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Crônica do viver baiano seiscentista - os homens bons - pessoas beneméritas

Índice PESSOAS BENEMÉRITAS
A EL REY D. PEDRO II COM UM ASTROLABIO DE TOMAR O SOL,QUE MANDOU O
Pe. VALENTIM STANCEL DEDICADO AO RENASCIDO MONARCA.
A MORTE DA AUGUSTA SENHORA RAINHA D. MARIA, FRANCISCA, IZABEL DE
SABOYA, QUE FALLECEO EM 1683.
A SERENISSIMA INFANTA DE PORTUGAL D. IZABEL, LUIZA, JOSEPHA NASCENDO
EM DIA DE REYS.
NA MORTE DA MESMA SENHORA RATIFICA O POETA AS VENTURAS, QUE
PROMETTE O SONETO ANTECEDENTE.
CONTINUA A MESMA RATIFICAÇÃO NA ESTRELLA DOS MAGOS POR HAVER
NASCIDO ESTA SENHORA EM DIA DE REYS.
SENTIMENTOS D'EL REY D. PEDRO II À MORTE DESTA SERENISSIMA SENHORA
SUA FILHA PRIMOGENITA.
GLOSA
AO CONDE DE ERICEYRA D. LUIZ DE MENEZES PEDINDO LOUVORES AO POETA
NÃO LHE ACHANDO ELLE PRESTIMO ALGUM.
CENSURA QUE FAZ O POETA DESTE TAL CONDE NA SUA DESASTRADA MORTE, LANÇANDO-SE DA JANELLA DO SEU JARDIM, ONDE ACABOU MISERAVELMENTE
POR ALTOS JUIZOS DE DEOS.
AO MESMO ASSUMPTO E PELO MESMO CASO.
ESTRIBILHO
A MORTE DO ILLUSTRISSIMO MARQUEZ DE MARIALVA. GENERAL DAS ARMAS DE
PORTUGAL SOBRE AS PALAVRAS DA ESCRIPTURA "PLANDITE ANTE EXEQUIAS
ABNER; FIPSE FLEVIT DAVID SUPER MULUM ABNER."
EPITAFIO AO CORAÇÃO DESTE MESMO GENERAL ENTERRADO AOS PÉS D'EL REY
D. JOÃO IV.
AO MESMO ASSUMPTO E PELOS MESMOS CONSOANTES
AO MESMO MARQUEZ SENDO ENTERRADO EM TREZ PARTES. O CORPO EM
CATANHÉDE; O CORAÇÃO EM S. VICENTE DE FORA; E OS INTESTINOS EM SAM
JOSÉ DE RIBA MAR
HOMENS DE BEM
A MORTE DO GOVERNADOR MATHIAS DA CUNHA.
AO MESMO ASSUMPTO.
AO MESMO ASSUMPTO.
DISCRIÇÃO, ENTRADA, E PROCEDIMENTO DO BRAÇO DE PRATA ANTONIO DE
SOUZA DE MENEZES GOVERNADOR DESTE ESTADO.
SUBTILEZA COM QUE O POETA SATYRIZA À ESTE GOVERNADOR.
A PRIZÃO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR À SEU CREADO O BRAÇO FORTE.
A DESPEDIDA DO MAO GOVERNO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR.
SUCCEDE A ESTE GOVERNADOR O MARQUEZ DAS MINAS COM SEU FILHO O
CONDE DO PRADO, DESFAZENDO TODAS AS SUAS OBRAS, E MANDANDO VIR OS
PRINCIPAES DA BAHIA DO DESTERRO, EM QUE ANDAVÃO, PELA MORTE, QUE
OUTROS DERAM AO ALCAYDE MÔR FRANCISCO TELLES.
A SEU FILHO O CONDE DO PRADO, DE QUEM ERA O POETA BEM VISTO, ESTANDO
RETIRADO NA PRAYA GRANDE, LHE DÁ CONTA DOS MOTIVOS, QUE TEVE PARA SE
RETIRAR DA CIDADE, E AS GLORIAS, QUE PARTICIPA NO RETIRO.
AO CONDE DO PRADO EMBARCANDO-SE PARA PORTUGAL EM COMPANHIA DE
SEU PAY, DEPOlS DE TER ACABADO O TEMPO DE SEU GOVERNO LHE FAZ O
POETA ESTAS SAUDOSAS DESPEDIDAS.
A MORTE DESTE CONDE SUCCEDIDA NO MAR QUANDO SE RETIRAVA PARA
LISBOA.
AO MESMO ASSUMPTO.
AO MESMO ASSUMPTO.
AO MESMO ASSUMPTO.
AO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ GLZ. DA CAMARA COUTINHO EM DIA DE REYS
OBSEQUEA O POETA PEDINDOLHE EM NOME DE HUM AMIGO HUMA DAQUELLAS
ESMOLLAS, QUE SUA MAGESTADE CONSIGNA DO REAL THESOURO CADA HUM
ANNO PARA OS HOMENS DE BEM, A QUE CHAMÃO MERCÉ ORDINARIA.
EMPENHA O POETA PARA CONSEGUIR ESTA MERCÉ AO CAPITÃO DA GUARDA
LUIZ FERREYRA DE NORONHA SEU PARTICULAR CRIADO.
A PEDITORIO DOS PRETOS DE NOSSA SENHORA DO ROSARIO FEZ O POETA O
SEGUINTE MEMORIAL PARA O MESMO GOVERNADOR, IMPETRANDO LICENÇA
PARA SAIREM MASCARADOS À HUMA OSTENTAÇÃO MILITAR, A QUE CHAMAVÃO
ALARDE.
OUTRO MEMORIAL POR HUM SEU SOBRINHO, QUE DESEJAVA SENTAR PRAÇA DE
SOLDADO.
AO MESMO GOVERNADOR SUBTILMENTE REMOQUEIA O POETA AO DESCUIDARSE DE SUA HONRADASUPPLICA SOBRE A MERCÉ ORDINÁRIA, LEMBRANDOLHE, QUE Á DERA A HUM SOLDADO RIDICULOCHAMADO O FARIA, POR QUEM
NAQUELLE TEMPO CANTAVÃO OS CHULOS "A MULHER DO FARIA VAY PARA
ANGOLLA".
TORNA O POETA A INVOCAR LUIZ FERREYRA DE NORONHA.
ATHE AQUI NÃO ERA AINDA VINDA A MERCÉ ORDINÁRIA.E NO DIA, EM QUE O
GOVERNADOR FEZ ANNOS LHE MANDOU O SEGUINTE SONETO.
A D. JOÃO DALENCASTRE VINDO DO GOVERNO DE ANGOLLA, ASSISTINDO NO
MESMO PALACIO, QUEIXANDO-SE, DE QUE O POETA O NÃO VISITASSE, E
PEDINDOLHE HUMA SATYRA POR OBSEQUIO.
A JOÃO PLZ. DA CAMARA COUTINHO FILHO DO MESMO GOVERNADOR TOMANDO
POSSE DE HUMA GINETA EM DIA DE S. JOÃO BAPTISTA, E LHE ASSISTIO DE
SARGENTO D. JOÃO DE LANCASTRO SEU THIO VINDO DO GOVERNO DE
ANGOLLA.
AO MESMO ASSUMPTO.
GENEALOGIA QUE O POETA FAZ DO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ DESABAFANDO
EM QUEYXAS DO MUYTO, QUE AGUARDAVA NA ESPERANÇA DE SER DELLE
FAVORECIDO NA MERCÉ ORDINARIA.
CONTINUA O POETA SATYRIZANDO-O COM O SEO CRIADO LUIZ FERREYRA DE
NORONHA.
AOS MESMOS AMO, E CRIADO.
PROSSEGUE O MESMO ASSUMPTO.
REPETE A MESMA SATYRA.
AO MESMO ASSUMPTO.
DIZ MAIS COM O MESMO DESENFADO:
DEDICATORIA ESTRAVAGANTE QUE O POETA PAZ DESTAS OBRAS AO MESMO
GOVERNADOR SATYRIZADO.
