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A Poesia Interminável

JULIETA DOS SANTOS

A IDÉIA AO INFINITO
À distinta e laureada atrizinha Julieta dos Santos

"...A fama de teu nome, a inveja não consome, o tempo não destrói!...
Dr. Symphronio

Era uma coluna de artistas!...
Ao lado Tasso Medindo as múltiplas conquistas Co’as amplidões do espaço!...
Seguia-se João Caetano Embuçado da glória no divinal arcano!...
Depois Joaquim Augusto Altivo, sobranceiro, erguido o nobre busto.
Depois Rachel, Favart, Fargueil, a espadanar Nas crispações homéricas da arte, Constelações azuis por toda a parte!
E em suave ondulação os astros Iam de rastros Roubar mais luz às rúbidas auroras!...
Quais precursoras Do mais ingente e mago dos assombros, Do orbe imenso nos calcáreos ombros, Rola um dilúvio, um grande mar de estrelas Que lançam chispas cambiantes, belas!...
Há um estranho amalgamar de cousas Como os segredos funerais das lousas Ou o rebentar de artérias — Ou o esgarçar de brumas, Negras, cinéreas — Ou o referver de espumas, Nas longas praias Alvinitentes, mádidas, sem raias.
Do brônzeo espaço, Das fibras d'aço Como que desloca-se um pedaço Que vai ruir com trépido sarcasmo Nas obumbradas regiões do pasmo...
— O Invisível Geme uma música, lânguida, saudosa, Que vai sumir-se na entranha silenciosa Do impassível!
— O Imutável — O Insondável La vão cair no seio do incriado.
E o bosque irado A soletrar uns cânticos titânios Lança nos crânios Aluvião de auras epopéias Tétricas idéias!...
E o pensamento embrenha-se nos mares E vê colares De níveas pérolas, límpidas, nitentes E vê luzentes Conchas e búzios e corais, — ondinas Que peregrinas Aspásias são de lúcida beleza, De moles formas, desnudadas, brancas Sendo a primesa Dessas paragens hiemais e francas!...
— Ou quais Frinés A quem aos pés O mundo em ânsias, reverente adora E chore e chora!!...
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Mas a idéia o pensamento insano As asas bate em busca de outro arcano, E o manto rasga do horizonte eterno Vai ao superno Ao Criador, ao Menestrel dos mundos!
E n'uns arroubos, rábidos, profundos Em luta infinda — Oh! quer ainda Quer escalar o templo do impossível, Bem como um raio abrasador, terrível!...
Quer se fartar de maravilhas loucas, Quer ver as bocas Dos colossais Anteus da eternidade!... Quer se fartar de luz e divindade E de saber, Depois jazer Nas invisíveis dobras do insondável, Bem como um verme, mísero, imprestável!...
— Ou quer ousado Descortinar os crimes do passado E apalpar as gerações dos Gracos Dos Espartanos E dos Troianos E dos Romanos, Dos Sarracenos E dos Helenos, E esbarrar nesse montão de ossos Por esses fossos Tredos, medonhos, sepulcrais e frios Onde sombrios Andam espíritos de pavor, errantes E vacilantes Como a luzinha das argênteas lampas, Lentos e lentos através das campas!...
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Mas a idéia, o pensamento audaz Quer ainda mais!...
Quer do ribombo do trovão pujante Já n’um esforço adamastório, tredo Embora a medo, — O atroz segredo Com que ele faz a terra palpitante!...
E quer dos ventos Dos elementos Quer do mistério a solução! — Nas trevas Hórridas, sevas, A gargalhada Ríspida, negra irônica, pesada, Estruge enfim, da morte legendária, E a idéia vária Ainda n'isso ousando penetrar, Tenta sondar!...
E em vão, em vão A mergulhar-se em tanta confusão Não mais compreende — O que saber pretende!...
Assim, oh! gênio, Na ofuscadora auréola do proscênio Não sei se és astro, se és Esfinge ou mito, Se do infinito Possuis o encanto, os esplendores grandes, Ou se dos Andes Águia tu és, ou és condor divino, — Ou és cometa de cuja cauda enorme É multiforme Só lágrimas de prata Ou mesmo se desata Um vagalhão de palmas, diamantino!!...
Minh’alma oscila e até na fronte sinto Medonho labirinto, Estúpida babel, E vou cair, revel No pélago sem fim dos nadas materiais!...
E como os racionais Eu fico a ruminar ainda umas idéias De erguer-te, o novo Talma Um trono singular, mas feito de — Odisséias De brancas alvoradas, Olímpicas, nevadas, Dos êxtases magnéticos, nervosos de minh'alma!
SONETO
— Os Trópicos pulando as palmas batem...
Em pé nas ondas — O Equador dá vivas!...
Ao estrídulo solene dos bravos! das platéias, Prossegues altaneira, oh! ídolo da arte!...
— O sol pára o curso p'ra bem de admirar-te — O sol, o grande sol, o misto das idéias!...
A velha natureza escreve-te odisséias...
A estrela, a nívea concha, o arbusto... em toda a parte Retumba a doce orquestra que ousa proclamar-te Assombro do ideal, em duplas melopéias!
Perpassam vagos sons na harpa do mistério Lá, quando no proscênio te ergues imperando — Oh! Íbis magistral do mundo azul — sidéreo!
Então da imensidade, audaz vem reboando De palmas o tufão, veloz, febril, aéreo Que cai dentro das almas e as vai arrebatando!... SONETO
À Julieta dos Santos Dizem que a arte é a clâmide de idéia A peregrina irradiação celeste, E d’isso a prova singular já deste Sorvendo d’ela a divinal sabéia!.
Da “Georgeta” na feliz estréia, Asseverar-nos ainda mais vieste Que és um gênio, que te vais de preste Tornando o assombro de qualquer platéia!...
Sinto uns transportes fervorosos, ledos Quando nas cenas de sutis enredos Fulgem-te os olhos co’a expressão dos astros!...
E as turbas mudas, impassíveis, calmas Sentem mil mundos lhes crescer nas almas...
Vão-te seguindo os luminosos rastros!...
SONETO
À Julieta dos Santos Um dia Guttemberg c'o a alma aos céus suspensa, Pegou do escopro ingente e pôs-se a trabalhar!
E fez do velho mundo um rútilo alcançar Ao mágico clangor de sua idéia imensa!
Rolou por todo o globo a luz da sacra imprensa!
Ruiu o despotismo no pó, a esbravejar...
Uniram-se n'um lago, o céu, a terra, o mar...
Rasgou-se o manto atroz da horrível treva densa!...
Ergueram-se mil povos ao som das melopéias, Das grandes cavatinas olímpicas da arte!
Raiou o novo sol das fúlgidas idéias!...
Porém, quem lança luz maior por toda a parte És tu, sublime atriz, ó misto de epopéias Que sabes no tablado subir, endeusar-te!... SONETO
À Julieta dos Santos É delicada, suave, vaporosa, A grande atriz, a singular feitura...
É linda e alva como a neve pura, Débil, franzina, divinal, nervosa!...
E d'entre os lábios cetinais, de rosa Libram-se pérolas de nitente alvura...
E doce aroma de sutil frescura Sai-lhe da leve compleição mimosa!...
Quando aparece no febril proscênio Bem como os mitos do passado, ingentes, Bem como um astro majestoso, helênio...
Sente-se n'alma as atrações potentes Que só se operam ao fulgor do gênio, Às rubras chispas ideais, ferventes!...
SONETO
À Julieta dos Santos Imaginai um misto de alvoradas Assim com uns vagos longes de falena, Ou mesmo uns quês suaves de açucena C'os magos prantos bons das madrugadas!...
Imaginai mil cousas encantadas...
O tímido dulçor da tarde amena, As esquisitas graças de uma Helena, As vaporosas noites estreladas...
Que encontrareis então em JULIETA
O tipo são, fiel da Georgeta Nos dois brilhantes, primorosos atos!...
E sentireis um fluido magnético Trêmulo, nervoso, mórbido, patético, Bem como a voz dos langues psicattos!... SONETO
À Julieta dos Santos Parece que nasceste, oh! pálida divina, Para seres o farol, a luz das puras almas!...
Parece que ao estridor, ao frêmito das palmas Exalças-te feliz à plaga cristalina!...
Parece que se partem, angélica Bambina, Às campas glaciais dos Tassos e dos Talmas, Lá quando no tablado as turbas sempre calmas Transmutas em vulcão, em raio que fulmina!...
E quando majestosa, em lance sublimado Dardejas do olhar, olímpico, sagrado Mil chispas ideais, titânicas, ardentes!...
Então sente-se n'alma o trêmulo nervoso Que deve ter o mar, fantástico, espumoso Nos grossos vagalhões, indômitos, frementes!!...
SONETO
À Julieta dos Santos Quando apareces, fica-se impassível E mudo e quedo, trêmulo, gelado!...
Quer-se ficar com atenção, calado, Quer-se falar sem mesmo ser possível!.
Anda-se c'o a alma n'um estado horrível O coração completamente ervado!...
Quer-se dar palmas, mas sem ser notado, Quer-se gritar, n'uma explosão temível!...
Sobe-se e desce-se ao país das fadas, Vaga-se co’as nuvens das mansões doiradas Sob um esforço colossal, titânio!...
E as idéias galopando voam...
Então lá dentro sem parar, ressoam As indomáveis convulsões do crânio!!... SONETO
À Julieta dos Santos Lágrimas da aurora, poemas cristalinos Que rebentais das cobras do mistério!
Aves azuis do manto auri-sidéreo...
Raios de luz, fantásticos, divinos!...
Astros diáfanos, brandos, opalinos, Brancas cecéns do Paraíso etéreo, Canto da tarde, límpido, aéreo, Harpa ideal, dos encantados hinos!...
Brisas suaves, virações amenas, Lírios do vale, roseirais do lago, Bandos errantes de sutis falenas!...
Vinde do arcano n’um potente afago Louvar o Gênio das mansões serenas, Esse Prodígio singular e mago!!...
JULIETA DOS SANTOS
Tu passas rutilante em toda a parte Oh! sol de nossa pátria, oh! sol da arte!...
Virgílio Várzea Quando eu te vi pela primeira vez no palco Avassalando as almas, N'um referver de palmas, Cheia de vida e cândido lirismo!
Senti na mente uns divinais tremores...
E louco e louco, A pouco e pouco Vi rebentar o inferno cataclismo!...
Mil pensamentos galoparam, céleres Por minha fronte E do horizonte Quis arrancar os astros diamantinos, Para arrojá-los a teus pés mimosos E arrebatado, Fanatizado Por entre um mar de cintilantes hinos!... Esse teu busto, a genial cabeça Tão bem talhada E burilada Com o escopro límpido da arte, Tem umas puras fulgurações suaves E a tu'alma Ardente ou calma Os corações arrasta por toda a parte!...
A encarnação tu és das maravilhas, A doce aurora, Branda e sonora Das teatrais e lúcidas idéias!...
Tens no olhar o filtro que arrebata E és profética E magnética, Possuis na voz o som das melopéias!...
És a escolhida para as grandes lutas Esplendorosas E majestosas!...
E sobre os débeis, delicados ombros, Bem como Homero a sua lira d'ouro, Resplandecente, Trazes pendente O Infinito enorme dos assombros!...
Quando apareces tudo ri e chora, Se endeusa, agita, Como que palpita N'uma explosão de férvidos louvores!.
E o potentado mais febril da terra Gagueja um bravo, E faz-se escravo O mais severo e nobre dos senhores!...
A Dejaset, uma Favart, Rachel, O João Caetano Como um arcano Imperscrutável, hórrido, terrível!...
Quebram as louças sepulcrais e frias E te louvando Vão recuando...
Dizem que é sonho, é mito, é impossível!
Oh! tu nasceste para suplantar, JULIETA
Os grandes mundos, Os mais profundos D'ess'arte bela, magistral, divina!...
E esse olhar tão expressivo e terno Já eletriza E cauteriza...
É como um raio que a corações fulmina!...
Que sol é este, vão bradando os pólos, Tão sobranceiro, Que o brasileiro O vasto império confundindo está?!...
Venham teólogos, venham sábios... todos Venham troianos, Venham germanos, Venham os vultos da Caldéia, lá!...
Oh! resolvei o mais atroz problema, Fundo mistério, Alto, sidéreo Do gênio altivo na criança, ali!...
Vamos, natura, rasga o véu dos medos, Dizei ó mares, Falai luares, Sombras dos bosques, respondei-me aqui!...
Astros da noite, tempestades, ventos Erguei as vozes, Falai velozes N’um som estranho, n’um clangor audaz!...
E respondei-me e explicai ao orbe Se essa menina, Que nos fascina É um fenômeno ou outro tanto mais!...
Tudo emudece na natura imensa E desde os Andes, Dos cedros grandes Ao verme, à pedra, às amplidões do mar!...
Tudo se oculta na invisível raia No espaço a bruma, No mar a espuma Vão-se esgarçando também, a se ocultar!...
Tudo emudece na natura imensa Quando na cena Surges serena Como a visão das noites infantis!
Dos olhos vivos dos que são-te adeptos Bem como prata Eis se desata A aluvião de lágrimas febris!...
É que tu tens esse poder superno Real, sublime Que até ao crime Faz arrastar o mísero mortal!
É que tu és a embrionária horrível, Mística, ingente Que de repente Fazes de um ser estúpido animal!...
Tudo emudece na natura imensa Desde nos campos Os pirilampos Até as grimpas colossais do céu!...
Tudo emudece e até eu JULIETA, Já delirante Vou vacilante Cair-te aos pés como um servil, um réu!!...
(MUSAS DE TODOS OS TEMPOS)
SONETO
(O desembarque de Julieta dos Santos)
Chegou enfim, e o desembarque dela Causou-me logo uma impressão divina!
É meiga, pura como sã bonina, Nos olhos vivos doce luz revela!
É graciosa, sacudida e bela, Não tem os gestos de qualquer menina:
Parece um gênio que seduz, fascina, Tão atraente, singular é ela!
Chegou, enfim! eu murmurei contente!
Fez-se em minh’alma purpurina aurora, O entusiasmo me brotou fervente!
Vimos-lhe apenas a construção sonora, Vimos a larva, nada mais, somente Falta-nos ver a borboleta agora!
NA MAZURKA
Morava num palácio — estranha Babilônia De arcadas colossais, de impávidos zimbórios, Alcovas de damasco e torreões marmóreos, Volutas primorais de arquitetura jônia.
Assim, quando surgia em meio aos peristilos Descendo, qual mulher de Séfora, vaidosa, Envolta em ouropéis, em sedas, luxuosa, Cercavam-na do belo os místicos sigilos!
E quando nos saraus, assim como um rainúnculo, O lábio lhe tremia e o olhar, vivo carbúnculo, Vibrava nos salões, como uma adaga turca, Ou como o sol em cheio e rubro sobre o Bósforo, — Nos crânios os Homens sentiam ter mais fósforo...
Ao vê-la escultural no passo da Mazurka...
APÓS O NOIVADO
Em flácido divã ela resvala Na alcova — bem feliz, alegremente, E o fresco penteador alvinitente, De nardo e benjoim o aroma exala.
E o noivo todo amor, assim lhe fala, Por entre vibrações do olhar ardente:
Pertences-me afinal, pomba dormente, Parece que a razão de gozo, estala.
Mas eis — corre-se então nívea cortina;
E a plácida, a ideal, a branca lua Derrama nos vergéis a luz divina...
Depois... Oh! Musa audaz, ousada, e nua, Não rompas esse véu de gaze fina Que encerra um madrigal — Vamos... recua!... DORMINDO...
Pálida, bela, escultural, clorótica Sobre o divã suavíssimo deitada, Ela lembrava — a pálpebra cerrada —
Uma ilusão esplêndida de ótica.
A peregrina carnação das formas, — O sensual e límpido contorno, Tinham esse quê de avérnico e de morno, Davam a Zola as mais corretas normas!...
Ela dormia como a Vênus casta E a negra coma aveludada e basta Lhe resvalava sobre o doce flanco...
Enquanto o luar — pela janela aberta —
— Como uma vaga exclamação — incerta Entrava a flux — cascateado — branco!!...
CRENÇA
Filha do céu, a pura crença é isto Que eu vejo em ti, na vastidão das cousas, Nessa mudez castíssima das lousas, No belo rosto sonhador do Cristo.
A crença é tudo quanto tenho visto Nos olhos teus, quando a cabeça pousas Sobre o meu colo e que dizer não ousas Todo esse amor que eu venço e que conquisto.
A crença é ter os peregrinos olhos Abertos sempre aos ríspidos escolhos;
Tê-los à frente de qualquer farol E conservá-los, simplesmente acesos Como dois fachos — engastados, presos Nas radiações prismáticas do sol! ETERNO SONHO
Quelle est donc cette femme?
Je ne comprendra pas.
Félix Arvers Talvez alguém estes meus versos lendo Não entenda que amor neles palpita, Nem que saudade trágica, infinita Por dentro deles sempre está vivendo.
Talvez que ela não fique percebendo A paixão que me enleva e que me agita, Como de uma alma dolorosa, aflita Que um sentimento vai desfalecendo.
E talvez que ela ao ler-me, com piedade, Diga, a sorrir, num pouco de amizade, Boa, gentil e carinhosa e franca:
— Ah! bem conheço o teu afeto triste...
E se em minha alma o mesmo não existe, É que tens essa cor e é que eu sou branca!
LIRIAL
Vens com uns tons de searas, De prados enflorescidos E trazes os coloridos Das frescas auroras claras.
E tens as nuances raras Dos bons prazeres servidos Nos rostos enlourecidos Das parisienses preclaras.
Chapéu das finas elites, De rosas e clematites, Chapéu Pierrette — entre o sol Passando, esbelta e rosada, Pareces uma encantada Canção azul do Tirol. VANDA
Vanda! Vanda do amor, formosa Vanda, Macuama gentil, de aspecto triste, Deixa que o coração que tu poluíste Um dia, se abra e revivesça e expanda.
Nesse teu lábio sem calor onde anda A sombra vã de amores que sentiste Outrora, acende risos que não viste Nunca e as tristezas para longe manda.
Esquece a dor, a lúbrica serpente Que, embora esmaguem-lhe a cabeça ardente, Agita sempre a cauda venenosa.
Deixa pousar na seara dos teus dias A caravana irial das alegrias Como as abelhas pousam numa rosa.
ÊXTASE
Quando vens para mim, abrindo os braços Numa carícia lânguida e quebrada, Sinto o esplendor de cantos de alvorada Na amorosa fremência dos teus passos.
Partindo os duros e terrestres laços, A alma tonta, em delírio, alvoroçada, Sobe dos astros a radiosa escada Atravessando a curva dos espaços.
Vens, enquanto que eu, perplexo d’espanto, Mal te posso abraçar, gozar-te o encanto Dos seios, dentre esses rendados folhos.
Nem um beijo te dou! abstrato e mudo Diante de ti, sinto-te, absorto em tudo, Uns rumores de pássaros nos olhos. CELESTE
Vi-te crescer! tu eras a criança Mais linda, mais gentil, mais delicada:
Tinhas no rosto as cores da alvorada E o sol disperso pela loira trança.
Asas tinhas também, as da esperança...
E de tal sorte eras sutil e alada Que parecias ave arrebatada Na luz do Espaço onde a razão descansa!
Depois, então, fizeste-te menina, Visão de amor, puríssima, divina, Perante a qual ainda hoje me ajoelho.
Cresceste mais! És bela e moça agora...
Mas eu, que acompanhei toda essa aurora, Sinto bem quanto estou ficando velho.
AMOR!!...
Oferecido à Ilma. Sra. D. Pêdra como prova de imensa amizade e profundo amor que lhe consagra Amor, meu anjo, é sagrada chama Que o peito inflama na voraz paixão, Amo-te muito eu t’o juro ainda Deidade linda que não tem senão!
Virgem formosa, d’encantos bela, Gentil donzela, meu amor é teu.
Vou consagrar-te mil afetos tantos Puros e santos qual também Romeu!
Flor entre as flores, a mais linda, altiva Qual sensitiva, só tu és, ó sim.
Esses teus olhos sedutores, belos De mil anelos, me pedirão a mim.
Anjo, meu anjo, eu te adoro e amo.
Por ti eu chamo nas horas de dor.
Sem ti eu sofro; um sequer instante De ti perante só me dás valor. Meu peito em ânsias só por ti suspira Como da lira a vibrante voz!
Te vendo eu rio e senão gemendo Vou padecendo saudade atroz!
Amor ardente de meu coração Santa paixão em todo peito forte Eu hei de amar-te até mesmo a vida Deixar, querida, e abraçar a morte!
ROSA
A Moreira de Vasconcelos Et, rose, elle a vécu ce que vivent les roses, l’espace d'un matin.
Malherbe Rosa — chamava-se a estrela Daquelas flóreas paragens;
Era escutá-la e era vê-la Metida em brancas roupagens Todas de pregas e tufos, De laçarotes e rendas, Ou mesmo ouvir-lhe os arrufos Ou surpreender-lhe as contendas Nas lindas tardes radiadas Por cores de silforamas E sentir logo, inspiradas Do amor, as férvidas chamas.
Ela era um beijo fundido Ao cintilar de uma aurora, Um sonho eterno espargido Nos belos sonhos de Flora.
E tinha uns longes sublimes De grande força lasciva, A transudar, como uns crimes Do sangue, da carne altiva.
Contava tudo... mas tanto, Em turbilhões, em cascata, Que recordava esse canto Uma garganta de prata.
E quando os poetas, rapazes, A viam passar, vibrante, Mostrando as curvas audazes, Do corpo todo radiante, Diziam de entre os primores De estrofes mais dulçurosas:
— Tu és a gêmea das flores, Das rosas, perfeitas rosas.
Convulsionado e sem regra O coração nos palpita;
Andas alegre e se alegra A gente quando te fita.
Tens umas coisas estranhas Nas refrações da pureza...
Umas finuras tamanhas...
Uma sutil gentileza...
Ficas rosada se um tico Alguém te diz, de mais franco...
Mas como fica tão rico, Tão belo o rubro no branco, Nesse grácil e tão claro, Sereno e cândido rosto Que é mesmo um céu puro e raro Das alvoradas de agosto.
Depressa cobre-te o pejo A face nova e adorada, De sorte que sem desejo És — Rosa e ficas rosada.
Dos risos colhes a messe E és doce como o conforto, És casta como uma prece Gemida ao lado de um morto.
Para que a dor não te obumbre A glória de flores junca Tua vida e, por isso, nunca Nas mágoas terás vislumbre. Permita o bom sol que inunda De luz os bosques — permita Que sejas sempre fecunda De gozo e sempre bonita.
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Agora, quando alguém passa Por onde a estrela morava, Olhando pela vidraça Bem junto da qual bordava, Repara um silêncio triste Na sala — em crepes envolta, Onde parece que existe Profunda lágrima solta.
E sente por dentro d’alma Aquela angústia que esmaga Bem como em noites sem calma A vaga esmaga outra vaga.
Apenas as flores lindas Que vendo Rosa morriam Com brejeirices infindas De invejas que renasciam, Sem mais inúteis ciúmes, Abrem os frescos pistilos, Jogando aos céus, em perfumes, Os seus melhores sigilos.
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No entanto à luz soberana Do amor desfilam as rimas Dos poetas — como um hosana A quem já goza outros climas.
Rosa — chama-se a estrela Daquelas flóreas paragens;
Era escutá-la e era vê-la Metida em brancas roupagens, Para exclamar: — Dentro dela Existe a fibra gloriosa...
Ninguém viu coisa mais bela Nem Rosa... tão bela rosa!... FRÊMITOS
I
Ó pombas luminosas Que passais neste mundo eternamente Só a cantar os madrigais de rosas, Atravessados de um luar veemente, Inundados de estrelas e esplendores, De carinhos, de bênçãos e de amores.
II
Ó virgens peregrinas, De meigo olhar banhado de esperanças, Que perfumais com lírios e boninas A aurora de cristal das louras tranças, Que atravessais constantemente a vida Do sol eterno, da visão florida.
III
Amadas e felizes Gêmeas da luz das frescas alvoradas, Vós que trazeis nas almas as raízes Do que é são, do que é puro — ó vós amadas Prendas gentis do paternal tesouro, Iriados corações de fluidos de ouro.
IV
É para vós que eu quero Engrinaldar de tropos e de rimas, Num doce verso artístico e sincero, Esgrimir com belíssimas esgrimas A estrofe e dar-lhe os golpes mais seguros Para que brilhe como uns astros puros.
V
É só a vós, apenas, Que eu me dirijo, límpidas auroras, Que pelas tardes plácidas, serenas, Passais, galantes como ingênuas Floras, Coroadas de flor de laranjeira, Noivas, sorrindo à mocidade inteira.
VI
Porque é de vós que deve, De vós que o sonho eterno dulcifica, Partir o lume quando cai a neve, Surgir a crença poderosa e rica.
Porque afinal, o que se chama crença, Senão o amor e a caridade imensa?
