A Voz
É tão suave ess'hora, Em que nos foge o dia, E em que suscita a Lua Das ondas a ardentia, Se em alcantis marinhos, Nas rochas assentado, O trovador medita Em sonhos enteado!
O mar azul se encrespa Coa vespertina brisa, E no casal da serra A luz já se divisa.
E tudo em roda cala Na praia sinuosa, Salvo o som do remanso Quebrando em furna algosa.
Ali folga o poeta Nos desvarios seus, E nessa paz que o cerca Bendiz a mão de Deus.
Mas despregou seu grito A alcíone gemente, E nuvem pequenina Ergueu-se no ocidente:
E sobe, e cresce, e imensa Nos céus negra flutua, E o vento das procelas Já varre a fraga nua.
Turba-se o vasto oceano.
Com hórrido clamor;
Dos vagalhões nas ribas Expira o vão furor E do poeta a fronte Cobriu véu de tristeza;
Calou, à luz do raio, Seu hino à natureza.
Pela alma lhe vagava Um negro pensamento, Da alcíone ao gemido, Ao sibilar do vento.
Era blasfema ideia, Que triunfava enfim;
Mas voz soou ignota, Que lhe dizia assim:
«Cantor, esse queixume Da núncia das procelas, E as nuvens, que te roubam Miríades de estrelas, E o frémito dos euros, E o estourar da vaga, Na praia, que revolve, Na rocha, onde se esmaga, Onde espalhava a brisa Sussurro harmonioso, Enquanto do éter puro Descia o Sol radioso, Tipo da vida do homem, É do universo a vida:
Depois do afã repouso, Depois da paz a lida.
Se ergueste a Deus um hino Em dias de amargura;
Se te amostraste grato Nos dias de ventura, Seu nome não maldigas Quando se turba o mar:
No Deus, que é pai, confia, Do raio ao cintilar.
Ele o mandou: a causa Disso o universo ignora, E mudo está. O nume, Como o universo, adora!»
Oh, sim, torva blasfémia Não manchará seu canto!
Brama a procela embora;
Pese sobre ele o espanto;
Que de sua harpa os hinos Derramará contente Aos pés de Deus, qual óleo Do nardo recendente.