APOLOGIA CAVILLOSA EM DEFENÇA DO MESMO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ.
DESCANTA O POETA AGORA A DESPEDIDA DESTE GOVERNADOR EM METAPHORA
DE CHULARIAS, QUE SE UZAVAM NAQUELLE TEMPO. POR DIZER-SE VINHA
RENDÊLLO D. JOÃO DE ALENCASTRE SEU CUNHADO.
RETRATO QUE FAZ ESTRAVAGANTEMENTE O POETA, AO MESMO GOVERNADOR
ANTONIO LUIZ DA CAMARA NA SUA DESPEDIDA.
A D. JOÃO D'ALENCASTRE TOMANDO POSSE DO SEO GOVERNO OBSEQUEA O
POETA COM AS QUEYXAS DO SEU ANTECESSOR, E CUNHADO.
AO MESMO GOVERNADOR CHEGANDOLHE A NOVA DA MORTE DE SUA SOGRA, A
QUEM DEYXOU CONVALECIDA DA MESMA ENFERMIDADE, DE QUE MORREO
DEPOIS.
LOUVA O SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA RAVASCO A HUM
SUGEYTO, QUE FOY À COSTA DA MINA E LÁ FEZ HUMA ILLUSTRE ACÇÃO.
RESPONDE O POETA A BERNARDO VIEYRA RAVASCO PELOS MESMOS
CONSOANTES POR AQUELLA PESSOA A QUEM SE FEZ O OBSEQUIO.
CONTINUA BERNARDO VIEYRA RAVASCO NO SEU PROPOSITO PELOS MESMOS
CONSOANTES.
AO MESMO SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA PEDINDO HUMAS
OITAVAS AO POETA, EM TEMPO, EM QUE FAZIA ANNOS CONVALESCENDO DE
HUMA GRAVE DOENÇA.
2 - PESSOAS BENEMÉRITAS
...pessoas beneméritas...
Manuel Pereira Rabelo, licenciado Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei A EL REY D. PEDRO II COM UM ASTROLABIO DE TOMAR O SOL, QUE MANDOU O
Pe. VALENTIM STANCEL DEDICADO AO RENASCIDO MONARCA.
Este, Senhor, que fiz leve instrumento Para pesar o sol a qualquer hora, Dedico a aquele Sol, a cuja aurora Já destinam dous mundos rendimento.
Desta minha humildade, e desalento, Que a sua quarta esfera não ignora, subindo a oitavo céu, pertende agora A estrela achar no vosso firmamento.
Eu, que outro sol no seu zenith pondero Aos do Nascido Soberanos Raios, Pesando-me eu a mim me desespero.
Mas vós, Águia Real, esses ensaios Entre os vossos levai, pois considero, Que nunca em tanta sombra houve desmaios.
A MORTE DA AUGUSTA SENHORA RAINHA D. MARIA, FRANCISCA, IZABEL DE
SABOYA, QUE FALLECEO EM 1683.
Hoje pó, ontem Deidade soberana, Ontem sol, hoje sombra, ó Senadores, Lises imperiais enfim são flores, Quem outra cousa crê, muito se engana.
Nas cinzas, que essa urna guarda ufana, Vejo, que os aromáticos licores são de seu mortal ser descobridores, Porque, o que a arte esconde, o juízo alhana.
A Real Capitânia submergida!
Olhos à gávea, ó tu Naveta ousada, Que ao mar te engolfas de ambição vencida:
Pois em terra a Real está encalhada, Alerta, altos Baixéis, porque anda a vida Da mortal tempestade ameaçada.
A SERENISSIMA INFANTA DE PORTUGAL D. IZABEL, LUIZA, JOSEPHA NASCENDO
EM DIA DE REYS.
Nasces, Infanta bela, e com ventura Tão desigual a toda a gentileza, Que vencendo o poder da natureza, Venturosa fizeste à formosura.
Com tal estrela sobe a tal altura A formosura posta em tanta alteza, Que por nasceres pasmo da beleza, Da pensão de formosa estás segura.
Nasceste Filha enfim da bela Aurora Com graça singular, ventura clara, Com estrela nasceste, ó feliz hora!
Nascer bela, e feliz é cousa rara:
Mas em ti Portugal venera agora Uma estrela na dita, um sol na cara.
NA MORTE DA MESMA SENHORA RATIFICA O POETA AS VENTURAS, QUE
PROMETTE O SONETO ANTECEDENTE.
Bem disse eu logo, que éreis venturosa Quando nascestes, com nascer tão bela, E me lembra dizer já com cautela, Cousa rara é ser bela, e ser ditosa.
O nascer com estrela, e ser formosa Raro prodígio é, que mais se anela;
Mas ser na terra flor, nos céus estrela, Só em vós foi ventura prodigiosa.
Fostes, e sois estrela enfim do Norte, Do céu girando o Norte mui segura, Girando sempre a tão felice corte.
Hoje lograis mais bela formosura, Possuindo na glória dita, e sorte, Que em ser do Céu consiste o ter ventura.
CONTINUA A MESMA RATIFICAÇÃO NA ESTRELLA DOS MAGOS POR HAVER
NASCIDO ESTA SENHORA EM DIA DE REYS.
Nascestes bela, e fostes entendida Uniu-se em vós saber, e formosura:
Não se pode lograr tanta ventura, Em quem com tal estrela foi nascida.
Quem viu co'a formosura a sorte unida, Que julgasse essa vida por segura?
Muito esperou por vós a sepultura, Que, em quem é tão feliz, não dura a vida.
Quem dissera no vosso nascimento, Que em tal estrela haviam tais enganos, Para ser maior hoje o sentimento!
Porém nestes prodígios soberanos, Tendo dos Magos vós o entendimento, Não podiam ser muitos vossos anos.
SENTIMENTOS D'EL REY D. PEDRO II À MORTE DESTA SERENISSIMA SENHORA
SUA FILHA PRIMOGENITA.
Se a dar-te vida a minha dor bastara, Filha Isabel, de minha dor morrera, E porque minha dor tudo excedera, Gêneros novos de sentir buscara.
Se uma vida se dera, ou se emprestara, A metade da minha te ofrecera, Ou toda, porque inveja não tivera Outra a metade, que órfã me ficara.
E se a minha alma enfim tua agonia Substituir pudera com a sua, Tua vida animando a cinza fria:
Inda que a arrojo o mundo o atribua, Não só a vida, a alma te daria Por melhorá-la com fazê-la tua.
GLOSA
Filha minha Isabel, alma ditosa, Que do corpo as prisões desemparaste, E qual cândida flor, ou fresca rosa De teus anos a flor em flor cortaste:
De minha dor a mágoa saudosa, Que por herança d?alma me deixaste, Deves crer, que até agora não durara, Se a dar-te vida a minha dor bastara.
Não durara até agora a minha mágoa, Se fora ela bastante a dar-te vida, Porque, vivendo tu, dos olhos a água Se enxugara em dous rostos reprimida:
E sendo o peito humano a própria frágua, Onde a dor em licores derretida Corre a desafogar: se não correra, Filha Isabel, de minha dor morrera.
Morrera, Filha minha, e acabara De um doce mal, formosa enfermidade:
Todo o poder do mundo me invejara, Pois falta a seu poder esta verdade:
Com minha morte a vida se trocara, Da maior, e mais alta majestade Enjeitara tudo, porque nada era, E porque a minha dor tudo excedera.
Ficara tão ufano de seguir-te, Vivo por te chorar, morto por ver-te, Que se pudera crer, que por senir-te A ocasião estimara de perder-te:
E se nesta estranheza de sentir-te Não chegara um aplauso a merecer-te, De uma a outra estranheza me passara, Gêneros novos de sentir buscara.
Sangue ondeara a margem deste rio, A rosa adoecera em suas cores, Da Aurora carmesirn fora o rocio, Não recendera o ambar entre as flores:
Fora da natureza um desvario A ordem natural de seus primores:
Mas nada a minha dor necessitara, Se uma vida se dera, ou se emprestara.
