À morte de Leandro e Hero
De horrenda cerração c'roada, a Noite Surgira há muito da ciméria gruta;
Tapando o longo céu co'as asas longas Reina em meio Universo:
Ocupam-lhe os degraus do negro trono A Tristeza, o Silêncio, O Medo, a Solidão, o Amor e o Crime;
Voam-lhe em roda lúgubres fantasmas, Aves sinistras pousam-lhe no grémio.
Eis manso e manso as nuvens se entumecem, Eis o líquido peso Rompe os enormes, carregados bojos, Em torrentes sussurra e cai na terra.
Rebentam furacões, flamejam raios, O estrondoso trovão no céu rebrama, O Helesponto nas rochas ferve e ronca.
Tu, abideno amante, Tu velas neste horror com a saudade, Já corres insofrido às ermas praias, Donde é teu uso arremessar-te ao pego, E, destro nadador, talhando as vagas, Teus gostos demandar na oposta margem.
Ao longe em celsa torre, estância cara De Hero, sol dos teus dias, O brilhante sinal, o amigo lume (Que é no facho de Amor por ela aceso)
Vês entre as sombras cintilar a espaços, E como que te acena e te suspira.
Debalde o mar bramindo, o céu troando Teu ímpeto ameaçam;
Ardem-te n'alma os sôfregos desejos, Fulgurante ilusão, doirando as trevas, Num quadro tentador te of’rece aos olhos Glórias a furto, vívidos prazeres, Doces mistérios, que da luz se temem.
A sagaz Esperança Te reforça, te incita, Jura aplacar-te o ar, pôr freio às ondas, Dar-te aos suspiros da suave amada.
Atento à meiga voz, que atrai, que mente, No montuoso pélago te arrojas.
À queda repentina alteia um grito O corvo grasnador na dextra parte, E os Ecos, despertando ao som medonho, Gemem nas brutas, cavernosas fragas.
O triste agoiro te arrepia as carnes, Teus cabelos erriça;
Mas prevalece Amor e, expulso o medo, Forças a equórea, túmida braveza.
Metade já do trânsito afanoso Indústria e robustez vencido haviam.
Nisto a procela horríssona recresce, Tingem sombras do Inferno os véus da noite, Que o súbito relâmpago retalha;
Braveja o mar, aos astros se remontam Serras e serras de fervente espuma;
Carrancudos tufões arrebatados, Dobrando a força, a raiva, lutam, berram E revolvem do pélago as entranhas;
Rochedo imóvel, aferrado à terra, Rebate apenas o horroroso assalto...
Ah, Leandro infeliz! Tu já fraqueias, A destreza, o vigor nas mãos, nas plantas Já, mísero amador, já te falecem.
Procuras o distante, o caro lume, Astro benigno, que te influi e guia, Olhas, vês que te falta, Que desapareceu, que jaz extinto;
Suspiras, esmoreces, Da tua doce luz desamparado.
Invocas o grão deus, que rege os mares;
De teus rogos não cura, imoto e surdo.
Invocas de Nereu potente as filhas.
Elas ardem por ti, mas, invejosas Do objecto encantador que lhes preferes, Às marítimas fúrias te abandonam.
Hero invocas, e Amor, e os Céus, e a Sorte;
A Sorte é implacável, Dos males, que dispõe, não se arrepende, Teus dias sinalou de um termo infausto.
Debalde te auxilia o deus mimoso, O alado criador de teus suspiros, Dos amorosos bens, que desfrutaste;
O facho luminoso em vão meneia Para encurtar-te as sombras, E mais fácil tornar a undosa estrada;
Em vão com as asas brandas Tenta arrasar os orgulhosos mares.
Sobre altos escarcéus o Fado escuro Folga, triunfa e reina;
Punge, ameaça, desespera os ventos, Enrola a morte nas horrendas vagas.
Ela, pronta a seu mando, ela acomete O deplorável moço.
Eis dos olhos gentis lhe turva o lume, O tardo movimento eis lhe sopeia, Pelas águas o embebe, e de Hero o nome Do ansioso coração num ai lhe arranca.