VII
Os tristes e os pequenos Em quem descansam brandamente os olhos, Esses humildes, rotos Nazarenos Que vivem, morrem suportando abrolhos, Senão nos grandes entes piedosos Que dão-lhes força aos transes dolorosos?
VIII
Oh, sim que a força eterna Parte dos corpos rijos da saúde, Perante a lei da vida que governa, O nobre, o rei, o proletário rude;
Parte dos seres fartos de carinhos Como de paz e de alegria os ninhos.
IX
Eu peço para todos E peço a vós que sois as fortalezas Da esperança, da fé — a vós que os lodos Da miséria, do vício, das baixezas, Não denegriram essas consciências Castas e brancas como as inocências.
X
Nem se esperar devia Que eu tentasse bater a outras portas, Quando vós sois o exemplo de Maria;
Não andais mudas, regeladas, mortas Pela noite voraz da sepultura E escutareis os dramas da amargura.
XI
Não julgueis que eu vos peça, Uma alvorada feita de um sorriso;
A minh'alma garante e vos confessa Que se crê nas mansões do Paraíso, É porque vós reinais por sobre a terra E o Paraíso dentro em vós se encerra.
XII
A vós, a vós compete A glória do dever — porque assim como A luz do sol na lua se reflete, Também das aflições no duro assomo, Da pobreza refletem-se nas almas, Vossas imagens, como auroras calmas.
XIII
Portanto, a mocidade Vossa, terá de ser de hoje em diante, Enquanto a esmagadora atrocidade Da peste — nos vorar d’instante a instante, Quem se há de encarregar desta manobra Do galeão da vida que sossobra.
XIV
E para isso, ó rainhas Da juventude — tendes as quermesses Que dão bons frutos assim como as vinhas;
As matinées de cânticos e preces, Os cintilantes, pródigos bazares Onde a luz salta extravasando em mares.
XV
Enquanto a mim, na arena Da heroicidade humana que consola, Oh, faz-me bem a vibração da pena, Pelo amor, pelo afago, pela esmola, Como um radiante e fúlgido estilhaço De sol febril no mármore do Espaço!
ADALZIZA
Tens um olhar cintilante, Tens uma voz dulçurosa, Tens um pisar fascinante, Tens um olhar cintilante Cheio de raios, faiscante Ó criatura formosa, Tens um olhar cintilante, Tens uma voz dulçurosa!... O BOTÃO DE ROSA
A uma atriz O campo abrira o seio às expansões frementes Das árvores senis, dos galhos viridentes.
Caía a tarde fresca Loira, gentil, vivaz como a canção tudesca.
A iluminada esfera Calma, profunda, azul como um sonhar de virgem, Dava um brilho-cetim às verdes folhas d’hera.
No ar uma harmonia avigorada e casta, No crânio uma vertigem Duma idéia viril, duma eloqüência vasta.
Tardes formosíssimas, Ó grande livro aberto aos geniais artistas, Como tanto alargais as crenças panteístas, Como tanto esplendeis e como sois riquíssimas.
Quanta vitalidade indefinida, quanta, Na pequenina planta, No doce verde-mar dos trêmulos arbustos, Que misticismo, justos, Bebia a alma inteira ao devassar o arcano Das árvores titãs, das árvores fecundas Que tinham, como o oceano, Febris palpitações intérminas, profundas.
Esplêndidas paisagens, Opunhas o largo campo às vistas deslumbradas.
As múrmuras ramagens, À luz serena e terna, à luz do sol — que espadas De fogo arremessava, em frêmitos nervosos, Pelo côncavo azul dos céus esplendorosos, Tinham falas de amor, segredos vacilantes Finos como os brilhantes.
A música das aves Cortava o éter calmo, em notas multiformes, Límpidas e graves Que estouravam no ar em convulsões enormes.
Aqui e além um rio Serpejava na sombra, em meio de um rochedo Áspero e sombrio.
O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo E o espírito mudo, Como um herói gigante avassalavam tudo... Nuns madrigais risonhos Abria-se o país fantástico dos sonhos.
Alavam-se os aromas Leais, inexauríveis Das largas e invisíveis Selváticas redomas.
A seiva rebentava Em ondas — irrompia Na doce e maviosa e plácida alegria De uma ave que cantava, Dos belos roseirais Que ostentavam a flux as rosas virginais.
E as jubilosas franças Dos arvoredos altos, Rígidos, atléticos, Derramavam no campo uns fluidos magnéticos Dumas vontades mansas.
A doce alacridade ia explosindo aos saltos.
E toda a natureza Robusta de saúde e estrênua de grandeza Libérrima e vital, Erguia-se pujante, audaz e redentora, No gérmen material da força criadora, Dentre a vida selvagem mística, animal...
Dos roseirais preciosos Nos renques primorosos, Numa linda roseira abria castamente, Como um sonho de luz numa cabeça ardente, O mais belo, o mais puro entre os botões de rosa.
Tinha essa cor formosa, Tinha essa cor da aurora, Quando ensangüenta em rubro a vastidão sonora Era um botão feliz Sorrindo para o Azul, zombando da matéria.
Tinha o leve quebranto e a maciez etérea Que uma estrofe não diz.
Das pétalas macias, Das pétalas sangüíneas, Doces como harmonias Brandas e velutíneas Uns perfumes sutis se espiralavam, raros, Pela mansão do Bem, pelos espaços claros. Perfumes excelentes, Perfumes dos melhores, Perfumes bons de incógnitos Orientes.
Matéria, não deplores O viver natural dos vegetais alegres;
Eles são mais ditosos Que os nababos e reis nos seus coxins pomposos;
E por mais que tu regres Ó matéria fatal, a tua vida inteira, No rigor da higiene;
E por mais que a maneira Do teu grande existir, desse existir — perene De ironias e pasmos, Explosões de sarcasmos Tu completes, matéria — ó humanidade ousada —
Com a ciência altanada;
E por mais que no século, Tu mergulhes a idéia, o prodigioso espéculo, Será sempre maior e exuberante e forte, Ó matéria fatal, Essa vida tão rica Que se corporifica Na valente coorte Do poder vegetal.
Era um botão feliz, Cuja roseira, impávida, Ébria de aromas bons, ébria de orgulhos — ávida De completa fragrância, Palpitava com ânsia Desde a própria raiz.
E entanto o sol tombara e triunfantemente Como um supremo Rubens, Jorrando à curvidade etérea do poente, O ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens, Numa distribuição simpática de cores, De tintas e de luzes De galas e fulgores Rubros como o estourar dos férvidos obuses.
O cérebro em nevrose, No pasmo que precede a augusta apoteose De uma excelsa visão perfeitamente bela, De uma excelsa visão em límpidos dosséis, Exaltava o acabado artístico da Tela E o gosto dos pincéis. Caíam da amplidão em névoas singulares Os pálidos crepúsculos.
Os fúlgidos altares Do homem primitivo — a relva, o prado, o campo Onde ele ia buscar a força de uma crença Que então lhe iluminasse a alma escura e densa Morriam de clarões — os poderosos músculos Da fértil mãe de tudo — a natureza ingente —
Deixavam de bater. — O olhar do pirilampo Oscilava, tremia — azul, fosforescente.
As sombras vinham, vinham Lembrando um batalhão d’espectros que caminham E a casta nitidez sintética das cousas Tomava a proporção das funerárias lousas.
Completara-se então o mais extraordinário, O mais extravagante Dos fenômenos todos:
A noite. — Enfim descera a treva do Calvário, A treva que envolveu o Cristo agonizante.
Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos.
A abóbada espaçosa, a física amplitude, Mostrava a profundez da angústia de ataúde De um operário pobre, Quando se escuta o dobre Amplíssimo e funéreo, Sinistro e compassado, Rolar pela mansão gloriosa do mistério, Assim com um soluço aflito, estrangulado.
Devia ser, devia Por uma noite assim, Como esta noite igual, Que derramou Maria A lágrima da dor, — que o célebre Caim Sentiu do crânio as convulsões do Mal.
Mas o botão de rosa, Traído pelo estranho zéfiro da sorte, Rolou como uma cisma Intensa e luminosa Ardente e jovial em que a razão se abisma E foi cair, cair no pélago da morte, Em um dos mais raivosos, Em um dos mais atrozes Rios impetuosos, Cheios de surdas vozes, Sozinho, em desamparo, assim como um proscrito, Em meio à placidez Dos astros no infinito E à mesma irracional e fúnebre mudez.
Depois e além de tudo, Além do grave aspecto inteiramente mudo, Ao tempo que morria O cândido botão — em um dos tantos galhos Virentes da roseira — alegre no ar se abria Um outro que ostentava as pétalas sedosas, As pétalas gracis de cores deliciosas, De cores ideais.
As auras musicais Passavam-lhe de leve, Nos tímidos rumores, De um ósculo mais breve E dentre a exposição das delicadas flores, Das rosas — o botão Aberto ultimamente às cúpulas austeras, Às plagas da esperança, a irmã das primaveras, Pendido um quase nada, esbelto na roseira, Mostrava aquela unção, A ínclita maneira De quem se glorifica Subindo ao céu azul da majestade pura, Da eterna exuberância, Da fonte sempre rica, Da esplêndida fartura Da luz imaculada — a egrégia substância Que faz das almas claras Pela fecundidade olímpica do amor, Magníficas searas, De onde se difunde à vida sempiterna, À vida essencial, à lei que nos governa, À idéia varonil do poeta sonhador.
A arte especialmente, esse prodígio, atriz, Como o botão de rosa Tão meigo e tão feliz, Pode ser arrojada e brutalmente, ao pego, Na treva silenciosa, Onde o espírito vai, atordoado e cego, Cair, entre soluços, Como um colosso ideal tombado ao chão de bruços, Ou pode equilibrar-se em admirável base Estética e profunda, Assim, bem como o outro, a mais radiosa altura.
Deves sondá-la bem nesta segunda fase.
Precisas para isso uma alma mais fecunda.
Precisas de sentir a artística loucura...
[Ó ADALZIZA DOS SONHOS]
Ó Adalziza dos sonhos;
Estrela dos firmamentos Dos meus cantares risonhos, Ó Adalziza dos sonhos, Rasga esses véus enfadonhos Dos teus louros pensamentos, Ó Adalziza dos sonhos, Estrela dos firmamentos.
[ZULMIRA DOS MEUS AMORES]
Zulmira dos meus amores, Zulmira das minhas cismas, Resplandece como as flores, Zulmira dos meus amores Abre os olhos sedutores Nos quais a minh'alma abismas, Zulmira dos meus amores, Zulmira das minhas cismas.
[DEIXAI QUE A MINH'ALMA ESCASSA]
Deixai que a minh'alma escassa De luz — aos astros emigre Como gaivota que passa Deixai que a minh'alma escassa De amor — na plúmbea desgraça De atrozes garras de tigre, Deixai que a minh'alma escassa De luz — aos astros emigre.
[Ó CINTILANTE QUIQUIA]
Ó cintilante Quiquia, Menina dos meus olhares, Flor azul da simpatia, Ó cintilante Quiquia, Rasga este céu da alegria Dos meus risonhos cantares, Ó cintilante Quiquia, Menina dos meus olhares.
[OLHOS PRETOS, SONHADORES]
Olhos pretos, sonhadores Ó celeste Carolina, Como são esmagadores Olhos pretos sonhadores, Como vibram dos amores A noss'alma cristalina, Olhos pretos, sonhadores, Ó celeste Carolina.
[Ó FLORA, Ó NINFA DAS ROSAS]
Ó Flora, ó ninfa das rosas, Ó frescura dos morangos, Abre as pupilas radiosas, Ó Flora, ó ninfa das rosas, Dá-me as estrelas formosas Do olhar repleto de tangos, Ó Flora, ó ninfa das rosas, Ó frescura dos morangos.
[MORENA DOS OLHOS PRETOS] Morena dos olhos pretos Dos olhos pretos, morena, Escuta os vagos duetos Morena dos olhos pretos, Faremos ambos, tercetos, Com esta esfera serena, Morena dos olhos pretos, Dos olhos pretos, morena.
[ALZIRA, ALZIRA, ALZIRA]
Ó Alzira, Alzira, Alzira, Estrela resplandecente, Resplandecente safira, Ó Alzira, Alzira, Alzira, Às vibrações desta lira, Acorda do sono ardente, Ó Alzira, Alzira, Alzira, Estrela resplandecente.
[COMO UM CISNE, EST’ALMA FRISA]
Como um cisne, est’alma frisa O mar de luz de teus olhos, Ó simpática Adalziza Como um cisne, est’alma frisa, Vagueia, paira, desliza Sem naufragar nos escolhos Como um cisne, est’alma frisa O mar de luz de teus olhos.
FLORIPES
Fazes lembrar as mouras dos castelos, As errantes visões abandonadas Que pelo alto das torres encantadas Suspiravam de trêmulos anelos. Traços ligeiros, tímidos, singelos Acordam-te nas formas delicadas Saudades mortas de regiões sagradas, Carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.
Um requinte de graça e fantasia Dá-te segredos de melancolia, Da Lua todo o lânguido abandono...
Desejos vagos, olvidadas queixas Vão morrer no calor dessas madeixas, Nas virgens florescências do teu sono.
(CAMPESINAS E OUTROS VERSOS)
CAMPESINAS
I
Camponesa, camponesa, Ah! quem contigo vivesse Dia e noite e amanhecesse Ao sol da tua beleza.
Quem livre, na natureza, Pelos campos se perdesse E apenas em ti só cresse E em nada mais, camponesa.
Quem contigo andasse à toa Nas margens duma lagoa, Por vergéis e por desertos, Beijando-te o corpo airoso, Tão fresco e tão perfumoso, Cheirando a figos abertos.
II
De cabelos desmanchados, Tu, teus olhos luminosos Recordam-me uns saborosos E raros frutos de prados. Assim negros e quebrados, Profundos, grandes, formosos, Contêm fluidos vaporosos São como campos mondados.
Quando soltas os cabelos Repletos de pesadelos E de perfumes de ervagens;
Teus olhos, flor das violetas, Lembram certas uvas pretas Metidas entre folhagens.
III
As papoulas da saúde Trouxeram-te um ar mais novo, Ó bela filha do povo, Rosa aberta de virtude.
Do campo viçoso e rude Regressas, como um renovo, E eu ao ver-te, os olhos movo De um modo que nunca pude.
Bravo ao campo e bravo à seara Que deram-te a pele clara Sãos rubores de alvorada.
Que esses teus beijos agora Tenham sabores de amora E de romã estalada.
IV
Através das romãzeiras E dos pomares floridos Ouvem-se às vezes ruídos E bater d’asas ligeiras.
São as aves forasteiras Que dos seus ninhos queridos Vêm dar ali os gemidos Das ilusões passageiras.
Vêm sonhar leves quimeras, Idílios de primaveras, Contar os risos e os males.
Vêm chorar um seio de ave Perdida pela suave Carícia verde dos vales.
V
De manhã tu vais ao gado A cantar entre as giestas, Com tuas graças modestas, Correndo e saltando o prado.
E a veiga e o rio e o valado Que todos dormem às sestas Acordam-se ante as honestas Canções desse peito amado.
As aves nos ares gozam, Entre abraços se desposam, No mais amoroso enlace.
E as abelhas matutinas Que regressam das boninas Voam-te em torno da face.
VI
As uvas pretas em cachos Dão agora nas latadas...
Que lindo tom de alvoradas1 Na vinha, junto aos riachos.
Este ano arados e sachos Deixaram terras lavradas, À espera das inflamadas Ondas do sol, como fachos.
Veio o sol e fecundou-as, Deu-lhes vigor, enseivou-as, Tornou-as férteis de amor.
Eis que as vinhas rebentaram E as uvas amaduraram, Sanguíneas, com sol na cor.
1 Na coleção de manuscritos existente na Fundação Biblioteca Nacional, encontramos uma variação deste verso:
“Que linda cor de alvoradas”. VII
Engrinaldada de rosas, Surge a manhã pitoresca...
Que linda aquarela fresca Nas veigas deliciosas!
Que bom gosto e perfumosas Frutas traz, madrigalesca A rapariga tudesca Que vem das searas cheirosas!
Como os rios vão cantando, Em sons de prata, ondulando, Abaixo pelos marnéis!
Que carícia nas verduras, Que vigor pelas culturas, Que de ouro pelos vergéis!
VIII
Orgulho das raparigas, Encanto ideal dos rapazes, Acendes crenças vivazes Com tuas belas cantigas.
No louro ondear das espigas, Boca cheirosa a lilases, Carne em polpa de ananases Lembras baladas antigas.
Tens uns tons enevoados De castelos apagados Nas eras medievais.
Falta-te o pajem na ameia Dedilhando, à lua cheia, O bandolim dos seus ais!
IX
NO CAMPO SANTO
Morreste no campo um dia, Como uma flor desprezada.
Clareava a madrugada Azul, vaporosa e fria.
Sobre a agreste serrania, Numa ermida branqueada1 Por uma manhã doirada Um sino repercutia.
Teu caixão, de camponesas E camponeses seguido, Desceu abaixo às devesas.
Ganhou o atalho comprido De casas em correntezas E entrou num campo florido.
1 Na coleção de manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional, este verso está: “Numa ermida branqueada.”
(Campesinas: variações e acréscimos recolhidos nos manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional)
VIII
Pelos vales e colinas Os bandos das pombas voam...
E as latadas das boninas As rentes cercas coroam.
Entre o rumor das campinas Os carros de bois ressoam...
E nas névoas matutinas Já os raios de sol coam.
Que aurora flor das auroras!
Nas frescas águas sonoras Bóiam ilhas de verdura.
E na fita dos caminhos Onde trinam os passarinhos Vens vindo a rir, formosura.
IX
Foste à fonte buscar água E tinha secado a fonte...
Pobre flor azul do monte Tiveste a primeira mágoa. Porém se uma alma na frágua Das dores, sem horizonte, Queres ver, sentir defronte Dos olhos, manda, que eu trago-a.
Vou t’a levar à presença Para que vejas a imensa Mágoa atroz que a devorou.
E saibas, ó sol das flores, Que a fonte dos seus amores Eternamente secou.
XII
A pomba o vôo descerra Para além dos infinitos, Deixando todos os ritos Das religiões cá da terra.
Ganha o mar e ganha a serra Em busca de novos mitos Desses bíblicos Egitos Da Fé, que vagueia e que erra...
Quem tem sede de carinhos Faz como pomba, procura Corações que sejam ninhos.
Vai em busca ventura, Da paz dispersa em caminhos Que vão dar à sepultura.
XIII
Fui aos morangos do prado E nunca os vi tão formosos...
Que perfume delicado, Que cores, que tons preciosos.
Cor de sangue atravessado De acesos sóis radiosos Num rubro ocaso doirado, Por horizontes calmosos;
Através da luz da aurora Vivaz e fresca e sonora, Num resplendor nunca visto;
Pareceram-me umas gotas De sangue das carnes rotas Das mãos e dos pés de Cristo.
XVI
Acordo de manhã cedo, Da luz aos doces carinhos...
Que rosas pelos caminhos, Que rumor pelo arvoredo.
Para o azul radioso e ledo Sobe, de dentro dos ninhos, O canto dos passarinhos, Cheio de amor e segredo...
Dentre as moitas de verdura Voam as pombas nevadas, Imaculadas de alvura.
Pela margem das estradas Que penetrante frescura, Que femininas risadas!
XV
Os olhos das adoradas São como os campos festivos Cheios dos brilhos mais vivos Das alegres madrugadas.
Como as frescas alvoradas Há pelos campos estivos Lindos cantos expressivos De camponesas medradas;
Nos olhos das que adoramos Há aves cantando e ramos Noivados do nosso amor.
Perspectivas radiantes Só vistas pelos amantes De almas abertas em flor!
XVI
De manhã cedo os rebanhos Saltam, galgam montanhosos Alcantis esplendorosos, Cheios de brilhos estranhos.
E quando após os amanhos Dos terrenos vigorosos Os lavradores sequiosos Regressam de afãs tamanhos;
Quando o sol no ocaso em chamas Veste as árvores de lhamas E luminosos veludos;
Entre as trêmulas guitarras Das nostálgicas cigarras Quedam-se os gados lanzudos.
XVII
São tantas as sementeiras Como as estrelas são tantas...
Ah! que virgens bebedeiras Vêm dos aromas das plantas.
Nas terras alvissareiras De novas colheitas santas, Que brotos de trepadeiras, Que vinhas quantas e quantas.
Como a seiva e o viço estoura Pelos campos da lavoura, Num frenesi de novilho...
Só tu, infecunda e triste, De gelo, nunca sentiste Os vivos germens de um filho!
XVIII
Por estas manhãs sonoras Em tudo a luz vibra e salta E arroios, várzeas esmalta De deslumbrantes auroras.
São mais alegres as horas, Nem o humor às almas falta E de uma força mais alta Fecundam-se as virgens floras.
Os aspectos de verdura Recebem formas serenas D’encantos e de frescura.
Ah! que ruflados de penas Na luz que canta na altura, Nas folhagens de açucenas!

(1889)
(Outros versos)

AO AR LIVRE
A Virgílio Várzea Tu trazes agora o peito Como essas urnas sagradas, Repleto de gargalhadas, Sonoro, bom, satisfeito.
Por dentro cantam assombros E causas esplendorosas Como latadas de rosas Dos muros entre os escombros.
Quando o ideal nos alaga, Embora as lutas do mundo, Levanta-se um sol fecundo Do peito em cada uma chaga.
Voltou-se a seiva de outrora, De outro, mais forte e destro, Iluminado maestro, Das harmonias da aurora.
Fulgurem por isso as musas, As belas musas, por isso...
Voltou-te o passado viço, Foram-se as mágoas, confusas.
Agora, quando eu dirijo Meus passos, à tua porta, Sinto-te um bem que conforta, Vejo-te alegre e mais rijo. Porque afinal pela vida Nem tudo se desmorona Quando se vaga na zona Da mocidade florida.
Gostas de ver pelos ramos Das verdes árvores novas, A chocalhar umas trovas, Coleiros e gaturamos.
Já podes bem comer frutas, Os teus simpáticos jambos, E ouvir alguns ditirambos Da natureza nas grutas.
Podes olhar as esferas, Com ar direito e seguro, De frente para o futuro, De lado para as quimeras.
Não tenhas cofres avaros De santos — na luz te afoga, E a alma arremessa e joga Por esses páramos claros.
Reúne os sonhos dispersos Como andorinhas vivaces E o colorido das faces Ao coberto dos versos.
Como uns lábaros vermelhos, Contente como os lilases, As crenças dos bons rapazes Tem prismas como os espelhos.
NATUREZA
Aos poetas Tudo por ti resplende e se constela, Tudo por ti, suavíssimo, flameja;
És o pulmão da racional peleja, Sempre viril, consoladora e bela.
Teu coração de pérolas se estrela, E o bom falerno dás a quem deseja Vigor, saúde à crença que floreja, Que as expansões do cérebro revela.
Toda essa luz que bebe-se de um hausto Nos livros sãos, todo esse enorme fausto Vem das verduras brandas que reluzem!
Esse da idéia esplêndido eletrismo, O forte, o grande, audaz psicologismo, Os organismos naturais produzem...
NOS CAMPOS
Por entre campos de seara loura De alegre sol puríssimo batidos, Passam carros chiantes de lavoura E raparigas sãs, de coloridos Que a luz solar que as ilumina e doura Lembram pomares e jardins floridos, Por entre campos de seara loura.
A Natureza inteira reverdece Pelos montes e vales e colinas;
E o luar que freme, anseia e resplandece, Movido por aragens vespertinas, Parece a alma dos tempos que floresce...
Enquanto que por prados e campinas A Natureza inteira reverdece.
A paz das coisas desce sobre tudo!
E no verde sereno d’espessuras, No doce e meigo e cândido veludo, Tremem cintilações como armaduras Ou como o aço brunido dum escudo;
Enquanto que das límpidas alturas A paz das coisas desce sobre tudo!
A casa, a rude tenda construída, Onde habitam as mães e as crianças Promiscuamente, nessa mesma vida De perfume lirial das esperanças, Como é feliz, dos astros aquecida!
Aquecida do Amor nas asas mansas A casa, a rude tenda construída. As bocas impolutas e cheirosas Das raparigas, pródigas belezas De finos lábios púrpuros de rosas, Abrem, cheias de angélicas purezas, As cristalinas fontes murmurosas De risos, refrescando em correntezas As bocas impolutas e cheirosas.
Da vida aurora rica do seu sangue Flameja a carne em báquicas vertigens!
E quem tiver uma epiderme exangue Para ficar com essas faces virgens, Para não ser mais pálida nem langue, Tem de beber das cálidas origens Da viva aurora rica do seu sangue.
Lindas ceifeiras percorrendo. searas Nos campos, ó bizarras raparigas, Pelas manhãs e pelas tardes claras Vós desfolhais sorrisos e cantigas Que deixam ver as pérolas mais raras Dos dentes brancos, frescos como estrigas...
Lindas ceifeiras percorrendo searas!
A BORBOLETA AZUL
No alegre sol de então De uma manhã de amor, A borboleta solta no fulgor Da luz, lembrava um leve coração.