Se pudera emprestar-te a minha vida, Se escusara então meu sentimento:
Mas ai! que nem o dá-la por perdida Remédio pode ser do meu tormento:
E já, que não é cousa permitida Celebrar um contrato tão violento, E dar a vida enfim se não tolera, A metade da minha te ofrecera.
E pois a natureza é tão escassa, Que na esfera da sua potestade Não cabe por indulto, nem por graça Uma vida partir pela metade:
E inda que o vença amor, indústria, ou traça, Me resta outra maior dificuldade, De que se hão de invejar, metade dera, Ou toda, porque inveja não tivera.
Se a metade da vida, que te ofreço, Inveja há de causar, à com que fico, E sobre dar-lhe inveja à que despeço, Que saudades lhe dê me certifico:
Para livrar-me de um, e outro tropeço, Com que nesta partida me complico, Sobre a tua metade te largara A outra metade, que órfã me ficara.
Dera-te enfim a minha vida toda, Que o mais fora desdouro da firmeza, Que sempre, quem bem ama, se acomoda Fazer a vida altar de uma fineza:
Dar tudo nunca a amor desacomoda, Dera-te a vida, e alma nesta empresa, Se a minha vida a morte te alivia, E se a minha alma enfim tua agonia.
Ásia filha maior do mar profundo, A África do mar soberania, Europa exemplar luz de todo o mundo E a América do ouro monarquia, veriam, com quão ledo, e quão jucundo Rosto por ti minha alma despedia, Se o calor da minha alma à vida tua Substituir pudera com a sua.
O Rouxinol, que canta docemente À vista da consorte, que o namora, A Rola triste, que ao esposo ausente De dia busca, se de noite o chora:
No ar sutil, na fonte transparente, Vendo o fino de uma alma, que te adora, Pasmariam de ver, como supria Tua vida, animando a cinza fria.
A inveja, que do ódio se alimenta, A detração, que como espada corta, A calúnia, que a todos ensangüenta, E a aversão, que os áspides aborta:
Todos a iníquia mão, língua cruenta Mostrariam pasmada, obtusa, absorta;
Eu só perdera a vida pela tua, Inda que a arrojo o mundo o atribua.
Pasme de assombro, ou da fineza a terra, Trema do caso, ou da estranheza o monte, De invejosas as aves se dêem guerra De corrido se mude o Horizonte:
Co'as nuvens indignadas choque a serra, Brame o mar, soe o Céu, murmure a fonte, Que eu firme nesta minha fantesia Não só a vida, a alma te daria.
Dá-la-ia não só por imitar-te, Se cabe em minha dor tão alta sorte, Senão por despojar-me, e despojar-te A mim do sentimento, a ti da morte:
Não só daria a alma por mostrar-te, Que não tenho outro alívio em mal tão forte:
Senão (pois perde tanto em ser tão sua)
Por melhorá-la com fazê-la tua.
AO CONDE DE ERICEYRA D. LUIZ DE MENEZES PEDINDO LOUVORES AO POETA
NÃO LHE ACHANDO ELLE PRESTIMO ALGUM.
Um soneto começo em vosso gabo;
Contemos esta regra por primeira, Já lá vão duas, e esta é a terceira, Já este quartetinho está no cabo.
Na quinta torce agora a porca o rabo:
A sexta vá também desta maneira, na sétima entro já com grã canseira, E saio dos quartetos muito brabo.
Agora nos tercetos que direi?
Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais, Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.
Nesta vida um soneto já ditei, Se desta agora escapo, nunca mais;
Louvado seja Deus, que o acabei.
CENSURA QUE FAZ O POETA DESTE TAL CONDE NA SUA DESASTRADA MORTE, LANÇANDO-SE DA JANELLA DO SEU JARDIM, ONDE ACABOU MISERAVELMENTE
POR ALTOS JUIZOS DE DEOS.
Tanta virtude excelente de animoso, e de alentado, de valeroso soldado, e de cortesão valente, viu o mundo, e soube a gente, que inda que em santo podia transformar-se a Senhoria, o Conde o não conseguiu, porque de noite caiu, e o Santo cai no seu dia.
Se o Conde caiu de noite, como o teremos por Santo, quando a queda um tanto, ou quanto, teve do divino açoite:
quis Deus, que o Conde se afoite, porque visse o bom Soldado, que o Conde de puro honrado quis, que o visse a própria terra, quanto arrojado na guerra, na paz tão precipitado.
Ícaro da nossa guerra ares corta o Conde só, Ícaro caiu no Pó, e o Conde caiu na terra:
se, porque o rio o enterra, o nome lhe ficou dado de Ícaro ter sepultado:
assim porque a terra dura deu ao Conde sepultura, ficou a terra um condado.
De cera, e pluma se val Ícaro para viver, e o Conde para morrer valeu-se do natural:
quanto a força artificial da natureza é sobrada fica a do Conde adiantada, porque Ícaro quando bóia faz tragédia de tramóia, e o Conde de capa, e espada.
Tinha o Conde de morrer;
todo o mortal nisto pára, e se ele se não matara, quem lho havia de fazer?
fez bem o Conde a meu ver, quando ao jardim se arrojou, e entre as flores expirou:
vento é a vida em rigor, e como o Conde era flor, entre as flores acabou.
Se ignorou alguns sentidos, porque tanto mal se urdiu, era valido, e caiu, que o cair é dos validos:
tão certos são, e sabidos no monte, no lar, na praça estes reveses da graça, que é já dos Palácios lei, que quem da graça d?EI-Rei cai, cai da sua desgraça.
AO MESMO ASSUMPTO E PELO MESMO CASO.
Nesse precipício, Conde, fostes Ícaro segundo, bem que a Dédalo no mundo vossa fama corresponde:
em parte caístes, onde como Ícaro morrestes, mas a Dédalo excedestes nesses labirintos tristes, em fazer no que caístes, e em cair, no que fizestes.
Caiu o Conde, e se diz, que foi por um caso atroz, porém já corre outra voz, que a esta se contradiz:
que foram uns frenesis do juízo descortês:
mas eu digo desta vez ouvindo do baque o truz, que o juízo ao Conde induz ter caído, no que fez.
ESTRIBILHO
Aqui jaz, em que lhe pes, quem tudo fez com má sorte, e só na hora da morte caiu naquilo, que fez.
A MORTE DO ILLUSTRISSIMO MARQUEZ DE MARIALVA. GENERAL DAS ARMAS DE
PORTUGAL SOBRE AS PALAVRAS DA ESCRIPTURA "PLANDITE ANTE EXEQUIAS
ABNER; FIPSE FLEVIT DAVID SUPER TUMULUM ABNER."
Quando a morte de Abner David sentia, Mandou a seus vassalos, que chorassem, E que em lágrimas todos publicassem Quanto o Reino lhe deve, e o Rei devia.
Cada qual seu tormento repetia, Sem querer, que os dos outros o igualassem E todos procuravam, que mostrassem As lágrimas dilúvio, a dor porfia.
Pois se a morte de Abner se sente tanto, Só por ser General valente, e forte, Que move o Reino, e Rei a tanto pranto:
Lamente Portugal, e sinta a Corte A morte de Marialva, porque espanto Foi do mundo, e o pudera ser da Morte.
EPITAFIO AO CORAÇÃO DESTE MESMO GENERAL ENTERRADO AOS PÉS D'EL
REY D. JOÃO IV.
Aqui jaz o coração do mais valente Anibal, que restaurou Portugal com a espada de co?a razão:
aos pés do Rei quarto João lhe mandaram dar jazigo, para que a todo o perigo os dous unidos por lei achasse o vassalo ao Rei, e tivesse o Rei o amigo.
AO MESMO ASSUMPTO E PELOS MESMOS CONSOANTES
Aqui jaz o coração do vassalo mais leal, a quem deve Portugal o quarto Rei Dom João:
e assim com justa razão lhe dão a seus pés jazigo, porque a todo o perigo unidos os dous por lei achasse a lealdade o Rei, tivesse o vassalo amigo.
