As visões de Santa Thereza
I
Os sons do bandolim . . .
Noite ...
Um vento frio e cortante zune furiosamente pelo espaço cheio de sombras...
Dentro duma pequena cella. ajoelhada e pallida, olhar extático, anãos fidalgas e finas erguidas em supplica, rosto levantado á semelhança duma flor muito perfumada e muito branca, Santa Thereza fita a imagem de Christo que resalta gloriosamente da parede alva e núa.
6 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Reza. . . Tem no olhar uma fulguração extranha . . . Depois se levanta abrindo muito os olhos como que para fitar uma paysagem longinqua. . .
Ilumina-lhe a bocca um sorriso inconsciente e vago ... O vento adormece e o luar penetra discretamente esse aposento que uma luz frouxa de lampada povôa de nevoas impalpaveis.
e aladas . . . Paira, um occulto mysterio em torno á figura angélica da freira, que, enlanguescidamente, scisma...
Vêem de fora os sons apagados dum bandolim ....
SANTA THEREZA
Donde vem esta musica, branda e acariciadora como um sorriso, abafada e tremula como um soluço?... Quem a estas horas, ousa ferir o silencio da noite e perturbar o somno das virgens AS VISÕES DE SANTA THEREZA 7 que sonham noivados á luz das estrellas radiosas e vividas? Talvez um noetambulo a passeiar pelas ruas desertas e mudas como um phantasma fugido dum cemiterio .. .
talvez um namorado junto ao balcão em flor da amante que alegre como as cigarras, lhe estende uma escada de seda abrindo os braços á espera que elle agil e elegante, capa ao hombro, gualgue os degraus, venturoso como quem sobe para um throno, contricto como quem se ajoelha ante um altar ... O luar talvez os espie por entre as nuvens e vá surprehendel-os no primeiro beijo, abençoando-os. . .
Ella deve estar linda como as raparigas que vão para a primeira comumnhão... elle deve estar inquieto como um soldado numa batalha decisiva . . . Vê dum lado a victoria, do outro lado a morte. Mas em breve esta incerteza 8 AS VISÕESS DE SANTA THKREZA
se dissipará e os seus labios entoarão um hymno de triumpho, ardendo numa mesma chamma, lavrados pelo mais forte incêndio... Em breve se ouvirão maciamente ruidos de beijos, ternuras de confissões e protestos ... E os braços della ficarão mais quentes e molles... os seios maiores, muito maiores . . .
(Pára . .. e estremece-se toda. Vê num balcão florido dois jovens noivos abraçados... Os cabellos da moça envolveos num manto de seda . . . Os lábios do rapaz scintillam e lançam chispas de voluptuosidade no rosto enlanguescido da amada ... Um leve rumor de beijos faz despertarem os ninhos que começam a cantar em honra ao ditoso par ... A lua como que se enternece e ri...)
São tão felizes! E eu sou tão desgraçada!
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 9 (Ajoelha-se, e um grito angustiosissimo se lhe escapa dos labios.)
Sou tão moça e já estou assim velha!
Pareço-me com estas mendigas rachiticas que morrem de fome pelas estradas, á luz torrencial do sol... Minha carne está murcha como um jardim sem orvalhos.
Trago no corpo um aroma de folhas seccas e de flores mirradas... Sou um ninho abandonado em que não pipillam mais passarinhos . . . Vivo num paiz onde só ha o inverno, paiz algido e monotono jamais visitado pela fada cantante e loira da primavera. Tenho nos seios duas sepulturas e as minhas mãos são cruzes erguidas num cemitério em que alvejam campas de recemnascidas. Dentro dos meus olhos ardem cyrios e tremem lagrimas ... Lembram um templo vasio, sem altares, no interior do qual crepitam luzes ante a imagem 10 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
funebre da minha desventura. Outr'ora. eu tinha na cabeça um ninho de cotovias, hoje ella está cheia de mochos. Todas as outras freiras quando me vêem, fitam-me espantadas e julgo até que resam pedindo pela minha salvação. Olham-me do mesmo modo porque eu olho os aleijados e os cegos. Comparo-me a uma lagoa envenenada e escura onde não voam garças nem florescem açucenas. Por que tamanho isolamento ? Por que tão grande desventura? — Aqui, sosinha, encerrada entre quatro paredes desta cella mysteriosa e branca, me definho pouco a pouco, todos os dias, como se dá com as plantas que nascem dentro das rochas, nos buracos das pedras, privadas de agua e de sol . . Meu Deus, porque negais a á agua á minha boca sequiosa e luz á minha vista enfraquecida?
Porque não foram eternos os dias da mi-
AS VISÕES DE SANTA THEHEZA 11 nha infancia, em Avila, quando vivia ao lado de meu irmão, que sorria ao ver-me sorrir e só era feliz com a minha alegria?
Porque não me voltam mais aquellas quentes manhãs de Domingo, em que eu ia assistir á missa e dar pão ás velhinhas rotas e enrugadas que esmolavam no adro da Igreja?
Minha trança cheirava como um vergel e meus labios cantavam como um ninho Dir-se-ia que a alegria, a luz, a primavera se encarnara em mim. Quem sabe?
Talvez fosse muito cubiçada pelos rapazes que me olhavam demoradamente, como encantados.
No emtanto ninguem possuiu esse thesouro. Fui pura, sou pura, morrerei pura!
Oh ! é muito triste dizer: Sou rica e vivo faminta! Tenho boca e nunca 12 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
serei beijada. Vivo acorrentada a um perpetuo desespero! Quero beijos de fogo que me queimem toda, apertos voluptuosos que me estrangulem. Sim! hei de repousar a cabeça tonta no peito de alguem que me estremeça e saborear phreneticamente os carinhos de alguem a quem ame.
Por ventura a luz que encerro nos olhos é destinada a morrer ou a illuminar escuridões, espancando trevas . . .
Porque, se sou tao moça. não goso aquillo a que tenho direito? Vem, mancebo de coração ardente e olhos languidos com quem todas as noites sonho e por quem chamo a todos os instantes; vem clarear com teus olhares a noite de minha alma.
santificar com teus beijos o martyrio da minha existência! (Desvairada, abre os braços e aperta com elles a imagem do crucificado que irrompe, magestosa, AS VISÕES DE SANTA THEREZA 13 calma, divina, na parede branca, numa irradiação esplendida. Olha-o com arrebatamento, e vê-lhe as chagas sangrando). Meu Guia, meu Pai, meu Deus!
Meu Dulcissimo Jesus de olhos compassivos e ternos, porque nao tens pena de mim ?
Porque não serenas minha alma tão chagada como teu corpo, que vejo fulgir maravilhosamente, tendo nos pés, nas mãos, nos braços e no rosto constellações de rosas vermelhas, papoilas desabotoadas em sangue ? . . .
Porque não me abençoas, estendendome essas mãos sagradas, banhando-me com esse olhar scismador e meigo?
Nunca se amou tanto como te amo agora! Meu Guia! Meu Pai! Meu Deus!
Meu Dulcissimo Jesus, porque nao me purificas com um beijo, um só, dos teus labios vermelhos ? Seria desde 14 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
então a tua mais fervida crente, o teu mais devotado adorador.
Um beijo de tua boca seria a minha mais alta recompensa! Ama-me, Dulcissimo Jesus. (Avança e beija carinhosamente a imagem . . . Depois se exalta, diz phrazes soltas, beija-o com mais ardor, como si tivesse enlouquecido. Não desvia o olhar para parte alguma e os seus seios entesam-se cada vez mais . . . De repente, empallidece muito, aterra-se e grita. Permanece alguns instantes de pé, immovel, como si tivesse sido acordada dum sonho terribilissimo. A contracção das mãos e do rosto denuncia o desespero que a esmaga e passado algum tempo desata em choro copiosissimo).
Perdão, meu Deus, perdão. Compadece-te de mim, o mais desgraçado dos entes!
Perdão, que eu não soube o que fiz!
AS VISÕES DE SAXTA THEREZA 15 Ha uns tempos para cá vivo como doida, querendo purgar os meus erros . . .
porém cada vez desço mais. Em vão peço á tua misericordia que me livro dessa tentação feroz!
Meu Deus, snpplico, não pela primeira nem pela ultima vez. o teu perdão.
Sou bôa ! Minha alma tem a bran-.
cura virginal das magnolias ao relento. . .
Se actos profanos mo marcaram a pureza, eu não fui culpada. Por teu amor quiz outr’ora offerecer minha cabeça ao alfange assassino dos mouros que não te adoram ! Por teu amor estou enterrada viva nesta estreita cella.
Ah! mas a falta foi irreparavel!... Estas irmãs do convento, estas ingenuas que tanto se admiram, que me chamam a Immaculada, a unica, como não ficariam espantadas quando sou-
16 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
bessem que sou a mais vil de todas, a unica que ousou profanar a imagem adoravel do crucificado! . . .
(Vai a um canto da cella buscar os apparelhos proprios para a penitencia.
Aperta em correntes de ferro os frageis pulsos, que se tornam arroxeados. Arranca uma grande quantidade de cabellos, torce os braços . . . Depois descobre os seios e fere-os com estyletes de aço ...
O sangue esguicha impetuosamente era múltiplos filetes. Com um ferro em braza queima os logares feridos, onde se abrem grandes chagas como escrinios fumegantes.
Acabada a penitencia, permanece a rezar por muito tempo. Então uma pomba muito branca, da côr dos jasmins e da neve, entra repentinamente na cella e vai pousar sobre o hombro de Santa Thereza.
AS VISÕES DE SANTA THE REZA 17 O semblante da freira toma um aspecto irradiante e consolador.
A POMBA
Martyr! Sacrificas-te ao amor de Deus e tens lagrimas como recompensa a tua abnegação; dilaceras a alma, rasgas as carnes queimando-as em holocausto á tua fé e não adias um allivio sequer!
Ha annos que te consomes resignadamente, sem queixas, por tudo que ha de sagrado e ainda não tiveste um premio, a não ser minha presença nos momentos de contricção e de arrependimento como este.
Regosija-te! Eu sou a companheira dos puros e dos que se arrependem. És venturosa, porque me tens ao teu lado ... e ai daquelles que não me co2 18 AS VISÕES DE SANTA THEBEZA
nhecem, e não se deliciaram jamais com a pureza dos meus encantos.
SANTA THEREZA
Salve, Pai de todos os que choram, Balsamo para todas as chagas. Allivio para todas as dores! Salve, tu que mandaste á tristeza da minha alma este grande consolo! Rouxinol que enches de harmonias o chãos das almas e transformas em ceo o luto dos corações. Salve!
(Dirige-se ao leito, reza, e adormece...) II
O mocho (Hora das matinas... No céo, o sangue da madrugada . . .
Medrosa, desaparece a lua. . . Apagam-se, uma a uma, todas as estrellas. . .
As nuvens lembram corvos ensangüentados com settas candentes no flanco. Os ninhos estão acordados e nas flores brilham ainda as gottas do orvalho, como si ellas tivessem chorado muito durante a noite. . .
Ouve-se o toque do sino que chamam as freiras á oração. . . Estas, en-
20 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
voltas nuns compridos vestuários escuros, resam em côro. . .
Terminada a prece habitual, Santa, Thereza se dirige á sua cella mergulhada ainda numa penumbra indecisa e queda-se a scismar. . .
Ao olhar para a cabeceira, do leito dá com um môcho hediondo e negro que a fita. . .)
SANTA THEREZA (olhando o môcho).
Quem és?
O môcho continua immovel, fitando-a friamente.
Quem és tu. que vens roubar-me a tranquillidade, perseguindo-me com este olhar penetrante que me dóe como se fosse um latego de fogo batendo sobre mim?
Donde vieste? Porque me fitas tanto e não respondes ás minhas SANTA THEREZA
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 21 perguntas? Immovel, á cabeceira do meu leito, furas-me com esses olhos redondos e maus, sinistros e apavorados. . . Teu silencio exprime tudo. . . Olhando-me, poes-me núa, mordes-me toda como a um cadaver os vermes famintos. . . Quando te vejo, soffro muito e é em vão que procuro distrahir-me e esforço-me para esquecerte...!
Não me largas mais. . .
Levas a fitar-me o dia inteiro, mudo como estas alvissimas paredes que nos cercam, frio como o vento que sibilla surdamente lá fora. . .
Pareces-me um algoz, mas um algoz cruel que não me mata duma vez, um algoz que se contenta, matando-me aos poucos.
Teu olhar é um veneno fluido que me enche de raiva e aborrecimento. És a penitencia de minha alma. Tua presença me asphyxia.
22 AS VISÕES DE SANTA THEKEZA
De longe como estás retalhas meu coração. . . porém, o retalhas com os olhos.
Por Deus, responde-me: Qual foi o mal que te fiz para me fazeres tanto mal?
(O môcho continua mudo, fitando-a calmamente).
SANTA THEREZA
Meu Deus? a presença deste agoureiro hospede é a maior tortura para mim. Por causa delle, não vejo belleza alguma no sol que rompre além á semelhança de uma galera carregada de ouro que uma explosão deslumbrante incendiasse transformando-a naquella enorme avalanche de brazas, que é uma apotheose á terra.
Olho para as nuvens, sangrentas como aguias feridas, para os campos AS VISÕES DE SANTA THEREZA 23 constellados de flores e de ninhos, para as borboletas que parecem estrellas errantes, sinto a viração matutina afagar-me, desperta em arminhos invisiveis e leves, reso pedindo um lenitivo á minha angustia motivada pela presença deste passaro satanico, porém nada disto faz com que elle me deixe socegada, no retiro deste convento.
Se olho o papoilal da aurora, as nuvens, os campos, acho tudo isso incolor e, ao voltar a cabeça, encontro-o a fitar-me ironicamente como sempre.
