ouvi-te e ouvi-a No mesmo tempo E diferentes Juntas cantar.
E a melodia Que não havia.
Se agora a lembro, Faz-me chorar.
Chove. É dia de Natal Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal, E o frio que ainda é pior.
E toda a gente é contente Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.
Pois apesar de ser esse O Natal da convenção, Quando o corpo me arrefece Tenho o frio e Natal não.
Deixo sentir a quem quadra E o Natal a quem o fez, Pois se escrevo ainda outra quadra Fico gelado dos pés.
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...
Tão calma é a chuva que se solta no ar (Nem parece de nuvens) que parece Que não é chuva, mas um sussurrar Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...
Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente, Como uma coisa certa que nos minta, Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...
Chove ? Nenhuma chuva cai...
Chove ? Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia Em que ruído da chuva atrai A minha inútil agonia ?
Onde é que chove, que eu o ouço ?
Onde é que é triste, ó claro céu ?
Eu quero sorrir-te, e não posso, Ó céu azul, chamar-te meu...
E o escuro ruído da chuva É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva Traçada pelo som do vento...
E eis que ante o sol e o azul do dia, Como se a hora me estorvasse, Eu sofro... E a luz e a sua alegria Cai aos meus pés como um disfarce.
Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve A chuva, como a voz de um fim...
Os céus da tua face, e os derradeiros Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro seqüestrando a lucidez Um espasmo apagado em ódio à ânsia Põe dias de ilhas vistas do convés No meu cansaço perdido entre os gelos, E a cor do outono é um funeral de apelos Pela estrada da minha dissonância...
Começa a ir ser dia Começa a ir ser dia, O céu negro começa, Numa menor negrura Da sua noite escura, A Ter uma cor fria Onde a negrura cessa.
Um negro azul-cinzento Emerge vagamente De onde o oriente dorme Seu tardo sono informe, E há um frio sem vento Que se ouve e mal se sente.
Mas eu, o mal-dormido, Não sinto noite ou frio, Nem sinto vir o dia Da solidão vazia.
Só sinto o indefinido Do coração vazio.
Em vão o dia chega Quem não dorme, a quem Não tem que ter razão Dentro do coração, Que quando vive nega E quando ama não tem.
Em vão, em vão, e o céu Azula-se de verde Acinzentadamente.
Que é isto que a minha alma sente ?
Nem isto, não, nem eu, Na noite que se perde.
Como a noite é longa !
Como a noite é longa !
Toda a noite é assim...
Senta-te, ama, perto Do leito onde esperto.
Vem p'r'ao pé de mim...
Amei tanta coisa...
Hoje nada existe.
Aqui ao pé da cama Canta-me, minha ama, Uma canção triste.
Era uma princesa Que amou... Já não sei...
Como estou esquecido !
Canta-me ao ouvido E adormecerei...
Que é feito de tudo ?
Que fiz eu de mim?
Deixa-me dormir, Dormir a sorrir E seja isto o fim.
Como inútil taça cheia Como inútil taça cheia Que ninguém ergue da mesa, Transborda de dor alheia Meu coração sem tristeza.
Sonhos de mágoa figura Só para Ter que sentir E assim não tem a amargura Que se temeu a fingir.
Ficção num palco sem tábuas Vestida de papel seda Mima uma dança de mágoas Para que nada suceda.
Como uma voz de fonte que cessasse Como uma voz de fonte que cessasse (E uns para os outros nossos vãos olhares Se admiraram), p'ra além dos meus palmares De sonho, a voz que do meu tédio nasce Parou... Apareceu já sem disfarce De música longínqua, asas nos ares, O mistério silente como os mares, Quando morreu o vento e a calma pasce...
A paisagem longínqua só existe Para haver nela um silêncio em descida P'ra o mistério, silêncio a que a hora assiste...
E, perto ou longe, grande lago mudo, O mundo, o informe mundo onde há a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...
Conta a lenda que dormia Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino -
Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E, vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera, Ã cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.
Contemplo o lago mudo Contemplo o lago mudo Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo Ou se tudo me esquece.
O lago nada me diz, Não sinto a brisa mexê-lo Não sei se sou feliz Nem se desejo sê-lo.
Trêmulos vincos risonhos Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos A minha única vida?
Contemplo o que não vejo Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo Está parado ante o muro.
Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande, Há folhas em vaivém.
Tudo é do outro lado, No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado Que o céu não seja imenso.
Confunde-se o que existe Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.
Dá a surpresa de ser Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver Seu corpo meio maduro.
Seus seios altos parecem (Se ela tivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem Sem Ter que haver madrugada.
E a mão do seu braço branco Assenta em palmo espalhado Sobre a saliência do flanco Do seu relevo tapado.
Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como ?
Da minha idéia do mundo Da minha idéia do mundo Caí...
Vácuo além do profundo, Sem ter Eu nem Ali...
Vácuo sem si-próprio, caos De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...
Além-Deus ! Além-Deus! Negra calma...
Clarão do Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma, Mesmo o ter-um-sentido...
De onde é quase o horizonte De onde é quase o horizonte Sobe uma névoa ligeira E afaga o pequeno monte Que pára na dianteira.
E com braços de farrapo Quase invisíveis e frios, Faz cair seu ser de trapo Sobre os contornos macios.
Um pouco de alto medito A névoa só com a ver.
A vida? Não acredito.
A crença? Não sei viver.
De quem é o olhar De quem é o olhar Que espreita por meus olhos ?
Quando penso que vejo, Quem continua vendo Enquanto estou pensando ?
Por que caminhos seguem, Não os meus tristes passos, Mas a realidade De eu ter passos comigo ?
Às vezes, na penumbra Do meu quarto, quando eu Por mim próprio mesmo Em alma mal existo, Toma um outro sentido Em mim o Universo -
É uma nódoa esbatida De eu ser consciente sobre Minha idéia das coisas.
Se acenderem as velas E não houver apenas A vaga luz de foraNão sei que candeeiro Aceso onde na ruaTerei foscos desejos De nunca haver mais nada No Universo e na Vida De que o obscuro momento Que é minha vida agora!
Um momento afluente Dum rio sempre a ir Esquecer-se de ser, Espaço misterioso Entre espaços desertos Cujo sentido é nulo E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa Metafisicamente.
Ditosos a quem acena Marinha Ditosos a quem acena Um lenço de despedida !
São felizes : têm pena...
Eu sofro sem pena a vida.
Dôo-me até onde penso, E a dor é já de pensar, Órfão de um sonho suspenso Pela maré a vazar...
E sobe até mim, já farto De improfícuas agonias, No cais de onde nunca parto, A maresia dos dias.
Dizem que finjo ou minto Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, Écomo que um terraço Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é, Sentir, sinta quem lê !
Dizem?
Dizem?
Esquecem.
Não dizem ?
Disseram.
Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.
Por quê Esperar ?
Tudo é Sonhar.
Dobre Peguei no meu coração E pu-lo na minha mão Olhei-o como quem olha Grãos de areia ou uma folha.
Olhei-o pávido e absorto Como quem sabe estar morto;
Com a alma só comovida Do sonho e pouco da vida.
Dorme enquanto eu velo...
Dorme enquanto eu velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho, Não para te amar.
A tua carne calma É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços Meu sonho do teu ser.
Dorme, dorme, dorme, Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento Que o sonho é encantamento E eu sonho sem sentir.
Dorme, que a vida é nada!
Dorme, que a vida é nada!
Dorme, que tudo é vão!
Se alguém achou a estrada, Achou-a em confusão, Com a alma enganada.
Não há lugar nem dia Para quem quer achar, Nem paz nem alegria Para quem, por amar, Em quem ama confia.
Melhor entre onde os ramos Tecem docéis sem ser Ficar como ficamos, Sem pensar nem querer, Dando o que nunca damos.
Dorme sobre o meu seio Dorme sobre o meu seio, Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir E na ilusão de amar.
Tudo é nada, e tudo Um sonho finge ser.
O 'spaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer, Saibas do coração sorrir Sorrisos de esquecer.
Dorme sobre o meu seio, Sem mágoa nem amor...
No teu olhar eu leio O íntimo torpor De quem conhece o nada-ser De vida e gozo e dor.
Do vale à montanha Do vale à montanha, Da montanha ao monte, cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Pr casas, por prados, Por Quinta e por fonte, Caminhais aliados.
Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por penhascos pretos, Atrás e defronte, Caminhais secretos.
Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por quanto é sem fim, Sem ninguém que o conte, Caminhais em mim.
Durmo. Se sonho, ao despertar não sei Durmo. Se sonho, ao despertar não sei Que coisas eu sonhei.
Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto Para um espaço aberto Que não conheço, pois que despertei Para o que inda não sei.
Melhor é nem sonhar nem não sonhar E nunca despertar.
É brando o dia, brando o vento É brando o dia, brando o vento É brando o sol e brando o céu.
Assim fosse meu pensamento !
Assim fosse eu, assim fosse eu !
Mas entre mim e as brandas glórias Deste céu limpo e este ar sem mim Intervêm sonhos e memórias...
Ser eu assim ser eu assim !
Ah, o mundo é quanto nós trazemos.
Existe tudo porque existo.
Há porque vemos.
E tudo é isto, tudo é isto !
Ela canta, pobre ceifeira Ela canta, pobre ceifeira, Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia De alegre e anônima viuvez, Ondula como um canto de ave No ar limpo como um limiar, E há curvas no enredo suave Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz há o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão !
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando !
Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso ! Ó céu !
Ó campo ! Ó canção ! A ciência Pesa tanto e a vida é tão breve !
Entrai por mim dentro ! Tornai Minha alma a vossa sombra leve !
Depois, levando-me, passai !
Ela ia, tranqüila pastorinha Ela ia, tranqüila pastorinha, Pela estrada da minha imperfeição.
Segui-a, como um gesto de perdão, O seu rebanho, a saudade minha...
"Em longes terras hás de ser rainha Um dia lhe disseram, mas em vão...
Seu vulto perde-se na escuridão...
Só sua sombra ante meus pés caminha...
Deus te dê lírios em vez desta hora, E em terras longe do que eu hoje sinto Serás, rainha não, mas só pastora _
Só sempre a mesma pastorinha a ir, E eu serei teu regresso, esse indistinto Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...
Elas são vaporosas Minuete Invisível Elas são vaporosas, Pálidas sombras, as rosas Nadas da hora lunar...
Vêm, aéreas, dançar Com perfumes soltos Entre os canteiros e os buxos...
Chora no som dos repuxos O ritmo que há nos seus vultos...
Passam e agitam a brisa...
Pálida, a pompa indecisa Da sua flébil demora Paira em auréola à hora...
Passam nos ritmos da sombra...
Ora é uma folha que tomba, Ora uma brisa que treme Sua leveza solene...
E assim vão indo, delindo Seu perfil único e lindo, Seu vulto feito de todas, Nas alamedas, em rodas, No jardim lívido e frio...
Passam sozinhas, a fio, Como um fumo indo, a rarear, Pelo ar longínquo e vazio, Sob o, disperso pelo ar, Pálido pálio lunar ...
Em Busca da Beleza Soam vãos, dolorido epicurista, Os versos teus, que a minha dor despreza;
Já tive a alma sem descrença presa Desse teu sonho, que perturba a vista.
Da Perfeição segui em vã conquista, Mas vi depressa, já sem a alma acesa, Que a própria idéia em nós dessa beleza Um infinito de nós mesmos dista.
Nem à nossa alma definir podemos A Perfeição em cuja estrada a vida, Achando-a intérmina, a chorar perdemos.
O mar tem fim, o céu talvez o tenha, Mas não a ânsia da Coisa indefinida Que o ser indefinida faz tamanha.
Em horas inda louras, lindas Em horas inda louras, lindas Clorindas e Belindas, brandas, Brincam no tempo das berlindas, As vindas vendo das varandas, De onde ouvem vir a rir as vindas Fitam a fio as frias bandas.
Mas em torno à tarde se entorna A atordoar o ar que arde Que a eterna tarde já não torna !
E o tom de atoarda todo o alarde Do adornado ardor transtorna No ar de torpor da tarda tarde.
E há nevoentos desencantos Dos encantos dos pensamentos Nos santos lentos dos recantos Dos bentos cantos dos conventos....
Prantos de intentos, lentos, tantos Que encantam os atentos ventos.
Emissário de um rei desconhecido Emissário de um rei desconhecido, Eu cumpro informes instruções de além, E as bruscas frases que aos meus lábios vêm Soam-me a um outro e anômalo sentido...