AO MESMO MARQUEZ SENDO ENTERRADO EM TREZ PARTES. O CORPO EM
CATANHÉDE; O CORAÇÃO EM S. VICENTE DE FORA; E OS INTESTINOS EM SAM
JOSÉ DE RIBA MAR.
Em três partes enterrado está o corpo do Marquês de Marialva: porque em dez mil seu nome é venerado:
e foi destino acertado, que em tanta parte estivesse, para que o mundo soubesse, que este valeroso Marte morto assiste em qualquer parte, como se ainda vivesse.
3 - HOMENS DE BEM
... homem de bem...
Manuel Pereira Rabelo, licenciado o roubo, a injustiça, a tirania.
A MORTE DO GOVERNADOR MATHIAS DA CUNHA.
Ó caso o mais fatal da triste sorte!
Ó terrível pesar! ó dor imensa!
Quem viu, que em breves dias de doença Acabasse valor, que era tão forte!
Quem viu prostrar-se a gala de Mavorte, Que hoje em cinza se ve à morte apensa!
Que como se prostrou, logo a licença Concedeu livremente ousada à morte.
Já se vê o valor, que esclarecido Foi, em urnas de pedra sepultado Do sujeito mais grave, e entendido.
À Parca rigorosa sujeitado, Acabado já, e em cinzas consumido o esforço, que se viu mais alentado.
AO MESMO ASSUMPTO.
Teu alto esforço, e valentia forte Tanto a outro nenhum valor iguala, Que teve o céu cobiça de lográ-lo, Que teve inveja de vencê-la a morte.
O céu veio a lográ-la, mas por sorte, Que por poder não pôde conquistá-la;
A morte por haver de contrastá-la Vigor de lei tomou, e deu-lhe o corte.
Prêmios, que mereceste, e nunca viste, Todos com teu valor os desprezaste, E com os merecer lhe resististe.
O cargo, que na vida não lograste, Esse o mofino é, órfão, e triste, Pois te não falta a ti, tu lhe faltaste.
AO MESMO ASSUMPTO.
Quem há de alimentar de luz ao dia?
Quem de esplendor ilustrará a Nobreza?
Quem há de dar lições de gentileza A toda a gentileza da Bahia?
Já feneceu do mundo a galhardia, Melancólica jaz a natureza, Vendo em pó reduzida a fortaleza, E em cinzas desatada a fidalguia.
O Marte (digo), que ao combate expunha O peito sem temor, que ao mundo assombra, Sendo da paz terror, da guerra espanto.
Foi este o Senhor Matias da Cunha, Que hoje nos dá tornado em fria sombra Ao discurso pesar, aos olhos pranto.
DISCRIÇÃO, ENTRADA, E PROCEDIMENTO DO BRAÇO DE PRATA ANTONIO DE
SOUZA DE MENEZES GOVERNADOR DESTE ESTADO.
Oh não te espantes não, Dom Antonio, Que se atreva a Bahia Com oprimida voz, com plectro esguio Cantar ao mundo teu rico feitio, Que é já velho em Poetas elegantes O cair em torpezas semelhantes.
Da Pulga acho, que Ovídio tem escrito, Lucano do Mosquito, Das Rãs Homero, e destes não desprezo, Que escreveram matérias de mais peso Do que eu, que canto cousa mais delgada Mais chata, mais sutil, mais esmagada.
Quando desembarcaste da fragata, Meu Dom Braço de Prata, Cuidei, que a esta cidade tonta, e fátua Mandava a Inquisição alguma estátua Vendo tão espremida salvajola Visão de palha sobre um Mariola.
O rosto de azarcão afogueado, E em partes mal untado, Tão cheio o corpanzil de godolhões, Que o julguei por um saco de melões;
Vi-te o braço pendente da garganta, E nunca prata vi com liga tanta.
O bigode fanado feito ao ferro Está ali num desterro, E cada pêlo em solidão tão rara, Que parece ermitão da sua cara:
Da cabeleira pois afirmam cegos, Que a mandaste comprar no arco dos pregos.
Olhos cagões, que cagam sempre à porta, Me tem esta alma torta, Principalmente vendo-lhe as vidraças No grosseiro caixilho das couraças:
Cangalhas, que formaram luminosas Sobre arcos de pipa duas ventosas.
De muito cego, e não de malquerer A ninguém podes ver;
Tão cego és, que não vês teu prejuízo Sendo cousa, que se olha com juízo:
Tu és mais cego, que eu, que te sussurro, Que em te olhando, não vejo mais que um burro.
Chato o nariz de cocras sempre posto:
Te cobre todo o rosto, De gatinhas buscando algum jazigo Adonde o desconheçam por embigo:
Até que se esconde, onde mal o vejo Por fugir do fedor do teu bocejo.
Faz-lhe tal vizinhança a tua boca, Que com razão não pouca O nariz se recolhe para o centro Mudado para os baixos lá de dentro:
Surge outra vez, e vendo a bafarada Lhe fica a ponta um dia ali engasgada.
Pernas, e pés defendem tua cara:
Valha-te; e quem cuidara, Tomando-te a medida das cavernas Se movesse tal corpo com tais pernas!
Cuidei, que eras rocim das alpujarras, E já frisão te digo pelas garras.
Um casaquim trazias sobre o couro, Qual odre, a quem o Touro Uma, e outra cornada deu traidora, E lhe deitou de todo o vento fora;
Tal vinha o teu vestido de enrugado, Que o tive por um odre esfuracado.
O que te vir ser todo rabadilha Dirá que te perfilha Uma quaresma (chato percevejo)
Por Arenque de fumo, ou por Badejo:
Sem carne, e osso, quem há ali, que creia, Senão que és descendente de Lampreia.
Livre-te Deus de um Sapateiro, ou Sastre, Que te temo um desastre, E é, que por sovela, ou por agulha Arme sobre levar-te alguma bulha:
Porque depositando-te à justiça Será num agulheiro, ou em cortiça.
Na esquerda mão trazias a bengala ou por força, ou por gala:
No sovaco por vezes a metias, Só por fazer enfim descortesias, Tirando ao povo, quando te destapas, Entonces o chapéu, agora as capas.
Fundia-se a cidade em carcajadas, Vendo as duas entradas, Que fizeste do Mar a Santo Inácio, E depois do colégio a teu palácio:
O Rabo erguido em cortesias mudas, Como quem pelo cu tomava ajudas.
Ao teu palácio te acolheste, e logo Casa armaste de jogo, Ordenando as merendas por tal jeito, Que a cada jogador cabe um confeito:
Dos Tafuis um confeito era um bocado, Sendo tu pela cara o enforcado.
Depois deste em fazer tanta parvoíce, Que inda que o povo risse Ao princípio, cresceu depois a tanto, Que chegou a chorar com triste pranto:
Chora-te o nu de um roubador de falso, E vendo-te eu direito, me descalço.
Xinga-te o negro, o branco te pragueja, E a ti nada te aleija, E por teu sensabor, e pouca graça És fábula do lar, riso da praça, Té que a bala, que o braço te levara, Venha segunda vez levar-te a cara.
SUBTILEZA COM QUE O POETA SATYRIZA À ESTE GOVERNADOR.
Tempo, que tudo trasfegas, fazendo aos peludos calvos, e pelos tornar mais alvos até os bigodes esfregas:
todas as caras congregas, e a cada uma pões mudas, tudo acabas, nada ajudas, ao rico pões em pobreza, ao pobre dás a riqueza, só para mim te não mudas.
Tu tens dado em mal querer-me, pois vejo, que dá em faltar-te tempo só para mudar-te, s e é para favorecer-me:
por conservar-me, e manter-me no meu infeliz estado, até em mudar-te hás faltado, e estás tão constante agora, que para minha melhora de mudanças te hás mudado.
Tu, que esmaltas, e prateias tanta gadelha dourada, e tanta face encarnada descoras, turbas, e afeias:
que sejas pincel, não creias, senão dias já passados;
mas se esmaltes prateados branqueiam tantos cabelos, como, branqueando pêlos, não me branqueias cruzados?