Oro, ajoelhada ante o altar, as mãos cruzadas numa prece fervorosa em que peço a Deus e á Virgem Maria para livrarem-me desse horripilante companheiro que me fita com insistencia, cheio de maldade e covardia . . . porém, se levanto a fronte, sinto cahir pesadamente sobre mim a 24 AS VISÕES. DE SANTA THEEEZA
bruma carregada e intensa do seu olhar.
Procuro lêr, mas não posso . . . não posso escrever, nem mesmo posso me recordar da existencia passada porque este môcho feroz me preoccupa, me subjuga, me pisa.
Se ao menos falasse, me dissesse quem era, donde vinha, o que queria de mim, talvez a minha dôr fosse menor.
Mas, assim, inclemente e impassivel como um envenenador, traiçoeiro como uma cobra . . . Quando o vejo, penso que meu leito se transforma em um tumulo. E
quem sabe se não veio dum tumulo?
Quantas vezes não piou nas galhas dos cyprestes, confundindo os seus gemidos com os uivos da ventania ?
E de que túmulo teria sahido? Do tumulo duma creança ? Do tumulo dum AS VISÕES DE SANTA THEREZA 25 velho? Do túmulo dum assassino? Foi com certeza de algum sepulchro mau que elle sahiu ...
Mesmo parece que em seu corpo está incarnada a alma dum assassino que, abrindo a campa, fugiu numa noite medonha para perseguir-me.
Dentro dos seus olhos ha fogos-fatuos, gritos e crepes.
Parece um idolo selvagem coberto de cinza e pó.
Ao vel-o, tremo como um prisioneiro que vai ser degolado . . .
Sinto calafrios, apertos no coração, tremores na cabeça; os olhos se me tornam inertes e baços e as mãos cahem-me fatigadas.
As vezes examino-me, apalpo bem os pulsos e os pés para certificar-me de que não estou acorrentada.
Depois então me lembro que é minha alma que está acorrentada ao 26 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
olhar deste martyrisador, preto e feroz, que, de azas encolhidas e olhos abertos, me queima, pouco a pouco, dolorosamente...
Produz em mim o mesmo effeito dum caustico no peito duma creancinha moribunda.
E não ha nada que diminua esse horrivel soffrimento.
Antigamente eu levava os dias inteiros a conversar com aquella pomba innocente e lactea que me estimava como a uma filha.
Depois das resas, ella me apparecia a rir, batendo as azas, como se me não visse ha muito tempo.
E vinha e pousava-me no hombro, falando-me em cousas santas e acariciavame, illuminando o meu coração com raios pallidos de lua e fulgores coruscantes de sol. Nas pennas trazia aromas desconhecidos, aromas proprios AS VISÕES DE SANTA THEREZA 27 talvez das flôres celestes o della, que também era uma flor.
Uma espiral de incenso se lhe evolava, constantemente do corpo, que parecia modelado em marfim.
Com o apparecimento desse intruso, foi se esquivando, se esquivando cada vez mais. . .
Ha dias em que a não vejo. No emtanto, quando eu era pequena, nunca me abandonava, e assim que senti morder-me o desejo do primeiro peccado, desappareceu para fazer-me visitas espaçadas que foram se rareando. Hontem, á noite, depois de um grande arrependimento, me pousou no hombro, consolou-me, fez-me dormir. A sua visita alegrou-me tanto! . . . Que immenso pesar não senti quando acordei e soube que a minha boa amiga tinha desapparecido, sendo substituída por este sinistro inimigo, que me cili-
28 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
cia a alma sem piedade alguma. Um presentimento implacavel diz-me que nunca mais tornarei a ver a minha saudosa consoladora.
(Dá um profundo suspiro... Inclina a cabeça tristemente, scismando. Tem no rosto uma suave expressão de melancholia.
Parece uma violeta prestes a morrer. . .
Olha vagamente para tudo que lhe fica em torno, á semelhança duma cega que derepente visse a luz e ficasse embevecida.
Espia pela grade da rotula para fora: O
sol refulge pomposamente no concavo do céo que se veste de galas... Grandes nuvens desformes correm no espaço como ondas de chammas que o vento empurrasse.
Ha uma alegria communicativa por tudo. . . A luz solar despedaça-se em crystaes faiscantes, divide-se em AS VISÕES DE SANTA THEREZA 29 faíscas multicores para cobrir a terra com um manto de rainha.
Muito além, realçando sobre o tapete da relva, se levantam arvores carregadas de fructos o de ninhos. Parecem cathedraes pintadas de verde. Subito, um gorgeio limpido e alto se ouve. O rosto de Santa Thereza toma, então, uma formosa expressão de contentamento. O môcho desapparece da cabeceira do leito).
Meu Deus, como me é grata nesse desterro ver arvores e ouvir ninhos! Como eiles cantam! Que agradável que é a sua musica!
Parece-se ás vezes com o grito das creanças, outras vezes com o soluço dos velhos.
Dir-se-ia uma miscellania de beijos, queixumes, prantos, supplicas e gargalhadas. Penso que dentro delles se escondem pequeninas lyras de cyrstal 30 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
que o vento tange, tymhanos de oiro que o sol fere ... e os passarinhos são como violinos de velludo vibrando no azul.
Lá está um casal de rouxinoes. Lembram dois noivos. . . Como se animam, espanejando as azas, unindo as cabeças na extremidade daquelle ramo que estremece, dobrando-se e elevando-se a cada movimento delles.
Levem estar neste mutuo galanteio desde que despertaram. O ninho talvez ainda esteja quente . . . e elles, mirando-o; hão de se lembrar do modo pelo qual o fizeram: Da palha que foram buscar muito longe, num matagal cheio de espinhos onde não corria um veio de agua . . . Das folhas cheirosas que arrancaram duma arvore secular e tristonha em que se abrigaram repletos de amor e languidez... dos gravetos que apanharam nos campos AS VISÕES DE SANTA THEREZA 31 *
e. depois, das pennas que arrancaram dos proprios corpos para encobrir-lhe as fendas e tornal-o mais confortavel. Também hão de se lembrar daquella terra vaporosa em que a femea se sentiu fecundada sob uma arcada de folha e foram muito distante para beber agua dentro duma concha côr de rosa que parecia um ninho cheio de lagrimas...
das excursões pelos jardins em visita aos pés de myosotes, que eram como creanças vestidas de azul, e os jasmineiros que eram como virgens vestidas de branco. . .
daquella vez em que foram, ao pôr do sol, cantar pelos vinhedos, cujo perfume embriagava, e sugarem o mel da mesma uva, pousados no mesmo ramo... das manhãs saudadas num canto unico, dos prados percorridos num só vôo... da angustia sentida por um delles pela demora do outro, julgando-o morto ou 32 AS VJSÕES DE SANTA THEREZA
prisioneiro, e do furor com que partiu, celere qual uma flecha rompendo o espaço, á procura do companheiro que voltava trazendo no bico uma flor de mel saborosissimo para sugarem-na juntamente.
Agora pensam nos filhinhos que em breve se implumarão para os acompanhar aos bosques e se reproduzirem, sentindo então o mesmo goso que elles sentem hoje.
E. agasalhados como duas flores num galho ou duas petalas de uma flor, talvez projetem um passeio á coluna que alem se ergue risonha e victoriosa como uma princeza.
Assim que o sol estiver mais ardente, partirão: darão uma volta por aquelles sitios pousarão no telhado duma casinha construida bem no cimo da collina, comerão daquellas fructas que de maduras parecem cahir, acari-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 33 ciarão aquellas flores lindas e immoveis como borboletas paralvticas, irão beber agua numa fonte que se despenha em maravilhosa promiscuidade de cores, á maneira de um cofre aberto derramando continuamente rubins, perolas, topasios, diamantes, amethistas, fios de ouro em pó, ondas de prata liquida. . . cantarão no alto dum magestoso carvalho desdobrado em palio sobre as hervas rasteiras; pousarão num alpendre do flôres doiradas que daqui não vejo . . . depois . . . depois voltarão aos ninhos, irradiantes e festivos, cantando, cantando.
Ahi dormirão serenamente, ao brilho esmaecido da lua . ..
E amanhã, e depois, e em quanto viverem, serão sempre carinhosos, gosando uma felicidade sem limites.
Como não devem ser gratos a Deus 3 34 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
que os fez tão ditosos, tão puros e languidos!
Os cantos entoados ha pouco pelos ninhos eram com certeza uma resa em acção de graça a bondade daquelle que proteje tanto as aves.
E assim vivem, sustentando-se de flôres e de beijos, essas joias errantes, esses namorados eternos, acolhidos, dois a dois, nos frouxeis perfumados e mornos dos seus pequeninos lares.
Todas as manhãs se entreabrem milhões de bicos num só idyllio, no idyllio sacratissimo do amor a que todos têm direito, menos nós, menos eu, enterrada viva entre essas paredes caladas. Não sei mesmo porque Deus me faz assim infeliz!
Porque, tendo eu uma carne tão cheirosa, me condemna á sombra e á solidão, onde, chorando, assisto ao em-
AS YISÕES DE SANTA THEREZA 35 murchecimento vagaroso da minha mocidade!
Para que tenho uns cabellos tão longos e uns seios tão brancos?. . . Se jamais haveria de ser beijada, porque me deu uma boca e encheu de labaredas meus olhos?
Ardem-me dentro do coração crateras que deviam ser extinctas e ainda não o são, brazas cobertas de cinzas e que revivem mais inflammadas ainda, ao menor sopro.
Porque nao nasci disforme, para ao menos não me julgar com o direito de ser amada?
Porque meus olhos enxergam, se choram todas as vezes que querem ver aquillo que nao devem ver?
Antes nascesse sem juizo, porque nem a minha cabeça pensaria no que não devia pensar, nem meu coração desejaria o que jamais poderei gosar.
36 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Sou como um viajante faminto e sedento caminhando para chegar a uma terra abençoada onde ha fontes frescas e pomares virentes. . . Apressa os passos, e á proporção que anda, vê irem-se affastando as fontes e os pomares, ate que afinal cahe em meio da estrada, ensangüentado e ferido, olhando anciosamente o cubiçado paiz que foge e se some muito ao longe, em uma tenuissima poeira de luz.
Meu Deus! parece-me que te esqueceste de mim. . .
Abandonaste-me como o vento que sacode as arvores, arranca-lhes as folhas, e vai. . . e não volta mais! . . .
Qual a causa deste abandono! Por ventura existirá alguém mais dedicado que eu pela tua gloria?
E, se é assim, porque me recusas o que não negas aos outros?. . . Porque. . . meu Deus, perdão! Sou uma AS VISÕES DE SANTA THEREZA 37 inconsciente perseguida por um eterno pesadello. . . Sinto cahirem-me dentro da alma avalanches de bronzes. . . Piedade !
Clemencia para mim, a mais peccadora de todas, para mim que traio o voto jurado e chafurdo-me na lama dos desejos brutaes! . . .
Perdão, Deus misericordioso, meu unico amor, minha esperança unica !
Ha um genio mau que me persegue .. .
Perdão! Sou innocente como as abelhas que matam as flores sem saberem o que fazem . . .
Tenho luctado muito, para ver se apago dentro em mim essa maldita chamma . . .
Mas é em vão que procuro extinguir o fogo o purificar-me com a execução de alguma ideia nobre!. . .
Debalde queimo as carnes, rasgo os braços, apunhalo os seios entu-
38 AS VISÕES DE SANTA THE REZA.
mescidos dum sangue venenoso o lascivo...
Perdão ! Eu sou fraca demais !. . .
(Com o semblante pesaroso e os olhos annuviados, despe a longa camisola, deixando as chagas descobertas... Aperta com os cilicios os hombros ensangüentados e os seios palpitantes ainda...
O contacto do arame sobre a carne viva produz contracções dolorosas no corpo desmaiado da freira. . . Dir-se-ia que as proprias chagas gemem . . .
Lembra uma rola a que se arrancassem as pennas . . . Seus olhos parece que foram pisados, tamanha é a tristeza delles...
Separa de novo o vestuario, deixando sobre os seios o cilicio pungente . . . Pesa por algum tempo . . . Pára e espanta-se como se estivesse vendo alguma visão aterradora . . . Subitamente, apparece o mô-
AS VIÕES DE SANTA THEREZA 39 cho á cabeceira do leito. (Santa Thereza fita-o e recua).
Santa Maria cheia de graça, condoe-te desta misera, que soffre como ninguem soffreu ainda!
Os martyrios infringidos aos christãos pelos bárbaros nada são, comparando-se ao meu.
Tem pena de mim! Santa Virgem Maria, tem pena de mim ! Livra-me das ideias profanas que tanto me perseguem, como também deste amaldiçoado passaro, cujo olhar é um azorrague para minha alma.
Sabes quanto tenho luctado por lvrarme delle, porém, até hoje todo meu esforço tem sido inutil. Porque tão grande castigo para quem não o merece? Não vês como tremo na presença deste môcho? Expulsaio para bem longe, minha Nossa Senhora!
Tem pena de mim, Santa Virgem Maria!
40 AS VTSÕES DE SANTA THEREZA
Tem pena de mim!
(Ajoelha-se de novo, rezando... Ha um choro celeste e suave no seu olhar doentio... estremecimentos constantes movem-lhe o corpo ciliciado . . . Tem a lividez morbida de quem é tentada por sonhos irrealisaveis . . . Olhando so para ella, vê-se logo que passa noites em claro ...
Sen olhar merencoreo obrigaria a rezar, qualquer que o enfrentasse . . . É doce como uma benção, incomprehensivel como um suspiro . . . Assim deveria ser o olhar de Maria Magdalena aos pés da cruz . . .
Em torno, um completo silencio... O
môcho, pousado á cabeira do leito, continua a fitar insistentemente a face macerada da santa.
Esta, depois do alguns momentos de abstracção, se ergue para apertar mais o cilicio ...
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 41 As feridas choram sangue... E, em meio de tanto desconforto, a figura de Santa Thereza se levanta magestosa, recta, illuminada e sublime, como a de uma enviada do céo, glorificada pela dôr, divinisada pelo martyrio . . .)