Ia e vinha e a voar Gentil e trêfega, azul, Sonoramente a percorrer pelo ar, Como um silfo tenuíssimo e taful.
Sobre os frescos rosais Pousava débil, sutil, Doirando tudo de um risonho abril Feito de beijos e de madrigais.
Que doce embriaguez O vôo assim seguir Da borboleta azul, correndo, a vir Do espaço pela Etérea candidez! Fazendo, tal e qual, O mesmo giro assim, O mesmo vôo límpido, sem fim, Nos mundos virgens de qualquer ideal.
Ir como ela também Em busca das loucas E tropicais e fúlgidas manhãs Cheias de colibris e sol, além...
Ir com ela na luz De mundos através, Sem abrolhos nas mãos, cardos nos pés, Ó alma minha, que alegria a flux!...
No alegre sol de então De uma manhã de amor A borboleta solta no fulgor Da luz, lembrava um leve coração.
RENASCIMENTO
Canta ao sol como as cigarras A tua nova alegria.
No Azul ressoam fanfarras Da grande vida sadia.
Alerta, um clarim de alerta Àquela antiga saúde:
— À clara janela aberta Para o mar salgado e rude.
Que volte, ruidosa, agora, Como um pássaro marinho, A tua saúde, a aurora Do teu sangue, estranho vinho.
E como espiga madura Floresce outra vez à vida, Resplandece à formosura, Ó torre de ouro florida!
Quero-te em rosas festivas A polpa das carnes brancas. E rindo-te às forças vivas Com rubras risadas francas.
Formosa, soberba e nua, Nesse olhar que tudo abrange, Na fronte um diadema, em lua Num talhe curvo de alfanje;
Vem! o sol é teu amante!
Ah! vem mergulhar nos braços Do flavo sultão radiante Do harém azul dos espaços.
ABELHAS
Gotas de luz e perfume, Leves, tênues, delicadas, Acesas no doce lume De purpúreas alvoradas.
Pingos de ouro cristalinos Alados na esfera, ondeando, Dispersos por entre os hinos Da natureza vibrando.
Sorrisos aéreos, soltos, Flavas asas radiantes, Que levam consigo envoltos Da aurora os sóis fecundantes.
Da aurora que a primavera Faz cantar, brota no peito E floresce em folhas de hera O coração satisfeito.
Essa aurora produtiva Do amor soberano e eterno, Que é nas almas força viva E nas abelhas falerno.
Nas doudejantes abelhas Que dentre flores volitam E do sol entre as centelhas Resplendem, fulgem, palpitam. Zumbem, fervem nas colméias E rumorejam no enxame Pelas flóridas aléias Onde um prado se derrame.
Assim mesmo pequeninas E quase invisíveis, quase, Com as suas asitas finas, De etérea de fluida gaze.
Ah! quanto são adoráveis Os favos que elas fabricam!
Com que graças inefáveis Se geram, se multiplicam.
Nos afãs industriosos Que enlevo, que encanto vê-las Com seus corpos luminosos D'iriante brilho d'estrelas.
E nas ondas murmurosas Dos peregrinos adejos Vão dar ao lábio das rosas O mel doirado dos beijos.
BESOUROS...
Marche, marche, marche a verve!
Bandeiras, clarins, tambores, Marchar!
A poncheira ideal, que ferve, Sons, aromas, chamas, cores!
Cantar!
Que este diabo vem, saudoso, Das profundezas do arcano, Viver!
O vinho maravilhoso Da forma raro e renano, Beber!
Vem beber o vinho iriado, O Falerno, claro e quente, Haurir!
Num paladar requintado, Todo inflamado e fremente Sentir!
Que o sangue da verve vibre Raja, raja, raja, raja, Taful!
E a alma do sol se equilibre Para que mais sonhos haja No azul!...
Mas este diabo tão fino, Que de tudo dá o acorde Genial!
Este capróide genuíno, Verde, verde, morde, morde, Fatal.
PAPOULA
A Oscar Rosas Assim loura és mais formosa Do que se fosses trigueira:
Corpo de eflúvios de rosa Com esbeltez de palmeira.
Vestida de cor da aurora Leve dos fluidos da graça, És uma estrela sonora Que, em sonhos, pelo éter passa.
Resplandece em teu cabelo Um fulgor de sol dourado, Que só de senti-lo e vê-lo Fica tudo iluminado.
Do teu branco leque aberto Que lembra uma asa de garça,1 Aspiro um perfume incerto, Talvez a tua alma esparsa. Num resplendor de madona E altivez de corça arisca2 Surges da luz entre a zona Com quebrantos de odalisca.
Que venha o duque normando De castelos escoceses Com seu ar bizarro e brando Amar-te os olhos ingleses.
E entre aromas e frescores E revoadas de abelhas, Como num campo de flores Que esse olhar vibre centelhas.
Que cantem na tua boca As alegrias radiadas, Numa ideal rajada louca De vôos de passaradas.
Que como os astros no espaço, Teu encanto resplandeça...
Com pelúcias no regaço E asas de ave na cabeça.
E que os teus dois seios puros Que o amor fecundando beija Fiquem cheios e maduros Com dois bicos de cereja.
1 Nos manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional este verso termina em “graça” ao invés de “garça”.
2 Idem “a risca” ao invés de “arisca”.
NA VILA
Nos ervaçais vibrou o sol agora, Nas fitas verdes dos canaviais...
Como rompesse loura e fresca a aurora Agora o sol vibrou nos ervaçais.
Murmurejam de alegres os caminhos Que até parecem, límpidos, cantar Na música melódica dos ninhos Que vai nos ares se cristalizar. Floresce tudo, em toda parte flores Neste maio feliz, e tão feliz Que as plantas exuberam de vigores Desde a profunda, pródiga raiz.
Noivam as aves junto dos riachos No seu alado alvorecer de amor;
E o coqueiral, com os amarelos cachos, Pompéia de riquíssimo verdor.
Fluem na sombra meigas fontes claras1 Sob o frondente e vasto laranjal E para além magníficas searas Se estendem como um leito virginal.
Na serena paz vegetativa Faz docemente tudo adormecer Mas num sono de luz doirada e viva, Quase a dormência de quem vai morrer...
Ah! que o silêncio, a solidão dos ermos, Das agrestes paragens do sertão Se dão saúdes a espíritos enfermos Também supremas nostalgias dão!
A volúpia letal do meio-dia, Nas horas encalmadas, sob a luz, Dá duma campa a atroz melancolia Assinalada numa simples cruz.
Depois o campo na mudez da vila, Aquela eterna e soberana paz Da imensa vastidão sempre tranqüila Como que punge e que entristece mais!
1 Nos manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional este verso está grafado: “Fluem na sombra as meigas fontes claras”.
PLANGÊNCIA DA TARDE
Quando do campo as prófugas ovelhas Voltam a tarde, lépidas, balando, Com elas o pastor volta cantando E fulge o ocaso em convulsões vermelhas. Nos beirados das casas, sobre as telhas, Das andorinhas esvoaça o bando...
E o mar, tranqüilo, fica cintilando Do sol que morre às últimas centelhas.
O azul dos montes vago na distância...
No bosque, no ar, a cândida fragrância Dos aromas vitais que a tarde exala.
Às vezes, longe, solta, na esplanada, A ovelha errante, tonta e desgarrada, Perdida e triste pelos ermos bala ...
FRUTAS E FLORES1 Laranjas e morangos — quanto às frutas, Quanto às flores, porém, ah! quanto às flores, Trago-te dálias rubras, d'essas cores Das brilhantes auroras impolutas.
Venho de ouvir as misteriosas lutas Do mar chorando lágrimas de amores;
Isto é, venho de estar entre os verdores De um sítio cheio de asperezas brutas, Mas onde as almas — pássaros que voam —
Vivem sorrindo às músicas que ecoam Dos campos livres na rural pobreza.
Trago-te frutas, flores, só apenas, Porque não pude, irmã das açucenas, Trazer-te o mar e toda a natureza!
1 Nos manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional encontramos uma variação para o primeiro verso deste soneto no qual “goiabas” substitui “morangos”.
NO CAMPO
Acordo de manhã cedo Da luz aos doces carinhos:
Que rosas pelos caminhos!
Que rumor pelo arvoredo! Para o azul radioso e ledo Sobe, de dentro dos ninhos, O canto dos passarinhos Cheio de amor e segredo.
Dentre moitas de verdura Voam as pombas nevadas, Imaculadas de alvura.
Pelas margens das estradas Que penetrante frescura Que femininas risadas!
LUAR
Ao longo das louríssimas searas Caiu a noite taciturna e fria...
Cessou no espaço a límpida harmonia Das infinitas perspectivas claras.
As estrelas no céu, puras e raras, Como um cristal que nítido radia, Abrem da noite na mudez sombria O cofre ideal de pedrarias caras.
Mas uma luz aos poucos vai subindo Como do largo mar ao firmamento — abrindo Largo clarão em flocos d’escumilha.
Vai subindo, subindo o firmamento!
E branca e doce e nívea, lento e lento, A lua cheia pelos campos brilha...
[ESTAS RISADAS LÍMPIDAS E FRESCAS]
Estas risadas límpidas e frescas Que Pan trauteia em cálamos maviosos Nesta amplidão dos campos verdurosos, Nestas paisagens flóreas, pitorescas;
Toda esta pompa e gala principescas Destas searas, destes altanosos Montes e várzeas, prados vigorosos, Louros — talvez como as visões tudescas;
Este luxuoso e rico paramento, Feito de luz e de deslumbramento — Do grande altar da natureza imensa.
Aguarda o poeta sacerdote augusto, Para cantar no seu missal robusto, A nova Missa da razão que pensa...
OS RISONHOS
Pastores e camponesas De rudes almas esquivas Passam entre as candidezas Das estrelas fugitivas.
Parece que nada os punge, Nada os punge e sobressalta.
A lua que os campos unge No firmamento vai alta.
E eles passam sob a lua, De queixas desafogados, A cabeça livre e nua, Na florescência dos prados.
Seres meigos e singelos, Mulheres de lindo rosto, Lábios cálidos e belos, Do quente sabor do mosto.
Pastores de tez morena, Queimados ao sol adusto:
Claridade bem serena No fundo do olhar bem justo.
Neles tudo é riso e festa, Neles tudo é festa e riso, Frescuras brandas de giesta E graças de Paraíso.
Simples, toscas e felizes, Sem ter um laivo de mágoa:
Almas das verdes raízes, Limpidez de gota d'água.
Neles tudo é paz de aldeia E ri com os risos mais frescos...
O céu inteiro gorjeia Idílios madrigalescos.
Seduzido por miragens Caminha o bando risonho Dessas virentes paragens, Levado na asa de um sonho.
Nele tudo ri sem ânsia E com doçura secreta;
E como uma nova infância Cantantemente irrequieta.
Encantos de mocidade, Saúde, fulgor, vigores, Dão-lhe a doce suavidade Maravilhosa das flores.
Os corações, florescentes, Vão nesses peitos cantando E rindo em festins ardentes E dentre os risos sonhando.
Ri na boca, ri nos olhos, Nas faces o bando, rindo O bom riso sem abrolhos, Que lembra um campo florindo.
Rindo em sonoras risadas, Rindo em frêmitos vivazes, Rindo em risos de alvoradas, Rindo em risos de lilases.
Os campos entontecidos Nos vinhos da lua clara Ficam bizarros, garridos, De vitalidade rara.
As águas claras das fontes Vibram lânguidas sonatas E as nuvens vestem os montes Das visões mais timoratas. Na copa dos arvoredos, Nas orvalhadas verduras Há sonâmbulos segredos E murmuradas ternuras.
E o bando festivo passa Rindo, alegre, casto e suave, Iluminado de graça, Mais leve que um vôo de ave.
Podeis rir, almas ditosas, Almas novas como frutos De vinhas miraculosas De pomares impolutos.
Podeis rir, almas eleitas Que os anjos percebem tanto Lá das esferas perfeitas Nas harmonias do Encanto.
Almas brancas, Páscoas leves, Alvos pães de áureos altares, De mais candidez que as neves E a madrugada nos mares.
Almas sem sombras ferozes Nem espasmos delirantes.
Eco das bíblicas vozes, Caminhos reverdejantes.
O vosso riso é bendito, Os vossos sonhos são castos, O estrelamento infinito De mundos claros e vastos.
Podeis rir, peitos ufanos, Belas almas feiticeiras, Vós tendes nos risos lhanos O trigo das vossas eiras.
A vossa vida é planície, Não tem declives funestos:
Sois torres que a superfície Assenta nos dons modestos.
A vossa vida é bem rasa, Preso à terra o vosso esforço; Nem mesmo um frêmito de asa Vos faz agitar o dorso...
Sois como plantas vencidas, Conquistadas pela terra, Dando à terra muitas vidas E tudo que a Vida encerra.
É do vosso sangue moço Que na terra se derrama, Que sobe o rubro alvoroço De ocasos de sóis em chama.
Manchas, ao certo, não tendes E nem trágico flagício, Almas isentas de duendes, Lavadas no Sacrifício.
Das pedras, nos vossos ombros, A rigidez não carrega.
Em jardins tornam-se escombros E em luz a crença que é cega.
Desses perfis adoráveis, Na curva casta dos flancos Brotam viços inefáveis Dos florescimentos brancos.
Podeis rir! ó benfazeja Bondade de nobre essência.
Deus vos chama e vos deseja Na estrelada florescência.
Um anjo vos acompanha Nessa estrada matutina E convosco a ideal montanha Sobe da graça divina.
O flagelo deste mundo, Nesses corações não pesa.
Enquanto o Horror vai profundo Vossa alma tranqüila reza.
Contritos e de mãos postas, Humildemente de joelhos, O Demônio, pelas costas, Não vem vos dar maus conselhos. Vós sois as sagradas reses Votadas ao azul Sacrário.
Deus vos olha muitas vezes Com o seu olhar visionário.
Mas quando, como as estrelas, Adormecerdes um dia, Voando mais perto a vê-las Na Paragem fugidia.
Quando na excelsa Bonança Afinal adormecerdes, Nos olhos toda a esperança Levando dos prados verdes.
Quando lá fordes, subindo Para as límpidas Alturas, Profundamente dormindo, Em busca das almas puras.
Praza aos céus que nos caminhos Da eterna Glória, das palmas, Mais brancas que os claros linhos Possais encontrar as almas!
IDEAL COMUM
Soneto escrito a quatro mãos Escrito em colaboração com Oscar Rosas Dos cheirosos, silvestres ananases De casca rubra e polpa acidulosa, Tens na carne fremente, volutuosa, Os aromas recônditos, vivazes.
Lembras lírios, papoulas e lilases;
A tua boca exala a trevo e a rosa, Resplande essa cabeça primorosa E o dia e a noite nos teus olhos trazes.
Astros, jardins, relâmpagos e luares Inundam-te os fantásticos cismares, Cheios de amor e estranhos calafrios;
E teus seios, olímpicos, morenos, Propinando-me trágicos venenos, São como em brumas, solitários rios.


PÁSSARO MARINHO
Manhã de maio, rosas pelo prado, Gorjeios, pelas matas verdurosas E a luz cantando o idílio de um noivado Por entre as matas e por entre as rosas.
Uma toilette matinal que o alado Corpo te enflora em graças vaporosas, Mergulhas, como um pássaro rosado, Nas cristalinas águas murmurosas.
Dás o bom dia ao Mar nesse mergulho E das águas salgadas ao marulho Sais, no esplendor dos límpidos espaços.
Trazes na carne um reflorir de vinhas, Auroras, virgens músicas marinhas, Acres aromas de algas e sargaços!
(SONETOS REUNIDOS)
[SENHOR DE NOBRE ALMA, TÃO]
Oferecido e dedicado ao llmo. Sr.
M. Bernardino A. Varela pelo autor Vir bonus dicendi peritus laudandum est.
Senhor de nobre alma, tão D’entre os sábios conhecido, De pais excelsos nascido, Aceitai a minha canção.
Probo pai, bom cidadão, Sois dos seres melhor ser Por saber tão profundo ter, Sois ilustre qual Catão. Recebei esta prova mesquinha De penhor e de oração, Produto da pena minha.
Perdoai, mui digno varão, Se na mente eu pobre tinha Cometer-vos indiscrição.
[DA MUNDANA LIDA, EIS QUE CANSADO]
Minha vida é um montão de ruínas em árido deserto um abismo de ais e de suspiros.
Da mundana lida, eis que cansado, Co’a lira toda espedaçada, A alma de suspiros retalhada, Cumpre o infeliz seu triste fado.
Ai! que viver mais desgraçado!...
Que sorte tão crua e desazada!...
Quem assim tem a vida amargurada Antes já morrer, ser sepultado.
Só eu triste padeço feras dores, Imensas e de fel, sem terem fim, Envolto no véu dos dissabores.
Oh! Cristo eu não sei se só a mim Deste essa vida d’amargores, Pois que é demais sofrer-se assim!
[DE MAYSEDER GENTIL O VULTO INGENTE]
Dieu a fait la mer, les oiseaux, les cieux, toute la nature enfin; mais les hommes ont découvert les sciences, les arts et les lettres qui les élèvent jusqu'à même Dieu.
De Mayseder gentil o vulto ingente De Corelli, de Spohr e de Nardini, De Ole Bull supernal, de Veracini Inspirados por Deus c'o plectro ardente;
Dessa lira febril, áurea, potente Do artista sem par, de Paganini;
De Viotti dinal, do herói Tardini, De Lafont, de Baillot, Eck e Laurenti:
Sois rival feliz! e nesse crânio Há em jorros, oh céus! extravasando O ardor musical, o ardor titâneo...
Já bem cedo, veloz, ides galgando Lá da glória os degraus, o supedâneo Sobre um trono de luz rindo e cantando.
(24 dez. 1880)
[MINH’ALMA ESTÁ AGORA PENETRANDO]
Por ocasião dos festejos em homenagem ao sexagésimo primeiro aniversário natalício do eloqüentíssimo tribuno sagrado, Joaquim Gomes d'Oliveira Paiva Há vultos tamanhos que não Cabendo no globo, vão quedos Mas solenes, refugiar-se na campa.
D'aí embuçam-se n'um manto infinito De glórias?...
Minh’alma está agora penetrando Lá na etérea plaga, cristalina!
Que música meu Deus febril, divina Nos páramos azuis vai retumbando!
Além, d’áureo dossel se está rasgando Custosa, de primor, esmeraldina Diáfana, sutil, longa cortina Enquanto céus se vão duplando!
Em grande pedestal marmorizado De Paiva se divisa o busto enorme Soberbo como o sol, de luz c'roado De um lado o porvir — Antheu disforme Dos lábios faz soltar pujante brado Hosanas! não morreu! apenas dorme. [ROMPEU-SE O DENSO VÉU DO ATROZ MARASMO]
Por ocasião da comemoração do sexagésimo primeiro aniversario natalício do ilustre pregador catarinense Joaquim Gomes d'Oliveira Paiva Rompeu-se o denso véu do atroz marasmo E como por fatal, negro hebetismo De antro sepulcral, de fundo abismo O povo ressurgiu com entusiasmo!
O Zoilo mazorral se queda pasmo Supõe quimera ser, ser cataclismo Roga, já por dobrez, por ceticismo De néscio, vil truão solta o sarcasmo.
Perdão, Filho da Luz, minh'alma exora, Porém, a pátria diz, somente agora Os grilhões biparti de atroz moleza!
E ele, o nosso herói já redivivo De pé, sem se curvar, sereno, altivo Co'as raias do porvir mede a grandeza!
[DEIXAI QUE DESTE ÁLBUM NA FOLHA DELICADA]
Embeberam-me a pena em fel!
Antônio (Mendes Leal)
Deixai que deste álbum na folha delicada Eu venha difundir meus rudes pensamentos Deixai que as pobres rimas, uns nadas poeirentos Eu possa transudar da mente entrenublada!...
Deixai que de minh’alma na fibra espedaçada Eu busque inda vibrar uns cantos tardos, lentos!...
Bem cedo os vendavais, aspérrimos, cruentos Ai! Tudo arrojarão à campa amargurada!
Porém qu’importa isso! dos mares desta vida Nos pávidos, estranhos, enormes escarcéus Se alguma coisa val, és tu, ó luz querida!... Rasguemos do porvir os áditos, os véus!...
Riamos sem cessar, embora em dor sentida!...
Também as nuvens negras conglobam-se nos céus!
(5 dez. 1882)
[ALÇANDO O LIVRO COLOSSAL, ARDENTE]

A mocidade é a alavanca do templo da ciência, no futuro; só ela tem o direito de ser a força motriz dos fenômenos intelectuais das grandes revoluções do pensamento.
Do Autor Alçando o livro colossal, ardente Traças no crânio um sulco luminoso, E vais seguindo o remontar garboso Do sol fagueiro lá no espaço ingente!
Ergues a fronte juvenil potente Já como herói ou lutador famoso E c’uma forma de pensar honroso Fazes-te esperança da brasílea gente!
Seis vezes astro de maior grandeza Enfim lá surges nos exames belos, Enfim triunfas na brilhante empresa!
Seis vezes quebras da ignorância os elos, Seis vezes vives com mais sã firmeza, Gemem seis vezes a louvar-te os prelos!...
(28 nov. 1882)
O FINAL DO GUARANI
Ceci — é a virgem loira das brancas harmonias, A doce-flor-azul dos sonhos cor-de-rosa, Peri — o índio ousado das bruscas fantasias, O tigre dos sertões — de alma luminosa.
Amam-se com o amor indômito e latente Que nunca foi traçado nem pode ser descrito.
Com esse amor selvagem que anda no infinito.
E brinca nos juncais, — ao lado da serpente.
Porém... no lance extremo, o lance pavoroso, Assim por entre a morte e os tons de um puro gozo, Dos leques da palmeira à nota musical...
Vão ambos a sorrir, às águas arrojados, Mansos como a luz, tranqüilos, enlaçados E perdem-se na noite serena do ideal!...
(Santos, 15 jul. 1883)
IDÉIA-MÃE
Laborare dignus est operarius mercede sua.
Aforismo latino Ergueis ousadamente o templo das idéias Assim como uns heróis, por sobre os vossos ombros E ides através de um negro mar d’escombros, Traçando pelo ar as loiras epopéias.
A luz tem para vós os filtros magnéticos Que andam pela flor e brincam pela estrela.
E vós amais a luz, gostais sempre de vê-la Em amplo cintilar — nuns êxtases patéticos.
É esse o aspirar do séc'lo que deslumbra, Que rasga da ciência a tétrica penumbra E gera Vítor Hugo, Haeckel e Littré.
É esse o grande — Fiat — que rola no infinito!...
É esse o palpitar, homérico e bendito, De todo o ser que vive, estuda, pensa e lê!!...
O SEU BONÉ À atriz Adelina Castro É um boné ideal, de feltros e de plumas, Que ela usa agora, assim como um turbante Turco, aveludado, doce como algumas Nuvens matinais que rolam no levante.
Lembro quando ao vê-lo a rubra Marselhesa, Lembro sensações e cousas de prodígio E penso que ele tem a máscula grandeza Desse sedutor, vital barrete frígio!...
Às vezes meu olhar medindo-lhe o contorno E a flácida plumagem que serve-lhe d’adorno, — Satânico, voraz, esplêndido de fé!
Exclama num idílio cândido e singelo, Por entre as convulsões artísticas do Belo; —
Oh! tem coração e alma, esse boné!...
(Corte, out. 1883)
[É UM PENSAR FLAMEJADOR, DARDÂNICO]
A Moreira de Vasconcelos Na luta dos impossíveis, do espírito e da matéria, tu és a águia sidérea dos pensamentos terríveis!
Do Autor É um pensar flamejador, dardânico Uma explosão de rápidas idéias, Que como um mar de estranhas odisséias Saem-lhe do crânio escultural, titânico!...
Parece haver um cataclismo enorme Lá dentro, em ânsia, a rebentar, fremente!...
Parece haver a convulsão potente, Dos rubros astros num fragor disforme!...
Hão de ruir na transfusão dos mundos Os monumentos colossais, profundos, As cousas vãs da brasileira história!
Mas o seu vulto, sobre a luz alçado, Oh! há de erguer-se de arrebóis c’roado, Como Atalaia nos umbrais da glória!!... (Desterro, 13 jan. 1883)
OISEAUX DE PASSAGE
Les rêves, les grands rêves que moi toujours adore, Les rêves couleur rose, les rêves éclatants;
Ainsi que les colombes un autre ciel cherchants J’ai vu les ailes ouvertes, si belles que l’aurore.
Autour de la nature, autour de la profonde Et merveilleuse mère des fleurs, des harmonies, Les rêves éblouissants, remplis d’amour et vie, Trouvaient de l’espoir le plus doré des mondes.
Hélas!... — mais maintenant, par des chagrins, secrets, L’amour, les étoiles et tout ce qu’il nous est Chéri — le beau soleil, la lune et les nuages;
Tout fut plongé d'abord’ plongé dans le mystère, Avec de mon coeur la douce lumière, Les rêves de mon âme — uns oiseaux de passage!...