Se corres tão apressado, como paraste comigo?
corre outra vez, inimigo, que o teu curso é meu sagrado:
corre para vir mudado, não pares por mal de um triste:
porque, se pobre me viste, paraste há tantas auroras, bem de tão infaustas horas o teu relógio consiste.
O certo é, seres um caco, um ladrão da mocidade, por isso nesta cidade corre um tempo tão velhaco:
farinha, açúcar, tabaco no teu tempo não se alcança, e por tua intemperança te culpa o Brasil inteiro, porque sempre és o primeiro móvel de qualquer mudança.
Não há já, quem te suporte;
e quem armado te vê de fouce, e relógio, crê, que és o percussor da morte:
vens adiante de sorte, e com tão fino artifício, que à morte forras o ofício;
pois ao tempo de morrer, não tendo já que fazer, perde a morte o exercício.
Se o tempo consta de dias, que revolve o céu opaco, como tu, tempo velhaco, constas de velhacarias?
não temas, que as carestias, que de ti se hão de escrever, te darão a aborrecer tanto as futuras idades, que, ouvindo as tuas maldades, a cara te hão de torcer.
Se, porque penas me dês, paras cruel, e inumano, o céu santo, e soberano te fará mover os pés:
esse azul móvel, que vês, te fará ser tão corrente, que não parando entre a gente, preveja a Bahia inteira, que há de correr a carreira com pregão de delinqüente.
A PRIZÃO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR À SEU CREADO O BRAÇO FORTE.
Preso entre quatro paredes me tem Sua Senhoria por golotão de despachos, por fundidor de mentiras.
Dizem, que sou um velhaco, e mentem por vida minha, que o velhaco era o Governo, e eu sou a velhacaria.
Quem pensara, e quem dissera, quem cuidara, e quem diria, que um braço de prata velha pouca prata, e muita liga!
Tanto mais que o Braço Forte fosse forte, que poria um cabo de calabouço, e um soldado de golilha!
Porém eu de que me espanto, se nesta terra maldita pode uma onça de prata mais que dez onças de alquímia.
Quem me chama de ladrão, erra o trincho à minha vida, fui assassino de furtos, mandavam-me, obedecia.
Despachavam-me a furtar;
eu furtava, e abrangia, e são boas testemunhas inventários, e partilhas.
Eu era o ninho de guincho, que sustentava, e mantinha com suor das minhas unhas mais de dez aves rapinhas.
O Povo era, quem comprava, o General, quem vendia, eu triste era o corretor de tão torpes mercancias.
Vim depois a enfadar, que sempre no mundo fica aborrecido o traidor, e a traição muito bem vista.
Plantar de fora o ladrão, quando a ladroíce fica, será limpeza de mãos, mas de mãos mui pouco limpas.
Eles cobraram o seu dinheiro, açúcar, farinha, até a mim me embolsaram nesta hedionda enxovia.
Se foi bem feito, ou mal feito, o sabe toda a Bahia, mas se a traição ma fizeram, com eles a traição fica.
Eu sou sempre o Braço Forte, e nesta prisão me anima, que se é casa de pecados, os meus foram ninharias.
Todo este mundo é prisão, todo penas, e agonias, até o dinheiro está preso em um saco, que o oprima.
A pipa é prisão do vinho, e da água fugitiva (sendo tão leve, ligeira)
é prisão qualquer quartinha.
Os muros de pedra, e cal são prisão de qualquer vila, d'alma é prisão o corpo, do corpo é qualquer almilha.
A casca é prisão das fruitas, da rosa é prisão a espinha, o mar é prisão da terra, a terra é prisão das minas.
É cárcere do ar um odre, do fogo é qualquer pedrinha, e até um céu de outro céu é uma prisão cristalina.
Na formosura, e donaire de uma muchacha divina está presa a liberdade, e na paz a valentia.
Pois se todos estão presos, que me cansa, ou me fadiga, vendo-me em casa d'EI-Rei junto à Sua Senhoria?
Chovam prisões sobre mim, pois foi tal minha mofina, que, a quem dei cadeias d'ouro, de ferro mas gratifica.
A DESPEDIDA DO MAO GOVERNO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR.
Senhor Antão de Sousa de Meneses, Quem sobe a alto lugar, que não merece, Homem sobe, asno vai, burro parece, Que o subir é desgraça muitas vezes.
A fortunilha autora de entremezes Transpõe em burro o Herói, que indigno cresce Desanda a roda, e logo o homem desce, Que é discreta a fortuna em seus reveses.
Homem (sei eu) que foi Vossenhoria, Quando o pisava da fortuna a Roda, Burro foi ao subir tão alto clima.
Pois vá descendo do alto, onde jazia, Verá, quanto melhor se lhe acomoda Ser home em baixo, do que burro em cima.
SUCCEDE A ESTE GOVERNADOR O MARQUEZ DAS MINAS COM SEU FILHO O
CONDE DO PRADO, DESFAZENDO TODAS AS SUAS OBRAS, E MANDANDO VIR OS
PRINCIPAES DA BAHIA DO DESTERRO, EM QUE ANDAVÃO, PELA MORTE, QUE
OUTROS DERAM AO ALCAYDE MÔR FRANCISCO TELLES.
MOTE
De flores, e pedras finas floresce, e enriquece o Estado, floresce sim pelo Prado, e enriquece pelas Minas:
As Aves, que peregrinas aos montes se retiraram, nesta manhã já cantaram com tão doce melodia, que a noite se tornou dia, porque as penas se acabaram.
Já da Primavera entrou a alegre serenidade, com que toda a tempestade do triste inverno acabou:
já Saturno declinou nas operações malignas, com influências benignas Júpiter predominante nos promete ano abundante De flores, e pedras finas.
Se destes aspectos tais bem se calcula a figura, teremos grande fartura, não há de haver fome mais:
mostras temos, e sinais de um tempo muito abastado:
porque bem considerado dele tem o próprio efeito;
já vemos, que a seu respeito Floresce, e enriquece o Estado.
Para ser enriquecido este Estado, e florescente, temos a causa patente no Planeta referido:
nem se equivoca o sentido no efeito aqui declarado:
porque sendo bem notado o estado, como parece, se pelo mais não floresce, Floresce sim pelo Prado.
Pelo Prado flor a flor se vai a terra esmaltando, com que o clima está mostrando temperamento melhor:
do Luminar superior por tais influências dignas sendo as pedras, e boninas da terra únicos primores pois se esmalta pelas flores, E enriquece pelas Minas.
Na terra já se exprimentam virações tão temperadas, que as aves determinadas tornar aos ninhos intentam:
já não sentem, nem lamentam tempestuosas ruínas, pois com salvas matutinas se mostram tão prazenteiras, que mais parecem caseiras As aves, que peregrinas.
Sua peregrinação influxo foi de Saturno, Planeta sempre noturno, e muito importuno então:
todas nessa conjunção seus doces ninhos deixaram, e tanto se recearam do nocivo temporal, que escolhendo o menor mal, Aos montes se retiraram.
Porém tanto que sentiram haver no tempo mudança, sem receio, e sem tardança aos ninhos se reduziram:
outros ares advertiram, outra clemência notaram, com que alegres publicaram dos astros os movimentos, e com festivos acentos Nesta manhã já cantaram.
Cantaram para mostrar com repetidas cadências singulares excelências de um Planeta singular:
tal doçura no cantar não se ouviu nesta Bahia, ouvindo-se na harmonia modulações tão suaves, que nunca cantaram aves com tão doce melodia.
Cada qual com voz sonora nos mutetes, que cantavam, por mil modos explicavam de todo estado a melhora:
cada instante, e cada hora a música mais se ouvia;
no Prado resplandecia por modo maravilhoso um lustre tão luminoso que a noite se tornou dia.
Entre as aves modulantes, que este nosso País tem todas cantavam o bem, de que são participantes:
dos males, que foram dantes, todas também se queixaram;
assim que todas mostraram com alegrias notórias, que começaram as glórias, Porque as penas se acabaram.