III
O Radjah O sol em pino doira os telhados das casas e incendeia as arvores, despenha-se uma catadupa de labaredas sobre a terra abrazada... Não se ouve o canto dum passarinho, nem o ruído duma aza ...
A aragem, abafada, talvez, fugiu para bem longe . . .
Inexplicavel torpor invade tudo e tudo domina . . .
Chovem pedrarias incandescentes na amplidão deslumbradora, como lan-
44 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
ças inflammadas na cabeça duma rainha. E esta riqueza triuraphante e magnífica penetra explendorosamento na cella de Santa Thereza, clareando-a toda... O mocho foge, insensivelmente.
Uma alegria subita povôa o modesto aposento, que se transforma num palacio oriental cheio de crystaes accesos.
Os olhos da santa abrem-se, extasiados . . . Suas faces tingem-se duma côr quasi rosea e sadia. . .
Abre ainda mais os olhos vendo dirigir-se para ella um radjah possante, de constellações no olhar e alvoradas coruscando nas vestes ... Os cabellos delle ardem e são cheios de estrellas, as suas mãos são brandas e trescalam a jasmins ...
Sustem o sceptro nos dedos e um céo no olhar . .
.
Quando caminha, deixa atrás de si um rasto de coriscos. .. Quando fala, AS VISÕES DE SANTA THEREZA 45 se ouve um hymno triumphante que faufarras estridulas entoam. Conta aventuras extranhas. Veio de longe, dum paiz azul, onde as águas são mais crystallinas e as mulheres mais volu ptuosas ...
Foi numa tarde de verão que. abandonando as favoritas cheirosas, partiu num batel feito de sandalo. para estas plagas . . . As velas de seda da luxuosa embarcação impelliam-n’a vertiginosamente sobre as águas placidas . . .
Já ia bem distante de seu paiz natal e ainda ouvia os soluços intensos das amantes, que choravam desgrenha-das, desconfiando de sua ausencia. E o batel singrou, cantando por mares de esmeraldas e lagos de saphiras . .. As sereias fugiam, assombradas, e acompanhavam a esteira argente a da maravilhos a embarcação, humildes 46 AS VISÕES DE SANTA THERESA
como escravas, supplicantes como mendigas...
À noite, abriam alas para poder passeiar livremente pelo céo a nebulosa do seu olhar sumptuoso. . .
As brisas iam contar ás ondas a historia phantastica desse amára que ouvira dez mil mulheres e mandara decepar cem mil cabeças.
E as ondas calavam medrosas, e a brisa tiritava em torno da sua fronte altiva. . .
Viajou durante duzentos dias e du-zentas noites, tão longe é a terra em que nasceu e se fez radjah. . .
E uma saudade profunda amor talhou os logares que o viram passar uma vez, para nunca man o verem. . .
E um desespero infernal envenenou as almas das que o amaram com ardor e foram ligeiramente amadas por elle. . . Todas morreram esvahidas AS VISÕES DE SANTA THEREZA 47 e exangues pouco depois de sua partida...
E talvez ainda as ondas perguntem ás estrellas, se foi morar com ellas o radjah assombroso que tinha constellações no olhar e alvoradas irradiando no manto; que sustentava um sceptro na mão e esmagara corações com os pés flammejantes. . .
E as estrellas não responderão, porque ninguem sabe para onde foi o radjah. . .
Podem pensar, porém, que foi visitar o sol, que não é rico e poderoso como elle. A
face de Santa Thereza resplandece com muito mais intensidade.
Está deslembrada, á semelhança dum verme que de repente se visse transformado em uma, estrella...
Ri, avança, abrindo os braços ao imaginado radjah, que veio de longes terras para visital-a e gozal-a. . .
48 AS VISÕES DE SANTA TEEREZA
Ajoelha-se, querendo beijar-lhe os pés cravejados de pedrarias extranhas, scintillantes como olhos de anjos...
Torce-se, corre, e delirante dá beijos, fala, geme, uiva, gorgeia, insaciada e frenetica, segura e feroz.
Sua carne arrepiase toda, embriagada, quente, palpitante. . .
De tão duros, os seios parece que vão rebentar em uma explosão luxuriosa . . .
arranha os braços, morde-se, fecha os olhos, abre-os de novo, tomada de um furor irreprimivel. Atira-se ao leito pesadamente a modo de uma pedra enorme que viesse do alto . . .
Revolve-se, revolve-se muito... depois abranda um pouco esta volupia, cerra os olhos e sonha:
Terra do Oriente . . . Céo limpidamente azul onde rutila um sol fascinante ...
AS VISÕES DE SANTA THEREZÁ 49 Longe, levantando-se entre morros, um palacio vasto magestoso, claro . . . Em torno delle arvores collossaes, amphitheatros espaçoso, galerias que se unem além. O silencio é perturbado pelo rugir das feras enjauladas e pelo cantar cadenciado das escravas . . .
No jardim explendoroso, que lhe fica em frente, reacendem flôres exquisitas e passeiam pavões.
Guardas ricamente vestidos em todas as partes ...
Num salão cheio de diamantes resplandecentes, onde se pisa em tapetes finissimos e cujo tecto de arabescos aureos foi feito por architectos vindos de regiões remotas, está em altissimo throno, — um radjah formoso, como o sol.
As purpuras que ensangüentam as paredes desmaiam ante seus labios, e 50 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
os marmores dos portaes são menos alvos que seus dentes ...
Os cabellos avelludados lembram rarissimo barrete de gorgorão que uma sultana mandaria sem desar algum de presente ao mais vaidoso sultão . . .
Mulheres abanam leques multicores em torno delle, orgulhosas de serem escravas de um senhor tão invejavel . . .
A mirra que arde nas caçoulas caprichosamente cinzeladas, deve ser menos cheirosa e entontecedora do que a sua carne robusta.
De repente, luminoso e viril, levantase e dirige-se a uma alcova attrahente como um paraizo.
Lá o espera uma virgem pallida e tentadora, uma mulher que nunca foi amada e vai sel-o agora pela primeira vez.
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 51 Guardas, de alfange ao hombro, zelam a entrada.
As escravas já queimaram proposi-talmente aromas provocadores, para excitar a luxuria . . .
Uma atmosphera morna, cheirando a seios, faz com que os olhos de ambos caiam languidamente ...
Escondido sob cortinas de fazendas carissimas, espera-os um leito carinhoso e macio, que os recebe sorrindo .. .
. . . . . .
Quantos estremecimentos, quantas vertigens não occulta o véo delicado das cortinas ondulantes!
Parecem até animados ao contacto febril de dois corpos que se apertam de duas boccas que se beijam.
De fóra, ouvem-se as pulsações, os fremitos, os grunhidos exhalados da alcova onde eíles estão . . . E Santa.
52 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Thereza, no enthusiasmo do sonho, retorcese em convulsões allucinadas.
Beija furiosamente o amante imaginário, que lhe suga os labios desa-brochados e frescos . . . A sua physionomia nem sempre tem a mesma expressão.
Ora é radiante e outras vezes agitada e inconsciente, segundo o arrebatamento do delirio, que é como um rio vindo de muito longe, aqui placido, correndo entre bambus e arvores frondosas, mais adiante carregado e crespo, convulsionando-se sobre as rochas e despenbando-se do alto com um fragor horrivel. O sonho continua . . .
. . . . . .
Ambos levantam-se do leito, vão ao jardim e depois,se dirigem ao logar onde estão as feras. Leões raivosos appa-rccemna grade das jaulas, escancarando, os olhos, ericando ajuba ameaçado-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 53 res... Elephantes horriveis passeiam distrahidamente de um para outro lado;
serpentes furta-cores, que se enroscam preguiçosas elevam a cabeça achatada para olharem o radjah com a amante . . .
Hyenas, tigres, hypopotamos, todas as feras emfim avançam, berrando sinistramente. De subito, surge o domador;
abre uma das jaulas e della foge uma fera hedionda. Arremette-se contra o radjah e arranca-lhe a cabeça, que evola scintillante de pedrarias e de sangue.
Santa Thereza dá um grito e desmaia.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Fora o sol doira os telhados das casas e incendeia as arvores firmes e erectas como esqueletos vestidos de chammas.
IV
O velho castanheiro — Santa Thereza está dolorosamente triste. As penitencias continuas maltrataram-na tanto que nem mesmo pode ficar em pé por muito tempo...
Os olhos estão fundos de chorar...
Parece uma viuva que perdesse o marido na segunda noite do casamento...
Deve inspirar compaixão até ás proprias rochas .. .
Um crepe mysterioso envolve-a da cabeça aos pés, como uma tunica som-
56 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
bria ... De quando em vez abre a boca para falar e não ouve o que diz. . . Pensa em morrer . . .
Vê um caixão branco, cheio de rosas e dentro, de mãos cruzadas, uma freira. . .
Em torno, as companheiras de convento, rezando ... Á cabeceira do esquite a imagem de Christo com os braços abertos para chamal-a, talvez. Depois a levam a uma sepultura muito fresca e pequena, onde fica dormindo eternamente. Empallidece e chora...)
Não sei porque não morri logo ao nascer. . . Soffreria muito menos . . . Todos os dias choro, velo todas as noites . . . Não tenho um só momento de descanço era minha vida ...
De hontem para cá soffri como ninguém soffreu . . . Por isto todos notam uma grande differença na minha physionomia . . . Envelheci, nestas pou-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 57 cas horas, vinte annos. As allucinações diabolicas que tive, as penitencias reparadoras, esse môcho que sempr, me acompanha, como um espião covarde, tudo isto me reduziu o corpo a um farrapo, a alma a um pantano... Antes morresse agora mesmo . . . Como estou linda naquelle caixão branco, tão perfumado como um berço, tão aquecido como um ninho! . . .
As mãs finas e frias postas em cruz sobre o peito.
O rosto empallidecido, vestida de roupagens alvissimas, pareço uma Deusa envolta em espumas. Vou a um funebre noivado, de palma e capella, tranquillidade nos olhos, sorriso na boca. As velas que ardem em torno ao meu esquife e bruxoleiam, parecemse com as minhas illusões, que também se consumiram devido ao fogo que as alentava. . .
58 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Christo erguido na cruz, com seu resplendor de prata, abençoa-me e ha de guiar-me até o céo, que se illumina para me receber.
Como as outras irmans resam!
Que sinceridade na sua oração ! Estão pedindo pelo descanço eterno de minha alma a Deus, Todo Poderoso, a quem tanto amei e que não me negará as delicias do paraiso.
Meus conhecidos terão saudade de mim, e meu irmão ha de chorar todas as vezes que se lembrar da irmã, ausente para sempre.
Os homens falarão no meu nome com respeito e esta cella será venerada, porque nella morei e martyrisei-me emquanto vivi...
Assim que o sino tocar, serei carregada, entre lagrimas, e depositada numa sepultura muito nova onde ficarei dormindo, toda de branco, linda VISÕES DE SANTA THEREZA 59 como uma noiva! Depois, encher-me-ão a loisa de flôres, e permanecerei sósinha, feliz, cheirosa, casta, dentro do leito que me aguarda.
Mais tarde, quando alguém visitar estes logares, terá certa veneração por mim, pela minha amargura infinita... Estes sitios serão interrogados como o é hoje aquelle velho castanheiro, sob o qual tantos namorados se beijaram. . .
Na sua magestade, elle conta-nos historias bem emocionantes, romances bem pungentes. . . Hoje está um pouco enfraquecido.. . mas também já tem vivido tanto!
Não cantam ninhos entre seus ramos e, embora reverdeça em todas as primaveras, é sempre austero, mergulhado numa concentração melancholica.
Ninguém sabe a época em que bro-
60 AS VISÕES DE SANTA THEREZA.
tou á superfice da terra . . . As pessoas mais velhas, da cidade, quando se.
entenderam já o acharam nesse mesmo estado.
Viu nascer todas essas outras arvores, e morrerem muitas, assistiu á edificação deste convento e ao enterro de todas as freiras, que já se foram . . .
É o patriarcha do logar. Impõe-nos um profundo respeito com essa austeridade solemne que tem . . .
E como se vissemos a casa onde nossos paes nasceram e expiraram nossos avós.
A viração acata-o reverente e, assim que parte alguém para o cemiterio, elle chora talvez de pezar, talvez de alegria. O sol doira tudo, menos a coma do envelhecido castanheiro, e a lua, quando se esbate em suas ramas, fica mais transparente, mais diaphana... Viu os amores de muitos, jo-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 61 vens e depois assistiu aos dos filhos ílestes. . .
Talvez tivesse presenciado hoje a paixão dum galante casal, cujos netos hão de se amar também á sua hospitaleira sombra, muitos annos depois.,.
Nelle se implumaram e morreram milhares de aves, desabrocharam e feneceram milhões de flores ...
Já testemunhou innumeras vezes o raiar do sol e ha de contemplar outras tantas vezes o surgir da lua . . .
Conserva-se inalteravel, sempre com a mesma severidade, quer na primavera, quer no inverno . . . Nunca ri, nelle jamais gorgeia uma andorinha. Parece feito de pedra, tão insensível é . . .
No emtanto, dizem que antigamente era todo constellado de ninhos e de flores.
Embalsamava os arredores com seu aroma... De manhã cedo, havia 62 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
uma orchestra a cantar-lhe pelos galhos floridos e verdes. Isso porém se dava antigamente... Não se sabe ao certo a causa desta subita mudança. Correm lendas sobre o extranho phenomeno :
Dois jovens esposos que se idolatravam, costumavam conversar todas as tardes em baixo de sua copa frondosa . . .
Uma vez um delles riscou no tronco os nomes dos dois, entrelaçados um no outro...
A arvore cresceu muito mais e fez rebentar flores sobre os traços gravados. . .