COLAR DE PÉROLAS
Ao feliz consórcio dos estimáveis colegas, D. Jesuína Leal e Francisco de Castro A F’licidade é um colar de pérolas, Pérolas caras, de valor pujante, Belas estrofes de Petrarca e Dante, Mais cintilantes que as manhãs mais cérulas.
Para que enfim esse colar bendito, Perdure sempre, inteiramente egrégio, Como uma tela do pintor Correggio, Sem resvalar no lodaçal maldito;
Faz-se preciso umas paixões bem retas, Cheias de uns tons de muito sol — completas...
Faz-se preciso que do amor na febre, Nos grandes lances de vigor preclaro, Desse colar esplendoroso e raro, Nem uma pérola, uma só se quebre!...
SATANISMO
Não me olhes assim, branca Arethusa, Peregrina inspiração dos meus cantares;
Não me deixes a razão vagar confusa Ao relâmpago ideal de teus olhares.
Não me olhes, oh! não, porquanto eu penso Envolvido no luar das minhas cismas, Que o olhar que me dardejas — doido, imenso Tem a rápida explosão dos aneurismas.
Não me olhes. Oh! não, que o próprio inferno Problemático, fatal, cálido, eterno, Nos teus olhos, mulher, se foi cravar!...
Não me olhes, oh! não, que m'entolece Tanta luz, tanto sol — e até parece Que tens músicas cruéis dentro do olhar!...
METAMORFOSE
A Carlos Ferreira O sol em fogo pelo ocaso explode Nesse estertor, que os crânios assoberba.
Vivo, o clarão, nuns frocos exacerba Dos ideais a original nevrose.
Da natureza os anafis mouriscos Ante o cariz da atmosfera muda, Soam queixosos, numa nota aguda, Da luz que esvai-se aos derradeiros discos.
O pensamento que flameja e luta Nos ares rasga aprofundado sulco...
A sombra desce nos lisins da gruta;
E a lua nova — a peregrina Onfale, Como em um plaustro luminoso, hiulco, Surge através dos pinheirais do vale.
AURÉOLA EQUATORIAL
A Teodoreto Souto Fundi em bronze a estrofe augusta dos prodígios, Poetas do Equador, artísticos Barnaves;
Que o facho — Abolição — rasgando as nuvens graves De raios e bulcões — triunfa nos litígios!
— O rei Mamoud, o Sol, vibrou p’raquelas bandas Do Norte — a grande luz — elétrico, explodindo, Assim como quem vai, intrépido, subindo À luz da idade nova — em claras propagandas.
— Os pássaros titãs nos seus conciliábulos, — Chilreiam, vão cantando em místicos vocábulos, Alargam-se os pulmões nevrálgicos das zonas;
Abri alas, abri! — Que em túnica de assombros, Irá passar por vós, com a Liberdade aos ombros, Como um colosso enorme o impávido Amazonas!
[ANDA-ME A ALMA INTEIRA DE TAL SORTE]
Anda-me a alma inteira de tal sorte, Meus gozos, meu pesar, nos dela unidos Que os dela são também os meus sentidos, Que o meu é também dela o mesmo norte.
Unidos corpo a corpo — um elo forte Nos prende eternamente — e nos ouvidos Sentimos sons iguais. Vemos floridos Os sons do porvir, em azul coorte...
O mesmo diapasão musicaliza Os seres de nós dois — um sol irisa Os nossos corações — dá luz, constela...
Anda esta vida, espiritualizada Por este amor — anda-me assim — ligada A minha sombra com a sombra dela. NOIVA E TRISTE
Rola da luz do céu, solta e desfralda Sobre ti mesma o pavilhão das crenças, Constele o teu olhar essas imensas Vagas do amor que no teu peito escalda.
A primorosa e límpida grinalda Há de enflorar-te as amplidões extensas Do teu pesar — há de rasgar-te as densas Sombras — o véu sobre a luzente espalda...
Inda não ri esse teu lábio rubro Hoje — inda n'alma, nesse azul delubro Não fulge o brilho que as paixões enastra;
Mas, amanhã, no sorridor noivado, A vida triste por que tens passado, De madressilvas e jasmins se alastra.
MÃE E FILHO
Às mães desamparadas Jesus, meu filho, o encanto das crianças, Quando na cruz, de angústia espedaçado, Em sangue casto e límpido banhado, Manso, tão manso como as pombas mansas;
Embora as duras e afiadas lanças Com que os judeus, tinham, de lado a lado, Seu coração puríssimo varado, Inda no olhar raiavam-lhe esperanças.
Por isso, ó filho, ó meu amor — se a esmola De algum conforto essencial não rola Por nós — é forca conduzir a cruz!...
Mas, volta ó filho, pesaroso e triste.
Se a nossa vida só na dor consiste, Ah! minha mãe, por que morreu Jesus?... SURDINAS
Às raparigas tristes Vais partir, vais partir que eu bem te vejo Na branca face os gélidos suores, Vais procurar as musicas melhores Do sol, da glória e do celeste beijo.
Dentro de ti as harpas do desejo Não vibram mais — embora que tu chores —
Nem pelas tuas aflições maiores Se escuta um vago e enfraquecido arpejo...
Bem! vais partir, vais demandar esferas Amplas de luz, feitas de primaveras, Paisagens novas e amplidão florida...
Mas ao chegar-te a lágrima infinita, Lembra-te ainda, ó pálida bonita De que houve alguém que te adorou na vida.
IRRADIAÇÕES
Às crianças Qual da amplidão fantástica e serena À luz vermelha e rútila da aurora Cai, gota a gota, o orvalho que avigora A imaculada e cândida açucena.
Como na cruz, da triste Madalena Aos pés de Cristo, a lágrima sonora Caia, rolou, qual bálsamo que irrora A negra mágoa, a indefinida pena...
Caia por vós, esplêndidas crianças Bando feliz de castas esperanças, Sonhos da estrela no infinito imersos;
Caia por vós, as músicas formosas, Como um dilúvio matinal de rosas, Todo o luar benéfico dos versos! AMBOS
Vão pela estrada, à margem dos caminhos Arenosos, compridos, salutares, Por onde, à noite, os límpidos luares Dão às verduras leves tons de arminhos.
Nuvens alegres como os alvos linhos Cortam a doce compridão dos ares, Dentre as canções e os tropos singulares Dos inefáveis, meigos passarinhos.
Do céu feliz na branda curvidade, A luz expande a inteira alacridade, O mais supremo e encantador afago.
E com o olhar vibrante de desejos Vão decifrando os trêmulos arpejos, E as reticências que produz o vago.
OS DOIS
Aos pobres — Minha mãe, minha mãe, quanta grandeza Nesses palácios, quanta majestade;
Como essa gente há de viver, como há de Ser grande sempre na feliz riqueza.
Nem uma lágrima sequer — e à mesa Dentre as baixelas, dentre a imensidade Da prata e do ouro — a azul felicidade Dos bons manjares de ótima surpresa.
Nem um instante os olhos rasos d’água, Nem a ligeira oscilação da mágoa Na vida farta de prazer, sonora.
— Como o teu louco pensamento expandes Filho — a ventura não é só dos grandes Porque, olha, o mar também é grande e... chora! TRISTE
Vai-se extinguindo a viva labareda Que te abrasava o coração ridente...
Passas magoada pela rua e a gente Umas conversas funerais segreda.
Não tens no olhar o sangue qu’embebeda, Foram-se as rosas do viver contente...
Segues, agora, pobre flor — somente Da sepultura a essencial vereda.
E vem chegando o tenebroso inverno...
Mas nesse mal devorador e eterno, Teu organismo já não mais resiste Às punhaladas da estação de gelo...
E acabará como eu nem sei dizê-lo, Triste, bem triste, pesarosa, triste!
AOS MORTOS
Oh! não é bom rir-se de um morto — brusca Pois deve ser a sensação que aumenta Desoladora, vagarosa, lenta Da negra morte tétrica velhusca...
Tudo que em vida, como um sol, corusca, Que nos aquece, que nos acalenta, Tudo que a dor e a lágrima afugenta, O olhar da morte nos apaga e ofusca...
Nunca se deve desprezar os mortos...
Nos regelados e sombrios portos, Onde a matéria se transforma e urge Exuberar na planturosa leiva, Vivem os mortos no vigor da seiva, Porque dão vida ao que da vida surge!... LUAR
Pelas esferas, nuvens peregrinas, Brandas de toques, encaracoladas, Passam de longe, tímidas, nevadas, Cruzando o azul sereno das colinas.
Sombras da tarde, sombras vespertinas Como escumilhas leves, delicadas, Caem da serra oblonga nas quebradas, Vão penumbrando as coisas cristalinas.
Rasga o silêncio a nota chã, plangente, Da Ave-Maria, — e então, nervosamente, Nuns inefáveis, espontâneos jorros Esbate o luar, de forma admirável, Claro, bondoso, elétrico, saudável, Na curvilínea compridão dos mortos.
MOCIDADE
Ah! esta mocidade! — Quem é moço Sente vibrar a febre enlouquecida Das ilusões, da crença mais florida Na muscular artéria de Colosso...
Das incertezas nunca mede o poço...
Asas abertas — na amplidão da vida, Páramo a dentro — de cabeça erguida, Vê do futuro o mais alegre esboço...
Chega a velhice, a neve das idades E quem foi moço, volve, com saudades, Do azul passado, o fúlgido compêndio...
Ai! esta mocidade palpitante, Lembra um inseto de ouro, rutilante, Em derredor das chamas de um incêndio! SONETO
Vão-se de todo os pardacentos nimbos...
Chovem da luz as nítidas faíscas E no esplendor de irradiações mouriscas, Abrem-se as flores em gentis corimbos.
Muito mais lestas do que amigos fimbos, Do Azul cortando as bordaduras priscas, Pombas do mato esvoaçando, ariscas, Do céu se perdem nos profundos limbos.
A natureza pulsa como a forja...
Pássaros vibram no clarim da gorja, As retumbantes, fortes clarinadas.
A grande artéria dos assombros pula...
E do oxigênio, a força que regula Enche os pulmões a largas baforadas.
CEGA
Parece-me que a luz imaculada Que vem do teu olhar, todo doçuras, Não verte no meu ser aquelas puras Delícias de outra era já passada.
Eu creio que essa pálpebra adorada Não mais um flóreo empíreo de venturas Descobre-me — na noite de amarguras, De dúvidas intérminas cortada.
Não olhas como olhavas, rindo, outrora, Não abres a pupila, como a aurora Nascendo, abre, feliz, radiosa e calma.
A sombra, nos teus olhos, funda, existe!...
Tu'alma deve ser bem negra e triste Se os olhos são, decerto, o espelho d’alma.
(A) ERMIDA Lá onde a calma e a placidez existe, Sobre as colinas que o vergel encobre, Aquela ermida como está tão pobre, Aquela ermida como está tão triste.
A minha musa, sem falar, assiste, Do meio-dia ante o aspecto nobre, O vago, estranho e murmurante dobre Daquela ermida que aos trovões resiste E às gargalhadas funéreas, sombrias Dos crus invernos e das ventanias, Do temporal desolador e forte.
Daquela triste esbranquiçada ermida, Que me recorda, me parece a vida Jogada às magoas e ilusões da sorte.
ÁGUA-FORTE
Do firmamento azul e curvilíneo Cai, fecundando as trêmulas raízes Dos laranjais, dos pâmpanos, das lises, A luz do sol procriador, sanguíneo.
Pelo caminho agreste e retilíneo, Da tarde aos brandos, triunfais matizes, A criançada, a chusma dos felizes, Esse de auroras perfumado escrínio, Volta da escola, rindo muito, aos saltos, Trepando, em bulha, aos árvoredos altos Enquanto o sol desce os outeiros longos...
Vai dentre alados madrigais risonhos, Do abecedário juvenil dos sonhos, A soletrar os principais ditongos.
ALMA QUE CHORA
A João Saldanha Em vão do Cristo os olhos dulçurosos Onde há o sol do bem e da verdade, Cheios da luz eterna de saudade, Como dois mansos corações piedosos, Em vão do Cristo os olhos lacrimosos E aquela doce e pura suavidade Do seu semblante, casto, de bondade, Cor do luar dos sonhos venturosos, Servem de exemplo à dor escruciante Que te apunhala e fere a cada instante, A punhaladas ríspidas, austeras!
Viste partir a tua irmã, ai, viste, Como num céu enevoado e triste O bando azul das fúlgidas quimeras...
CHUVA DE OURO
A Rainha desceu do Capitólio Agora mesmo — vede-lhe o regaço...
Como tem flores, como traz o braço Farto de jóias, como pisa o sólio Triunfantemente, numa unção, num óleo Mais santo e doce que essa luz do espaço...
E como desce com bravura de aço...
Pois se a Rainha, como um rico espólio, O seu brioso coração foi dando Aos pobrezinhos, que inda estão gozando Bênçãos mais puras qu'os clarões diurnos, Por certo que há de vir descendo a escada Do Capitólio da virtude — olhada Pelos albergues infantis, noturnos!
PRIMAVERA A FORA
Escute, excelentíssima: — Que aragens Traz do arvoredo a fresca romaria;
Como este sol é rubro de alegria, Que tons de luz nas límpidas paisagens.
Pois beba este ar e goze estas viagens Das brancas aves, sinta esta harmonia Da natureza e deste alegre dia Que resplandece e ri-se nas ervagens.
Deixe lá fora estrangular-se o mundo...
Encare o céu e veja este fecundo Chão que produz e que germina as flores.
Vamos, senhora, o braço à primavera, E numa doce música sincera, Cante a balada eterna dos amores...
25 DE MARÇO
Em Pernambuco para o Ceará A província do Ceará, sendo berço de Alencar e Francisco Nascimento — o dragão do mar — é consequentemente a mãe da literatura e a mãe da humanidade.
Bem como uma cabeça inteiramente nua De sonhos e pensar, de arroubos e de luzes, O sol de surpreso esconde-se, recua, Na órbita traçada — de fogo dos obuses.
Da enérgica batalha estóica do Direito Desaba a escravatura — a lei cujos fossos Se ergue a consciência — e a onda em mil destroços Resvala e tomba e cai o branco preconceito.
E o Novo Continente, ao largo e grande esforço De gerações de heróis — presentes pelo dorso À rubra luz da glória — enquanto voa e zumbe O inseto do terror, a treva que amortalha, As lágrimas do Rei e os bravos da canalha, O velho escravagismo estéril que sucumbe.
(Recife, 1885) NINHO ABANDONADO
À distinta família Simas, pela morte de seu chefe, o Ilmo. Sr. João da Silva Simas O vosso lar harmônico e tranqüilo Era um ninho de luz e de esperanças Que como abelhas iriadas, mansas, Nos vossos corações tinham asilo.
Havia lá por dentro tanta crença E tanto amor puríssimo, cantando, Que parecia um largo sol faiscando Por majestosa catedral imensa.
Agora o ninho está desamparado!
Sumiu-se dele o pássaro adorado, O mais ideal dos pássaros do ninho.
Não se ouve mais a música sonora Da sua voz — dentro do ninho, agora, Paira a saudade como um bom carinho.
CRENÇA
Filha do céu, a pura crença é isto Que eu vejo em ti, na vastidão das cousas, Nessa mudez castíssima das lousas, No belo rosto sonhador do Cristo.
A crença é tudo quanto tenho visto Nos olhos teus, quando a cabeça pousas Sobre o meu colo e que dizer não ousas Todo esse amor que eu venço e que conquisto.
A crença é ter os peregrinos olhos Abertos sempre aos ríspidos escolhos;
Tê-los à frente de qualquer farol E conservá-los, simplesmente acesos Como dois fachos — engastados, presos Nas radiações prismáticas do sol! CRISTO E A ADÚLTERA
Grupo de Bernardelli Sente-se a extrema comoção do artista No grupo ideal de plácida candura, Nesse esplendor tão fino da escultura Para onde a luz de todo o olhar enrista.
Que campo, ali, de rútila conquista Deve rasgar, do mármore na alvura, O estatuário — que amplidão segura Tem — de alma e braço, de razão e vista!
Vê-se a mulher que implora, ajoelhada, A mais serena compaixão sagrada De um Cristo feito a largos tons gloriosos.
De um Nazareno compassivo e terno, D'olhos que lembram, cheios de falerno, Dois inefáveis corações piedosos!
ÊXTASE DE MÁRMORE
À grande atriz Apolônia O mármore profundo e cinzelado De uma estátua viril, deliciosa;
Essa pedra que geme, anseia e goza Num misticismo altíssimo e calado;
Essa pedra imortal — campo rasgado A comoção mais íntima e nervosa Da alma do artista, de um frescor de rosa, Feita do azul de um céu muito azulado;
Se te visse o clarão que pelos ombros Teus, rola, cai, nos múltiplos assombros Da Arte sonora, plena de harmonia;
O mármore feliz que é muito artista Também — como tu és — à tua vista De humildade e ciúme, coraria! INVERNO
Amanheceu — no topo da colina Um céu de madrepérola se arqueia Limpo, lavado, reluzindo — ondeia O perfume da selva esmeraldina.
Uma luz virginal e cristalina, Como de um rio a transbordante cheia, Alaga as terras culturais e arreia De pingos d'ouro os verdes da campina.
Um sol pagão, de um louro gema d'ovo, Já tão antigo e quase sempre novo, Surge na frígida estação do inverno.
— Chilreiam muito em árvores frondosas Pássaros — fulge o orvalho pelas rosas Como o vigor no espírito moderno.
FALANDO AO CÉU
Falas ao Céu, Amor! Em vão tu falas!
Mas o Céu, esse é velho, esse é velhinho, Todo ele é branco, faz lembrar o linho Dos leitos alvos onde tu te embalas.
A alma do Céu é como velhas salas Sem ar, sem luz, como lares sem vinho, Sem água e pão, sem fogo e sem carinho, Sem as mais toscas, as mais simples galas.
Sempre surdo, hoje o céu é mudo, é cego...
Jamais o coração ao céu entrego, Eu que tão cego vou por entre abrolhos.
Mas se o queres tornar jovem e louro Dá-lhe o bordão do teu amor um pouco, Fala e vista, com a vida dos teus olhos... GLORIOSA
A Araújo Figueredo Pomba! dos céus me dizes que vieste, Toda c’roada de astros e de rosas, Mas há regiões mais que essas luminosas.
Não, tu não vens da região celeste Há um outro esplendor em tua veste, Uma outra luz nas tranças primorosas, Outra harmonia em teu olhar — maviosas Cousas em ti que tu nunca tiveste.
Não, tu não vens das célicas planuras, Do Éden que ri e canta nas alturas Como essa voz que dos teus lábios tomba.
Vens de mais longe, vens doutras paragens, Vens doutros céus de místicas celagens, Sim, vens de sóis e das auroras, pomba.
O CHALÉ É um chalé luzido e aristocrático, De fulgurantes, ricos arabescos, Janelas livres para os ares frescos, Galante, raro, encantador, simpático.
O sol que vibra em rubro tom prismático, No resplendor dos luxos principescos, Dá-lhe uns alegres tiques romanescos, Um colorido ideal silforimático.
Há um jardim de rosas singulares, Lírios joviais e rosas não vulgares, Brancas e azuis e roxas purpúreas.
E a luz do luar caindo em brilhos vagos, Na placidez de adormecidos lagos Abre esquisitas radiações sulfúreas. DELÍRIO DO SOM
O Boabdil mais doce que um carinho, O teu piano ebúrneo soluçava, E cada nota, amor, que ele vibrava, Era-me n’alma um sol desfeito em vinho.
Me parecia a música do arminho, O perfume do lírio que cantava, A estrela-d’alva que nos céus entoava Uma canção dulcíssima baixinho.
Incomparável, teu piano — e eu cria Ver-te no espaço, em fluidos de harmonia, Bela, serena, vaporosa e nua;
Como as visões olímpicas do Reno, Cantando ao ar um delicioso treno Vago e dolente, com uns tons de lua.
ILUSÕES MORTAS
A Virgílio Várzea Os meus amores vão-se mar em fora, E vão-se mar em fora os meus amores, A murchar, a murchar, como essas flores Sem mais orvalho e a doce luz da aurora.
E os meus amores não virão agora, Não baterão as asas multicores, Como aves mansas — dentre os esplendores Do meu prazer, do meu prazer de outrora.
Tudo emigrou, rasgando a esfera branca Das ilusões, — tudo em revoada franca Partiu — deixando um bem-estar saudoso No fundo ideal de toda a minha vida, Qual numa taça a gota indefinida De um bom licor antigo e saboroso. O SONHO DO ASTRÓLOGO
As fulgurosas, rútilas estrelas Como mundos de mundos seculares, Formando uns arquipélagos, uns mares De luz — como eu deslumbro o olhar ao vê-las.
Ah! se como eu sei compreendê-las, Sentir-lhes os seus filtros salutares, Pudesse, da amplidão fria dos ares Arrancá-las, na mão sempre trazê-las;
Que vagalhões de assombros palpitantes Não me viriam perpassar, faiscantes, Dentro do ser, nuns doutros murmúrios.
Eu saberia muito mais a causa Da evolução que nunca teve pausa, Que é uma audácia transbordando em rios.
CRISTO
Cristo morreu, ó tristes criaturas, Era matéria como vós, morreu;
E quando à noite sepulcral desceu Gelou com ele o oceano das ternuras.
Nunca outro sol de irradiações mais puras Subiu tão alto e tanto resplendeu, Nunca ninguém tão firme combateu Da humanidade todas as torturas.
Morreu, que se ele, o Deus, ressuscitasse, Limpa de sangue e lágrimas a face, Os seus olhos tranqüilos, virginais, Dons inefáveis, corações piedosos, Tinham de abrir-se muito dolorosos, Também chorando quando vós chorais!
FRUTAS DE MAIO Maio chegou — alegre e transparente, Cheio de brilho e música nos ares, De cristalinos risos salutares, Frio, porém, ó gota alvinitente.
Corre um fluido suave e odorescente Das laranjeiras, como dos altares O incenso — e, como a gaze azul dos mares, Leve — há por tudo um beijo, docemente.
Isto bem cedo, de manhã — adiante Pela tarde um sol calmo, agonizante, Põe no horizonte resplendentes franjas.
Há carinhos, da luz em cada raio, Filha — e eu que adoro este frescor de maio Muito, mas muito — trago-te laranjas.
ETERNO SONHO
Quelle est donc cette femme?
Je ne comprendra pas.
Félix Arvers Talvez alguém estes meus versos lendo Não entenda que amor neles palpita, Nem que saudade trágica, infinita Por dentro deles sempre está vivendo.
Talvez que ela não fique percebendo A paixão que me enleva e que me agita, Como de uma alma dolorosa, aflita Que um sentimento vai desfalecendo.
E talvez que ela ao ler-me, com piedade, Diga, a sorrir, num pouco de amizade, Boa, gentil e carinhosa e franca:
— Ah! bem conheço o teu afeto triste...
E se em minha alma o mesmo não existe, É que tens essa cor e é que eu sou branca! IMPASSÍVEL
Teu coração de mármore não ama Nem um dia sequer, nem um só dia.
Essa inclemente natureza fria Jamais na luz dos astros se derrama.
Mares e céus, a imensidade clama Por esse olhar d'estrelas e harmonia, Sem uma névoa de melancolia, Do amor nas pompas e na viva chama.
A Imensidade nunca mais quer vê-lo, Indiferente às comoções, de gelo Ao mar, ao sol, aos roseirais de aromas.
Ama com o teu olhar, que a tudo encantas, Ou sê antes de pedra, como as santas, Mudas e tristes dentro das redomas.
SONETOS
Do som, da luz entre os joviais duetos, Como uma chusma alada de gaivotas, Vindos das largas amplidões remotas, Batem as asas todos os sonetos.
Vão — por estradas, por difíceis rotas, Quatorze versos — entre dois quartetos E duas belas e luzidas frotas Rijas, seguras, de mais dois tercetos.
Com a brunida lâmina da rima, Vão céus radiosos, horizontes acima, Pelas paragens límpidas, gentis, Atravessando o campo das quimeras, Aberto ao sol das flóreas primaveras, Todo estrelado de áureos colibris.
TO SLEEP, TO DREAM Dormir, sonhar — o poeta inglês o disse...
Ah! Mas se a gente nunca mais sonhasse Ah! Mas se a gente nunca mais dormisse E as ilusões não mais acalentasse?
E o que importava que o futuro risse De um visionário que tal cousa ideasse;
Se não seria o único que abrisse Uma exceção da vida humana à face?...
Se os imortais filósofos modernos Que derrubaram todos os infernos, Que destruíram toda a teogonia.
Orientando a triste humanidade, Deixaram, mais e mais, a piedade Inteiramente desolada e fria?
VISÃO MEDIEVA
Quando em outras remotas primaveras, Na Idade Média, sob fuscos tetos, Dois amantes passavam, mil aspectos Tinham aquelas medievais quimeras.
Nas armaduras rígidas e austeras, Na aérea perspectiva dos objetos Andavam sonhos e visões, diletos Segredos mortos nas extintas eras.