A SEU FILHO O CONDE DO PRADO, DE QUEM ERA O POETA BEM VISTO, ESTANDO RETIRADO NA PRAYA GRANDE, LHE DÁ CONTA DOS MOTIVOS, QUE
TEVE PARA SE RETIRAR DA CIDADE, E AS GLORIAS, QUE PARTICIPA NO RETIRO.
Daqui desta Praia grande, Onde à cidade fugindo, conventual das areias entre os mariscos habito:
A vós, meu Conde do Prado, a vós, meu Príncipe invicto, Ilustríssimo Mecenas de um Poeta tão indigno.
Enfermo de vossa ausência quero curar por escrito sentimentos, e saudades, lágrimas, penas, suspiros.
Quero curar-me convosco, porque é discreto aforismo, que a causa das saudades se empenhe para os alívios.
Ausentei-me da Cidade, porque esse Povo maldito me pôs em guerra com todos, e aqui vivo em paz comigo.
Aqui os dias me não passam, porque o tempo fugitivo, por ver minha solidão, pára em meio do caminho.
Graças a Deus, que não vejo neste tão doce retiro hipócritas embusteiros, velhacos entremetidos.
Não me entram nesta palhoça visitadores prolixos, políticos enfadonhos, cerimoniosos vadios.
Uns néscios, que não dão nada, senão enfado infinito, e querem tirar-me o tempo, que me outorga Jesus Cristo.
Visita-me o lavrador sincero, simples, e liso, que entra co'a boca fechada, e sai co queixo caído.
E amanhecendo Deus, acordo, e dou de focinhos co sol sacristão dos céus toca aqui, toca ali signos.
Dou na varanda um passeio, ouço cantar passarinhos docemente, ao que eu entendo, exceto a letra, e o tonilho.
Vou-me logo para a praia, e vendo os alvos seixinhos, de quem as ondas murmuram por mui brancos, e mui limpos:
os tomo em minha desgraça por exemplo expresso, e vivo, pois ou por limpo, ou por branco fui na Bahia mofino.
Queimada veja eu a terra, onde o torpe idiotismo chama aos entendidos néscios, aos néscios chama entendidos.
Queimada veja eu a terra onde em casa, e nos corrilhos os asnos me chamam d'asno, parece cousa de riso.
eu sei um clérigo zote parente em grau conhecido destes, que não sabem musa, mau grego, e pior latino:
Famoso em cartas, e dados mais que um ladrão de caminhos, regatão de piaçavas, e grande atravessa-milhos:
Ambicioso, avarento, das próprias negras arnigo só por fazer a gaudere, o que aos outros custa jimbo.
Que se acaso em mim lhe falam, torcendo logo o focinho, ninguém me fale nesse asno, responde com todo o siso.
Pois agora (pergunto eu)
e Job fora ainda vivo sofrera tanto ao diabo, como eu sofro este percito?
Também sei, que um certo Beca o pretório presidindo, onde é salvage em cadeira, me pôs asno de banquinho.
Por sinal que eu respondi, a quem me trouxe este aviso, se fosse asno, como eu sou, que mal fora a esse Ministro.
Eu era lá em Portugal sábio, discreto, e entendido, Poeta melhor, que alguns, douto como os meus vizinhos.
Chegando a esta cidade, logo não fui nada disto:
porque o direito entre o torto parece, que anda torcido.
Sou um herege, um asnote, mau cristão, pior ministro, mal entendido entre todos, de nenhum bem entendido.
Tudo consiste em ventura, que eu sei de muitos delitos mais graves que os meus alguns, porém todos sem castigo.
Mas não consiste em ventura, e se o disse, eu me desdigo;
pois consiste na ignorância de Idiotas tão supinos.
De noite vou tomar fresco, e vejo em seu epiciclo a lua desfeita em quartos como ladrão de caminhos.
O que passo as mais das noites, não sei, e somente afirmo, que a noite mais negra, escura em claro a passo dormindo.
Faço versos mal limados a uma Moça como um brinco, que ontem foi alvo dos olhos, hoje é negro dos sentidos.
Esta é a vida, que passo, e no descanso, em que vivo, me rio dos Reis de Espanha em seu célebre retiro.
Se, a quem vive em solidão, chamou beato um gentio, espero em Deus, que hei de ser por beato inda benquisto.
Mas aqui, e em toda a parte estou tão oferecido às cousas do vosso gosto, como de vosso serviço.
AO CONDE DO PRADO EMBARCANDO-SE PARA PORTUGAL EM COMPANHIA DE
SEU PAY, DEPOlS DE TER ACABADO O TEMPO DE SEU GOVERNO LHE FAZ O
POETA ESTAS SAUDOSAS DESPEDIDAS
Generoso Dom Francisco, mais que Conde Rei do prado, porque se a Rosa é Rainha, rei sois vóis, pois sois o Cravo.
Majestoso ramilhete por cuja causa logramos trinta e seis meses de flores, que um mês fizeram de Maio.
Luminar esclarecido, em quem tanto estão brilhando as luzidas excelências desses ascendentes Astros.
Ouvi de meus sentimentos a voz, inda que o reparo note, que para a matéria o instrumento é mui baixo.
Ouvi meus saudosos tonos, que é bem, Senhor Soberano, que, quem deu assunto à solfa, se digne de ouvir os cantos.
Neste papel ponde os olhos, pois já quisestes dignar-vos de verdes da minha Musa noutro tempo outro traslado.
Naquele tempo, então digo, quando escapei são, e salvo por vosso bom patrocínio de mil testemunhos falsos.
Quando viu toda a Bahia no decurso de três anos sempre em flor vosso carinho, nunca murcho o vosso agrado Aqui mil órgãos quisera, para que com mil meatos sempre ferisse os encômios, onde soam os aplausos.
Mas inda assim não podiam entender-se os vôos tanto, que não ficassem sucintos para elogios tão altos.
Aquele ligeiro monstro, que nas presunções de alado pelas plumas marca os vôos, pelos vôos mede os passos.
Só pode com nova tuba referir em pregões altos os timbres da vossa pompa, as prendas do vosso garbo.
Referirá, Senhor Conde, que sempre os feitos preclaros têm por doação dos tempos da Fama os maiores brados.
Esta vai com grande empenho desta Praça, para dar-vos sobre as aras do meu trono da memória os holocaustos.
Digo, que vai desta Praça, onde em público teatro vemos do melhor governo os mais heróicos ensaios.
Do Mestre as prerrogativas toquei em hino mais amplo por ver-se nas lições suas da pena o primeiro aparo.
Aqui dos seus documentos nada digo, nada trato, que pois o assunto é só vosso, só convosco agora falo.
Só convosco, porque o gênio, que é para pouco trabalho, mal pode ser juntamente Jardineiro, e Lapidário.
Tanto que vos embarcastes, logo então fiquei notando, que na falta do presente se conhece o bem passado.
Por vossa ausência às escuras fica a terra, e não me espanto, de que quando o sol se ausenta, se ausente da Luz os raios.
A vista dos nossos olhos éreis; com que fica claro, pois, meu Senhor, vos perdemos, que sem vós cegos ficamos.
A vossa falta sentimos geralmente neste estado, que sentir-se a grande perda efeito é muito ordinário.
Sente o grande, que não tem o Prado alegre em Palácio, o gentil Cravo na rua, a Flor brilhante no Campo.
Sente igualmente o pequeno não ter em seus desamparos abrigo para a tormenta e tábua para o naufrágio.
Eu sinto, e sentimos todos, que fosse tão breve o prazo dos objetos para a vista, da vista para os regalos.
Mas não podia o triênio, sendo um bem dos bens humanos, deixar de incluir o logro nos termos de momentâneo.
Nesta suposição nossa concorrem motivos vários uns por parte dos alívios, outros em favor dos prazos.
Mas prevalecem as penas, que os corações magoados, quando a dor mais dissimulam, então estão mais penando.
Não permita vossa ausência, no sentimento intervalos, que no mal sempre contino nunca desconsolos faltam.
Vossa saudade gememos nossa solidão choramos se na solidão chorosos, na saudade solitários.