Os esposos, porém, com o perpassar do tempo, foram envelhecendo, até que um dia a velhinha morreu. . . O companheiro lhe abriu a cova sob o castanheiro, que sabia toda a historia dos seus amores e tinha sido a tes- AS VISÕES DE SANTA THEREZA 63 temunha unica dos seus arrebatamen-tos. . .
No momento em que o cadaver da anciã foi-lhe depositado junto á raiz, elle ficou mudo, sem flores e sem ninhos, os ramos curvos para o solo tremendo. . .
Rapidamente os passarinhos o abandonaram e elle ficaria só se não fosse o velhinho, que nunca mais se affastou do logar onde estava enterrada a eleita do seu coração. . .
Todas as tardes, ás horas do costume, tropego, amparado a um bordão, cabeça alva como um gorro de neve, mãos sem tacto, apalpando plantas, lá vinha o desgraçadinho viuvo chorar sobre o jazigo da esposa querida, que o amara tanto.
Uma noite o anciãosinho não voltou a casa; foram procural-o e encontraram-no morto junto ao sitio em que 64 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
estava sepultada a saudosa companheira.
Enterraram-no immediatamente naquelle logar e a lua assistiu-lhe áinhumação e inundou-lhes as sepultu-ras de luzes. . . Desde então o castanheiro ficou assim pensativo chorandofolhas sobre os tumulos dos seus antigos visitadores, que nunca mais verá. . .
Ás vezes parece ate que vai rezar e estende piedosamente os galhos como a pedir clemencia pelas almas daquelles que dormem junto ás suas raizes, sobre as quaes tantas vezes se beijaram.
Nas noites de lua — dizem todos, —
quando no sino batem doze badaladas, elles são vistos conversando dis-trahidamente em baixo da arvore, que se accende e enche-se de ninhos. . . Eu nunca vi. . .
Lembro-me agora que uma vez #
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 65 cheguei a vel-os. . . porém fechei logo os olhos, tão grande foi o meu mêdo... Por isso não gosto de espiar para fora, quando a lua explende. . .
Desde esse tempo, a sepultura dos lendarios esposos é o ponto preferido pelos namorados. No annoso tronco do castanheiro estão escriptos centenas de nomes de que hoje restam simplesmente vestigios.
Muitos já foram totalmente apagados, e os que ainda se notam serão em breve substituidos por outros. Ha pouco tempo foram vistos ali, abraçados e de frontes unidas, dois amantes chorando. Não se deixaram conhecer, nem voltaram mais ao poetico retiro. Julga-se serem foragidos de outras regiões que, passando por aqui, desejaram conhecer o tão celebrado castanheiro, continuando depois a viagem interrompida.
5 66 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
O que não se pôde explicar é o motivo porque choravam. Parece até um absurdo misturarem-se prantos ás caricias...
Ninguém soluça quando é amado e ama.
Venero religiosamente um mau-soléo erguido pela natureza a dois esposos que se idolatraram durante a existencia, e talvez continue no mesmo arroubo na morte. Sua vida tem muitos pontos de contacto com a minha.
Ambos fomos ditosos: elle teve flôres e ninhos: hauriu perfumes o escutou musicas, hoje tem saudades e gemidos ...
eu tive crenças e tive sonhos: em meus labios cantaram risos e em meus olhos fulgiram esperanças, hoje tenho queixas nos labios e lagrimas nos olhos. . .
Existe, porem, uma grande differença entre nós dois: elle protegeu amores e por isso, é, foi e será amado; AS VISÕES DE SANTA THEREZA 67 eu ... eu sempre fui esta que hoje sou, indifferente a todos e a tudo, embora sequiosa e faminta, elle floriu, pelos seus ramos correu e ainda corre a seiva que o alenta, eu fui sempre intacta e esteril, sem ter jamais um dia de satisfação completa.
Quando o vejo, fico mais consolada; sua figura tristonha anima-me ás luctas, como tenho feito até agora.
Nos dias como o de hoje, em que me sinto perseguida pelo môcho e tentada pelo peccado, depois de ter usado e queimado os seios, em reparação ás minhas faltas, só me julgo perdoada ao deparar com o meu amigo, o martyr que tem soffrido tanto, resignado, calmo, impassivel. Elle me diz. em sua linguagem muda, que devo luctar, sem esmorecer .. . Então me experimento com forças bastantes, para realisar a idéia que a lento ha tanto tempo, 68 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
embora me sacrifique inteiramente e seja tardia esta ventura.
Hei de destruir todas as barreiras antepostas ao meu caminho, para, no futuro, ver feito realidade o meu sonho. E
isto será a minha rehabilitação aos olhos de Deus, a quem tenho offendido muito.
De agora em diante, tu serás o meu guia, meu conforto, apostolo consolador que me enches o desterro! Ensinar-me-ás a esquecer este môcho que ha tanto tempo me cilicia com o olhar; a conter os impetos de minha carne hoje victoriosa, amanhã vencida e algemada. Comtigo aprenderei e terás em mim um adorador, porque me parecem que em teu ar solemne e mys-terioso anda a alma de minha mãe procurando desimpedir a tortuosa estrada, que tenho em frente a mim.
(Ouvem-se os sons dos sinos cha-
AS VISÒES DE SANTA THEKEZA 69 mando as freiras para rosarem as Ves-peras . . . Santa Thereza, commovida e terna, sabe da cella . . . deixando-a immersa em desolação completa .. .
O mocho que estivera quasi todo o dia á cabeceira do leito, desapparece talvez para acompanhar a Santa, numa perseguição perpetua . . .
A toada languorosa e plangente da oração atravessa agora por todas as partes do convento, produzindo o effeito duma orchestra a tocar musicas funebres dentro duma catacumba fechada ou mochos e corvos grasnando sobre lousas, numa noite sombria . . .)
V
A Iua Crespusculo ... Vaga um mysticismo nebuloso pelo espaço, onde a brisa parece arrastar véos de noivas e crepes de viuva ...
Nuvens caladas como freiras rezando, desusam gravemente, envoltas nuns tons enfraquecidos da luz . . .
Ha o mesmo silencio que se nota no quarto dum moribundo . .. As vezes até parece que se ouvem soluços reprimidos pelo arvoredo e cahem lagrimas sobre o mundo inerte . . .
72 AS VISÕES DE SANTA THERESÜA
Cantam aves desconhecidas em torno das casas petrificadas e gelidas, choram extranhos arroios sob o solo. . .
Uma andorinha gorgeou ao longe. . . e este gorgeio rompe tranquillamente o ar e enche-nos todos de um certo temor.
E como subita alfinetada que pungisse inesperadamente um homem adormecido...
Assim deve ser o choro duma creança sem pão.
Qualquer som repercute logo em todas as direcções e estes gemidos successivos fazem pensar que se está num hospital cheio de tisicos e variolosos. Lamentações de filhos vendo os pais agonisantes, queixas de irmãos se despedindo de irmans, estrangulamento de aves dentro dos ninhos, tudo isto é suggerido pela agonia solemne da luz.
Na amplidão, esfusia agora um AS VISÕES DE SANTA THEREZA 73 vento frio, dando a ideia duma oração a suspirar nos ermos corredores dum convento enorme. . .
O vento, abranda-se em uma leve aragem que rescende a benjoim, como se tivesse passado por grandes lagos, de aguas cheirosas. . .
Murmura nas folhas, cicia, chora, ri, entra mansamente pela cella de Santa Thereza, a modular uma canção muito sentida.
A sua passagem, o religioso aposento toma um aspecto vaporoso. Parece encherse de rolas brancas e borboletas roxas. . .
Pelo tecto desabrochain violetas e goivos. . . Santa Thereza está ajoelhada, rezando. . . Lembra um anjo de marmore que se animasse... uma santa abandonada na terra. . . Nunca um olhar foi tão doce e uma face tão bella... Limpida resplandescencía de 74 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
ouro circumda-a toda, á semelhança duma chlamyde transparente e fulgida. . .
Por vel-a rezar, dir-se-ia que o olhar de Christo se enternece como os das mães, quando amamentam os filhinhos. . .
Santa Thereza, depois de levar muito tempo abstracta se ergue e medita. . .
Insensivelmente abre os labios sem cor, e exclama ,com voz pausada:
«Não me move, meu Deus, para querer-te O céo que me tens sempre promettido, Nem me move esse inferno tão temido Para deixar por isso de offender-te.
Tu me moves, meu Deus: move-me ver-te Pregado nessa cruz e escarnecido, Move-me ver teu corpo tão ferido, Move-me a angustia que te fez inerte. AS VISÕES DE SANTA THEREZA 75 Move-me teu amor de tal maneira Que eu te amára, se o céo não fulgurasse, E não havendo interno, te temera.
Deste amor a minha alma nada espera Porque, se quanto sonho não sonhasse, O mesmo que te quero te quizera.
O original deste soneto é o seguinte:
A CHRISTO CRUCIFICADO
No me mueve, mi Dios, para quererte El cielo que mi tiennes promettido.
Ni mueve el inferno tam temido Para dijar por eso de offenderte.
Tu mi mueve mi Dios; mueve-me el verte Clavado nessa cruz y escarnecido Mueve-me el ver tu cuerpo tan herido, Mueve-me las angustias di tu muerte.
Mueve-me enfim tu amor de tal maneira Que, aunque no hubiera cielo, yo te amara, Y aunque no hubiera inferno te temera. 76 AS VJSÒES DE SANTA THEREZA
No mi tiennes que dar porque te quiera.
Porque, si quanto espero no esperara.
Lo mimo que ti quiero te quisiera.
SANTA THEREZA DE JESUS.
Continua arrebatada, a fitar a imagem de Christo. . .
Os ultimos vestigios da luz esmaecem . . .
esmaecem . . . e apagam-se.
Legiões de trevas invadem vagarosamente a cella, que se veste de luto como uma orphã ...
No céo apparecem as primeiras es-trellas...
Venus scintilla vivamente entre as outras todas, destacando-se, como uma irmã mais velha . . . Santa Thereza accende a pequena lampada que começa a derramar uma luz mortiça pelos moveis á semelhança dos olhares dum martyr. . . As trevas fogem atropelladas e opera-se uma verdadeira resurreição na humilde cella... AS VISÕES DE SANTA THEREZA 77 Toda a luz parece convergir sob os rostos de Christo e de Santa Thereza. As chagas do crucificado animam-se lembrando escrinios espiritualisados... A carne da santa combure a modo de um alabastro dentro do qual ardessem reptis de fogo ...
Bruxoleia um crepusculo de outono nos olhos pensativos e quebrados . . . e talvez seja esta a origem da encantadora poesia que lhe povoa o aposento. Continua a falar a meia voz. ora rezando ora sorrindo, dando a ideia de uma flor murcha que reverdecesse. Pouco a pouco, uma esteira do luar entra pelas frestas do tecto envolvendo o convento inteiro em uma tunica branca ... A lua aponta no céo, rodeada, de nuvens e de estreitas.
Santa Thereza eleva a cabeça para ver o desabroohar da lua ...)
Lá vem a lua! E como vem bonita!
78 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Que lindo o nimbo que a circumda! Parece uma rainha prestes a ser coroada! As nuvens acompanham-na em numeroso sequito, como se fossem escravos ... O
espaço é o throno onde ella se assenta rodeada de estrellas qual Nossa Senhora de anjos, e meus olhos de lagrimas . . .
Suppre-me a falta d'aquella pomba que irradiava com igual luz e igual encanto!
Não sei o que sinto quando a vejo assim vir assomando magestosamente naquella escadaria azul e vestindo do prata tudo que lhe fica em baixo. Envolve as flores em rendas incandescentes e alvas, caia os rochedos pretos e informes, cristalina o dorso dos rios illumina as flores tão impenetraveis, dando-lhes a sumptuosidade de templo, enche de affagos os ninhos occultos entre os ramos das arvores, clareia as AS VISÕES DE SANTA THEREZA 79 casas sem lume, é um pharol para os navegantes e serve de guia aos mendigos que tremem pelas veredas traidoras desviando-os dos abysmos, defendendo-os dos espinhos e das urzes.
Quando a vejo, dobro os joelhos.
impellida por uma força superior e tenho mesmo vontade de rezar.
Voto-lhe uma grande veneração porque ella me lembra uma hostia levantada em um altar . . . e o vento nessas horas é como um coro a entoar psalmos de agradecimento, e as arvores são fieis que levantam os braços implorando compaixão, e o olor dos jardins é o incenso derramado por milhões de thuribulos . . .
A natureza concentra-se, mal vem surgindo, entre alas de nuvens o estrellas, radiosa e calma, a soberana de rosto alabastrino e olhares pallidos...
80 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
E a eterna confidente dos que soffrem e dos que amam ...
Seu fulgor enxuga lagrimas e cicatrisa feridas . . .
Talvez viesse de muito longe a mandado de Dons para consolar os afftictos e alentar os desesperados . . .
Quantas e quantas paisagens commovedoras, que de scenas tristes e felizes não tem presenciado, fulgurosa, scintillando na altura !
...Despedidas de filhos, partindo em busca de riquezas, e desesperos de mães chorosas e aterradas que temem não mais tornar a vel-os.
Freiras, como eu, a soluçar enjauladas no silencio impassivel dos conventos... ou a lacerar as carnes virgens em disciplinas terribilissimas...
Marinheiros em pleno oceano, cantando canções de sua terra, com a .#
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 81 guitarra gemedora entre os dedos, e a saudade na alma.. .
Pastores e camponezes a bailar como creanças travessas por verem como está prospera a seara o como os campos estão floridos... Viajantes, entro cordilheiras e barrancos, guiando-se por ella para se livrarem de imprevistos assaltos...
Peregrinos saudosos, pensando nos filhos que talvez nao se lembrem d'elles...
Guerreiros que de espada á cinta, armadura ao peito, seguem pensando no ataque em um valle cheio de poeira, que depois se encherá de cadaveres...