O fantasma do amor pelos castelos Mudo vagava entre os luares belos, Dos corredores nas paredes frias.
Não raro se escutava um som de passos, Rumor de beijos, frêmito de abraços Pelas caladas, fundas galerias.
RECORDAÇÃO
Foi por aqui, sob estes arvoredos, Sob este doce e plácido horizonte, Perto da clara e pequenina fonte Que murmura lá baixo os seus segredos...
Recordo bem todos os cantos ledos Da passarada — e lembro-me da ponte Por sobre a qual via-se além, defronte, O mar azul batendo nos penedos.
Sinto a impressão ainda da paisagem, Do trêmulo [...] da folhagem, Das culturas rurais, do sítio agreste.
A luz do dia vinha então morrendo...
Foi por aqui que eu pude ficar crendo O quanto pode o teu olhar celeste.
ROMA PAGÃ Na antiga Roma, quando a saturnal fremente Exerceu sobre tudo o báquico domínio, Não era raro ver nos gozos do triclínio A nudez feminina imperiosa e quente.
O corpo de alabastro, olímpico e fulgente, Lascivamente nu, correto e retilíneo, Num doce tom de cor, esplêndido e sangüíneo, Tinha o assombro da carne e a forma da serpente.
A luz atravessava em frocos d’oiro e rosa Pela fresca epiderme, ebúrnea e cetinosa, Macia, da maciez dulcíssima de arminhos.
Menos raro, porém, do que a nudez romana Era ver borbulhar, em férvida espadana A púrpura do sangue e a púrpura dos vinhos.
ESPIRITUALISMO
Ontem, à tarde, alguns trabalhadores, Habitantes de além, de sobre a serra, Cavavam, revolviam toda a terra, Do sol entre os metálicos fulgores. Cada um deles ali tinha os ardores De febre de lutar, a luz que encerra Toda a nobreza do trabalho e — que erra Só na cabeça dos conspiradores, Desses obscuros revolucionários Do bem fecundo e cultural das leivas Que são da Vida os maternais sacrários.
E pareceu-me que do chão estuante Vi porejar um bálsamo de seivas Geradoras de um mundo mais pensante.
ALMA ANTIGA
Põe a tua alma francamente aberta Ao sol que pelos páramos faísca, Que o sol para a tua alma velha e prisca Deve de ser como um clarim de alerta.
Desperta, pois, por entre o sol, desperta Como de um ninho a pomba quente e arisca À luz da aurora que dos altos risca De listrões d’ouro a vastidão deserta.
Vai por abril em flores gorjeando Como pássaro êxul as canções leves Que os ventos vão nas árvores deixando.
E tira da tua alma, ó doce amiga, Almas serenas, puras como a neve, Almas mais novas que a tua alma antiga!
A PARTIDA
Partimos muito cedo — A madrugada Clara, serena, vaporosa e fresca, Tinha as nuances de mulher tudesca De fina carne esplêndida e rosada.
Seguimos sempre afora pela estrada Franca, poeirenta, alegre e pitoresca, Dentre o frescor e a luz madrigalesca Da natureza aos poucos acordada.
Depois, no fim, lá de algum tempo — quando Chegamos nós ao termo da viagem, Ambos joviais, a rir, cantarolando, Da mesma parte do levante, de onde Saímos, pois, faiscava na paisagem O sol, radioso e altivo como um conde.
CANÇÃO DE ABRIL
Vejo-te, enfim, alegre e satisfeita.
Ora bem, ora bem! — Vamos embora Por estes campos e rosais afora De onde a tribo das aves nos espreita.
Deixa que eu faça a matinal colheita Dos teus sonhos azuis em cada aurora, Agora que este abril nos canta, agora, A florida canção que nos deleita.
Solta essa fulva cabeleira de ouro E vem, subjuga com teu busto louro O sol que os mundos vai radiando e abrindo.
E verás, ao raiar dessa beleza, Nesse esplendor da virgem natureza, Astros e flores palpitando e rindo.
O MAR
Que nostalgia vem das tuas vagas, Ó velho mar, ó lutador Oceano!
Tu de saudades íntimas alagas O mais profundo coração humano.
Sim! Do teu choro enorme e soberano, Do teu gemer nas desoladas plagas Sai o [...] que é, rude sultão ufano, Que abre nos peitos verdadeiras chagas.
Ó mar! ó mar! embora esse eletrismo, Tu tens em ti o gérmen do lirismo, És um poeta lírico demais.
E eu para rir com humor das tuas Nevroses colossais, bastam-me as luas Quando fazem luzir os seus metais...
[BRANCAS APARIÇÕES, VISÕES RENANAS]
Brancas Aparições, Visões renanas, Imagens dos Ascetas peregrinos, Hinos nevoentos, neblinosos hinos Das brumosas igrejas luteranas.
Vago mistério das regiões indianas, Sonhos do Azul dos astros cristalinos, Coros de Arcanjos, claros sons divinos Dos Arcanjos, nas tiorbas soberanas.
Tudo ressurge na minh’alma e vaga Num fluido ideal que me arrebata e alaga, No abandono mais lânguido mais lasso...
Quando lá nos sacrários do Cruzeiro A lua rasga o trêmulo nevoeiro, Magoada de vigílias e cansaço...
GUERRA JUNQUEIRO
Quando ele do Universo o largo supedâneo Galgou como os clarões — quebrando o que não serve, Fazendo que explodissem os astros de seu crânio, As gemas da razão e os músculos da verve;
Quando ele esfuziou nos páramos as trompas, As trompas marciais — as liras do estupendo, Pejadas de prodígios, assombros e de pompas, Crescendo em projeções, crescendo e recrescendo; Quando ele retesou os nervos e as artérias Do verso orbicular — rasgando das misérias O ventre do Ideal na forte hematêmese.
Clamando — é minha a luz, que o século propague-a, Quando ele avassalou os píncaros da águia E o sol do Equador vibrou-lhe aquelas teses!
(DIVERSAS MÉTRICAS)
AWAY!
A meu distinto amigo e talentoso jovem José Arthur Boiteux O livro, esse audaz guerreiro, Que conquista o mundo inteiro, Sem nunca ter Waterloo!...
Castro Alves Avante, sempre, nessa luz serena, Empunha a pena, sem temor, com fé!...
Eleva às turbas as idéias d’ouro, Que um tesouro tua fronte é!...
Eia, caminha nessa senda nobre, Na pátria pobre, no teu berço aqui!...
Prossegue altivo, sem parar, constante, Faz-te gigante, diz depois — Venci!...
Ala-te à glória num voar titânio, Burila o crânio de fulgor sem fim!...
E entre o livro d’imortais perfumes Calca os ciúmes d’imbecil Caim!
Imita os grandes, incansáveis vultos Que lá sepultos no pó negro estão!...
Anda, romeiro dos vergéis divinos, Mergulha em hinos a gentil razão!
Estás na quadra radiante e linda, É cedo ainda para enfim descrer!
És jovem... pensas... és portanto um bravo Ser ignavo... é sucumbir... morrer! Vamos, caminha, mesmo embora exangue Da fronte o sangue vá rolar-te aos pés!
Agita a alma qual febris as vagas, Que dessas chagas brotarão lauréis!
Além do livro, colossal, enorme, Que nunca dorme perscrutando os céus!.
Acima dele supernal, potente Está somente, tão-somente Deus!
Vai! ... vai rasgando, percorrendo os ares, Novos palmares, meu gentil condor!
Depois de teres pedestal seguro Lá do futuro te erguerás senhor!...
Qual Ney ousado que, ao vibrar da lança, Nutre esperança de ganhar, vencer, Assim co’a idéia vai lutar, trabalha, Vence a batalha do dinal saber.
Eia que sempre na brasília história De alta glória colherás o jus!...
O livro augusto do porvir descerra, Sê desta terra precursor da luz!!!
POESIA
C'est la musique la poesie de l’âme;
et la gloire est Dieu, ce sont les deux choses les plus charmantes, les plus belles, les plus grandes de la vie!
Do Autor Da música escutando preclaras harmonias Vendo em cada lábio brilhar ledo sorriso Vendo luz e flores e tanto entusiasmo Julguei-me transportado ao célico Paraíso!
Foi sonho na verdade — mas hoje realizado Vos dá, distintos sócios, venturas mais de mil, A vós que à frente tendo Penedo, grande, forte, Subis, alistridente, qual ave mais gazil!
E quando executais as vossas belas peças As notas quais gemidos vagam n’amplidão Parece que o infinito derrama sobre vós Centelhas sublimadas só d’inspiração!
Da arte de Mozart vós sois grandes romeiros Lutais como nas vagas o triste palinuro, Os olhos tendes fitos na glória que dá brilho No livro tricolor e ovante do futuro!
Hoje que os sorrisos assomam em vossos lábios Que da “Guarani” alçais áureo pendão, Eu humilde e fraco — com flores inodoras Somente aqui vos venho fazer uma ovação!
Quando há só coragem, força, intrepidez Quando se alimenta no peito divo ardor, O homem não recua, caminha p’ro progresso Co’a fronte sempre erguida, sem ter menor temor, Sem ter algum trabalho jamais s’alcança trono Sem ter valor e força jamais se tem lauréis P’ra vossa grande glória, além do grã futuro Deus já tem erectos milhares de dosséis!
Mas dentre vós vulto sereno se destaca Qual Rodes portentoso, imenso, verdadeiro Que nunca recuou sequer um só momento Que sempre em trabalhar foi pronto companheiro!
É este vosso sócio, digno diretor Que forte não pensou jamais em recuar!
É José Gonçalves — águia valorosa A quem, altivamente, eu ouso aqui louvar!
Vencendo mil tropeços, altiva os derribando A bela “Guarani” se mostra triunfante, Foi como esses heróis — na mão sustenta o gládio — O gládio da vitória serena e radiante!
Portanto erguei ridente a fronte ao infinito!
Erguei ó grandes bravos a fronte toda luz!
Eia, a senda é bela, sublime, é grandiosa Avante pois ness’arte, avante, avante, sus!
E agora concluindo palavras pobrezinhas Que eu pronunciar humilde vim aqui, Saúdo fervoroso — do imo de minh’alma A essa tão gentil, simpática “Guarani”! SAUDAÇÃO
Qual o que não exulta ao ler uma epopéia!
Qual o que a ver dor não lhe estremece o crânio, Em confusões cruéis?!
Qual o que tem fresca, sublime, pronta a idéia, E do altar da caridade no supedâneo, Não deixa alguns lauréis?!
Do Autor Ontem, grande desgraça Que o povo se abraça D’Itajaí em geral!
Ontem, o cetro divino Que se tornando ferino Tudo esmaga afinal!
Ontem, prantos e dor. . .
Grandes gritos d'horror...
A fatal confusão!
Ontem, lampas perdidas De centenas de vidas, Que nas águas lá vão!
Ontem, negras as vagas, Os belos céus, essas plagas, — Onde existe o Senhor!
Ontem, — fatalidade!
A pobrezinha cidade Toda envolta em negror!
Hoje, oh! Deus sempiterno!
— O teu gládio superno De bonança a irradir, Veio ao povo esmagado Ao tredo peso do fado Fazer do caos ressurgir!
Hoje, o íris brilhante Lá nos céus, radiante, Já se faz divulgar!
E todo o povo prostrado Te agradece arroubado Mas ainda a chorar!
....................... E corações caridosos Farão a dar pressurosos Os seus globos gentis!
Dai! é doce a esmola!
Ela aos pobres consola, Torna-os ledos, gazis!
A miséria chorava Em delírio bradava Por um pouco de pão!
E eles foram dizendo — Ide, pois vos mantendo, Aqui tendes a mão!
.......................
E vós — lá no tablado, O mor rasgo, elevado, De fazer acabais!
É um rasgo de glória De brilhante memória Pros vindouros anais!
Vós fazeis do cenário Um dinal santuário Trabalhando p’ra pobres!
Mostrais bem que nas almas Possuís celsas palmas De ações muito nobres!
P’ra louvar amadores, Tantas lutas, labores, Tanta excelsa virtude!
Ah! me falta uma lira Que um poema desfira...
Ai! me falta alaúde!
Só Deus pode dar louros De mil glórias, tesouros, Como vós mereceis!
Pois que feitos tão divos, Tão imensos, altivos Só d’heróis ou de reis!
Amadores briosos!
Vós sois tão valorosos Qual os bravos na guerra!
Sois os nautas valentes Socorrendo ridentes Quem cá gema na terra! Amor, Deus, Caridade — É a sublime trindade Radiante de Luz!
Donde vós, amadores, Lá colheis os fulgores, De mil graças a flux!
(Desterro, 14 nov. 1880)
A IMPRENSA
A Imprensa é brilhante como o meteoro, sublime como os arrebóis do cerúleo infinito!
Do Autor A lâmpada gigantesca Das glórias do porvir, Turíbulo majestoso No mundo a irradir, É a imprensa tesouro E c'roa de verde louro À fronte do escritor!
É centelha sublimada Que vem do céu arrojada À treva dando fulgor!
— O homem nasceu pequeno Mas com as letras cresceu Foi como o vulto de Rodes Que lá tão alto s’ergueu!
Foi preciso — estudando Co’a própria idéia lutando Mergulhar-se na luz!
Foi preciso ter glória, Brilhante, leda memória, Colher renomes a flux!
Foi preciso mil lutas Mil labores insanos P'ra descobrir nesses mundos Da diva luz os arcanos!
Foi preciso que um bravo Não mostrando-se ignavo Mas inspirado por Deus!
A pedra bruta talhasse E a luz então derramasse Qual seiva santa dos Céus!
Foi preciso os séculos Ainda um pouco nas trevas Erguessem as frontes bem alto E devastassem mil selvas!
Foi preciso que o mundo Sentisse abalo profundo Ao desvendar- se o saber!
Foi preciso que os entes Ou se erguessem potentes Ou tombassem a morrer!
Mas não! — o homem ergueu-se, Quase, quase com Deus Tirou a fronte da treva E só pregou-a nos Céus!
Viu o futuro de louros E quis colher os tesouros Que dão renome sem fim!
Sonhou, sonhou co’a vitória E o gládio teve da glória Qual o grão Bernardim!
O homem, gênio sublime, Caminha, com seu bordão Até achar o brilhante A luz, a luz da razão!
Tropeça um pouco, se tomba Ergue-se, voa qual pomba E indo a luz descobrir, Busca ouvir no infinito Do eco ao longe este grito:
Trabalha para o porvir!
Quando os povos modernos, Sentirem no coração Uma ardente centelha Que caia lá d'amplidão!
Deixarão esses vícios, Insanos, negros, fictícios Que dão só noite ao viver!
E irão curvados a ela Depor-lhe verde capela Farão então por crescer! Camões, Milton, Abreu, Já da vida sem lampas, Erguei-vos crânios altivos Espedaçai essas campas!
Dizei — se o homem caminha Se na treva definha A quem se deve louvar?!...
S’as letras seguem ovantes Dizei ó nobres gigantes A quem se ergue alcaçar?!!...
E Guttemberg esse herói, Essa vergôntea dinal, Que co'escopro na destra!
Foi das letras fanal!
Ao descobrir a imprensa Essa epopéia imensa Para toda a nação, Com glória ingente sonhava Na luz por certo nadava Já tinha os louros na mão!
(Desterro, 21 nov. 1880)
VERSOS
Admirai Carrara, Canova, Rafael, Murillo, Mozart e Verdi e tereis as sublimes, mais que sublimes, as divinas encarnações da arte!
Do Autor Bravo, prole bendita Pois à glória infinita O lutar vos conduz!
É assim — trabalhando Sempre e sempre estudando Que se alcança mais luz!
Contemplai estas flores Estes tantos lavores Contemplai o painel!
Repetindo orgulhosos Estes feitos briosos São dum belo pincel!
Eia, jovens, avante!
Ser artista é brilhante, Trabalhar é uma lei!
Não são só os c’roados Que merecem em brados Ter as honras de rei!
O artista qu'é pobre É tão rico, é tão nobre Qual potente césar!
E a glória bem cedo Lhe murmura o segredo — És artista — és sem par!
Não temais os pampeiros Sois gentis brasileiros Deveis pois progredir!
Quem vos traça na história Vossa augusta memória É um deus — o Porvir!
Levantai-vos potentes Altanados, ingentes E fazei-vos Criseus!
Só quem pode vergar-vos E pensar obumbrar-vos Mais ninguém — é só Deus!
Não fiqueis ignavos Que o futuro dá bravos Vos dizendo — estudai!
Sois humanos — portanto Se há de trevas um manto Apressai-vos, rasgai!
Nossa pátria querida Necessita mais vida, Necessita crescer!
É preciso contudo Que tenhais como escudo Quem vos mostra o saber!
E de obreiros altivos, Que sereis redivivos Que sereis imortais, Achareis vossos nomes Vossos grandes renomes Nas mansões divinais!
Perdoai-me estas flores Que tão murchas, sem cores Nada podem valer!
São ofertas sinceras Arrancadas deveras Para vir vos trazer!
Palinuros — à frente Esse trilho é ridente Dás-vos honra, louvor!
Quem o braço vos guia Nunca, nunca entibia —
— É artista... e pintor!
É a vós a quem falo E se hoje eu não calo Estas vãs expressões!
É que a louca alegria Em minh'alma irradia Com fulgentes clarões!
O trabalho enobrece Glorifica, engrandece Aos artistas quais vós!
Que zombando da sorte Têm a tela por norte Os pincéis por faróis!
Eia! nessa carreira Qual a nau sobranceira Indo o mar a fender!
Quando há negros abrolhos, Mil cachopos, escolhos É mais belo o vencer!
Se o lutar é dos grandes Que são gêmeos dos Andes Que não sabem tombar!
Colhereis uma glória Mais suprema memória, Trabalhando, a lutar!
Deus, o Deus sublimado Disse ao homem num brado, Da sidérea mansão! — Vai depressa arrimar-te Aos arcanos da arte, Que terás um bordão!
Onde há braços d’artista É seu ponto de vista Decepar escarcéus!
E seu gládio seguro Vai cavar o futuro Vai rasgar negros véus!
E lá quando os vindouros Vos c'roarem de louros Vos erguerem dossel!
Bradarão altaneiros:
— Exultai brasileiros, Ressurgiu Rafael!
Não temais os insanos, Insensatos humanos Bajulantes e maus!
Trabalhai muito embora!
Há de vir uma aurora P’ra arrancá-los do caos!
.........................
Away, estudantes Sois vergônteas pujantes A lauréis tendes jus!
Caminhai com coragem, Qu’esta é a romagem Dos apóstolos da luz!!!...
AO DECÊNIO DE CASTRO ALVES
Quem sempre vence é o porvir!
No espadanar das espumas Que vão à praia saltar!
Nos ecos das tempestades Da bela aurora ao raiar, Um brado enorme, profundo, Que faz tremer todo o mundo Se deixa logo sentir!
É como o brado solene, Ingente, celso, perene, É como o brado: — Porvir!
Pergunta a onda: — Quem é?...
Responde o brado: — Sou eu!
Eu sou a Fama, que venho C’roar o vate, o Criseu!
Dormi, meu Deus, por dez anos E da natura os arcanos Não posso todos saber!
Mas como ouvisse louvores De glória, gritos, clamores, Também vim louros trazer.
Fatalidade! — Desgraça!
Fatalidade, meu Deus!
Passou-se um gênio tão cedo, Sumiu-se um astro nos céus!
As catadupas d’idéias, De pensamento epopéias Rolaram todas no chão!
Saindo a alma pra glória Bradou pra pátria — vitória!
Já sou de vultos irmão!
Foi Deus que disse: — Poeta, Vem decantar a meus pés.
Na eternidade há mais luz, Dão mais valor ao que és.
Se lá na terra tens louros, Receberás cá tesouros De muitas glórias até!
Terás a lira adorada C’o divo plectro afinado De Dante, Tasso e Garret!
Então na terra sentiu-se Um grande acorde final!
O belo vate brasílio Pendeu a fronte imortal!
O negro espaço rasgou-se E aquele gênio internou-se Na sempiterna mansão.
A sua fronte brilhava E o áureo livro apertava Sereno e ledo na mão...
E o mundo então sobre os eixos Ouviu-se logo rodar! É que ele mesmo estremece A ver um vulto tombar.
É que na queda dos entes Que são na vida potentes, Que têm nas veias ardor, Há cataclismos medonhos Que só sentimos em sonhos Mas que nos causam terror!...
E o coração s'estortega E s'entibia a razão!
No peito o sangue enregela E logo a história diz: — Não!
Não chore a pátria esse filho, Se procurou outro trilho Também mais glórias me deu!
E quando os séculos passarem Se hão de tristes curvarem Enquanto alegre só eu?...
Oh! Basta! Basta! Silêncio!
Repousa, vate, nos Céus!
Que muito além dos espaços Os cantos subam dos teus!
Se nesta vida d'enganos Não são bastante os humanos Pra te render ovações!
Perdoa os fracos, ó gênio, Que pra cantar teu decênio Somente Elmano ou Camões!
ENTRE LUZ E SOMBRA
Ao dia 7 de Setembro Libertas Lux Dei!!...
Surge enfim o grande astro Que se chama Liberdade!...
Dos sec'los na imensidade Eterno perdurará!...
Como as dúlias matutinas Que reboam nas colinas, Nas selvas esmeraldinas Em honra ao celso Tupá!... Eram só cinéreas nuvens Os brasílios horizontes!
Curvadas todas as frontes Caminhavam no descrer! —
As brisas nem murmuravam...
Os bosques nem soluçavam...
Os peitos nem se arroubavam...
— Estava tudo a morrer!...
De repente, o sol formoso Vai as nuvens esgarçando.
As almas vão palpitando, Cintilam magos clarões!...
E o Índio fraco, indolente Fazendo esforço potente Dos pulsos quebra a corrente, Biparte os acres grilhões!...
Por terra tomba gemendo O vão, atroz servilismo...
Rui a dobrez no abismo...
Eis a verdade de pé!...
Enfim!... exclama o silvedo Enfim!... lá diz quase a medo Selvagem, nu Aimoré!...
Assim, brasília coorte, Falange excelsa de obreiros, Soberbos, almos luzeiros De nossa gleba gentil, Quebrai os elos d’escravos Que vivem tristes, ignavos, Formando delas uns bravos — P'ra glória mais do Brasil!...
Lançai a luz nesses crânios Que vão nas trevas tombando E ide assim preparando Uns homens mais p'ro porvir!
Fazei dos pobres aflitos Sem crenças, lares, proscritos, Uns entes puros, benditos Que saibam ver e sentir!...
Do carro azul do progresso Fazei girar essa mola!
Prendei-os sim, — mas à escola Matai-os sim, — mas na luz! E então tereis trabalhado O negro abismo sondado E em nossos ombros levado Ao seu destino essa cruz!!...
Fazei do gládio alavanca E tudo ireis derribando;
Dormi, co’a pátria sonhando E tudo a flux se erguerá!
E a funda treva cobarde Sentindo homérico alarde, Embora mesmo que tarde Curvada assim fugirá!...
Enfim!... os vales soluçam Enfim!... os mares rebramam Enfim!... os prados exclamam Já somos livre nação!!...
Quebrou-se a estátua de gesso...
Enfim!... — mas não... estremeço, Vacilo... caio, emudeço...
Enfim de tudo inda não!!...
SETE DE SETEMBRO
Liberdade! Independência!...
Eis os brados grandiosos Que quais raios luminosos Fulguraram lá nos céus!...
Eis a mágica — Odisséia Que duns lábios rebentando, Foi o povo transformando, Foi rompendo os negros véus!...
As colinas, prados, montes, As florestas seculares — Os sertões, os próprios mares Exultaram com fervor!
E os brados retumbaram Pela lúcida devesa, Pela virgem natureza Com homérico clangor!...
Qual artista consumado, Qual um velho estatuário Do Brasil no azul sacrário, Essa data vos traçou, — O triunfo mais pujante, A eleita das idéias, A maior das epopéias — Q'inda igual não se gerou!...
Mas embora, meus senhores Se festeje a Liberdade, A gentil Fraternidade Não raiou de todo, não!...
E a pátria dos Andradas Dos — Abreu, Gonçalves Dias Inda vê nuvens sombrias, Vê no céu fatal bulcão!...
Muito embora Rio Branco, Esse cérebro profundo Que passou por entre o mundo, Do Brasil como um Tupá!...
Muito embora em catadupas Derramasse o verbo augusto, Da nação no enorme busto Inda a mancha existe, há!...
É preciso com esforço, Colossal, estranho, ingente, Ir o cancro, de repente Esmagar que nos corrói!...
É preciso que essa Deusa, A excelsa Liberdade, Raie enfim na Imensidade Mais altiva como sói!...
Sai da larva a borboleta Com as asas auriazuis E um disco vai — de luz A deixar onde passou!
No entanto o grande berço Das façanhas de Cabrito Inda espera um novo grito Como o — Basta — de Waterloo!...
Eu bem sei que Guttemberg Que esse Fulton primoroso Faust, Kepler grandioso Trabalharam té vencer!