Nesta assistência tão breve nos mostrou o desengano não ser para pecadores o comércio de tal Anjo.
A MORTE DESTE CONDE SUCCEDIDA NO MAR QUANDO SE RETIRAVA PARA
LISBOA.
Do Prado mais ameno a flor mais pura, Que em fragrâncias o alento há desatado, Hoje a fortuna insípida há roubado A pompa, o ser, a gala, a formosura.
Flor foste, ó Conde, a quem a desventura Por decreto fatal do iníquio fado Quis dar-te como flor do melhor Prado Tumba no mar, nas águas sepultura.
Porque menos decente o monumento Poderias achar no infeliz caso De ver extinto tanto luzimento.
Por magnânimo herói no final prazo Somente na extensão desse elemento Terias como sol decente ocaso.
AO MESMO ASSUMPTO.
Em essa de cristal campanha errante Da morte um peito ilustre foi vencido, Mágoa, que o mar chorava fementido Com lágrimas de neve, ou de diamante.
Neste teatro horrível, e inconstante Aos rigores do tempo pôs rendido A sua pompa o Prado mais florido, Fim a seu curso o sol mais rutilante.
Como Prado em tormentas inundado, Como sol, que apressado a esfera corre, Teve o seu fim nas águas destinado.
Por que se bem se adverte, ou se discorre, Se o mar inunda, se sepulta o prado, E se fenece o sol, nas ondas morre.
AO MESMO ASSUMPTO.
No Reino de Netuno submergido Nos campos de Anfitrite sepultado Tem a Sorte a mais bela Flor, que o Prado Em sua amenidade há produzido.
Os realces ilustres tem perdido, porque a Parca os alentos lhe há roubado, cuja memória os mares têm chorado, cuja lembrança as águas têm sentido.
Mas se de flor, ó Conde a preminência Gozavas em teu florido viver, Que muito não tivesses existência!
Pois a flor, que mais pompa vem a ter Se pondera em uma hora sem falência Sujeita à pensão fera de morrer.
AO MESMO ASSUMPTO.
Nasce el sol de los astros presidente Principe en las espheras conocido, Y aunque el dia le mira el mas luzido, La noche se le atreve irreverente.
Sirve le de sepulchro transparente El mar, pension fatal de haver nascido, Pues el que en todo un ciclo nó ha cabido, Le viene a ser el mar urna decente.
Sol fuiste, Conde ilustre, en la nobleza, A quien la triste noche se le atreve, Pues es el morir del sol naturaleza.
Hallaste como el sol tumba de nieve, Pues siendo corto el sol à tu grandeza, Solo à tal sol tal urna se le deve.
AO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ GLZ. DA CAMARA COUTINHO EM DIA DE REYS
OBSEQUEA O POETA PEDINDOLHE EM NOME DE HUM AMIGO HUMA DAQUELLAS
ESMOLLAS, QUE SUA MAGESTADE CONSIGNA DO REAL THESOURO CADA HUM
ANNO PARA OS HOMENS DE BEM, A QUE CHAMÃO MERCÉ ORDINARIA.
Num dia próprio a liberalidades, No qual o Rei dos Reis aos Reis aceita, Não é muito, que quem Rei vos respeita, Vos troque a Senhoria em majestades.
Obriga-me a pedir calamidades A que o meu fado triste me sujeita, Obriga-vos a dar a mão perfeita, Com que sabeis matar necessidades.
Chegaram hoje os Reis do diversório A tributar incenso, mirra, e ouro, Fazendo do presépio um oratório:
Se guiou aos três Reis Planeta Louro, Guie-me a minha estrela o peditório, Com que na vossa mão ache um tesouro.
EMPENHA O POETA PARA CONSEGUIR ESTA MERCÉ AO CAPITÃO DA GUARDA
LUIZ FERREYRA DE NORONHA SEU PARTICULAR CRIADO.
Senhor: se quem vem, não tarda, vim eu em boa ocasião, pois da Guarda o capitão é Anjo da minha guarda:
vossa presença galharda, vossa dócil natureza bem mostram, que sois na empresa da minha fortuna imensa capitão pela defensa Anjo pela gentileza.
Obrigado a tão bom trato, que em mim é lance infalível, o desempenho impossível temo, que me faça ingrato:
mas como já me precato de tão previsto desar, que eu não basto a desviar, sirva de escusa, ou perdão, que não falta à gratidão, quem se peja de faltar.
Na Corte em era oportuna vistes a minha abastança, hoje vereis a mudança da minha infausta fortuna:
de estrela tão importuna dera uma justa querela, porque hajais de corrige-la:
mas no mundo é já patente, que como sábio, e prudente dominastes minha estrela.
Mudei-me de ponto a ponto de Portugal ao Brasil, lá deixo infortúnios mil, acho cá ditas sem conto:
co?as ditas é, que de ponto a desgraça lá passada, e a graça considerada está em vós, meu capitão, que a dita está na eleição da sombra, a que está chegada.
A PEDITORIO DOS PRETOS DE NOSSA SENHORA DO ROSARIO FEZ O POETA O
SEGUINTE MEMORIAL PARA O MESMO GOVERNADOR, IMPETRANDO LICENÇA
PARA SAIREM MASCARADOS À HUMA OSTENTAÇÃO MILITAR, A QUE CHAMAVÃO
ALARDE.
Senhor: Os Negros Juízes da Senhora do Rosário fazem por uso ordinário alarde nestes Países:
como são tão infelizes, que por seus negros pecados andam sempre emascarados contra a lei da policia, ante Vossa Senhoria pedem licença prostrados.
A um General Capitão suplica a Irmandade preta, que não irão de careta, mas descarados irão:
todo o negregado Irmão desta Irmandade bendita pede, que se lhe permita ir ao alarde enfrascados, não de pólvora atacados, calcados de jeribita.
OUTRO MEMORIAL POR HUM SEU SOBRINHO, QUE DESEJAVA SENTAR PRAÇA
DE SOLDADO.
Senhor: deste meu Sobrinho afirmou um Padre tolo, que é furado do miolo, sendo o tal Padre o tolinho:
não é doudo, nem doudinho, falando na realidade, mas se hei de dizer verdade, e nada hei de encobrir, anda morto por servir aqui Sua Majestade.
Pode Vossa Senhoria, se nisto acertar deseja, permitir, que o Moço seja soldado de Infantaria:
e se alcançar algum dia, que falei afeiçoado, eu me dou por condenado, e sem recurso nenhum a servir sem soldo algum em lugar deste Soldado.
AO MESMO GOVERNADOR SUBTILMENTE REMOQUEIA O POETA AO DESCUIDARSE DE SUA HONRADA SUPPLICA SOBRE A MERCÉ ORDINÁRIA, LEMBRANDOLHE, QUE Á DERA A HUM SOLDADO RIDICULO CHAMADO O FARIA, POR QUEM
NAQUELLE TEMPO CANTAVÃO OS CHULOS "A MULHER DO FARIA VAY PARA
ANGOLLA".
Sei eu, Senhor, que Vossa Senhoria Mandou dar ao Faria um bom vestido, Sendo, que mais o tinha merecido A mulher do mesmíssimo Faria Provo: todo o prazer, gosto, e alegria, Que se tem do Faria deduzido, O deu sempre a Mulher, nunca o Marido.
Que ela ia pra Angola, e ele não ia.
Assim que se a Mulher vai para Angola, E ele fica na infame lupanária, Sua ausência cruel pondo à viola:
Tiro por conseqüência temerária, Que à Mulher se lhe deve dar a esmola, Que em crítico se diz mercê ordinária.
TORNA O POETA A INVOCAR LUIZ FERREYRA DE NORONHA.
Se da Guarda pareceis Anjo sobre capitão, não é novidade não, que de males nos livreis:
dobrado ofício fazeis em qualquer nossa aflição, pois com nobre coração nos livrais amante interno, se como Anjo do inferno, do mais como capitão.
ATHE AQUI NÃO ERA AINDA VINDA A MERCÉ ORDINÁRIA. E NO DIA, EM QUE O
GOVERNADOR FEZ ANNOS LHE MANDOU O SEGUINTE SONETO.