Prisioneiros a chorar, pedindo que a noite seja muito longa para terem mais vida, porque ao crepusculo matutino o sangue delles se confundirá com o da madrugada que lhes illuminará as cabeças decepadas...
6 82 AS VISÕES .DE SANTA THEEEZA
Doidos que, furiosos, gritam e blasphemam, ameaçando o céo com o olhar, ameaçando os ventos com a voz, ameaçando o mundo com as mãos...
Poetas devaneiando placidamente, ora sorrindo, ora cantando, ramos de flores nas mãos, coroas virentes na fronte, desfolhando rosas por veredas, infinitas e azues....
Rolas em carreias mutuas, dentro dos ninhos... Noivos, aos beijos, braços de um enlaçados em torno do pescoço de outro, peitos unidos como querendo que os corações se contundam... Libertinos, mordendo carnes, embriagadoras e mornas, sugando os lábios murchos, trincando nos dentes, seios fanados, comprimindo lubricamente ao peito faces de mulheres perdidas, que lhes lançam os braços como cobras magnetisadoras e lhes entre-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 83 gam o corpo como attrahentes taças repletas de licores envenenados. A estas horas a soberana dos espaços deve estar testemunhando todos esses quadros em differentes pontos do globo... Sim, está, mais venturosa que eu, presenceando beijos escandalosos de rameiras e osculos apaixonados de noivos, ouvindo phrases loucas de libertinos e musicas angelicas de namorados, gargalhadas de luxuria e avelludados gorgeios de amor...
Está vendo isso tudo e ha de sonhar cousas mais bellas ainda. Talvez sonhe numa formosissima nuvem côr de lilaz dois jovens amantes; duas bocas soletrando o mais formoso canto do formosissimo poema do amor. Um cortinado de estrellas esconde-os de tudo que lhes fica perto... Em torno, um silencio sepulchral.
Nem a viração ouza profanar a fe-
84 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
licidade que palpita dentro da nuvem lilaz...
Adivinha-se, porém, que ha algum celeste mysterio doirando o alado ninho escondido sob arcadas de astros... Apertos, beijos blandicias, carinhos, allucinações, extasis, delirios emfim... Dizem-no a palpitação desordenada e extranha que se nota por fora, o calor em que arde o setim do envolucro... Corre um enthusiasmo arrebatado por todas as partes... E a nuvem vai-se transformando... Enche-se e fica, pouco a pouco, mais clara, mais transparente, mais leve... A principio, a musica que sahe de dentro, o perfume e o avelludado della faz parecer que se metamorphoseia em um ninho... Como que arruinam pombos em seu interior... A
alteração continua cada vez mais accentuada e agora a nuvensinha se transfigura num chalet azul AS VISÕES DE SANTA THEREZA 85 celeste, occulto entre arvores farfalhantes e rodeada de jardins onde passeiam dois anjos.
Depois se illumina completamente e_muda-se num grande altar cheio de luzes, flores e incenso, em que se erguem, rodeados de seraphins que tangem lyras, os noivos como dois anjos em uma apotheose deslumbradora e franca, acciamada no firmamento em festa.
Corre uma inexprimivel alegria por tudo e um frenesi delirante invade o céo, emquanto ao altar se eleva sempre radiosa e explendida, levando o abençoado par com um cortejo de estrellas, que abandonaram a sua rainha para acompanharem em procissão a gloriosa nuvem que se alcandora e desapparece além numa irradiação de alvorada, depois deste passado triumphante pela galeria illuminada e branca dã Via-Lactea...
86 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Como te invejo, lua scismadora e pallida, que surges calcando nuvens, tão carinhosa e bôa como Nossa Senhora, a rir, enfeitada em meu pequenino oratorio...
(Hesita, meditando... Depois toma um ar arrogante, carrega as sobrancelhas, franze um pouco a testa...)
...Mas de que serve seres rainha si não podes obter tudo que desejas? Ah! foi para não poderes compartilhar os gosos alheios, os prazeres do mundo, que Deus te collocou tão alto... Porém qual a vantagem que ha nisso ?!
Presenciar scenas amorosas, assistir a delicias de outrem, ouvir beijos cantando em labios de coral como cotovias sobre papoilas, ver vulcões e incendios explodirem impetuosamente em olhares extranhos, arreboes esbrazeando céos de primavera, e saber que AS VISÕES DE SANTA THEREZA 87 não poderá ser amada, que não amará nunca...
É o mesmo que se nascesse velho e alquebrado para assistir ao goso dos outros sem poder usar deste privilegio a que tinha direito, mas que a fatalidade lhe negou..
Deves soffrer tanto quanto uma creança muda que vê os outros falarem e não pôde falar, cantarem o não pode cantar... Ou como um passaro engaiolado que vê além, fora da prisão, campinas verdes, arvores novas, entreabrir de bicos junto de ninhos cheios, bater de azas ao redor de flores abertas. . .
Desgraçada! És uma rainha tornada freira, uma princeza transformada em mendiga! Tua luz conta-nos a historia do desespero que tens na alma, a causa do teu pranto derramado sobre a terra que não te inveja 88 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
apezar de não ser tão formosa como tu.
E outro não poderia ser o motivo da magna que te ensombra o rosto pendido, oh languida princeza sem throno, nem cortezãos! Vês tudo que pôde açular-te os desejos famintos para te martyrisares mais, melancholioa sultana dum paiz deshabitado e deserto...
Quando surges, desmaiada e tremula no céo, tenho muita pena de ti, da tua cabeça alva exposta á neve, da teu olhar velado que morre docemente nas trevas, pobre Tantalo do azul!
Então penso que és uma velhinha,.
cabeça toda branca, subindo por um monte escarpado, segura a um bordão, em caminho de casa... Por isso hei de querer-te mais de hoje em diante....
Respeitar-te-ei como se fosses minha.
mãe... AS VISÕES DE SANTA THEREZA 89 Substituirás a pomba cor de leite tão minha amiga que, sem se despedir de mim, desappareceu para nunca mais voltar... Em ti e no velho castanheiro verei de meus mestres e meus pães, que hão de me ensinar a fazer voltar a encantadora ave que fugiu e eu estimava tanto. Como em dois sublimes exemplos, me animarei a luctar pela idéia que desde muitos annos nutro... (Uma nuvem negra encobre por alguns instantes a face da lua que se turva).
Meu Deus como está feia a minha amiga! Recorda uma louca descabellada e nua a correr sobre rochedos ásperos e escarpados... Como envelheceu em tào pouco tempo ! Seu rosto é encarquilhado como o de uma nonagenaria... Tem na luz o brilho funereo dos fogos-fatuos que bailam alta noite nos cemiterios, enroscando-se aos bra- 90 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
ços hirtos das cruzes... Dir-se-á que vai morrer daqui a poucas horas... Como não tem soffrido a minha resignada irmã! E é preciso salval-a! Não a quero triste ! Não a quero triste! (A nuvem adelgaça-se e deixa a lua completamente descoberta. . . Nesse instante o sino toca, convidando as freiras á oração... Santa Thereza parte, olhando espantada para o môcho, que desapparece).
VI
Soror Mathilde (Terminada a oração da noite, Santa Thereza volta, radiante e satisfeita como uma creancinha... Canta-lhe no olhar bondoso uma primavera de conforto e bem estar... Sua face toma certa expressão nova e sadia... Ri, sem querer, fala, caminha, inquieta, pura e feliz.., Este contentamento communica-se a tudo que a cerca... Sua presença alegra até as coisas insensiveis e anima o que é inerte...)
Não sei o que sinto quando rezo...
92 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Minha alma transporta-se a regiões desconhecidas, qual uma aguia a demandar uma plaga não descoberta ainda... E é tão agradavel esse arroubo !... E esse extase é tão doce !... Como que sinto mãos de velludo acariciarem-me a face, olhares de arminhos ungirem-me toda...
Ouço labios occultos a ciciar-me phrases suaves, como se fossem harpas eoleas gemendo em mãos de santas ...
Abre-se ante meus olhos deslumbrados uma paisagem bellissima : é um paiz doirado onde se engastam extensos jardins e borboleteiam sonhos... Conduz-me levemente por suas veredas fascinadoras uma fada de tranca, muito comprida e riso muito perfumado... Veste uma gaze diaphana que lhe cahe até os pés respeitosamente envolvendo-a em neblinas... Na mão AS VISÕES DE SANTA THEREZA 93 direita leva um ramo de oliveira, simples e carinhoso como seu olhar...
Pela mão esquerda conduz-me por entre as ruas lucidas que contemplo enlevada... E a fada segue, enchendo tudo de galas, como se fosse uma celeste mensageira vinda, de além para visitar os passarinhos e as borboletas...
Então goso o arrebatamento que as noivas elevem goza ao serem beijadas pelos noivos, esse arrebatamento que Soror Mathilde sentia nos braços daquele a quem tanto amou e por quem foi tão amada... Soror Mathilde é a freira mais triste deste convento...
Um olhar não pôde ser mais dorido que o della, nem uma voz tão queixosa...
Quando reza pede talvez a Nosso Senhor pelo descanço eterno do moço de quem nunca se esqueceu e por quem nunca seria esquecida, se ella 94 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
morresse e elle lhe sobrevivesse... Um amor infeliz obrigou-a a ser freira... É muito tocante a historia da sua vida...
Ninguem pode ouvil-a sem chorar:
Eram duas creanças. . . Elle em toda parte, na terra, no mar ou no ceo, cria vel-a rindo-se, a abrir-lho os braços radiosa, aureolada de bençãos... ella via-o em tudo, satisfeito, prometten-do-lhe affagos, jogando-lhe beijos. . . Uma vez — a primavera acordava os ninhos e entreabria os cálices das flores — foram passeiar pelos vergeis, esquecidos do mundo, a pensar unicamente no affecto que os dominava...
Dirigiram-se á envelhecida arvore tao procurada pelos namorados, e cujas galhas servem de mausoléo aos dois celebrados amantes, que dormem agora junto de suas raizes vigorosas... Chegados ahi, se enleiaram amorosa- AS VISÕES DE SANTA THEREZA 95 mente, e o velho castanheiro os acolheu á maneira dum avô, já sem filhos, que encontra, depois de longa ausencia, o unico neto, derradeiro rebento duma prole quasi extincta.
Viu-se reproduzir de novo a mesma scena a que assistira tantas vezes, beijos que outros amantes trocaram tambem antes que elles fossem celebrar o mesmo ritual, a que elle assistiu e assistirá eternamente...
Depois o moço entrelaçou seu nome no nome de Mathilde em arabescos delicados, sobre a casca rugosa do tronco, que tornou a sentir, nem pela primeira nem pela ultima vez, a dor deliciosa desse delicioso supplicio...
O tempo correu e elles foram crescendo em annos e em esperanças, assim como duas plantas que se enchessem de flores para vel-as depois, encravadas de espinhos e murchas.
96 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Cada vez ficavam mais apaixonados e ternos... De manhã cedo, aos primeiros rubores do sol, elle sahia, voltando carregado de flores para atirar sobre a noiva que o esperava, toda de branco, á porta do jardim... Vinha talvez fatigado, mas um sorriso della lhe recompensava todo o seu cansaço...
Depois sabiam a passeio pelos caminhos orvalhados ainda, vendo as aves que começavam a levantar as cabecinhas de dentro dos ninhos suspensos e baloiçantes...
Colhiam tantas rosas que, não lhes agüentando com o peso, as lançavam ao chão, sorrindo trefegos. Em meio da innocencia divina da natureza, seus beijos eram uma extranha linguagem só comprehendida por elles... Tinham sonhos assim. Uma casinha na garganta dum outeiro. . . dentro de florido jardim cheio de repuxos e pombaes, AS VISÕES DE SANTA THEREZA 97 donde olhariam o mundo com desprezo, felizes, summammente felizes... De lá ficariam muito mais distante da terra e muito mais porto do céo... Poderiam conversar todas as noites com os anjos e o luar...
A cada beijo delles, desabrochariam rosaes na terra, e despontariam constellações no azul. . .
Durante o inverno, as andorinhas emigrariam para o telhado da casinha, onde a primavera seria eterna e o sol sempre o mesmo.
Quer de dia, quer de noite, as meigas aves cantariam... e cantariam até morrer, bebendo o orvalho das flores, sugando o mel das corolas abertas... Borboletas pousariam nos cabellos delia, julgando nelles ver o sol quando esvoaça e resplandece pelas areias aridas, enchendo-as de cambiante e garrida vegetação.E como seria bom 98 AS VJSÔES DE SANTA THEREZA
vel-a com a fronte circumdada do azas e a boca circumdada de riso, cantando pelas pradarias em flor!
Sahiriam de mãos dadas, mal rompesse a aurora, para verem as estrellas desmaiar á luz estonteante e forte dos seus olhos ardentes, a briza emmudecer por ouvir-lhes a fala e as flores se desabotoarem ante suas bocas apaixonadas o frescas.
E então que festa! As aves em bando cantariam a voltear-lhes pelos hombros e as abelhas voariam para os labios della julgando-os rarissima flor, mais preciosa que todas as outras e do mais delicioso mel. As folhas orvalhadas, como pequeninos engastes do perolas, correriam a atapetar o caminho por que elles passassem. Quando o sol, transposto o humbral do Oriente, fosse avançando, se recolheriam á casinha discreta e silenciosa, construi-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 99 da na garganta do outeiro. Á tarde iriam andar pelos canteiros ou visitar os pombaes, entre as acclamaçoes das pombas arrulhantes e castas que arrufariam as delicadas pennas em uma alegria indizivel saudando-os. Pelas noites calidas e mysteriosas, divagariam ao olhar brumoso da lua, olhos de um no rosto do outro, respirações confundidas...