Mas embora tropeçassem Acurando os seus eventos, Tinham sempre tais portentos A vontade por poder!...
Eia! sim! — p’ra Liberdade Irrompei qual verbo eterno, Como o — Fiat — superno Pelos ares a rolar!
Eia! sim! — que nossa pátria Só precisa — mas de bravos...
E em prol desses escravos Seu dever é trabalhar!!...
Somos filhos dessa gleba Majestosa aonde o gênio Como o astro do proscênio Solta as asas, mui febril!
Dos selvagens Tiaraiús E dos brônzeos Guaicurus...
Somos filhos do Brasil!...
Esperemos, tudo embora!...
Pois que a sã locomotiva, Do progresso imagem viva Não se fez a um sopro vão!.
Aguardemos o momento Das mais altas epopéias, Quando o gládio das idéias Empunhar toda a nação!...
Esperemos mais um pouco Q’inda há almas brasileiras Que se lembrarão, sobranceiras, Que é preciso progredir!...
Inda há peitos valerosos Que combatem descobertos Por florestas, por desertos, Mas c'os olhos no porvir!...
Inda há lúcidas falanges Lutadores denodados Que se erguem transportados Burilando a sã razão!...
Inda há quem se recorde Do Egrégio Tiradentes Que do sangue as gotas quentes Derramou pela nação!!... Já nas margens do Ipiranga Patrióticos acentos Vão alados como os ventos Pelos páramos azuis!!...
Vamos! Vamos! — eia! exulta, Jovem pátria dos renomes...
— Vibra a lira, Carlos Gomes!
Bocaiúva, espalha luz!!...
TRÊS PENSAMENTOS
Nasceste no Brasil — filha d’América, Tu sabes conservar nas débeis veias No lúcido pulmão O sangue efervescente e purpurino A força de subir ao céu da história.
Às lutas da razão!...
Nasceste no Brasil — em meio às plagas Da grande natureza mais pujante E cheia de arrebol!...
E sabes obumbrar os astros fulvos E lanças raios mil por toda a parte, Soberba como o sol!...
Nasceste no Brasil e o eco ovante Das glórias sublimadas que tu colhes Por este céu azul, Vem férvido, viril e acentuado Assaz repercutir com mais verdade Aqui... aqui no sul!...
SEMPRE
Se é certo que o amor é um bem profundo Se é certo que o amor é um sol ardente, Eu hei de amar-te sempre neste mundo E sempre, sempre, sempre — eternamente. BEIJOS
Nesta Tebaida infinita Da vida, na sombra oculto, Eu gosto de olhar o vulto De uma criança bonita.
Porque afinal as crianças, Como eu deslumbro-me ao vê-las, Cintilam como as estrelas, Florescem como esperanças.
Dentro de mim se projeta A luz cambiante dos prismas E batem asas as cismas Qual passarada irrequieta.
E batem asas e ruflam, Pelas artísticas plagas, As auras que as grandes vagas Dos fundos mares insuflam.
E digo, ó mães, se uma aurora Fosse a minh’alma sincera, Os clarões todos eu dera A uma criança que chora.
Porque se a luz fortalece Arbustos e as andorinhas, Também por certo às criancinhas Conforta, avigora, aquece.
E eu que aplaudo e que rimo Tudo isso que à luz se regre, Na vibração mais alegre As criancinhas estimo.
Portanto, assim, sem refolhos Beijando a Olga, beijando Meus sonhos vão, irradiando, Se derramar em seus olhos!
SER PÁSSARO
Ah! Ser pássaro! ter toda a amplidão dos ares Para as asas abrir, ruflantes e nervosas, Dos parques através e dos moitais de rosas, Nos floridos jardins, nas hortas e pomares.
Ser pássaro, cantar, subir, voar na altura, Pelos bosques sem fim, perder-se nas florestas, Das folhagens do campo em meio da espessura, Das auroras de abril nas cristalinas festas.
Tecer no tronco seco ou no tronco viçoso O quente lar do amor, o carinhoso ninho, De onde sairá mais tarde o pipilar mavioso De um outro mais gentil e meigo passarinho.
Não temer o verão e não temer o inverno Para tudo alcançar na leve subsistência, No contínuo lidar, no labutar eterno, Que é talvez da alegria a mais feliz essência.
Viver, enfim, de luz e aromas delicados, Nascido dentre a luz, gerado dentre aromas, Sonorizando o azul, sonorizando os prados E dormindo da flor sob as cheirosas comas.
Voar, voar, voar, voar eternamente, Extinguir-se a voar, no matinal gorjeio, É ser pássaro, é ter em cada asa fremente Um sol para aquecer o frio de algum seio.
SAUDAÇÃO
Ao Liceu de Artes e Ofícios Como esta luz é serena, Como esta luz é sincera;
Como eu vejo a primavera Num lápis e numa pena.
Que prismas de luz ardente, Que prismas de luz suave;
Como eu sinto um canto de ave Em cada boca inocente.
Sim! Que o estudo é como a aurora Que nos entra pela casa, Num vivo fulgor de brasa, Vibrante, alegre, sonora.
Ele rasga a treva espessa, Num só momento — cantando;
Vai estrelas semeando Em cada tenra cabeça.
Tira os crânios do letargo Da ignorância — pois entra Como um sol e se concentra Num esplendor muito largo.
Quem, ó Arte imaculada, Medisse o ser da criança, Pela alma de uma esperança Pela alma de uma alvorada.
Quem aos páramos subindo, Eternamente pudesse, Dos astros a loura messe Arrancar — depois abrindo Os peitos das criancinhas Jogá-los dentro e beijá-las Cheias de pompa e das galas Que a luz concede às rainhas!...
Pois que a treva entre fulgores, É como, dentre ataúdes, Rebentar como virtudes, As mais simpáticas flores.
Ah! Ninguém sabe, por certo, Quanto é bom, quanto é saudável, Sentir a crença adorável Como um clarão sempre aberto.
Ver os germens do futuro No campo eterno da escola, Brilhando como a corola De um lírio cândido e puro.
Ver morrer — como uns invernos Da vida, os velhos colossos E ver erguerem-se os moços Como verões sempiternos.
Mães, ó mães tão extremosas, Dos vossos ventres fecundos Saem todos esses mundos Das idéias fulgurosas.
Tudo isso quanto há escrito De pensamento e crenças Saiu das fontes imensas De um grande amor infinito.
E desde a escrita à leitura E desde um livro a uma carta, A bondade sempre farta Das mães — esplende e fulgura.
Bom dia ao mestre que é guia Das belas crianças louras!
Bom dia às mães porvindouras, À mocidade — Bom dia!
GUSLA DA SAUDADE
A Santos Lostada pela morte do seu velho pai Nunca mais, nunca mais esses teus olhos Palpitarão nos olhos seus honestos Nem hão de vê-lo em ânsias por escolhos.
Ele morreu, morreu — e os mais funestos Lutos da dor feriram como abrolhos Teu lar e os teus — serenos e modestos.
Que incalculável explosão de prantos Não inundou as almas preciosas Dos teus irmãos, da tua mãe — uns santos Que peregrinam nestas lacrimosas Sendas da vida, em mágoas, sem encantos Como sem luz e sem orvalho as rosas.
Ah! formidável lei cruel da vida, Lei da matéria, da mudez das lousas, Da eterna noite atroz, indefinida;
Tens o segredo intérmino das cousas, E nessa dura e tenebrosa lida, Oh! nem sequer um dia só repousas. Quem sabe, ó morte, ó lúgubre, quem sabe O teu poder fatal, desapiedado Onde se oculta e se resume e cabe.
Pois nem que o céu puríssimo, azulado Cair aos pedaços, tombe e se desabe Na profundez do abismo ilimitado E a crença humana espavorida, em gritos, Palpando o nada, esquálida, gemendo, Rasgue a amplidão de estranhos infinitos, Nunca da morte saberão o horrendo Mistério rijo e surdo dos granitos Os corações que vivem combatendo?!...
Não! A Ciência penetrou, o estudo Do pensador, abriu mais horizontes Nesse problema silencioso e mudo.
O pensamento constelou as frontes, Deu à razão o mais brunido escudo E construiu as luminosas pontes De onde se vai, com grande olhar, seguro, Atravessar as regiões sonoras Dos Ideais que irrompem do Futuro;
E sem contar dos séculos as horas, E sem temer as mil visões do Escuro, Alegremente ao fresco das auroras.
Mas entretanto, ó meu amigo, escuta, Toda a saudade, a grande nostalgia Nos deixa frios, mortos para a luta.
Porque, olha, a morte é sempre uma agonia!
SMORZANDO
O véu da tarde cai pelas quebradas Das serras altaneiras;
As aves condoreiras Rompem da mata em místicas risadas O largo espaço intérmino cindindo. A livre natureza, Humildemente, pura, vai caindo, Caindo de joelhos Como esse denso véu Cai na viril e rútila grandeza Do sol que desce em borbotões vermelhos Como uma mancha tropical no céu.
E vibra a Ave-Maria Como um soluço, estranho, indefinido;
Talvez como um gemido Dentre a escalvada e agreste serrania.
E desce e desce e desce De toda a imensidade A salutar carícia de uma prece, O eflúvio da saudade Que alaga o nosso peito heroicamente Como o luar de um treno Mavioso e emoliente, Mais doce que o sorrir do Nazareno.
VERSOS À INFÂNCIA
Nos roseirais, ao vir da madrugada, Desabrocham no val todas as rosas, Nos galhos cheios de uma luz doirada, Meigas e frescas, rubras, perfumosas, Nos roseirais, ao vir da madrugada.
Como em bocas cheirosas e vermelhas Pousam beijos de amor e de ventura, O mel lhe sugam todas as abelhas Pousando em cima da corola pura Como em bocas cheirosas e vermelhas.
Desde os campos, o bosque, até aos montes Tudo renasce num jardim de flores;
E pelo azul do céu, nos horizontes, Há os mais vivos, raros esplendores, Desde os campos, o bosque, até aos montes.
Pelos ninhos sonoros, delicados, Cantam e trinam muitos passarinhos Nos altos arvoredos enflorados, À margem verdejante dos caminhos, Pelos ninhos sonoros, delicados.
As borboletas brancas e amarelas, Azuis, cor de ouro, cor de prata e brasa, Leves, ligeiras, tênues e singelas, Abrem a fina talagarça da asa, As borboletas brancas e amarelas.
Tudo no val acorda de desejos À musica dos cantos mais risonhos;
E as aves soltas, peregrinos beijos, Dizem, cantando, que através de sonhos Tudo no val acorda de desejos.
II
Na alma da infância, tal e qual roseiras, Abrem festões de límpida fragrância Os sonhos e as quimeras passageiras Que são mais próprias do vergel da infância, Na alma da infância, tal e qual roseiras.
O pequenino coração ditoso Canta canções de uma ave pequenina;
E é um encanto ver assim radioso No peito de uma cândida menina O pequenino coração ditoso.
A existência de sol das criancinhas Lembra um pomar de frutas bem serenas, Por onde os colibris e as andorinhas Gozam amores sacudindo as penas, A existência de sol das criancinhas.
Não sei dizer se adore mais crianças Ou mais também as flores de um arbusto;
Nessas tão puras, castas semelhanças Eu, para ser bem carinhoso e justo, Não sei dizer se adore mais crianças.
(Desterro)
TRISTE Em junho, que é mês do frio, Perdes todo o colorido, Tens um tom vago e sombrio De dor, de mágoa e gemido.
Não sei que tristeza é essa De tão doloroso cunho Que perdes a cor depressa Assim que vem vindo junho.
Ficas branca e desmaiada, Lembrando a lua serena, Fraca, pálida e gelada, Como frágil açucena.
Vão-se-te as rosas da face Emurchecendo e sumindo Num crepúsculo vivace De tudo o que estás sentindo.
Ai! no entanto pelos prados Onde os dias resplandecem Risonhas como noivados Em junho as rosas florescem...
(Desterro)
FONTE DE AMOR
Trago-a à tua presença Para que vejas a imensa Mágoa atroz que a devorou.
E saibas, ó flor das flores, Que a fonte dos seus amores Eternamente secou.
Foste à fonte buscar água E tinha secado a fonte.
Aí, flor azul do monte, Tiveste a primeira mágoa.
Porém se uma alma na frágua Das dores sem horizonte Queres ver, sentir defronte Dos olhos, manda que eu trago-a.
CASTELÃ Bela e mais encantadora Do que todas as belezas, Graça leve de pastora Que canta pelas devesas.
Enleios de passarinho E brilhos de primavera, Com magnetismos de vinho No olhar azul de quimera.
Feita de um jorro sadio De auroras purpureadas Carne mais fresca que um rio De frescas águas prateadas.
Tudo é frio e tudo é raso Para dizer-te a capricho Que és magnólia para um vaso, Que és arcanjo para um nicho.
És um mito da Alemanha Vivendo em montanha alpestre, No castelo da montanha, Como ardente flor silvestre.
E tens as pomas à farta Polposas, cheias de aromas.
És assim a loura Marta Com abundância de pomas.
Esse príncipe que te ama, Cismando, trágico e grave, Quando o luar se derrama Cuida ouvir-te os vôos de ave.
Ele vive, airoso e belo, Como se vive num sonho, No seu nevoento castelo Junto de um lago tristonho.
E através do pó flutuante Do luar saudoso e vago Julga que és a garça errante Das águas verdes do lago.
O SOL E O CORAÇÃO
Sol, coração do Espaço que flamejas, O coração é qual tu, sol de utopias...
Mas, coração, dize-me: — Que desejas?...
Foram-se já todas as alegrias, Ó Sol! E tu, coração, que ainda adejas, Que fazes sobre as mortas fantasias?!...
Podes brilhar, ó Sol, vivo e fulgente!
E tu, coração, que me iludiste, Também podes bater, inutilmente.
Crença, Ilusão, Amor, já nada existe, Não mais levarás sobre a corrente Da tenebrosa dúvida mais triste.
Longe, mui longe, em regiões caladas, Emudecidos pelo Esquecimento, Estão hoje esses sonhos de alvoradas.
Foram-se, há muito, soltos pelo vento Entre as grandes ruínas derrocadas Do meu amargo e pobre pensamento, Entre as profundas, tétricas ruínas Em que o doce fantasma desses sonhos Atravessou em lágrimas divinas.
Fantasma ideal, de cânticos risonhos Que da vida encontrei pelas colinas E hoje vaga entre bulcões medonhos!
Fantasma que eu amei, visão errante Que sempre junto a mim vivia perto, Por mais longe que eu fosse e mais distante.
Visão que era como a água do deserto Para o meu coração sempre anelante, Sequioso de amor e sempre aberto... Ó pobre coração, em vão te agitas, Em vão tu bates, coração estreito, Tal qual tu, Sol, nos páramos crepitas.
Nada mais, para mim, de satisfeito Brilha com o Sol nas plagas infinitas, Como não canta o coração no peito...
Podes, enfim, sumir-te nos Espaços Sol! E tu, coração, sempre batendo, Quebrar da terra os “Transitórios Laços”
Eternamente desaparecendo!...
(CAMBIANTES — SONETOS E OUTROS VERSOS)
RISADAS
Às criaturas alegres Fantasia, ó fantasia, tropo ardente Da aurora alegre undiflavando as bandas Do adamascado e rúbido oriente, Ó fantasia, águia das asas pandas.
Tu que os clarins do sonho mais fulgente Das Julietas, feres, nas varandas, Ó fantasia dos Romeus, ó crente, Por que países meridionais tu andas?!
Vem das esferas, entre os sons que vibras.
Vem, que desejo emocionar as fibras, Quero sentir como este sangue impulsas.
Noiva do sol que os sóis preclaros gozas Para rimar umas canções de rosas, Como risadas de cristal, avulsas...
AVE! MARIA... Ave! Maria das Estrelas, Ave!
Cheia de graça do luar, Maria!
Harmonia de cântico suave, Das harpas celestiais branda harmonia...
Nuvem d'incensos através da nave Quando o templo de pompas irradia E em prantos o órgão vai plangendo grave A profunda e gemente litania...
Seja bendito o fruto do teu ventre, Jesus, mais belo dentre os astros e entre As mulheres judaicas mais amado...
Ó Luz! Eucaristia da beleza, Chama sagrada no Evangelho acesa, Maravilha do Amor e do Pecado!
RIR!
Rir! Não parece ao século presente Que o rir traduza, sempre, uma alegria...
Rir! Mas não rir como essa pobre gente Que ri sem arte e sem filosofia.
Rir! Mas com o rir atroz, o rir tremente, Com que André Gil eternamente ria.
Rir! Mas com o rir demolidor e quente Duma profunda e trágica ironia.
Antes chorar! Mais fácil nos parece.
Porque o chorar nos ilumina e nos aquece Nesta noite gelada do existir.
Antes chorar que rir de modo triste...
Pois que o difícil do rir bem consiste Só em saber como Henri Heine rir!...
ASPIRAÇÃO
Quisera ser a serpe astuciosa Que te dá medo e faz-te pesadelos Para esconder-me, ó flor luxuriosa, Na floresta ideal dos teus cabelos.
Quisera ser a serpe venenosa Para enroscar-me em múltiplos novelos, Para saltar-te aos seios cor-de-rosa.
E bajulá-los e depois mordê-los.
Talvez que o sangue impuro e rutilante Do teu divino corpo de bacante, Sangue febril como um licor do Reno Completamente se purificasse Pois que um veneno orgânico e vorace Para ser morto é bom outro veneno.
SENSIBILIDADE
Como os audazes, ruivos argonautas, Intrépidos, viris e corajosos Que voltam dos orientes fantasiosos, Dos países de Núbios e Aranautas.
Como esses bravos, que por naus incautas, Regressam dos oceanos borrascosos, Indo encontrar nos lares harmoniosos De luz, vinho e alegria as mesas lautas.
Tal o meu coração, quando aparece A tua imagem, canta e resplandece, Sem lutas, sem paixões, livre de abrolhos.
A meu pesar, louco de ver-te, louco, As lágrimas me correm pouco a pouco, Como o champanhe virginal dos olhos...
GLÓRIAS ANTIGAS
Rubras como gauleses arruivados, Voltam da guerra as hostes triunfantes, Trazem nas lanças d’aço lampejantes, Os louros das batalhas pendurados. Os escudos e arneses dos soldados Rutilam como lascas de diamantes E na armadura os músculos vibrantes, Rijos, palpitam, batem nervurados.
Dentre estandartes, flâmulas de cores, Trazem dos olhos rufos de tambores, Ruídos de alegria estranha e louca.
Chegam por fim, à pátria vitoriosa...
E então, da ardente glória belicosa, Há um grito vermelho em cada boca!
MAGNÓLIA DOS TRÓPICOS
A Araújo Figueredo Com as rosas e o luar, os sonhos e as neblinas, Ó magnólia de luz, cotovia dos mares, Formaram-te talvez os brancos nenúfares Da tua carne ideal, de correções felinas.
O teu colo pagão de virgens curvas finas É o mais imaculado e flóreo dos altares, Donde eu vejo elevar-se eternamente aos ares Viáticos de amor e preces diamantinas.
Abre, pois, para mim os teus braços de seda E do verso através a límpida alameda Onde há frescura e sombra e sol e murmurejo;
Vem! com a asa de um beijo a boca palpitando, No alvoroço febril de um pássaro cantando, Vem dar-me a extrema-unção do teu amor num beijo.
SUPREMO ANSEIO
Esta profunda e intérmina esperança Na qual eu tenho o espírito seguro, A tão profunda imensidade avança Como é profunda a idéia do futuro.
Abre-se em mim esse clarão, mais puro Que o céu preclaro em matinal bonança;
Esse clarão, em que eu melhor fulguro, Em que esta vida uma outra vida alcança.
Sim! Inda espero que no fim da estrada Desta existência de ilusões cravada Eu veja sempre refulgir bem perto Esse clarão esplendoroso e louro Do amor de mãe — que é como um fruto de ouro, Da alma de um filho no eternal deserto.
NERAH
Inspirado no elegante conto de Virgílio Várzea A Vítor Lobato Nerah não brinca mais, não dança mais. — E agora Que vão-se apropinquando os tempos invernosos, Nerah traz uns receios tímidos, nervosos, De quem teme mudar-se em noite, sendo aurora.
Seus sonhos de cristal, translúcidos, antigos Se vão embora, embora à vinda dos invernos, Seguindo em debandada os úmidos galernos —
— Lembrando um roto bando informe de mendigos.
Não canta o sabiá que triste na gaiola, Parece, com o olhar, pedir-lhe a casta esmola De um riso — aquela flor que esvai-se, branca e fria.
Em tudo a fina seta aguda de aflições!
Na própria atmosfera um caos de interjeições!
Em tudo uma mortalha, em tudo uma agonia.
AMOR
Nas largas mutações perpétuas do universo O amor é sempre o vinho enérgico, irritante...
Um lago de luar nervoso e palpitante...
Um sol dentro de tudo altivamente imerso.
Não há para o amor ridículos preâmbulos, Nem mesmo as convenções as mais superiores;
E vamos pela vida assim como os noctâmbulos À fresca exalação salúbrica das flores.
E somos uns completos, célebres artistas Na obra racional do amor — na heroicidade, Com essa intrepidez dos sábios transformistas.
Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige E amamos com vigor e com vitalidade, A cor, os tons, a luz que a natureza exige!...
FILETES
A J. L.
De cravos, de rosas, De lírios, perfumes, De beijos, ciúmes, De coisas formosas;
De cantos suaves De músicas, vinhos De aromas, arminhos Dos trinos das aves;
Das cismas radiadas, De esperanças aladas Por vagos escombros, São feitos, são feitos Teus olhos perfeitos, Repletos de assombros.
FILETES
I
Ó pérola nitente, Ó pérola do amor, Ó imã redolente Das pétalas da flor;
Ó lágrima sutil, Ó lágrima ideal, Do côncavo de anil Caída no cristal Do lago transparente, Harmoniosamente, Aos flocos do luar...
Tu és como as essências, Conheces as ciências Ocultas... de matar!
II
Cintila a estrela-d’alva Bem como o olhar do crente!
Perpassa no ambiente O fresco olor da malva.
Um tic de lirismo, Simpático e harmônico, Derrama no sinfônico Riacho — um misticismo.
Há músicas supremas, Um mundo de problemas Nos montes seculares.
E como um lírio roxo, A alma em canto frouxo Emigra para os ares.
(Desterro)
ARTE
Como eu vibro este verso, esgrimo e torço, Tu, Artista sereno, esgrime e torce;
Emprega apenas um pequeno esforço Mas sem que a Estrofe a pura idéia force.
Para que surja claramente o verso, Livre organismo que palpita e vibra, É mister um sistema altivo e terso De nervos, sangue e músculos, e fibra. Que o verso parta e gire — como a flecha Que d’alto do ar, aves, além, derruba;
E como os leões, ruja feroz na brecha Da Estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.
Para que tenhas toda a envergadura De asa e o teu verso, de ampla cimitarra Turca, apresente a lâmina segura, Poeta, é mister, como os leões, ter garra.
Essa bravura atlética e leonina Só podem ter artistas deslumbrados:
Que souberam sorver pela retina A luz eterna dos glorificados.
Busca palavras límpidas e castas, Novas e raras, de clarões radiosos, Dentre as ondas mais pródigas, mais vastas Dos sentimentos mais maravilhosos.
Busca também palavras velhas, busca, Limpa-as, dá-lhes o brilho necessário E então verás que cada qual corusca Com dobrado fulgor extraordinário.
Que as frases velhas são como as espadas Cheias de nódoa, de ferrugem, velhas Mas que assim mesmo estando enferrujadas Tu, grande Artista, as brunes e as espelhas.
Faz dos teus pensamentos argonautas Rasgando as largas amplidões marinhas, Soprando, à lua, peregrinas flautas, Louros pagãos sob o dossel das vinhas.
Assim, pois, saberás tudo o que sabe Quem anda por alturas mais serenas E aprenderás então como é que cabe A Natureza numa estrofe apenas.
Assim terás o culto pela Forma, Culto que prende os belos gregos da Arte E levará no teu ginete, a norma Dessa transformação, por toda a parte.
Enche de estranhas vibrações sonoras A tua Estrofe, majestosamente...
Põe nela todo o incêndio das auroras Para torná-la emocional e ardente.
Derrama luz e cânticos e poemas No verso e torna-o musical e doce Como se o coração, nessas supremas Estrofes, puro e diluído fosse.
Que as águias nobres do teu verve esvoacem Alto, no Azul, por entre os sóis e as galas, Cantem sonoras e cantando passem Dos Anjos brancos através das alas...
E canta o amor, o sol, o mar e as rosas, E da mulher a graça diamantina E das altas colheitas luminosas A lua, Juno branca e peregrine.
Vibra toda essa luz que do ar transborda Toda essa luz nos versos vai vibrando E na harpa do teu Sonho, corda a corda, Deixa que as Ilusões passem cantando.
Na alma do artista, alma que trina e arrulha Que adora e anseia, que deseja e que ama Gera-se muita vez uma fagulha Que se transforma numa grande chama.