Inconscientemente me divido Entre mim e a missão que o meu ser tem, E a glória do meu Rei dá-me desdém Por este humano povo entre quem lido...
Não sei se existe o Rei que me mandou.
Minha missão será eu a esquecer, Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas há ! Eu sinto-me altas tradições De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
Em plena vida e violência Em plena vida e violência De desejo e ambição, De repente uma sonolência Cai sobre a minha ausência.
Desce ao meu próprio coração.
Será que a mente, já desperta Da noção falsa de viver, Vê que, pela janela aberta, Há uma paisagem toda incerta E um sonho todo a apetecer ?
ALÉM-DEUS
I) Abismo II) Passou III) A Voz de Deus IV) A Queda V) Braço sem Corpo Brandindo um Gládio I) Abismo Olho o Tejo, e de tal arte Que me esquece olhar olhando, E súbito isto me bate De encontro ao devaneando -
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco, Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco -
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo - eu e o mundo em redor -
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar, E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar Ser, idéia, alma de nome A mim, à terra e aos céus...
E súbito encontro Deus.
II) Passou Passou, fora de Quando, De Porquê, e de Passando..., Turbilhão de Ignorado, Sem ter turbilhonado..., Vasto por fora do Vasto Sem ser, que a si se assombra...
O Universo é o seu rasto...
Deus é a sua sombra...
III) A Voz de Deus Brilha uma voz na noute...
De dentro de Fora ouvi-a...
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria Deste pavor, do archote Se apagar, que me guia!
Cinzas de idéia e de nome Em mim, e a voz: Ó mundo, Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo De ondas de negro lume Em que para Deus me afundo.
IV) A Queda Da minha idéia do mundo Caí...
Vácuo além de profundo, Sem ter Eu nem Ali...
Vácuo sem si-próprio, caos De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...
Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma, Mesmo o ter-um-sentido...
V) Braço sem Corpo Brandindo um Gládio ( Entre a árvore e o vê-la )
Entre a árvore e o vê-la Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela Deus?... E eu fico tristonho Por não saber se a curva da ponte É a curva do horizonte...
Entre o que vive e a vida Pra que lado corre o rio?
Árvore de folhas vestida -
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando - o pombal Está-lhes sempre à direita, ou é real?
Deus é um grande Intervalo, Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo Existo? Quem é que me vê?
Erro-me... E o pombal elevado Está em torno na pomba, ou de lado?
[1913?]
Entre o bater rasgado dos pendões Entre o bater rasgado dos pendões E o cessar dos clarins na tarde alheia, A derrota ficou : como uma cheia Do mal cobriu os vagos batalhões.
Foi em vão que o Rei louco os seus varões Trouxe ao prolixo prélio, sem idéia.
Água que mão infiel verteu na areia _
Tudo morreu, sem rastro e sem razões.
A noite cobre o campo, que o Destino Com a morte tornou abandonado.
Cessou, com cessar tudo, o desatino.
Só no luar que nasce os pendões rotos 'Strelam no absurdo campo desolado Uma derrota heráldica de ignotos.
Entre o luar e a folhagem Entre o luar e a folhagem, Entre o sossego e o arvoredo, Entre o ser noite e haver aragem Passa um segredo.
Segue-o minha alma na passagem.
Tênue lembrança ou saudade, Princípio ou fim do que não foi, Não tem lugar, não tem verdade.
Atrai e dói.
Segue-o meu ser em liberdade.
Vazio encanto ébrio de si, Tristeza ou alegria o traz ?
O que sou dele a quem sorri ?
Nada é nem faz.
Só de segui-lo me perdi.
Entre o sono e sonho, Entre mim e o que em mim É o quem eu me suponho Corre um rio sem fim.
Passou por outras margens, Diversas mais além, Naquelas várias viagens Que todo o rio tem.
Chegou onde hoje habito A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.
E quem me sinto e morre No que me liga a mim Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.
Eros e Psique ...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio Na Ordem Templária De Portugal)
Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera, Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado, Ele dela é ignorado, Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora, E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.
Obs.: Publicado pela primeira vez in Presença, números 41-42, Coimbra, maio de 1934. Acerca da epígrafe que encabeça este poema diz o próprio autor a uma interrogação levantada pelo crítico A. Casais Monteiro, em carta a este último:
A citação, epígrafe ao meu poema "Eros e Psique", de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente - o que é fato - que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho [In VO/II.]