Quando morressem seriam sepultados na casinha alvejante, e sobre seus corpos nasceriam jasmineiros e pipillariam ninhos. Os peregrinos visitariam a modesta habitação vasia, berço e tumulo dum amor puro; os poetas celebrariam essa historia, phantasiando uma lenda romantica sobre a vida dos dois e exaltando a formosura della. E, se assim acontecesse, quem sabe se eu não estaria a estas horas invocandolhesos espiritos ven- 100 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
do o vulto do ambos passarem, abraçados, por veredas rumorosas, elle — cheio de ternura, dando beijos nella, que, desmaiando de goso, cabeça pendida, boca entreaberta, o segue tendo rouxinoes na fala e passaros de ouro nas trancas...
Coitada ! Sonhou tanto. . . e hoje chora contemplando as minas do seu coração...
mas, apezar disso tudo, invejo muito o destino de Soror Mathilde. . . Se hoje é desgraçada já foi muito feliz... E depois, a lembrança dum passado risonho não é um balsamo para as amarguras dum presente ingrato ?
Basta falar-lhe para adivinhar-se que foi noiva: as pulsações do seu colação bem mostram que ella já amou... Tem ainda nos labios o calor dos ultimos beijos, na alma o crepúsculo da ultima esperança. Uns braços que AS VISÕES BE SANTA THEREZA 101 nunca foram apertados, não poderiam ser tão mornos assim... o perfume de seus cabellos diz-nos que foram acariciados não ha muito tempo...
Os ninhos, vasios embora, guardam sempre as pennas da ave que os teceram ;
as flores, depois de murchas, conservam ainda restos do olor que possuiam outr'ora...
O corpo da minha desditosa companheira exhala um fluido mysterioso que nos convida a amar e nos enche de deleite...
Seus olhos ás vezes tomam uma expressão de doçura... Vê, talvez, desenhadas ante si aquellas scenas de que sempre se lembrará.
O primeiro beijo dado á sombra do velho castanheiro, em uma tarde de estio ;
aquella manhã em que sahiam para colher flores e as gargalhadas estridentes quederam quando escorregaram, perseguindo uma calhandra; 102 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
as phantasias tecidas na imaginação á luz doente dura luar nostálgico, o pro-jecto concebido de morarem numa casinha levantada na garganta dum outeiro; a festa realisada no dia dos seus annos e o presente que elle lhe dera — um originalissimo camafeu onde se viam dois corações ardendo na mesma pyra, devorados por uma grande chamma; mil insignificancias expressivas para ella, como sejam: os versos escriptos na areia; seus nomes burilados no tronco da arvore que os abrigava; o ciume que sentiu quando lhe encontrou no bolso um retrato que não era o della e da maneira magoada porque elle disse-lhe :É o retrato de minha irmã, querida! E o retrato de minha irmã! — Outras vezes, porém, seus olhos ficam nublados e enchem-se de lagrimas. E quando se lembra do dia em que elle, a voz presa na garganta, AS VISÕES DE SANTA THEREZA 103 lhe disse chorando: «— Vou partir! Mas, commigo vai a tua imagem que me salvará dos perigos e defender-me-á como um escudo, das lanças inimigas ! Parto, porque a isto sou obrigado! Se não morrer no campo da lucta e possa voltar á patria, em breve serás minha e eu te pertencerei; porém se um dardo traidor ferir-me o peito e eu cahir, banhado em sangue, no meio da batalha, nem o zunir das lanças, nem os gritos dos feridos, farão com que me esqueça de ti...
Mathilde, juro pelas cinzas dos meus honrados avós, se eu sentir a mão da morte cerrar-me os olhos distante dos teus carinhos, teu nome será a minha ultima palavra!
Lembra-te sempre de mim, porque sempre me lembrarei de ti! » E o guerreiro partiu levando lagrimas nos olhos, e a imagem da noiva no coração.
104 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Era um dia de inverno, triste como o desespero que lhes ia na alma... o vento gemia pelo arvoredo, torcendo os galhos das arvores nuas e os passarinhos, tiritavam, encolhidos e tremulos...
O vulto do moço já tinha-se sumido além e ella continuava, a acenar com o lenço, crendo vel-o ainda, até que a trouxeram para casa, lacrimosa e digna de dó...
Todas as noites rezava pedindo a Nossa Senhora para dizer-lhe em que sitio elle se achava e se nao tinha ainda se esquecido della. Pedia á lua que lhe illuminasse os caminhos e ao vento que lhe fosse contar a sua dôr... A horas certas, sahia a percorrer os logares que costumavam visitar... Chorava junto ao castanheiro e cobria de beijos os dois nomes, nelle esculpidos, tomando-o AS VISÕES DE SANTA THEREZA 105 como testemunha do seu inviolavel isolamento.
Supplicava ás aves que contassem quando elle voltasse como a sua noiva tinha sido fiel ao amor jurado, como tinha sido inflexivel e constante na cruel ausencia... Os mezes se passaram e nunca mais ninguem teve noticias do jovem guerreiro.
E uma duvida aterradora invadiu o espirito da desolada noiva... Estaria morto ou teria se esquecido della?
Passado algum tempo, chegou ás portas da cidade um mensageiro que disse ter visto os inimigos trucidarem barbaramente o heroico rapaz, que, pouco antes de morrer, pediu viesse alguém contar á noiva seu desgraçado fim e a firmeza do amor que lhe consagrara. . .
Depois, recebendo profundo golpe na fronte, abriu os labios pronuncian-
106 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
do um nome que ninguém poude ouvir, virou os olhos, e morreu. . . Soror Mathilde ficou a principio como doida... Chorou ininterrompidamente durante trinta dias e trinta noites...
Num mez envelheceu quarenta annos.
Seus olhos afundaram-se e a sua pelle encheu-se de rugas. . .
Parecia um cadaver que uma força occulta animasse... Foi então depois deste immenso martyrio que resolveu ser freira e entrou para esse convento onde tem sido vista chorando, ora a beijar flores murchas, ora a reler cartas perfumadas...
Julga-se que na extremidade do seu rosario existe um envolucro que em vez de canticos e orações, contem um pequeno cacho de cabellos negros ...
A poucos dias teve um ataque ao vêr o velho castanheiro, onde fruiu AS VISÕES DE SANTA THEREZA 107 *
tão doces instantes e recebeu nos labios o primeiro beijo...
Pobre Soror Mathilde!
É magra coma uma tysica. muda como um cypreste... As vezes parece que um sopro mais forte que quebrará os ossos, tão fragil está... Todo o mundo tem pena da sua desventura e, no em tanto, ninguém tem pena de mim, que não sonhei nem senti jamais o que ella sonhou e sentiu.
Soror Mathilde, és muito mais ditosa que eu, porque amaste o foste amada...
Teus labios já foram beijados e os meus nunca o foram... Quando te vejo, fico admirada a olhar-te, pensando nas sensações que experimentaste durante a vida de teu noivo, sensações essas que são inapagaveis como tua saudade, fortes como o meu supplicio... Es uma palmeira cheia de ninhos vasios: eu sou unicamente 108 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
uma planta sêcca, esteril e triste, por não ter visto jamais gorgeios de passaros pelos galhos despidos...
Soror Mathilde, és mais venturosa que eu!
Morrerás depois de teres conhecido os segredos mais santos da existência, emquanto eu hei de morrer innocente e enfastiada, detestando este mundo que me faz assim desditosa...
(Suspira profundamente e se torna como um lavrador a quem se amputassem os braços.
O clarão da lua penetra a cella prateiando-a toda, menos em torno do môcho que, pousado sempre na cabeceira do leito, fita imperturbavelmente Santa Thereza.
Esta, para distrahir-se e esquecer a sinistra ave, dirige-se á rotula e olha para fora... O luar esbate-se em cheio pelas arvores marulhantes, que se co-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 109 brem de roupagens argenteas, e desdobra-se em alvissimo sendal sobre o solo humido...
A Santa contempla maravilhada esta paysagem de alabastro, esse rendilhamento de luz que aformoseia o espaço imponentemente tranquillo.
Sente-se arroubada como se estivesse dentro dum palacio fabuloso, cheio de grutas encantadas e minaretes faiscantes onde cantassem sereias e dançassem fadas...
Lamenta não ter azas, em vez de braços, para scindir victoriosamente a amplidão jaspea, qual uma galera alada rogando altiva por um oceano placido.
Sahiria da cella e voaria livremente no azul até chegar á lua, que a receberia com ancia e onde ficaria morando, para poder ver as estrellas de perto . . .
De lá assistiria a todas as auroras, 110 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
e haveria de fazeir com que os astros doirassem com mais intensidade ainda o velho castanheiro...
Olha para a arvore lendaria e recua, assustada ...
Vira, inundados de luar, passeiando por entre suas ramas, o casal de velhinhos que alli dormiam ...
Ambos iam vestidos de branco, juntas as mãos tremulas, beijando-se meigamente ao resplendor franco da lua, que não era tão alva como as cabeças delles.
Receiosa. ajoelha-se pedindo ao céo pelas almas dos amorosos anciãos.
VII
O desappareçimento do mocho Noite alta . . .
(Santa Thereza, a quem uma enorme agitação de espirito não tem permittido o repouso, contempla, desvairada, o môcho, que a fita da cabeceira do leito.
Orlam-lhe os olhos tristonhos duas profundas olheiras, tornando-os por isso mais encantadores e expressivos ...
Está tão pallida que parece amortalhada. Só falta um caixão funereo para se confundir com um cadaver . . .
112 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Suas mãos, de tão frias, lembram delicados blocos de gelo a pender dos braços duma estatua. A luz da lua parece querer asphyxiar a lampada que bruxoleia e oscilla como o olhar martyrisado da Santa.
Depois de alguns minutos de incerteza dirige-se ao oratorio e reza . . . Mas o mocho fita-a com insistencia tal que a obriga a parar no meio da oração começada . . .
Levanta-se, visivelmente contrariada, e pronuncia palavras sem nexo, olhos immobilisados, mãos pendidas ao longo do corpo o scismando).
Como poderei fugir desse asqueroso espião que até já me prohibe de rezar?
Desde a manhã, persegue-me com os olhos que recordam as correntes arrastadas pelos criminosos no fundo das masmorras...
Ás vezes, concede-me alguma dis-
AS VISÕES BE SANTA THE REZA 113 tvacção; em outras occasiões, porém, tem para mim uma impiedade sem nome ...
Julgo um castigo essa insistencia sua e a falta daquella pomba, branca que talvez nunca mais eu possa ver...
A consoladora de .minha alma foi expulsa por este algoz que me estygmatisa e esbofeteia-me com o olhar.
Póde ser que seja um domador, mas creio ser um carrasco ...
Para livrar-me delle, tenho cogitado mil planos e todos até agora tem falhado...
Não sei mesmo o que devo fazer para anniquilar esse inimigo invulneravel que me ataca e me rouba o socego a modo de um salteador.
Minha alma era alegre como as manhas de Abril ...
8 114 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Nella irradiava uma primavera eterna, exuberante e viva.
Tinha lagos immensos onde baloiçavarn bergantins tripulados por marinheiros innocentes e loiros... montes onde alvejavam ermidas brancas e pequeninas choupanas coberrtas de hera...
Suas noites sempre tinham lua, e o seu firmamento nunca esteve annuviado ...
Esta belleza só durou emquanto a pomba alvissima viveu ao meu lado . . .
No dia em que a minha salvadora desapparcceu para dar occasião á vinda desse môcho, minha alma ficou taciturna como uma noite de inverno... Os lagos turvaram-se espedaçando bergantins e matando os marinheiros, as ermidas e cabanas desabaram, o luar fugiu, o céo annuviou-se.
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 115 Na noite passada, a pomba me appareceu afugentando o passaro negro, e fazendo resuscitar minha alma .. .
Infelizmente, a sua demora foi pouca, porque eu apeguei-me ao somno, e ella, aproveitando-se do meu estado, fugiu.
Em vão chamei pela amiga, outr'ora inseparavel, e gritei contra esse meu inimigo, inseparavel hoje.
Rezei, pedi a Deus que realizasse os meus desejos, e não obtive nada do que almejava...
Fui tentada pelas ancias peccaminosas, tão communs nas freiras, martyrisei-me em repetidas penitencias para me rehabilitar, porém notei que as disciplinas, a que me submetti, não eram tão dolorosas como o olhar deste satanico hospede de minha cella.
Meu odio por elle cresce á propor-
116 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
cão que augmenta a amizade pela saudosa confortadora que temo não mais tornar a ver.
Este receio é maior ainda quando me lembro de suas ultimas palavras: «Eu sou a companheira dos puros e dos que se arrependera. Es venturosa porque me tens ao teu lado... e ai daquelles que não me conhecem e não se deliciaram jamais com a pureza dos meus encantos!»
Que será de mim se ella não voltar mais e este mocho continuar a permanecer junto do meu leito?
Só a abstração de tudo por uma ideia fixa, cuja realização desejo intensamente, poderá me livrar desta ociosidade, porta aberta ao peccado, causa da minha desgraça...
De amanhã em diante começarei, por todos os meios, a pôr em pratica o desejo que tenho de fundar a Ordem AS VISÕES DE SANTA THEREZA 117 dos Carmelitas. O desinteresse com que hei de luctar me remirá as faltas, fazendo minha alma voltar á sua antiga placidez.
(O rosto da Santa illumina-se, e enchese de resolução e coragem, á semelhança duma nuvem que fosse atravessada subitamente pelos raios do sol.
Palpita-lhe no olhar uma luz desconhecida, mostrando a resurreição de sua alma padecedora, que se definhava sob o peso do mais atrós soffrimento .. .
Ri alegremente, mas não com aquelle reprimido sorriso de ha pouco, porém com um riso jovial e franco daquelles que estão contentes comsigo mesmo.
Lembra um peregrino voltando á terra natal, depois de prolongada ausencia ...
Por acaso olha para a cabeceira do 118 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
leito e vê que o mocho tinha desapparecido ...
A santa une as mãos num voto de agradecimento ao Senhor, se assemelhando, nesta attitude, a uma visão etherea descida nos raios da lua).