Faz estrofes assim! E após na chama Do amor, de fecundá-las e acendê-las, Derrama em cima lágrimas, derrama, Como as eflorescências das Estrelas...
ARTE
[variação]
Como eu vibro este verso, esgrimo e torço, Tu, ó poeta moderno, esgrime e torce;
Emprega apenas um pequeno esforço Mas sem que nada a pura idéia force.
Para que saia vigoroso o verso, Como organismo que palpita e vibra, É mister um sistema altivo e terso De nervos, sangue e músculos e fibra. Que o verso parta e gire como a flecha Que do alto do ar, aves, além, derruba E como um leão ruja feroz na brecha Da estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.
Para que tenhas toda a envergadura De asa, o teu verso, como a cimitarra Turca apresente a lâmina segura, Poeta, é mister como um leão, ter garra.
Essa bravura atlética e leonina Só podem ter artistas deslumbrados Que sorvem com lábios e retina A luz do amor que os fez iluminados.
Nem é preciso, poeta, que te esbofes Para ferir um verso que fuzile;
Põe a alma e muitas almas nas estrofes E deixa, enfim, que o verso tamborile.
Busca palavras límpidas e novas, Resplandecentes como sóis radiosos E sentirás como te surgem trovas Belas de madrigais deliciosos.
Busca também palavras velhas, busca, Limpa-as, dá-lhes o brilho necessário E então verás que cada qual corusca, Com dobrado fulgor extraordinário.
Que as frases velhas são como as espadas Cheias de nódoas de ferrugem, velhas, Mas que assim mesmo estando enferrujadas Tu, grande artista, as brunes e as espelhas.
Que toda a vida e sensação de estilo Está na frase, quando se coloca, Antiga ou nova, mas trazendo aquilo Que soa como um tímpano que toca.
Como o escultor que apenas faz de um bloco A estátua — com supremo e nobre afinco Estuda a natureza num só foco:
A prata, o bronze, o cobre, o ferro, o zinco.
Estuda dos rubis, estuda do ouro E dos corais, da pérola e safira, Todo esse íris febril radiante e louro Que é a centelha de sol em toda a lira.
Estuda todos os metais, estuda, Desce à matéria prodigiosa e vasta, Estuda nela a natureza muda, Os veios de cristal da origem casta.
Estuda toda a intensa natureza Feita de aromas, de canções e de asas E sente a luz da cor e da beleza Rir, flamejar e arder, iriar em brasas.
Faz dos teus pensamentos argonautas Rasgando as largas amplidões marinhas, Soprando, à lua, peregrinas flautas, Como os pagãos sob o dossel das vinhas.
Assim, pois, saberás tudo o que sabe Quem anda por alturas mais serenas E aprenderás então como é que cabe A natureza numa estrofe apenas.
Assim terás o culto pela forma, Culto que prende os belos gregos da arte E levarás no teu ginete, a norma Dessa transformação por toda a parte.
Enche de alegres vibrações sonoras A tua idéia pródiga e valente, Põe nela todo o incêndio das auroras Para torná-la emocional e ardente.
Derrama luz e cânticos e poemas No verso e fá-lo musical e doce Como se o coração, nessas supremas Estrofes, puro e diluído fosse.
Que a abelha de ouro do teu verso esvoace, Fulja como um fuzil numa borrasca;
Que o verso quando é bom por qualquer face Lembra um fruto saudável desde a casca.
Com arte, forma, cor, tudo isso em jogo, Engrinaldado e rútilo de crenças, O sonho cresce — o pássaro de fogo Que habita as altas regiões imensas.
E canta o amor, o sol, o mar e o vinho, As esperanças e o luar e os beijos E o corpo da mulher — esse carinho —
Canta melhor, vibra com mais desejo.
Canta-lhe a sinfonia dos olhares A cálida magnólia austral das pomas, E quando então tudo isso enfim cantares Em tudo põe a fluidez de aromas.
Vibra toda essa luz que do ar transborda Como todo o ar nos seres vai vibrando E da harpa do teu sonho, corda a corda, Deixa que as ilusões passem cantando.
Na alma do artista, alma que trina e arrulha, Que adora e anseia, que deseja e ama, Gera-se muita vez uma fagulha Que explose e se abre numa grande chama.
Pois essa chama que a fagulha gera, Que enche e que acende o espírito de força, Sobe pela alma como primavera De rosas sobe por coluna torsa.
Faz estrofes assim, de asas de rima, Depois de fecundá-las e acendê-las De amor, de luz — põe lágrimas em cima, Como as eflorescências das estrelas.
O DUQUE
Quando o duque voltava da caçada Alegre, num clarim d’aço vibrante De alacridade moça e evigorada Dum ruidoso e trêfego estudante.
Quando ele vinha com seu ar bizarro De atravessar os vales e as colinas, Sadio aspecto fresco como um jarro Cheio de leite às horas matutinas.
Em toda a aristocrática varanda Alta e vistosa, ampla, aberta em janelas, Ele vibrava, de uma e outra banda, Canções de amor, nostálgicas e belas. Do salão nobre entre tapeçarias De Gobelins, riquíssimas e raras, Iam vibrando aladas harmonias Da sua voz, esplêndidas e claras.
Todas as fluidas, leves, calmas, frescas Manhãs azuis, serenas e formosas, Loura mulher das regiões tudescas O seu bom dia era mandar-lhe rosas.
Floria, é certo, em grande amor, floria Gerado pelo eflúvio dessas flores, Pois quando o duque não as recebia Era o mais infeliz dos caçadores.
Tão doce amor lembrava aquelas lendas Dos medievais castelos esquecidos, Quando visões de nuvens e de rendas Apareciam nos balcões floridos.
A caça, a caça, eternamente a caça!
Quanto melhor, mais fácil não lhe fora A conquista das aves do que a graça De conquistar essa beleza loura!
Para possuí-la como noiva amada, Aceso há muito nas paixões insanas, Arrostaria a caça mais ousada Dos javalis nas selvas africanas.
E sempre as lindas rosas matutinas Vinham-no perfumar todos os dias, Quando saltava aos vales e às colinas, Bizarro e são, dentre as tapeçarias.
Tempos passaram sobre tais amores!
Mas depois de casado fez surpresa Saber que o duque, o rei dos caçadores, Não tinha o mesmo amor pela duquesa.
A ESPADA
I
Cavalheiros, os tempos já passados, De pajens, de canzéis, de fidalguia, De castelos, de reinos brasonados.
Ar cortesão de graça e fantasia Através dos olhares e dos beijos — No silêncio de cada galeria...
Foi nesse bravo tempo dos lampejos De espadas, de punhais e de couraças Por combater frementes de desejos.
No tempo dos floreios e das caças Dos assaltos alegres e bizarros Como as sonoras vibrações das taças.
Em que as almas airosas como jarros, Cheios de vinho espumejante e ardente Eram de glória vencedores carros!
Foi no tempo fidalgo e refulgente, Quando o heroísmo fantasioso amava A linha e a chama de luzida gente, Que esta cena galharda se passava, Quando um donzel partia para guerra Como a nobreza do solar mandava.
O pai, um tronco transudando a terra, Forte e viril, presença de profeta Que no seu flanco a valentia encerra.
Barbas serenas de bondoso asceta Em cuja alvura doce e veneranda Vê-se a vontade e a intrepidez completa.
Fronte banhada de meiguice branda A que o dever e os ríspidos conselhos Dão sempre a austeridade que age e manda.
Lembra um ocaso de clarões vermelhos, Musgoso, triste, desolado muro, Por onde o luar abre fulgor d’espelhos.
E esse semblante que parece duro, Áspero e torvo, trouxe-o dos combates, Do torvelinho do nevoeiro escuro.
Dos pelouros sangüíneos escarlates, De fogo aberto em turbilhões, vorazes, Dos impulsivos, bélicos rebates.
Mas, bem olhadas, as feições audazes Desse velho patriarca destemido Tinha a suavidade dos lilases.
Nos olhos, um passado consumido Entre aventuras e colóquios belos Como que faz um verdadeiro ruído...
Sente-se neles noites de castelos Gozadas em amores dadivosos, Em madrigais, em íntimos desvelos.
Cavalgadas, torneios donairosos, Sonho feliz de rica mocidade, Requintes ideais, cavalheirosos.
Tudo se sente na tranqüilidade Desse deus varonil da força antiga Feito com o rijo bloco da Verdade.
Tudo se sente nessa paz amiga Que as crenças do passado às outras crenças Vagas, futuras, para sempre liga.
Tudo se sente vir das névoas densas E da ridente e cândida meiguice Das suas barbas límpidas e imensas.
Sim! tudo da quase criancice Que dão aos homens esses tons nevoentos Da enregelada e trêmula velhice.
Porém, reatando aéreos pensamentos...
Comecemos na cena detalhada Que já das eras se espalhou nos ventos.
É nada mais que a história duma espada, História curta, mas interessante Duma espelhante lâmina timbrada.
Não é pelo aço ou lâmina espelhante Que irei contar, pois são comuns os aços, Mas pelo nobre e original rompante.
Pelo ardimento que os primeiros braços Que a manejaram com pujança e brio Nela gravaram, com profundos traços.
II
O velho, em pé, atlético e sombrio Diante do filho armado cavaleiro, No aspecto dum leão ruivo e bravio.
Fala-lhe claro, d’alto e sobranceiro, Numa solene e enérgica atitude De quem nos prélios sempre foi primeiro.
O filho, grave o escuta e atende a rude Lhanez estóica de palavra augusta Que dos lábios lhe sai, com tal saúde.
Calmo, sem se mover, firme a robusta Figura solarenga do estoicismo, O velho disse esta nobreza justa:
"Aqui tens esta espada que o heroísmo Dos teus avós honrou nessas campanhas, Com o mais ousado, intrépido civismo.
Freme ainda hoje em convulsões estranhas, Palpita e anseia dentro da bainha Sonhando a luta, as implacáveis sanhas.
Tu, para a teres, como eu sempre a tinha, Num triunfo imortal, quase divino, De gládio que o valor maior continha;
É necessário um grande ardor leonino, Que sejas bem idólatra do nome Que fez de mim o extremo paladino.
A ferrugem, tu vês, o aço consome...
Porém, neste aço que ainda aqui fulgura, Se houver ferrugem, tira-a com o renome.
Aqui tens, pois, a lâmina segura, Alma e brasão da nossa velha casa Coberta de ovações, famosa e pura".
Calou-se um instante, como a ave que a asa Fechou no voar, já quase que abatida, Caindo exausta junto à moita rasa. O filho, mudo e respeitoso, erguida A valente cabeça leal de moço, Formoso estava, porejando vida.
E enquanto o velho, impávido colosso, Calara-se num momento, emocionado Ficara o filho em íntimo alvoroço.
Mas de repente, como iluminado Por um clarão de glórias já extintas, Tornou o velho, aos poucos transformado:
"Podes partir! Porém nunca desmintas Nas pelejas o dom da nossa fama, Por menos força que no peito sintas.
Como um clarim, por toda a parte aclama O vigor deste ferro e do teu pulso No combate que ruja, ulule e brama.”
E cada vez mais pálido e convulso, Mais nervoso e febril e mais altivo Bradou ainda, num tremendo impulso:
"Se tu, que és da minh'alma o exemplo vivo, Meu filho, tens de ser como um cobarde, Como um vilão abjeto e repulsivo;
Não faças mais de fidalguia alarde, Pega esta espada, meu Afonso, pega E quebra-a de uma vez, que não é tarde.
Pois em lugar de fazer dela entrega Aos sequiosos, feros inimigos Antes a quebre a cólera mais cega.
Ei-la, aqui tens, a leoa dos perigos, Que como outrora em minha mão lampeja Da bravura e da fama nos abrigos.
Se não a tens de honrar nessa peleja Escuta bem, ó meu amado filho, Quebra-a, e o teu nome nem manchado seja.
Como eu faria noutra idade e brilho, Com outras energias musculares, Segue-me tu no denodado trilho.” E assim falando, em gestos singulares, E agigantado corpo retesando E um tom sinistro esparso nos olhares;
A cabeça nos ares agitando Numa alucinação, — enorme ereto, Como heróica visão, deblaterando...
Fitando bem o filho predileto, Como se de repente lhe brotasse A força hercúlea dum poder secreto.
O velho, qual um templo que abalasse, A mão crispada, lívida e nervosa, Com todo o esforço a lhe afluir na face, Partiu no joelho a espada vitoriosa.
DESMORONAMENTO
Dentro do coração, no côncavo do peito Choro a grande ilusão do amor, desfalecida, Dentre o gozo feliz, nostálgico da vida;
Já exangue, afinal, já morto, já desfeito.
Por visões que adorei num vago tempo incerto Não sei por que razão avivo agora as mágoas, Num pranto doloroso e triste, como as águas Do mar grosso a bater sobre o costão deserto.
Tu, ó doce visão de perfumosas tranças, Todo o meu puro e terno sentimento invades E eu não sei o que fiz das minhas esperanças Que de longe que vão parecem mais saudades.
Tudo o que houve em meu ser de compaixão e crença Para sempre secou, secou já como um rio;
Para sempre também subi ao escombro frio Da dúvida mortal, avassalante, imensa.
Para sempre me achei sem bússola e sem rumo No fundo de regiões estranhas e afastadas...
As almas que eu amei, vi mudas e apagadas, Vi tudo se sumir numa espiral de fumo.
Bem depressa fiquei como um ermo remoto Como torvo areal sem plantas e sem fontes, Donde apenas se vê rasgar a terra o broto Do cardo retorcido e áspero dos montes.
Muitas vezes, porém, como entre os arvoredos Onde juntas, no val, todas as aves cantam No meio do rumor, de sombras e segredos, Sinto dentro de mim que uns sonhos se levantam.
Borboleteio, a rir, por entre os sons e as flores, Como um pássaro azul de uma plumagem linda E canto alegremente a canção dos amores, Que este peito viril sabe cantar ainda.
Lembro então corações que já me abandonaram, Que eu senti palpitar, por sobre o meu pulsando, Que vão hoje através das afeições chorando, Que sofreram comigo e que comigo amaram.
Entretanto a minh’alma em vôo largo e ufano, De repente triunfal, de súbito gloriosa, Tem a pompa de sol, vermelha e luminosa, Da púrpura esvoaçante e aberta de um romano.
E esse fulgor, que vem dos meus sonhos dispersos Na névoa do passado, errantes e dolentes;
Dá-me ardidos corcéis fogosos e frementes Para atrelar, jungir ao carro destes versos.
Claramente recordo e penso nas estradas Que percorri, que andei às ilusões, sozinho, Vendo que todo o amor das virginais amadas, Tinha a mesma fatal embriaguez do vinho.
Quantos entes febris, que o amor embriaga e ofusca Assim, durante a vida, ansiosamente exaustos, Não encontram, talvez, dessas visões em busca, As Margaridas vãs dos ilusórios Faustos!
CLARÕES APAGADOS
Flor de planta aromática, sinistra, Nascida nas inóspitas geleiras, Célebre flor que o meu Ideal registra, Trepadeira das raras trepadeiras. Serpe nervosa entre as nervosas serpes, Carnívora bromélia da luxúria De gozo tetaniza como as herpes Da tua boca a polpa atra e purpúrea.
O teu amor, que lembra vinhos de Hebe E essa áspera feição do abeto fusco, Como um réptil que salta numa sebe, Saltou-me ao peito, impetuoso e brusco.
Eu ia por estranhos descampados, Por extensos desertos impassíveis, Na trágica visão dos naufragados Perdidos entre os temporais terríveis.
Sem rumo certo, num sombrio inferno, Sozinho, sobre a desolada areia Arrastando a existência, de onde, eterno Um sapo coaxa e um rouxinol gorjeia.
Quando tu de repente, então surgiste Beleza das belezas redentoras, Tendo essa meiga formosura triste Das formosas e flébeis pecadoras.
Fosse talvez uma tremenda insânia Tão alta erguer o meu amor, tão alto;
Mas este coração frio, da Ucrânia, Anelava galgar o céu de um salto.
E fui, galguei, subi, voei na altura, Além dos verdes píncaros do monte, Donde resplende a tua formosura No clarão das estrelas do horizonte.
Foi o mesmo que se eu num templo entrasse E aí num formidável sacrilégio, As angélicas vestes arrancasse Das santas de áureo diadema régio.
Como um leão sem juba e garra, preso, Na indiferença, já morreu comigo Todo esse amor profundamente aceso Na ideal constelação de um sonho antigo.
Apenas pelo Saara imorredouro Do longínquo passado, ergue, altaneira, Majestosa folhagem no sol d'ouro, Dessas recordações a alta palmeira...
ASAS PERDIDAS
A Carlos Jansen Júnior Afora, pelo azul indefinido e largo, Passam asas sutis, pelo éter, longe, afora, Como que a demandar outra mais doce aurora Que a desta vida atroz, toda veneno amargo.
Não as asas assim, bem longe, pela curva, No Vago, na Amplidão, perdidas pelos ares Até virem caindo os véus crepusculares, Toda a angústia do Ocaso, emocional e turva.
E diante dessa dor das tardes que esmaecem As asas, pelo Azul, em vôos desgarrados Como a oração final dos tristes naufragados, Longinquamente, além, tênues desaparecem Cai então de uma vez a sombra dos Segredos...
E na serena paz das noites adormidas, Entre o fundo chorar dos calmos arvoredos, Ninguém verá jamais essas asas perdidas.
E as asas o que são no firmamento errantes, Perdidas pelo Tempo, esparsas pelas Eras, Senão os sonhos vãos, Mundos alucinantes Cheios do resplendor das flóreas primaveras?!
Por isso, eu quando o Azul repleto de asas vejo, Muito alto, céu acima, os páramos rasgando, Toda a minh'alma oscila e treme num desejo Em busca das regiões da Dúvida, chorando!
ANJO GABRIEL
Na calma irradiação das noites estreladas Alto e claro aparece, alto, aparece, claro, Alvo, claro, no luar das estrelas prateadas, No triunfal esplendor celestemente raro. O seu busto de Excelso, a sua graça fina, A linha de harpa ideal do seu perfil augusto, Estremecem de luz, de uma luz peregrina, Do secreto fulgor de um sentimento justo.
Serenidade e glória e paz do Paraíso Flutuam-lhe na face alvorecida e doce E quando ele sorri é como se o sorriso Claros astros semear por todo o espaço fosse.
Leve, loura, .radial, a soberba cabeça Eleva-se da flor do níveo colo louro E não há outro sol que tanto resplandeça Como o sol virginal dessa cabeça de ouro.
As mãos esculturais, de ebúrnea transparência, De divina feitura e de divino encanto, Lembram flores sutis de sonhadora essência Da etérea languidez e de etéreo quebranto.
Das madeixas reais largo deslumbramento Num flavo jorro cai, com sagrado abandono...
E sai do Anjo o quer que é de vago e de nevoento Que lembra o despertar sonâmbulo de um sono...
De alto a baixo, do Azul, desfilando das brumas, Abre todo ele em flor como nevado lírio, Belo, branco, eteral, do candor das espumas, Banhado nos clarões e cânticos do Empíreo.
Maravilhoso e nobre ergue no braço ovante Um gládio singular que rútilo cintila...
Enquanto o seu olhar de mágico diamante Aflora em plenilúnio através da pupila.
Que o seu olhar, então, esse, recorda tudo O quanto há de tranqüilo e luminoso e casto.
Maio de ouro a florir meigos céus de veludo E a neve a cintilar sobre o monte mais vasto.
Do puro albor astral das asas majestosas, Desprendem-se no Azul mistérios de harmonia...
Entre as angelicais suavidades radiosas Parece o Anjo Gabriel o alto Enviado do Dia!
Na chama virginal de tão rara beleza Brilha a força de um Deus e a mística doçura... E sai das seduções de tamanha pureza Toda a melancolia errante da ternura.
Do suntuoso agitar das delicadas vestes Tecidas de jasmins, de rosas, de açucenas, Vem o aroma cristão dos aromas celestes, Todas as imortais emanações serenas...
Transfigurado, excelso, agigantado, imenso, Na candidez hostial das formas impecáveis, Fica parado no ar, levemente suspenso De raios siderais, de fluidos inefáveis.
Mas quando o seu perfil nas amplidões floresce E das asas se lhe ouve a música sonora Quando ele agita o gládio e as madeixas, parece Que vai noctambular pelo Infinito afora.
E alto, branco, de pé, destacado no Espaço, Eleito das Regiões de estranhas Primaveras, Traça, com o gládio no ar, alevantando o braço, Uma cruz de Perdão na mudez das Esferas!
O CEGO DO HARMONIUM
Esse cego do harmonium me atormenta E atormentando me seduz, fascina.
A minh’alma para ele vai sedenta Por falar com a sua alma peregrina.
O seu cantar nostálgico adormenta Como um luar de mórbida neblina.
O harmonium geme certa queixa lenta, Certa esquisita e lânguida surdina.
Os seus olhos parecem dois desejos Mortos em flor, dois luminosos beijos Fanados, apagados, esquecidos...
Ah! eu não sei o sentimento vário Que prende-me a esse cego solitário, De olhos aflitos como vãos gemidos! OCASOS
Morrem no Azul saudades infinitas, Mistérios e segredos inefáveis...
Ah! Vagas ilusões imponderáveis, Esperanças acerbas e benditas.
Ânsias das horas místicas e aflitas, De horas amargas das intermináveis Cogitações e agruras insondáveis De febres tredas, trágicas, malditas.
Cogitações de horas de assombro e espanto Quando das almas num relevo santo Fulgem de outrora os sonhos apagados.
E os bracos brancos e tentaculosos Da Morte, frios, álgidos, nervosos, Abrem-se pare mim torporizados.
NAUFRÁGIOS
I
O mar! O mar! Quem nunca viajasse...
Quem nunca dentre dúvidas sentisse O coração e ai, nunca embarcasse.
Oh! quem do mar as cóleras punisse!
Ora o mar é sereno, é calmo, é manso, As vagas são melódicos arpejos Dando à embarcação leve balanço, Como um afago maternal de beijos.
Ora o mar franco, livre e transparente, Tão tranqüilo que está, tão brando, rindo, Que até parece, que até cuida a gente Que os corações podem boiar, dormindo.
Ora ferve, rebenta, estoura, estala, Rude, feroz, em convulsões, profundo, Abrindo a corpos pavorosa vala E mundos de agonia num só mundo! II
Filho! Filho! Adeus, querido, Vou viajar para além, Sejas de Deus protegido...
Que sempre me queiras bem.
Vou deixar-te nesta terra, Entregue aos destinos teus;
Filho, o que este adeus encerra Só o pode saber Deus.
Levo as crenças em pedaços, Como pedaços de céus.
Vou ver mar, vou ver espaços Ver temporais, escarcéus.
Filho amado, vou deixar-te Cá na terra, pelo mar;
Porem, crê, de qualquer parte, Crê, meu filho, hei de voltar.
III
Adeus, noiva, vou-me embora, Vou-me com Deus, é preciso.
Que colhas em cada aurora Muita messe de sorriso.
Sou soldado, o meu destino É viver bem longe, é certo, Longe do canto divino Da tua voz, sol aberto.
Custa bem esta partida A mim que entanto sou forte.
Ninguém sabe o que é a vida Para quem vive da morte.
Da morte, sim, pomba amada;
Que as minhas crenças já mortas Tu, com essa alma estrelada Sem tu sequer me confortas.
Perdi pai, perdi carinhos De mãe, de irmãos e de todos.
Eu sou como a flor de espinhos Nascida por entre lodos.
Tu vieste, ó noiva, apenas, Como um íris de esperanças, Dar-me alvoradas serenas, Encher-me de confianças.
Só em ti confio, espero Com ardor, com fé veemente, Pomba de luz que eu venero, Doce vésper do oriente.
Adeus, pois chegou a hora, Vou-me com Deus, minha filha;
Não chores, que o mar não chora:
— Olha, vê que canta e brilha.
IV
Adeus, esposa extremosa, Vou-me, não sei para quando Voltar — minh'alma saudosa Por meus filhos vai chorando.
Ficam-te eles no entretanto Pra tirarem-te os pesares, Para enxugarem-te o pranto Que há de ser maior que os mares.
Maior que os mares, não minto, Não exagero tão pouco, Porque ai, só tu e só eu sinto O nosso amor como é louco.
Vou-me às viagens, aos dias Passados entre horizontes E mares e ventanias Sem arvoredos, sem montes.
Os dias de céus eternos E de mar ilimitado, Com tempo de atroz infernos Com tempo de sol doirado.
Adeus! Cá dentro do peito Há dois corações unidos;
Sobre um — o mar tem direito, Sobre outro — os filhos queridos.
V
Eis as canções e adeuses de saudade Que as desgraçadas almas palpitantes Soluçam na sombria imensidade Desta vida de angústias lacerantes.
Ao mar! Ao mar! Frescas aragens puras Aflam nas ondas maviosamente.
Que balada de plácidas venturas, Que sinfonias, que gemer dolente!
Os céus abertos, claros, luminosos Lembram a candidez branda das virgens.
Vítreos ares, magníficos, radiosos Onde o sol arde em férvidas vertigens.