Esqueço-me das horas transviadas Passos da Cruz Esqueço-me das horas transviadas O Outono mora mágoas nos outeiros E põe um roxo vago nos ribeiros...
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...
Aconteceu-me esta paisagem, fadas De sepulcros a orgíaco... Trigueiros Os céus da tua face, e os derradeiros Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro seqüestrando a lucidez Um espasmo apagado em ódio à ânsia Põe dias de ilhas vistas do convés No meu cansaço perdido entre os gelos E a cor do outono é um funeral de apelos Pela estrada da minha dissonância...
Esta espécie de loucura Esta espécie de loucura Que é pouco chamar talento E que brilha em mim, na escura Confusão do pensamento, Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há Feliz dia para quem é Feliz dia para quem é O igual do dia, E no exterior azul que vê Simples confia !
Azul do céu faz pena a quem Não pode ser Na alma um azul do céu também Com que viver Ah, e se o verde com que estão Os montes quedos Pudesse haver no coração E em seus segredos !
Mas vejo quem devia estar Igual do dia Insciente e sem querer passar.
Ah, a ironia De só sentir a terra e o céu Tão belo ser Quem de si sente que perdeu A alma p’ra os ter !
Flor que não dura Flor que não dura Mais do que a sombra dum momento Tua frescura Persiste no meu pensamento.
Não te perdi No que sou eu, Só nunca mais, ó flor, te vi Onde não sou senão a terra e o céu.
Foi um momento Foi um momento O em que pousaste Sobre o meu braço, Num movimento Mais de cansaço Que pensamento, A tua mão E a retiraste.
Senti ou não ?
Não sei. Mas lembro E sinto ainda Qualquer memória Fixa e corpórea Onde pousaste A mão que teve Qualquer sentido Incompreendido.
Mas tão de leve !...
Tudo isto é nada, Mas numa estrada Como é a vida Há muita coisa Incompreendida...
Sei eu se quando A tua mão Senti pousando 'Sobre o meu braço, E um pouco, um pouco, No coração, Não houve um ritmo Novo no espaço ?
Como se tu, Sem o querer, Em mim tocasses Para dizer Qualquer mistério, Súbito e etéreo, Que nem soubesses Que tinha ser.
Assim a brisa Nos ramos diz Sem o saber Uma imprecisa Coisa feliz.
Fosse eu apenas, não sei onde ou como Fosse eu apenas, não sei onde ou como, Uma coisa existente sem viver, Noite de Vida sem amanhecer Entre as sirtes do meu dourado assomo....
Fada maliciosa ou incerto gnomo Fadado houvesse de não pertencer Meu intuito gloríola com Ter A árvore do meu uso o único pomo...
Fosse eu uma metáfora somente Escrita nalgum livro insubsistente Dum poeta antigo, de alma em outras gamas, Mas doente, e , num crepúsculo de espadas, Morrendo entre bandeiras desfraldadas Na última tarde de um império em chamas...
Fresta Em meus momentos escuros Em que em mim não há ninguém, E tudo é névoas e muros Quanto a vida dá ou tem, Se, um instante, erguendo a fronte De onde em mim sou aterrado, Vejo o longínquo horizonte Cheio de sol posto ou nado Revivo, existo, conheço, E, ainda que seja ilusão O exterior em que me esqueço, Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.
Fúria nas trevas o vento Fúria nas trevas o vento Num grande som de alongar, Não há no meu pensamento Senão não poder parar.
Parece que a alma tem Treva onde sopre a crescer Uma loucura que vem De querer compreender.
Raiva nas trevas o vento Sem se poder libertar.
Estou preso ao meu pensamento Como o vento preso ao ar.
Glosa Quem me roubou a minha dor antiga, E só a vida me deixou por dor ?
Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga, Me deixou só no fogo e no torpor ?
Quem fez a fantasia minha amiga, Negando o fruto e emurchecendo a flor ?
Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga A seu infiel e irreal sabor...
Quem me dispôs para o que não pudesse ?
Quem me fadou para o que não conheço Na teia do real que ninguém tece ?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava E me deu só a vida em que me esqueço, "Onde a minha saudade a cor se trava ?"