VIII
O Sacrilegio (Santa Thereza, revivificada pelo desapparecimento do seu iniquo perseguidor, contempla, embevecida a ascensão da lua no azul, crendo ver nella um anjo de trages candidos, sorrir-lhe do céo estrellado e limpido.
A graça com que abre as azas resplandescentes, o oiro ondulante da sua cabelleira, tudo isto enleva o espirito da santa, que, abandonando a materia, ala-se ás regiões dos sonhos. . .
Demora-se nesta contemplação horas esquecidas. . .
120 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
A lua avança, magestosa, entre grupos de estrellas, pela amplidão calada, e, á proporção que avança, esparge um polvilhamento de prata sobre o mundo. . .
Santa Thereza, tomada duma exaltação repentina, estende os braços para o céo palpitante e radioso).
Não sei que mysteerio ha na alvura da lua. . .
Parece que está sempre a derramar lagrimas vaporosas e brancas sobre nós, lamentando talvez a desventura humana.
Enche-me ás vezes de uma certa concentração de espirito; em outras occasiões, porém, arrebata-me levemente a um desconhecido mundo, e então é como um seraphim descido de além para me consolar em meio do exilio continuo em que vivo.
Abençôo-te, reconhecida e grata, AS VISÕES DE SANTA THEREZA 121 oh querida companheira do meu desterro;
ajoelho-me ante a chamma piedosa com que me banhas a fronte, á maneira dura innocente culpado aos pés do que lhe perdoou o falso crime.
Agora sinto raiar um sol reanimador dentro de mim, e vejo luzir além a estrella que ha de me guiar pelos escabrosos caminhos da vida.
(Olha a lua e sente-se perturbada ao sorriso dum anjo que paira no alto, fitandoa languidamente).
Ah! Por fim vejo chegar-se a mim um noivo louro como o arrebol e meigo como as rolas! Finalmente alcanço o que mais queria; um sorriso puro e amante, um coração terno, que viva somente pelo meu amor.
Desce, desce mais, encantado principe dos espaços ethereos; desce, abandona esse throno cravejado de estrellas, e vem cahir nos meus braços, throno 122 AS VISÕES DE SANTA. THEREZA
erguido por mim á tua candura incomparavel e unica!
Desce, mais ainda, que te espera aqui uma virgem medrosa, nunca profanada pelo amor de outro . . .
Não vês como sinto-me feliz só por ver-te ?
Imagina agora qual seria o meu delirio, se te beijasse e fosse beijada por ti, se, ambos estreitamente unidos, pudessemos gozar o nosso sonho . . .
Tu deves ser puro, suave e carinhoso ;
tua alma é um jardim cheio de rosas frescas como teu sorriso e como teu olhar...
Com certeza, nunca sentiste bater o coração por um desejo lascivo, jamais amaste outra mulher, que não eu . . .
Vieste do teu berço natal somente pelo meu amor desvairado, pela minha paixão escaldante e louca . . .
Ensaiaste affagos e ternuras, pen-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 123 saste em mil insignificancias, colheste as chimeras mais bellas, as illusões mais lindas para deposital-as em torno a mim, como um resplendor em torno de uma santa . . .
Desce, ambicionado noivo, espalma um pouco mais as azas e vem cahir no meu collo perfumado e quente, em um espasmo de amor ...
Guardei-te todos os thesouros do meu coração, as mais preciosas gemmas de minha alma . . .
Por ti farei loucuras de toda a especie, irei ao fundo do mar arrancar perolas e coraes para cingir-te a cabeça triumphante e, se não encontrar nem perolas nem coraes, oingir-te-ei com as minhas lagrimas e com o meu sangue...
Atravessarei paragens inhospitas, dormirei ao relento sobre as pedras, affrontarei as raivas do oceano, beberei as aguas podres dos charcos esverdea-
124 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
dos, se me ordenares que eu passe por esses transes . . .
Farei com que minha carne apodreça e cubra-se de vermes e pus, com que meus olhos se afundem e os meus cabellos caiam e as minhas mãos inchem e estalem-se-me as unhas, se acaso tiveres o capricho de querer ver-me nesse estado nojento, reduzida a um pântano monstruoso, cheio de reptis fetidos e podridões nauseabundas...
Enterrar-me-ei viva, depois de ter sido completamente esphacelada, para satisfazer-te qualquer exigencia ou a curiosidade de assistir a um martyrio horroroso e lento, ainda não concebido pelo mais barbaro despota . . .
Supportarei todas essas torturas, sem me queixar e mesmo julgando-me ditosa, comtanto que me ames ou finjas amar-me, pois, em meio desses horrores, teu carinho será um balsamo que AS VISÕES DE SANTA THEREZA 125 me fará esquecer as angustias soffridas e por soffrer.
Teu desprezo, porém, seria muito mais doloroso que todo esse martyrio e pungiria tanto quanto a cegueira sentida eternamente por um misero condemnado á nao morrer, ou a cusparada dum filho no rosto duma boa mãe, que se tivesse sacrificado por elle...
Ha muito que te esperava, e hoje posso te ver, a rir-me do alto, confundindo-te com os astros . . .
Baixas das nuvens onde moras, para que eu também possa rir-me em teus braços e sentir o que nunca senti...
Ateia-se um impetuoso incendio no meu sangue e corre um vendaval irrepremivel pela minha cabeça allucinada...
Chega-te a mim! Quero o calor de 126 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
teu peito e a frescura do teu beijo, a embriaguez do goso e a febre do delirio ...
Vem ! Abandona, a fabulosa opulencia do teu palacio, pela opulencia ainda maior dos meus seios em flôr, despreza as scintillações que te rodeiam pelo fogo dos meus olhos e pelo setim da minha boca desabrochada...
Em meus braços acharás um leito, onde ninguém repousou até agora, deliciosissimo leito que nos servirá também de tumulo . . .
Deixa, portanto, o Armamento em que moras e vem illuminar com teu riso o firmamento procelloso de minha vida. . .
Ambos somos jovens e castos, sequiosos e bellos ...
Andavamos á procura dum ideal sonhado e este nos apparece agora ...
AS VJSÕES DE SANTA THEREZA 127 Aproveitemos a nossa juventude emquanto é tempo . . .
Ouve meus rogos e minhas supplicas e apazigua esta inquietação que sinto, com as tuas caricias e com os teus arrebatamentos.
Suffoca-me, aperta-me nervosamente num frenesi de allucinado, numa voracidade de faminto ...
Tenho necessidade deste exagero;
quero morrer victima dum excesso criminoso...
Suffoca-me, que me sinto esvahida!
suga-me todo o mel dos labios, devora toda a exuberancia dos meus seios, pois desejo ser comprimida, furiosamente pelos teus braços...
Dilacera-me, por piedade, esta carne resuscitada, esta carne incendiada e revolta, que tem sido o meu maior supplicio...
Roja-me ao chão, morde-me o collo 128 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
erguido, arranca-me os cabellos e as entranhas, goza a minha virgindade sublevada, piza-me, torce-me os braços até que eu possa morrer, depois de ter satisfeito a luxuria do meu sangue.
Desce, ambicionado noivo. Desce!
(Vê a lua abrir-se á forma duma porta rutilante e della sahir um anjo que de azas abertas desce por unia escada de ouro, labios afflorados num riso seductor.
E lindo como o alvorecer e tem nas vestes a alvura dos jasmineiros...
Approxima-se lentamente da cella...
A santa abre enormemente os olhos, e atira-se, palpitante, em direcção ao anjo que desapparece junto á imagem de Christo.
Cega, completamente cega, Santa #
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 129 Thereza se arroja ao crucifixo onde está o Jesus do braços abertos, birto e ensangüentado. . .
Lança-se a elle, arranca-o da parede, em exclamações repetidas e rapidas, beijao, roja-se ao chão, apertando-o entre os braços tremulos, numa vertigem do doida...
Ergue-se e tomba novamente; bate-se no leito que estremece e range como a protestar contra o horrivel sacrilegio, revolve os travesseiros e lençoes; rompeos, entesa-se, curva-se, torcendo a imagem sagrada, beijando-a, mordendo-a...
As vezes parece que quer fugir, lançarse pela janella abaixo, rasgar as paredes tão frias com os choques successivos do seu corpo tão quente...
Agora se acalma um pouco, baixa os olhos languidamente, emquanto lhe 9 130 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
saltam os seios, apertados no cilicio que não pôde contel-os...
Depois a faria recomeça, e torna a apertar anciosamente a imagem do crucificado, cujo resplendor lhe produz um grande rasgão na face, que se banha em sangue, como se fosse um anathema que lhe lançasse Jesus ante este sacrilegio.
Ella, que a principio não sentira a incisão, depois de algum tempo torna a si — devido á grande quantidade do sangue que lhe escorre do rosto manchando-lhe a roupa e o chão. . .
Acorda e vê, horrorisada, a imagem toda mordida, sem braços, o resplendor atirado longe, quasi se separando da cruz.
Seu olhar toma immediatamente uma funda expressão de pavor.
Tremula como um junco, olhos arregalados, face livida e gelida, mãos AS VISÕES DE SANTA THEREZA 131 crispadas, cabellos eriçados, lembra uma figura de pedra representando o medo e o assombro. . .
Ninguem poderá vel-a nesse estado, sem correr logo, tão feia é a expressão do seu rosto. . .
Immovel, o olhar fixo e desvairado, a boca aberta, parece que ainda não comprehendeu tudo que se passou, a altura do seu crime inacreditavel. . .
Dir-se-ia que seu coração se paralysara de subito. . .
Passada esta primeira phase, vai coordenando, pouco a pouco, as ideias e, quando mede a gravidade do que praticara, lastima-se muito, chorando sob a imagem de Christo, que depois esconde com os fragmentos esparsos num logar reservado...
Em seguida busca os apparelhos da penitencia e martyrisa-se tanto 132 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
que é obrigada a ir para o leito, donde não pôde mais se levantar. . .
Toda ferida, parece uma chaga revolvendo-se dolorosamente numa angustia sem fim, num desespero de commover pedras. . .
O mocho reapparece como um accusador do hediondo attentado, e esta appariçao apavora ainda mais a pobre freira, que fecha os olhos, tintando de medo.
Pensa no suicidio, para se livrar do asco que todas as outras freiras terão delia ao saberem do acontecido.
Vê, em frente a si, as companheiras em fila expulsarem-na do convento, e a familia, indignada, fechar-lhe a casa.
Depois, como consequencias logicas, a desmoralisaçao do seu nome respeitado em toda a parte como o de uma santa, e o ridiculo em que envolverão suas visões e milagres ...
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 133 Não ha salvação possivel. . .
Tudo está irremediavelmente perdido...
Em breve será despenhada da altissima torre de sua fama quasi immortal ao lodo do escarneo ...
Amanhã será desmascarada pela verdade dos acontecimentos, ficando reduzida a um ente despresivel, a uma hipocrita — ella, a boa, a piedosa, a santa.
Em quanto assim pensa, estremece-se derramando copioso choro e a affliçao augmenta quando vê que esses castigos, por enormes que sejam, nada são para o tamanho de sua culpa . . .
De quando em quando, fecha os olhos para fugir a visões assombrosas que parecem surgir das paredes alvas e quietas...
Sim ; amanhã, sua familia será manchada, seu nome escarnecido e talvez 134 AS VISÕES DE SA.NTA THEREZA
excommungado, ninguém mais terá dó de sua desgraça e, apezar de tão horriveis transes, nao se remunerará para com o Senhor.
Um suicidio nada adiantará, somente pode haver um remedio: é, depois de expulsa do convento, dedicar-se exclusivamente á desventura alheia, como um apostolo do bem.
Talvez isto a salve aos olhos de Deus, porque aos olhos do mundo não ha mais rehabilitação alguma.
Um tremor convulsivo sacode-lhe todo o corpo em arrancos frequentes, e copioso suor escorre-lhe pela epiderme, molhando a camisa que lhe ocoulta as grandes chagas provenientes da atroz disciplina a que se submettera ...
Encolhe-se no leito e vê projectada na parede a sombra do môcho — testemunha muda do seu penosissimo tormento...
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 135 Tem até medo de gemer e virar-se no leito.
Pede, mentalmente, ao céo perdão de sua fraqueza, auctora do involuntario sacrilegio que fizera. . .
Parece uma escrava açoitada que vai tornar a sel-o em breve...
O luar, que vem de fora, beija-a respeitosamente, com piedade talvez de sua desventura.
IX
O fantasma negro (Apavorada e hirta, vê-se no leito Santa Thereza, á semelhança dum defunto num quarto abandonado. . .
Respira apressadamente e arregala ás vezes os olhos como se estivesse vendo qualquer scena exquisita. . .
Pensa em cousas sinistras, em historias apavoradoras que ouvira quando creança...
A lua brilha com mais fulgor em despedida talvez, porque em breve se recolherá).
138 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Eu, que sempre acho a lua tão formosa, não sei porque motivo ignoto agora tenho medo della...
Está tão triste!
Assim era a face de minha mãe no dia em que professei; em seu olhar havia a mesma dor, em sua dôr havia a mesma grandeza.
Abafando uma duvida que me angustiava, entrei para este convento como se entrasse viva para a sepultura.
Lembro-me como se fosse hoje!
No dia em que, de fronte curva, jurei aos pés de Deus, senti acordar em mira uma suspeita de proximo arrependimento e a imagem lacrimosa de minha mãe me apparecia ao longe, a acenar para mim, como a padroeira que foi da minha existência. . .
O tempo correu, e um dia ella partiu para o seio de Deus, donde talvez pense ainda em mim. Vejo-a morta, AS VISÕES DE SANTA THEREZA 139 olhos vidrados, a boca entreaberta como chamando por alguém, as mãos brandas como se estivessem affagando a fronte de algum ente querido.. .
Foste feliz, minha mãe, que não assististe ao descredito de tua filha!