Lindíssimos painéis, bela paisagem Abre na vista do viajante o ouro Da luz que salta como uma homenagem De oriental, esplêndido tesouro.
Vai bem, vai muito bem, mesmo, o navio.
As vagas desenrolam-se de leve.
Parece um berço por de sobre um rio Manso, prateado, espúmeo, cor de neve.
Vive-se a bordo como em terra. — As vagas Nunca foram tão doces e tão meigas, Como em desertas, viridentes plagas É doce e meigo o mole chão das veigas.
Viver assim, na realidade, é gozo Que até parece não haver na terra!
Tão belo é o mar, tão calmo e bonançoso, Tal confiança nos semblantes erra!
Vogando assim a embarcação, quem pensa Ir acordado afora pela Vida?!
Tudo é um sonho de esperança imensa Um bom sonho de aurora indefinida.
VI
Súbito os ares enchem-se de noite E grita e zune, zargunchando o vento Que esbraveja, morde com rijo açoite O mar que espuma e empola num momento.
Não estrugem os raios pela treva Não há trovões bravios rebentando Como canhões que estouram, — mas se eleva Do oceano um vendaval que vai urrando Com fúrias e com cóleras enormes Como potros sanhudos relinchando Em pinotes e berros desconformes.
Caiu talvez no mar o etéreo espaço, Toda a cúpula azul tombou, quem sabe?
Céus! há lutas ali, de braço a braço.
Horror! Crível será que o mundo acabe?
Ninguém calcula o que será tudo isso...
Mas os ventos elétricos, largados Nas amplidões do mar antes submisso, Rugindo vão como desesperados.
Deus, ó meu Deus, todas as bocas gritam, E se afervora mais e mais a crença.
Mas, onde os astros muita vez palpitam No céu, há noite cada vez mais densa.
Ah! que mudez de túmulo nos ares.
Nada responde, oh! nada então responde;
Mas onde está o grande Deus dos mares E da terra, onde está, aonde, aonde?
Tudo está mudo — a natureza inteira, Tudo emudece e não responde nada;
E só os vendavais têm a maneira De responder dando uma gargalhada.
Gargalhada de lágrimas atrozes, De lágrimas de morte e de agonia Que abafa e extingue na garganta as vozes, Gera a coragem que é a luz do dia.
O valentes e rudes marinheiros Vindos da pátria para pátria nova, Que sepultais amores verdadeiros Do tão profundo coração na cova;
Ó viajantes de longe, de países Onde a vida cintila e canta alerta Como um turbilhão de aves felizes Numa campina de rosais, deserta;
Ó vós todos que vindes lá do oceano, Entre as mais bruscas e hórridas tormentas.
Lá do mar alto, à vela, a todo o pano, Com as almas ansiosas e sedentas De chegar cedo ao porto desejado, Calculai, calculai o quanto é triste Ver dar à praia um pobre desgraçado Em cuja carne a podridão existe!
À praia! À praia! Dai à praia, morto, Rejeitado por ondas convulsivas, Indo encontrar na sepultura o porto, Deixando ao mundo as ilusões mais vivas.
O eterno amor de mãe, de filho, esposa, Tanta fé, tanto riso de alegria, Tanta coisa dourada, ai tanta coisa Que ao recordar toda a nossa alma esfria.
Morrer no mar, os nervos contraídos, Numa asfixia atroz, cerrando os dentes, Num abismo de dores e gemidos, De maldições e de uivos de descrentes;
Morrer no mar, sem o farol amigo, Esse farol que os náufragos anima, Fora de proteção, fora de abrigo, Sem sequer uma luz no espaço, em cima;
Morrer no mar, sem astros no infinito, Na solidão das águas, fria, imensa, Enquanto a treva dura de granito, Ri-se de tudo, com indiferença;
Morrer no mar, só e desamparado E num terror que não acaba nunca, Vendo rasgar o corpo enregelado O desespero como garra adunca.
É horrível! Bem sei! Mas ai daqueles Que morrem mesmo assim lá no mar fundo Sem ter alguém que ao menos neste mundo Derrame uma só lágrima por eles!
(Desterro) (POESIAS PARA UM LIVRO DERRADEIRO)
VIOLINOS
Pelas bizarras, góticas janelas De um templo medieval o sol ondula:
Nunca os vitrais viram visões mais belas Quando, no ocaso, o sol os doura e oscula...
Doces, multicores aquarelas Sobre um saudoso céu que além se azula...
Calma, serena, divinal, entre elas, A pomba ideal dos Ângelus arrula...
Rezam de joelhos anjos de mãos postas Através dos vitrais, e nas encostas Dos montes sobe a claridade ondeando...
É a lua de Deus, que as curvas meigas Foi ondular pelos vergéis e veigas Magnólias e lírios desfolhando...
NA FONTE
Bem ao lado da gruta a fonte corre Trepidamente, as águas encrespando, Em murmúrios crebros, levantando Uns chamalotes prateados — morre No monte o sol que a luz no oceano escorre E ainda eu vejo, as sombras afrontando, Uma mulher que lava, mesmo quando O sol mais rubro, mais vermelho jorre.
— É num sítio afastado, um sítio ermo...
Pássaros cortam vastidões sem termo, Borboletas azuis roçam nas águas.
— E a mulher lava, enrubescida a face;
Lava, cantando, como se lavasse As suas tristes e profundas mágoas. [A FONTE DE ÁGUAS CRISTALINA CORRE]
A fonte de águas cristalinas corre Chamalotes de prata levantando, E através de arvoredos murmurando, Entre arvoredos murmurando morre...
No ocaso, o sol, a luz no oceano escorre E sempre vejo, as sombras afrontando, Uma mulher que canta e ri, lavando, Mesmo que o sol muito abrasado jorre.
É verde o campo, deleitável e ermo.
Pássaros cortam vastidões sem termo, Borboletas azuis roçam nas águas.
E cantando, a mulher, a rir a face, Lava cantando como se lavasse As suas grandes e profundas mágoas.
PLENILÚNIO
Vês este céu tão límpido e constelado E este luar que em fúlgida cascata, Cai, rola, cai, nuns borbotões de prata...
Vês este céu de mármore azulado...
Vês este campo intérmino, encharcado Da luz que a lua aos páramos desata...
Vês este véu que branco se dilata Pelo verdor do campo iluminado...
Vês estes rios, tão fosforescentes, Cheios duns tons, duns prismas reluzentes, Vês estes rios cheios de ardentias...
Vês esta mole e transparente gaze...
Pois é, como isso me parecem quase Iguais, assim, às nossas alegrias! MANHÃ Alta alvorada. — Os últimos nevoeiros A luz que nasce levemente espalha;
Move-se o bosque, a selva que farfalha Cheia da vida dos clarões primeiros.
Da passarada os vôos condoreiros, Os cantos e o ar que as árvores ramalha Lembram combate, estrídula batalha De elementos contrários e altaneiros.
Vozes, trinados, vibrações, rumores Crescem, vão se fundindo aos esplendores Da luz que jorra de invisível taça.
E como um rei num galeão do Oriente O sol põe-se a tocar bizarramente Fanfarras marciais, trompas de caça.
HÓSTIAS
A Emílio de Menezes Nos arminhos das nuvens do infinito Vamos noivar por entre os esplendores, Como aves soltas em vergéis de flores, Ou penitentes de um estranho rito.
Que seja nosso amor — sidério mito! —
O límpido turíbulo das dores, Derramando o incenso dos amores Por sobre o humano coração aflito.
Como num templo, numa clara igreja, Que o sonho nupcial gozado seja, Que eu durma e sonhe nos teus níveos flancos.
Contigo aos astros fúlgidos alado, Que sejam hóstias para o meu noivado As flores virgens dos teus seios brancos! BOCA IMORTAL
Abre a boca mordaz num riso convulsivo Ó fera sensual, luxuriosa fera!
Que essa boca nervosa, em riso de pantera, Quando ri para mim lembra um capro lascivo.
Teu olhar dá-me febre e dá-me um brusco e vivo Tremor às carnes, que eu, se ele em mim reverbera, Fico aceso no horror da paixão que ele gera, Inflamada, fatal, dum sangue rubro e ativo.
Mas a boca produz tais sensações de morte, O teu riso, afinal, é tão profundo e forte E tem de tanta dor tantas negras raízes;
Rigolboche do tom, ó flor pompadouresca!
Que és, para mim, no mundo, a trágica e dantesca Imperatriz da Dor, entre as imperatrizes!
PSICOLOGIA HUMANA
A Santos Lostada Por trás de uns vidros d’óculos opacos Muita vez um leão e um tigre rugem, E como um surdo temporal estrugem Os ódios dos covardes e dos fracos.
Partir pudesses, ó poeta, em cacos, Vidros que ocultam almas de ferrugem, Que espumam de ira, tenebrosas mugem, Mugem como de dentro de uns buracos.
Que essas sombrias, dúbias almas foscas Que parecem, no entanto, como moscas, Inofensivas, babam como as lesmas.
Mas tu, em vão, tais vidros partirias, Pois que no mundo, eternamente, as frias Almas humanas serão sempre as mesmas! OS MORTOS
Ao menos junto dos mortos pode a gente Crer e esperar n’alguma suavidade:
Crer no doce consolo da saudade E esperar do descanso eternamente.
Junto aos mortos, por certo, a fé ardente Não perde a sua viva claridade;
Cantam as aves do céu na intimidade Do coração o mais indiferente.
Os mortos dão-nos paz imensa à vida, Dão a lembrança vaga, indefinida Dos seus feitos gentis, nobres, altivos.
Nas lutas vãs do tenebroso mundo Os mortos são ainda o bem profundo Que nos faz esquecer o horror dos vivos.
VERÔNICA
Não a face do Cristo, a macilenta Face do Cristo, a dolorosa face...
O martírio da Cruz passou fugace E este Martírio, esta Paixão é lenta.
Um vivo sangue a face te ensangüenta, Mais vivo que se o Deus o derramasse;
Porque esta vã paixão, para que passe, É mister dos Titãs a luta incruenta.
Se tu, Visão da Luz, Visão sagrada Queres ser a Verônica sonhada, Consoladora dessa dor sombria Impressa ficará no teu sudário Não a face do Cristo do Calvário Mas a face convulsa da Agonia!
SÍMILES Pedro traiu a fé do Apostolado.
Madalena chorou de arrependida;
E nessa mágoa triste e indefinida Havia ainda uns laivos de pecado.
Tudo que a Bíblia tinha decretado, Tudo o que a lenda humilde e dolorida De Jesus Cristo apregoou na vida, Cumpriu-se à risca, foi executado.
O filho-Deus da cândida Maria, Da flor de Jericó, na cruz sombria Os seus dias amáveis terminou.
Pedro traiu a fé dos companheiros.
Madalena chorou sob os olmeiros Jesus Cristo sofreu e... perdoou.
(Desterro)
EXILADA
Bela viajante dos países frios Não te seduzam nunca estes aspectos Destas paisagens tropicais. Secretos, Os teus receios devem ser sombrios.
És branca e és loura e tens os amavios Os incógnitos filtros prediletos Que podem produzir ondas de afetos Nos mais sensíveis corações doentios.
Loura Visão, Ofélia desmaiada, Deixa esta febre de ouro, a febre ansiada Que nos venenos deste sol consiste.
Emigra destes cálidos países, Foge de amargas, fundas cicatrizes, Das alucinações de um vinho triste...
A FREIRA MORTA Muda, espectral, entrando as arcarias Da cripta onde ela jaz eternamente No austero claustro silencioso — a gente Desce com as impressões das cinzas frias...
Pelas negras abóbadas sombrias Donde pende uma lâmpada fulgente, Por entre a frouxa luz triste e dormente Sobem do claustro as sacras sinfonias.
Uma paz de sepulcro após se estende...
E no luar da lâmpada que pende Brilham clarões de amores condenados...
Como que vem do túmulo da morta Um gemido de dor que os ares corta, Atravessando os mármores sagrados!
(Desterro)
CLARO E ESCURO
Dentro — os cristais dos tempos fulgurantes, Músicas, pompas, fartos esplendores, Luzes, radiando em prismas multicores, Jarras formosas, lustres coruscantes, Púrpuras ricas, galas flamejantes, Cintilações e cânticos e flores;
Promiscuamente férvidos odores, Mórbidos, quentes, finos, penetrantes, Por entre o incenso, em límpida cascata, Dos siderais turíbulos de prata, Das sedas raras das mulheres nobres;
Clara explosão fantástica de aurora, Deslumbramentos, nos altares! — Fora, Uma falange intérmina de pobres.
HORAS DE SOMBRA Horas de sombra, de silêncio amigo Quando há em tudo o encanto da humildade E que o anjo branco e belo da saudade Roga por nós o seu perfil antigo.
Horas que o coração não vê perigo De gozar, de sentir com liberdade...
Horas da asa imortal da Eternidade Aberta sobre tumular jazigo.
Horas da compaixão e da clemência, Dos segredos sagrados da existência, De sombras de perdão sempre benditas.
Horas fecundas, de mistério casto, Quando dos céus desce, profundo e vasto, O repouso das almas infinitas.
ALELUIA! ALELUIA!
Dentre um cortejo de harpas e alaúdes Ó Arcanjo sereno, Arcanjo níveo, Baixas-te à terra, ao mundanal convívio...
Pois que a terra te ajude, e tu me ajudes.
Que tu me alentes nas batalhas rudes, Que me tragas a flor de um doce alívio Aos báratros, às brenhas, ao declívio Deste caminho de ânsias e ataúdes...
Já que desceste das regiões celestes, Nesse clarão flamívomo das vestes, Através dos troféus da Eternidade, Traz-me a Luz, traz-me a Paz, traz-me a Esperança Para a minh’alma que de angústias cansa, Errando pelos claustros da Saudade!
ROSA NEGRA
Nervosa Flor, carnívora, suprema, Flor dos sonhos da Morte, Flor sombria, Nos labirintos da tu’alma fria Deixa que eu sofra, me debata e gema.
Do Dante o atroz, o tenebroso lema Do Inferno à porta em trágica ironia, Eu vejo, com terrível agonia, Sobre o teu coração, torvo problema.
Flor do delírio, flor do sangue estuoso Que explode, porejando, caudaloso, Das volúpias da carne nos gemidos.
Rosa negra da treva, Flor do nada, Dá-me essa boca acídula, rasgada, Que vale mais que os corações proibidos!
VOZINHA
Velha, velhinha, da doçura boa De uma pomba nevada, etérea, mansa.
Alma que se ilumina e se balança Dentre as redes da Fé que nos perdoa.
Cabeça branca de serena leoa, Carinho, amor, meiguice que não cansa, Coração nobre sempre como a lança Que não vergue, não fira e que não doa.
Olhos e voz de castidades vivas, Pão ázimo das Páscoas afetivas, Simples, tranqüila, dadivosa, franca.
Morreu tal qual vivera, mansamente, Na alvura doce de uma luz algente, Como que morta de uma morte branca.
NO EGITO
Sob os ardentes sóis do fulvo Egito De areia estuosa, de candente argila, Dos sonhos da alma o turbilhão desfila, Abre as asas no páramo infinito. O Egito é sempre o antigo, o velho rito Onde um mistério singular se asila E onde, talvez mais calma, mais tranqüila A alma descansa do sofrer prescrito.
Sobre as ruínas d’ouro do passado, No céu cavo, remoto, ermo e sagrado, Torva morte espectral pairou ufana...
E no aspecto de tudo em torno, em tudo, Árido, pétreo, silencioso, mudo, Parece morta a própria dor humana!
REPOUSO
A cabeça pendida docemente Em sonhos, sonha o sonhador inquieto, Repousa e nesse repousar discreto É sempre o sonho o seu bordão clemente.
Cego desta Prisão impenitente Da Terra e cego do profundo Afeto, O sonho é sempre o seu bordão secreto, O seu guia divino e refulgente.
Nem no repouso encontra a paz que espera, Para lhe adormecer toda a quimera, Os círculos fatais do seu Inferno.
Entre a calma aparente, a estranha calma, O seu repouso é sempre a febre d’alma, O seu repouso é sonho, e sonho eterno.
REQUIESCAT...
Grande, grande Ilusão morta no espaço, Perdida nos abismos da memória, Dorme tranqüila no esplendor da glória, Longe das amarguras do cansaço...
Ilusão, Flor do sol, do morno e lasso Sonho da noite tropical e flórea, Quando as visões da névoa transitória Penetram na alma, num lascivo abraço...
Ó Ilusão! Estranha caravana De águias, soberbas, de cabeça ufana, De asas abertas no clarão do Oriente.
Não me persiga o teu mistério enorme!
Pelas saudades que me aterram, dorme, Dorme nos astros infinitamente...
DOCE ABISMO
Coração, coração! a suavidade, Toda a doçura do teu nome santo É como um cálix de falerno e pranto, De sangue, de luar e de saudade.
Como um beijo de mágoa e de ansiedade, Como um terno crepúsculo d’encanto, Como uma sombra de celeste manto, Um soluço subindo à Eternidade.
Como um sudário de Jesus magoado, Lividamente morto, desolado, Nas auréolas das flores da amargura.
Coração, coração! onda chorosa, Sinfonia gemente, dolorosa, Acerba e melancólica doçura.
HARPAS ETERNAS
Hordas de Anjos titânicos e altivos, Serenos, colossais, flamipotentes, De grandes asas vívidas, frementes, De formas e de aspectos expressivos.
Passam, nos sóis da Glória redivivos, Vibrando as de ouro e de Marfim dolentes, Finas harpas celestes, refulgentes, Da luz nos altos resplendores vivos.
E as harpas enchem todo o imenso espaço De um cântico pagão, lascivo, lasso, Original, pecaminoso e brando...
E fica no ar, eterna, perpetuada A lânguida harmonia delicada Das harpas, todo o espaço avassalando.
DUPLA VIA-LÁCTEA
Sonhei! Sempre sonhar! No ar ondulavam Os vultos vagos, vaporosos, lentos, As formas alvas, os perfis nevoentos Dos Anjos que no Espaço desfilavam.
E alas voavam de Anjos brancos, voavam Por entre hosanas e chamejamentos...
Claros sussurros de celestes ventos Dos Anjos longas vestes agitavam.
E tu, já livre dos terrestres lodos, Vestida do esplendor dos astros todos, Nas auréolas dos céus engrinaldada Dentre as zonas de luz flamo-radiante, Na cruz da Via-Láctea palpitante Apareceste então crucificada!
TITÃS NEGROS
Hirtas de Dor, nos áridos desertos, Formidáveis fantasmas das Legendas, Marcham além, sinistras e tremendas, As caravanas, dentre os céus abertos...
Negros e nus, negros Titãs, cobertos Das bocas vis, das chagas vis e horrendas, Marcham, caminham por estranhas sendas, Passos vagos, sonâmbulos, incertos... Passos incertos e os olhares tredos, Na convulsão de trágicos segredos, De agonias mortais, febres vorazes...
Têm o aspecto fatal das feras bravas E o rir pungente das legiões escravas, De dantescos e torvos Satanases!...
ENTRE CHAMAS...
Sonhei que de astros no Infinito presa Vagavas, brandamente adormecida, Nas chamas siderais resplandecida, A carne, em chamas, no Infinito, acesa...
E eu pasmava de encanto e de surpresa Vendo a constelação indefinida Da tua carne flamejando vida, Dentre os íris radiantes da beleza...
E o teu corpo, nas chamas palpitando, Os astros em redor maravilhando, Por entre a auréola dos clarões cantava...
Então, de sonho em sonho, absorto, mudo, Eu senti alastrar, vibrar por tudo Toda a infinita sensação da lava!...
O ANJO DA REDENÇÃO
Soberbo, branco, etereamente puro, Na mão de neve um grande facho aceso, Nas nevroses astrais dos sóis surpreso, Das trevas deslumbrando o caos escuro.
Portas de bronze e pedra, o horrendo muro Da masmorra mortal onde estás preso Desce, penetra o Arcanjo branco, ileso Do ódio bifronte, torto, torvo e duro.
Maravilhas nos olhos e prodígios Nos olhos, chega dos azuis litígios, Desce à tua caverna de bandido.
E sereno, agitando o estranho facho, Põe-te aos pés e à cabeça, de alto a baixo, Auréolas imortais de Redimido!
SALVE! RAINHA!...
Ó sempre virgem Maria, concebida sem pecado original, desde o primeiro instante do teu ser...
Mãe de Misericórdia, sem pecado Original, desde o primeiro instante!
Salve! Rainha da Mansão radiante, Virgem do Firmamento constelado...
Teu coração de espadas lacerado, Sangrando sangue e fel martirizante, Escute a minha Dor, a torturante, A Dor do meu soluço eternizado.
A minha Dor, a minha Dor suprema, A Dor estranha que me prende, algema Neste Vale de lágrimas profundo...
Salve! Rainha! por quem brado e clamo E brado e brado e com angústia chamo, Chamo, através das convulsões do mundo!...
MENDIGOS
Mendigos! Ah! são mendigos Que voltam de vãos caminhos, Que atravessaram perigos, Urzes, pântanos, espinhos.
Que chegam desiludidos Das portas a que bateram:
Humanos, grandes gemidos Que nos tempos se perderam. Que voltam como partiram, Com mais amargor na volta E mais sonhos que se abriram Das estrelas na recolta.
Mendigos ricos no entanto, Das pompas da natureza E das auréolas do Encanto, Os vinhos da sua mesa.
Mendigos que o sol, apenas, Torna nababos felizes, Torna um pouco mais serenas As convulsas cicatrizes.
Mendigos que acham requinte Na fumaça de um cachimbo, Deixando que labirinte O sonho em tão leve nimbo.
Mendigos da luz da aurora Cantando celestemente, Fresca, límpida, sonora, Pelas fanfarras do Oriente.
Mendigos de áureas estradas, De sonâmbulas veredas, De riquezas encantadas, Sem pedrarias e sedas.
Mendigos d'estranho aspecto E sempiterna vigília, Filhos nômades, sem teto, De milenária Família.
Mendigos que erram eternos Sem fadigas e sem sono, Sob o augúrio dos Infernos, Das Ilusões sobre o trono.
Mendigos de plaga nova, De novas terras e mares, Divinizados na cova Como as hóstias nos altares.
Mendigos da grande esmola Da luz das estrelas nobres, Que fulge e dos altos rola, Entre as suas mãos tão pobres!
Mendigos de céus remotos, De sóis dos mais velhos ouros;
Com a sua fé e os seus votos E os seus secretos tesouros.
Mendigos de olhar severo, Boca murcha, meio amarga...
Tendo um vago reverbero De sonhos na fronte larga.
Mendigos de ínvias florestas E de bosques fabulosos, De melancólicas sestas Nos crepúsculos brumosos.
Mendigos da Eternidade, Tremendo dos sóis, dos frios, Nas mortalhas da Saudade Amortalhados sombrios.
Mendigos dos Infinitos, Das Esferas inefáveis, Noctambulando malditos Nos rumos imponderáveis.
Mendigos de fome e sede De água e pão de outros mundos, Embalados pela rede Dos Idealismos profundos.
Mendigos do azul Mistério, Cuja alma — nívea sereia —
Fica saciada no aéreo Pão branco da lua cheia!
[QUANDO EU PARTIR]
ou [ESFUMINHAMENTO]
Quando eu partir, que eterna e que infinita Há de crescer-me a dor de tu ficares;
Quanto pesar e mesmo que pesares, Que comoção dentro desta alma aflita. Por nossa vida toda sol, bonita, Que sentimento, grande como os mares, Que sombra e luto pelos teus olhares Onde o carinho mais feliz palpita...
Nesse teu rosto da maior bondade Quanta saudade mais, que atroz saudade...
Quanta tristeza por nós ambos, quanta, Quando eu tiver já de uma vez partido, Ó meu amor, ó meu muito querido Amor, meu bem, meu tudo, ó minha santa!
SEMPRE E... SEMPRE
A M. B. Augusto Varela Sempre se amando, sempre se querendo. Oliveira Paiva De longe ou perto, juntas, separadas, Olhando sempre os mesmos horizontes, Presas, unidas nossas duas fontes Gêmeas, ardentes, novas, inspiradas;
Vendo cair as lágrimas prateadas, Sentindo o coro harmônico das fontes, Sempre fitando a cúspide dos montes E o rosicler das frescas alvoradas;
Sempre embebendo os límpidos olhares Na claridão dos humildes luares, No loiro sol das crenças se embebendo, Vão nossas almas brancas e floridas Pelo futuro azul das nossas vidas, Sempre se amando, sempre se querendo.
O ÓRGÃO
Um largo e lento vento dormente Taciturnas lágrimas sonâmbulas, sinfônicas Um esquecimento amargo Uma sombria clausura de almas Suspirando e gemendo solitárias harmonias Vago luar de esquecimento e prece, Dessa melancolia que anda errando No mar e nas estrelas ondulando, Pela minh'alma etereamente desce.
Na minh'alma, dos Sonhos anoitece O Sentimento que ando transformando Em hóstia de ouro Sombra e silêncio


MINSTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro


Domínio Público Gov.BR


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