Gomes Leal Sangra, sinistro, a alguns o astro baço.
Seus três anéis irreversíveis são A desgraça, a tristeza, a solidão.
Oito luas fatais fitam no espaço.
Este, poeta, Apolo em seu regaço A Saturno entregou. A plúmbea mão Lhe ergueu ao alto o aflito coração.
E, erguido , o apertou, sangrando lasso.
Inúteis oito luas da loucura Quando a cintura tríplice denota Solidão e desgraça e amargura !
Mas da noite sem fim um rastro brota, Vestígios de maligna formosura :
É a lua além de Deus, álgida e ignota.
Grandes mistérios habitam O limiar do meu ser, O limiar onde hesitam Grandes pássaros que fitam Meu transpor tardo de os ver.
São aves cheias de abismo, Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo, E à minha alma é cataclismo O limiar onde está.
Então desperto do sonho E sou alegre da luz, Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho E todo passo é uma cruz.
Guia-me a só a razão Guia-me a só a razão.
Não me deram mais guia.
Alumia-me em vão ?
Só ela me alumia.
Tivesse quem criou O mundo desejado Que eu fosse outro que sou, Ter-me-ia outro criado.
Deu-me olhos para ver.
Olho, vejo, acredito.
Como ousarei dizer:
<> ?
Como olhar, a razão Deus me deu, para ver Para além da visãoOlhar de conhecer.
Se ver é enganar-me, Pensar um descaminho, Não sei. Deus os quis dar-me Por verdade e caminho.
Ilumina-se a Igreja por Dentro da Chuva Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia, E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...
Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso, E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro ...
O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça E sente-se chiar a água no fato de haver coro...
A missa é um automóvel que passa Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste ...
Súbito vento sacode em esplendor maior A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe Com o som de rodas de automóvel...
E apagam-se as luzes da igreja Na chuva que cessa ...
Intervalo Quem te disse ao ouvido esse segredo Que raras deusas têm escutado -
Aquele amor cheio de crença e medo Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?
Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti Que o supôs dito, porque o não direi, Que o supôs feito, porque o só fingi Em sonhos que nem sei?
Seja o que for, quem foi que levemente, A teu ouvido vagamente atento, Te falou desse amor em mim presente Mas que não passa do meu pensamento Que anseia e que não sente?
Foi um desejo que, sem corpo ou boca, A teus ouvidos de eu sonhar-te disse A frase eterna, imerecida e louca -
A que as deusas esperam da ledice Com que o Olimpo se apouca.
Isto Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Liberdade Ai que prazer Não cumprir um dever, Ter um livro para ler E não fazer !
Ler é maçada, Estudar é nada.
Sol doira Sem literatura O rio corre, bem ou mal, Sem edição original.
E a brisa, essa, De tão naturalmente matinal, Como o tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quanto há bruma, Esperar por D.Sebastião, Quer venha ou não !
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças, Flores, música, o luar, e o sol, que peca Só quando, em vez de criar, seca.
Mais que isto É Jesus Cristo, Que não sabia nada de finanças Nem consta que tivesse biblioteca...
Não digas nada!
Não digas nada!
Nem mesmo a verdade Há tanta suavidade em nada se dizer E tudo se entender -
Tudo metade De sentir e de ver...
Não digas nada Deixa esquecer Talvez que amanhã Em outra paisagem Digas que foi vã Toda essa viagem Até onde quis Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz Não digas nada.
Não: não digas nada!
Não: não digas nada!
Supor o que dirá A tua boca velada É ouvi-lo já É ouvi-lo melhor Do que o dirias.
O que és não vem à flor Das frases e dos dias.
És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu Que invisível se vê.
O Andaime O tempo que eu hei sonhado Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado Foi só a vida mentida De um futuro imaginado!
Aqui à beira do rio Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio Figura, anônimo e frio, A vida vivida em vão.
A 'sp'rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança Sobre mais que minha 's'prança, Rola mais que o meu desejo.
Ondas do rio, tão leves Que não sois ondas sequer, Horas, dias, anos, breves Passam - verduras ou neves Que o mesmo sol faz morrer.
Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha, Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.
Leve som das águas lentas, Gulosas da margem ida, Que lembranças sonolentas De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!
Que fiz de mim? Encontrei-me Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me Como a um louco que teime No que lhe foi desmentido.