(Grandes nuvens de chuva encobrem totalmente a lua. . .
Grita um vento frio pelos telhados.. .
O espaço escurece-se. . .
Sumiram-se todas as estrellas. . .
Foi numa noite assim que ella me contou uma historia tão pavorosa que ainda hoje me faz tremer de medo, quando a recordo... Uma vez era um rei... esta historia é tão antiga que foi contada a minha mãe pelos meus avós, que também a ouviram de seus paes...
Sim, era uma vez um rei muito forte e muito orgulhoso . . .
140 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Tinha uma filha alva como as noites de lua, loira como os dias de sol...
Ella era toda a sua vida e valia mais que o seu riquissimo reino, situado num logar de que não me lembra agora o nome...
Um dia o rei soube que ella amava a um camponez de hombros largos o rosto moreno, com o qual todas as noites conversava no fundo do paláacio . . .
Quiz a principio mandar matar o atrevido vassallo; porem, soube depois, que, se assim praticasse, mataria também a filha, que entisicaria logo após...
Ordenou então que se construisse uma fabulosa torre de bronze para ahi prender a dona de todo o seu coração, evitando deste modo o amor desigual que dominava a infeliz.
Mais de mil operarios gastaram mezes na construcção do carcere gi-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 141 gantesco e, terminado o maravilhoso trabalho, o rei mandou degollal-os todos para que ninguem soubesse como se podia entrar na torre-carcere, onde enclausurou, chorando, o maior thesouro de sua existencia... Um irmão delia era o carcereiro... Trazia-lhe a comida em vasos de oiro e porcellana. fazendo em seguida fechar-se atrás de si a entrada da mysteriosa prisão...
A princeza definhava a olhos vistos, como luz que bruxoleia ...
O camponez andava errante pelos bosques, a affrontar proposital mente os maiores perigos; mas quase sempro era visto num monte fronteiro olhando a torre tristemente.
Um dia, já morto de saudade, o perseguido amante jurou ir ver a princeza, que era alva como as noites de lua e loira, como os dias de sol... Para isto, disfarçouse em guarda e entrou 142 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
no palacio, onde havia salões de ouro e galerias de prata. . .
A hora em que o principe, um rapazinho de 16 annos, costumava ir á torre, o camponez escondeu-se á espera delle...
E sabe Deus quantos estremecimentos não lhe sacudiam o corpo nesses instantes que foram mais longos que seculos!
Afinal o carcereiro appareceu além, envolto numa capa flammante, cheia de pedras preciosas e approximou-se do carcere de bronze.
O camponez, então, agarrando-o pela garganta, o obrigou a dizer-lhe o modo pelo qual se entrava na torre. . .
O principe indicou uma pequena chave, que, comprimida, fazia girar nos gonzos uma enorme porta. . .
O ancioso amante fez logo esta abrirse e penetrou o opulento recin-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 143 to, onde, pallida e magra, estava a filha do rei a chamar por alguem...
O irmão da princeza, mal se viu solto, correu ao palacio para contar o occorrido ao pae. Este carregou as sobrancelhas, e, acompanhado de guardas, partiu ao carcere da filha. . .
Entrou calmamente na prisão e foi achal-os abraçados na syncope do gozo. . .
Seu semblante não se alterou, nem tambem o tom de sua voz. . .
Olhou para os guardas e deu ordem de prender os dois infelizes namorados. . .
No dia seguinte, mandou construirse uma grande fogueira e erguer-se junto desta uma cruz... Chamou a filha e disse:
Amei-te como ninguem poderia amarte. . . eras a minha esperança e o teu carinho me era mais precioso 144 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
que este throno onde estou sentado. Não quizeste nem corresponder ao meu affecto, nem justificar o meu orgulho então mandei encarcerar-te naquella torre para ver ao menos se não manchavas o meu nome. . .
Trahiste-me, orferecendo a virgindade do teu corpo a um camponez; pois bem, este corpo, indignamente profanado, vai ser queimado hoje.
Daqui a pouco tua carne estará reduzida a cinzas. . .
Depois, chamou o camponez e disse:
Fizeste bem, se eu fosse tu, não praticaria de outra maneira. . .
Em seguida, mandou que o saltassem e dirigiu-se ao logar onde estava accesa a fogueira e erguida a cruz e ordenou que o crucificassem.
Queria assistir ao martyrio da filha, pregado numa cruz, supportando, portanto, dois martyrios . . .
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 145 Abriu os braços, que os guardas pregaram ao madeiro, sem dar um gemido, heroico e sobrehumano . . .
Depois lhe amarraram também os pés, e foram buscar a filha para ser lançada á fogueira . . .
Assim que ella appareceu pallida e chorosa, uma lagrima — a primeira —
rolou pelo severo rosto do rei. . . Suspenderam-na com os braços e atiravam-na após á fogueira esbrazeada e fumegante.
Um grito agudissimo de dôr rompeu o espaço, e o crucificado, que não gritara ao ser pregado ao lenho, correspondeu com um gemido ao grito da filha. . .
As chammas alcançaram também a cruz e os gritos de dor continuavam a scindir o espaço cada vez mais fortes . . .
O rei, gemendo, Baixou as palpebras 10 146 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
por alguns instantes; mas, ao abril-as, via a princesa toda queimada, sem cabellos e cega, a pular entre as labaredas... deu um grito horrendo; os olhos, se lhe saltaram das orbitas; quiz arrancar os braços, deu muitos gritos estrondosos, afugentando os passaros e os animaes...
Tinha enlouquecido . .. Todos correram assombrados ao verem um doido a gritar numa cruz, e quando voltaram viram cinzas no logar da fogueira e um cadaver sobre o lenho ...
Corvos pairavam-lhe em torno da cabeça, devorando-a, seus olhos já tinham sido comidos e corria-lhe das narinas um pus nojento.
Quanto ao camponez, ninguém teve mais noticias delle . . .
Hoje, se ainda alguém passa pela funebre logar, morre assombrado, jul-
AS VISÕES .DE SANTA THEREZA 147 gando ver esqueletos crucificados pelas arvores cheias de caveiras e sentindo-se estrangulado pelo rei sem olhos e sem nariz,...
(Uma lutada de vento apaga a luz da lâmpada, deixando a cella no escuro... A
santa, de tão pallida, torna-se livida. . .
Vê sahir do telhado um phantasma todo vestido de negro, com um chicote na mão e uma fornalha na boca. Sente mãos felpudas apertarem-lhe os pés e puxaremlhe os cahellos.
No logar onde estava o crucificado apparece um buraco repleto de cobras phosphorecentes . . .
Olhos vermelhos e arregalados espiam por entre as frestas das telhas...
O phantasma negro avança para ella, mostrando os dentes ponteagudos e as garras afinadas como para devoral-a...
148 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Dá uma chicotada no ar e apparecem de repente pela janella os velhinhos que estão sepultados junto ao castanheiro, o rei crucificado sem olhos nem nariz, a princeza com as trancas incendiadas, esqueletos altissimos e tronchos, caveiras ironicas. . .
O espaço clareia-se com uma luz amarello-esverdeada. . .
O phantasma negro vibra outra chicotada sobre os esqueletos que gemem e se ajoelham.
Depois, todos avançam para leval-a...
mas de repente o luar, surgindo um pouco entre as grossas nuvens que o cercam, invade a cella, espantando todos esses phantasmas que fogem, rindo, pelo telhado e pela janella.
Santa Thereza desmaia, suando frio...
Está rija como uma pedra, ou mais ainda...
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 149 Ergue a fronte, vê a lua e fica mais alliviada).
Este horrivel pesadello foi com certeza um castigo de Deus...
Nunca tive tanto medo nem nunca prendi tanto. . .
Ainda julgo ver surgir do telhado o hediondo phantasma negro, e apparecerem pela janella os dois velhinhos, acompanhados de esqueletos chocalhantes e tortos. . .
Ah! mas este pavor me corrige, por causa delle serei, de agora em diante, pura;
minha carne refreará os seus impetos, meu sangue abafará seu incendio.. .
Posso agora respirar livremente...
(Volta-se á cabeceira do leito e vê que o môcho tinha desapparecido).
Deus, só hoje é que pude ter uma idéia da tua generosidade infinita. . .
Depois de seres offendido como 150 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
foste, satisfizeste o meu maior desejo, expulsando do leito a maldita sentinella que assistira a todos os meus desregramentos. . .
De hoje em diante, serei tranquilla, ainda que tenha de soffrer amanhã o desar de ser expulsa deste convento, pois a minha desgraça consiste somente na luxuria dos meus nervos domados, depois do terrivel abalo que ha pouco experimentei. . .
Como te agradeço este beneficio que me fizeste, esta liberdade que me concedeste depois dum tão horroroso captiveiro! Em mim se sumiu agora a hypocrita para surgir a santa!
Como sinto-me feliz!
Estou convicta de que não cahirei mais noutra falta, devido á severidade do castigo soffrido . . .
Em minha alma canta um passarinho doirado : — é a esperança, que te-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 151 nho de ser bôa, embora não seja comprehendida por pessoa alguma!
Amanhã cedo sahirei daqui, e irei affrontar as guerras e as pestes pelo amor de Deus, que é tão nobre para commigo ...
Onde houver uma creança afflicta, ahi estarei, servindo-lhe de mãe e lhe minorando o tormento: se encontrar um lazaro na estrada, ao calor do sol, o aquecerei com as minhas palavas confortadoras e lhe enxugarei as chagas;
quando houver uma guerra, irei arrostar as lanças para apanhar um ferido . . .
Vagarei de terra em terra, qual uma forasteira, espalhando bençãos em volta de mim e deixando um rasto de gratidão nas almas daquelles que eu acolher, desvellada e carinhosa.
Assim lavarei o meu nome, que amanhã por estas horas estará amal-
152 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
diçoado por todos como o de uma fingida...
E, depois de uma existência curta ou longa, morrerei satisfeita e abençoada por muitos . . .
(A cella clareia-se . . . Derrama-se uma alegria por tudo e a pomba côr de leite, abrindo as azas, apparece de súbito e paira nos hombros de Santa Thereza, arrulhando docemente . . . O rosto da Santa irradia de prazer, como se estivesse no céo entre anjos e estrellas, perto do sol e de Deus . ..)
Que noite extraordinaria a de hoje . . .
Durante ella pratiquei o sacrilegio mais vil, recebi o castigo mais justo e gozo o contentamento, mais intenso...
Por fim te vejo, querida companheira de minha alma, luar que prateava a noite do meu coração! Não sabes quanto soffri durante o tempo AS VISÕES DE SANTA THEREZA 153 em que estiveste ausente, sem me consolares com a frescura do teu arrulhar, nem me animares com a alvura da tua plumagem ...
Felizmente essa ausencia não . . .
(Cala-se, fitando a pomba, extasiada e humilde. . . Nos seus olhos brilha a candura de uma supplica, nos seus labios o sorriso de uma alma consolada. . . Como que a cerca, envolvendo-a num manto diaphano, a protecção de um carinho, a nevoa de uma benção. . . Ella concentra os olhos meigos sobre a boa companheira de suas horas felizes. . . A maneira de uma hypnotisada, vae ficando, aos poucos, de olhar inexpressivo. . . Agitam-lhe o corpo convulsões extranhas . . . Cae em deliquio... estremece. . . torna-se pallida, fria. . . rebenta dos seus labios uma explosão de sangue que irrompera, do peito enfraquecido, exhausto . . .A onda 154 AS .VISÕES DE SANTA THEREZA
rubra encrespa-se, inundando-lhe o rosto marmoreo, livido . . . Ella soluça cada vez mais baixo, murmura apenas uns sons fugitivos... .Borbota o sangue espumando...
invadindo-lhe a boca, suffocando-a. . . Ella desfallece aos poucos e, afinal, cae dos seus olhos cavados a lagrima da morte . . .
De longe, a pomba velava, como uma boa irmã, o corpo inerte da Santa).
A abbadessa, acompanhada pelas freiras, entra na cella de Santa Thereza para saber o motivo por que deixou de comparecer á oração matinal.
Encontra-a a dormir, placida e pallida, sorrindo. AS VISÕES DE SANTA THEREZA 155 A ABBADESSA.
Como sorri dormindo! Está certamente ouvindo a Virgem Maria, que lhe dicta conselhos e beija-lhe a cabeça.
Parece um anjo. . . mas donde veio a chaga que lhe sangra o rosto ?
PRIMEIRA FREIRA
E onde está a imagem do Crucificado?
Quem foi que o retirou do competente logar?
SEGUNDA FREIRA
E que Jesus está conversando com ella.
156 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
PRIMEIRA FREIRA
E por isso fugiu donde estava, transfigurando-se.
A TERCEIRA FREIRA
Infelizmente nós, peccadoras, não podemos assistir a tamanho milagre...
A QUARTA FREIRA
Como seu corpo está chagado!. . . Ah!
são com certeza as chagas de Christo que se encarnaram nella. . . A do rosto então é igualsinha.
A QUINTA FREIRA
E o que querem dizer estas nodoas de sangue no chão?
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 157 A ABBADESSA
Soube, dito por soror Maria, que mora na cella vizinha, que esta santa passou a noite inteira a falar e a correr, allucinada, sem dormir.
Quanto ás manchas de sangue, não sei como lhes explicar a causa. . . E um mysterio divino . . . Ajoelhemo-nos . . .
mas antes de tudo, convém chamar testemunhas de fora para provarmos que as Visões de Santa Thereza não são uma exploração, como se espalha por ahi. . .
Cidade do Salvador, Junho 1897. INDICE
CAPITULOS:
I — Os sons do bandolim ................5 II — O mocho............................................19 III — 0 Radjah ..........................................43 IV— O velho castanheiro.................55 V — A lua........................................71 VI—Soror Mathilde...........................91 VII — 0 desappareciinento do mocho.111 VIII — O Sacrilégio ...........................119 IX— O fantasma negro........................137