Abaixo, acima, co'as cavadas ondas Vai, vem mil vezes o infeliz mancebo...
Ai! Já sem vida aqui, e ali vagueia À discrição do mar, e o mar com ele De Sesto às praias súbito arremete;
Dá contra a torre de Hero, ali rebenta, E deixa o triste corpo à margem nua.
Tu entretanto, carinhosa amante, Que fazias (oh, Céus!), que imaginavas?
Solitária, anelando, Nas trevas espantosas, Nos soltos ventos, alterosos mares Lias de feio azar presságios feios.
Em torno à viva luz que vigiavas (Que em raro véu com arte envolto havias, Resguardando-a dos ares indignados), Em torno à viva luz eis de improviso Negro insecto voou, zuniu três vezes, E à terceira apagou a esperta chama (Foi no ponto funesto em que o mancebo Com teu nome adoçou o extremo arranco);
Do repentino assombro espavorida, Atónita, convulsa O agoirado clarão não renovaste.
Em ânsias implorando os Deuses todos, E mais que todos o que em ti reinava, A bem do afoito, desvelado amante, Ao Númen indulgente, à Mãe piedosa Mil incenses, mil vítimas votaste.
Depois, cevando a revoltosa ideia Em terríveis imagens, Ora do moço audaz o usado arrojo Reprovas contigo, Ora a cega imprudência maldizias, Com que em tão desabrida horrível noite A perigosa senha aventuraras...
Ah, triste! Contra ti não te conjures:
Foi lei dos fados a imprudência tua.
Hero, desanimada, Metida em profundíssimo letargo, Jaz sem tino e sem voz, até que aponta A purpúrea manhã no céu já ledo.
Farto o cruel Destino, Adelgaçara os ares, Ao pego a mansidão restituíra, Depois que a terna vítima saudosa Foi sufocada nas voragens feras.
Ele, o duro opressor dos desditosos, Ele do almo prazer, que os dois gozaram, Está vingado em parte, e da vingança À Desesperação comete o resto.
Hero, ah, Hero infeliz! Tu pelas águas Húmida vista, suspirando, alongas.
Não vês o nadador por quem desmaias, O teu bem não flutua Pelas ondas desertas.
Eis a consternação te inclina os olhos À pedregosa areia Onde o desventurado está sem alma.
Que vista! Que terror! As alvas carnes, Rotas nas rochas pelo embate undoso, Inda gotejam sangue; aberta a boca, Parece que inda quer, que inda procura Chamar-te, ó Hero, murmurar teu nome.
No espectáculo horrendo, Mísera, tu reparas;
Tu... Céus!, Não lhe acudis?! Tu reconheces O querido semblante, o conpo amado, Entre as sombras da morte inda formoso:
Com palidez, que a pinta.
Gritas, arquejas, desesperas, fremes, Deitas as mãos de neve às tranças de oiro, E as tranças de oiro, delirando, arrancas.
Levada enfim de um ímpeto raivoso Te arremessas da torre, e dás e entregas O teu ai derradeiro ao mudo amante.
Lá jazem sobre a areia lutuosa As vítimas do Fado;
Nas angústias mortais a linda moça Inda, estendendo os amorosos braços, Tenta apertar o suspirado objecto.
Apiedados delfins nas ondas surgem, E altos sons (oh, prodígio!) derramando, Lamentam junto à praia o duro caso:
As mesmas ninfas invejosas de Hero Soluçam de pesar nos vítreos lares.
Um marmóreo padrão se erige em breve;
Compadecidas mãos a história triste Gravam na lisa pedra; a pedra existe, Mas o monstro voraz que rói penedos, Comendo em parte a fúnebre escritura, Só deixa soletrar-lhe O remate piedoso, Em meus piedosos versos trasladado:
Carpido ao som da lira Inda agora de ouvi-lo Amor suspira.
Aos dois amantes De Abido e Sesto Ardor funesto Deu negro fim.
Foram-lhe algozes Os seus extremos;
Mortais, amemos, Mas não assim.