Som morto das águas mansas Que correm por ter que ser, Leva não só lembranças -
Mortas, porque hão de morrer.
Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim -
O sonho atrasado e obscuro Do que eu devera ser - muro Do meu deserto jardim.
Ondas passadas, levai-me Para o alvido do mar!
Ao que não serei legai-me, Que cerquei com um andaime A casa por fabricar.
O Maestro Sacode a Batuta O maestro sacode a batuta, A lânguida e triste a música rompe ...
Lembra-me a minha infância, aquele dia Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado O deslizar dum cão verde, e do outro lado Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...
Prossegue a música, e eis na minha infância De repente entre mim e o maestro, muro branco, Vai e vem a bola, ora um cão verde, Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música, Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)
Atiro-a de encontra à minha infância e ela Atravessa o teatro todo que está aos meus pés A brincar com um jockey amarelo. e um cão verde E um cavalo azul que aparece por cima do muro Do meu quintal... E a música atira com bolas À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos De batuta e rotações confusas de cães verdes E cavalos azuis e jockeys amarelos ...
Todo o teatro é um muro branco de música Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda, Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa Com orquestras a tocar música, Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...
E a música cessa como um muro que desaba, A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos, E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto, Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro, E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça, Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
O que me dói não é O que me dói não é O que há no coração Mas essas coisas lindas Que nunca existirão...
São as formas sem forma Que passam sem que a dor As possa conhecer Ou as sonhar o amor.
São como se a tristeza Fosse árvore e, uma a uma, Caíssem suas folhas Entre o vestígio e a bruma.
Pobre velha música!
Pobre velha música!
Não sei por que agrado, Enche-se de lágrimas Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te, Não sei se te ouvi Nessa minha infância Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
Põe-me as mãos nos ombros...
Põe-me as mãos nos ombros...
Beija-me na fronte...
Minha vida é escombros, A minha alma insonte.
Eu não sei por quê, Meu desde onde venho, Sou o ser que vê, E vê tudo estranho.
Põe a tua mão Sobre o meu cabelo...
Tudo é ilusão.
Sonhar é sabê-lo.
Sonho. Não sei quem sou.
Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma Meu pensamento esquece o pensamento, Minha alma não tem alma.
Se existo é um erro eu o saber. Se acordo Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.
Lapso da consciência entre ilusões, Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações, Coração de ninguém.
Sorriso audível das folhas Sorriso audível das folhas Não és mais que a brisa ali Se eu te olho e tu me olhas, Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.
Ri e olha de repente Para fins de não olhar Para onde nas folhas sente O som do vento a passar Tudo é vento e disfarçar.
Mas o olhar, de estar olhando Onde não olha, voltou E estamos os dois falando O que se não conversou Isto acaba ou começou?
Tenho Tanto Sentimento Tenho tanto sentimento Que é freqüente persuadir-me De que sou sentimental, Mas reconheço, ao medir-me, Que tudo isso é pensamento, Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos, Uma vida que é vivida E outra vida que é pensada, E a única vida que temos É essa que é dividida Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira E qual errada, ninguém Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira Que a vida que a gente tem É a que tem que pensar.
Teus olhos entristecem.
Teus olhos entristecem Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham esquecem...
Não me ouves, e prossigo.
Digo o que já, de triste, Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste De tão tua que és.
Olhas-me de repente De um distante impreciso Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.
Continuo a falar.
Continuas ouvindo O que estás a pensar, Já quase não sorrindo.
Até que neste ocioso Sumir da tarde fútil, Se esfolha silencioso O teu sorriso inútil.
Tomamos a Vila depois de um Intenso Bombardeamento A criança loura Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora E por uma corda sua Um comboio que ignora.
A cara está um feixe De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe — Dos que bóiam nas banheiras —
À beira da estrada.
Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura A criação do futuro...
E o da criança loura?
Vaga, no azul amplo solta Vaga, no azul amplo solta, Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.
O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente, A nuvem flutua calma.
E isto lembra uma tristeza E a lembrança é que entristece, Dou à saudade a riqueza De emoção que a hora tece.
Mas, em verdade, o que chora Na minha amarga ansiedade Mais alto que a nuvem mora, Está para além da saudade.
Não sei o que é nem consinto À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto Dor que a minha alma tem.