Quem, Senhor, celebrando a vossa idade, Os anos com prazer vos vai contando, Parece, que vos vai aproximando Para lograr tal dia a vossa herdade.
Se a conta vos chegara a eternidade, Contente vo-la iria numerando, Mas dá-me desprazer a conta, quando Temo a raia tocar da mortandade.
Com olhos sempre postos na Ordinária Vos dou os parabéns sem falso engano De ver-vos contrastando a sorte vária.
Mas se por fim me dais o desengano (que em vós seria cousa extraordinária)
Direi, que em tal dia fará um ano.
A D. JOÃO DALENCASTRE VINDO DO GOVERNO DE ANGOLLA, ASSISTINDO NO
MESMO PALACIO, QUEIXANDO-SE, DE QUE O POETA O NÃO VISITASSE, E
PEDINDOLHE HUMA SATYRA POR OBSEQUIO.
A quem não dá aos fiéis perdão, se lhe há de outorgar, eu hoje vos hei de dar, pedindo me perdoeis:
dou-vos, o que mais quereis, e o que pedis por favor, que quando chega um Senhor a pedir, por não mandar, mal lhe podia eu faltar cuma sátira em louvor.
Não fui beijar-vos a mão, e dar-vos a bem chegada, porque nessa alta morada nunca tive introdução:
até agora a indignação não quis tão altivo trato, mas hoje é quase distrato, porque em todo mundo inteiro de fidalgo, e de escudeiro são brincos de cão com gato.
Os Fidalgos, e os Senhores faltos de jurisdição fazem tudo, e tudo dão a amigos, e servidores:
os que jogam de maiores por sangue, e não por poder fazem jogo de entreter:
porque o sangue desigual sempre brota ao natural, e o mando bota a perder.
Perdoai a digressão, porque esta prolixidade é boa luz da verdade, e escusa a sátira então:
quando se ofreça ocasião, meu Senhor, de que eu vos veja (na Igreja, ou na rua seja)
hei de prender-vos os pés, e estai certo, que essa vez vos não valerá a Igreja.
Estou na minha quintinha, que é chácara soberana, ora comendo a banana, jogando ora a laranjinha:
nem vizinho, nem vizinha tenho, porque sempre cansa quem vê tudo, e nada alcança, e na cidade são raros os olhos, que não são claros, se olhos são de vizinhança.
Mas inda que desterrado me tem o fado, e a sorte por um Juiz de má morte, de quem não tenho apelado:
é hoje, que sois chegado, Senhor, o tempo, em que apele;
fazei, que El-Rei o desvele pagar o serviço meu, pois é bizarro, e só eu não vim muito pago dele.
A JOÃO PLZ. DA CAMARA COUTINHO FILHO DO MESMO GOVERNADOR
TOMANDO POSSE DE HUMA GINETA EM DIA DE S. JOÃO BAPTISTA, E LHE
ASSISTIO DE SARGENTO D. JOÃO DE LANCASTRO SEU THIO VINDO DO
GOVERNO DE ANGOLLA.
No culto, que a terra dava, equivocava-se a vista, se celebrava o Batista, se ao Coutinho festejava:
um e outro João estava arrojando à sua planta tanto aplauso, e festa tanta:
mas viu-se, que ao mesmo dia, em que o Batista caía, o Coutinho se levanta.
Viu-se, que um João Batista na terça-feira caíra, e que outro João subira a imperar esta conquista:
mas não se enganou a vista por desacerto, ou desgraça, antes com divina traça se notou, e se advertiu, que se um com graça caiu, outro nos caiu em graça.
Braba ocorrência se achou no martirológio então, o dia era de um João, e outro João lhe levou:
toda a cidade assentou por razão, se por carinho ser mais acerto, e alinho preferir entre dous grandes como um Silva a um Fernandes a um Batista um Coutinho.
Mais ocorrências se leram, porque pasmasse a Bahia, dous num dia há cada dia, mas três nunca concorreram:
três de um nome então vieram, e qual mais para aplaudido, e assim confuso, e sentido ficou com tão nova traça restaurada a nossa Praça e o Calendário aturdido.
Se de um só João no dia se abalava a cristandade, por três de tal qualidade quem se não abalaria!
tudo quanto então se via, se via com grande abalo, um mar de fogo a cavalo, a pé um Etna de flores, e por ver tantos primores o Céu dava tanto estalo.
A ver o grande Alencastro quem não fez do aperto graça:
se saiu o sol à praça fazer praça a tanto Astro?
o bronze pois, e alabastro por solenizar a glória consentirão, que esta história fique por mais segurança nos arquivos da lembrança nos volumes da memória.
AO MESMO ASSUMPTO.
Entre aplausos gentis com luz preclara Resplandece do sol a monarquia, E o Príncipe da Luz, que o céu regia Estático a carroça ardente pára.
E com razão: pois vê, se bem repara, outro novo Faetonte neste dia, E sente arder o mundo, como ardia, Quando ao filho o governo delegara.
Pare pois, e repare, que o decreta Astréia, porque aprenda no alto pólo Ditames de luzir deste Planeta.
Sua fama andará de pólo a pólo, Pois o Jove, que empunha uma gineta, Faetonte é na luz, no garbo Apolo.
GENEALOGIA QUE O POETA FAZ DO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ
DESABAFANDO EM QUEYXAS DO MUYTO, QUE AGUARDAVA NA ESPERANÇA DE
SER DELLE FAVORECIDO NA MERCÉ ORDINARIA.
Veio ao Espírito Santo da Ilha da Madeira Alz.
um Escudeiro Gonçalves mais pobretão, que outro tanto:
e topando a cada canto as Tapuias do lugar havendo uma de tomar para a bainha da espada, tomou Vitória agradada, que então lhe soube agradar.
A tal era uma Tapuia grossa como uma jibóia, que roncava de tipóia, e manducava de cuia:
tocando ela a Aleluia, tirava ele a culumbrina com tal estrago, e ruína, que chegando a conjuncão lhe encaixou a opilação por entre as vias da urina.
Pariu a seu tempo um cuco, um monstro (digo) inumano, que no bico era tucano e no sangue mamaluco:
mas não tendo bazaruco, com que faça o batizado lhe assistiu sem ser rogado um troço de fidalguia pedestre cavalaria toda de beiço furado.
O Cura, que não curou de buscar no Calendário nome de Santo ordinário, por Antônio o batizou:
tanto o colonim mamou, e tais forças tomou, que antes de se pôr de pé, e antes de estar já de vez, não falava o português, mas dizia o seu cobé.
Cansado de ver a Avoa co'as cuias à dependura, tratou de buscar ventura, e embarcou numa canoa:
vindo aportar a Lisboa, presumiu de fidalguia, cuidou, que era outra Bahia, onde basta a presunção para fazer-se a um cristão muchíssima cortesia.
Casou com uma rascoa, que por ele ardia em chamas, e era criada das Damas da Rainha de Lisboa:
era uma grande pessoa, porque tinha um cartapácio, onde estudava de espácio todo o primor cortesão, que até um sujo esfregão cheira a primor em Palácio.
Nasceu deste matrimônio um Anjo, digo, um Marmanjo, que era no simples um Anjo, e no maligno um demônio:
deram-lhe por nome Antônio;
oh se o Santo tal cuidara!
creio eu, que se irritara o grande Português tanto, que deixara de ser Santo, e o nome lhe não sujara.
Este pois por exaltar-se veio reger a Bahia:
que bom governo faria, quem não sabe governar-se!
se ele quisera enforcar-se pelos que enforcar fazia, que bom dia nos daria!
mas ele tão mal se salva, que quando dava a mão alva então tomava o bom dia.
O Ministro há de ser são, justo, e não desobrigado, há de ter ódio ao pecado, e ao pecador compaixão:
que se tem má propensão, faz justiça, mas com vício, e se maior malefício tem, e pode condenar-me, livre-me Deus de julgar-me oficial do meu ofício.
Que, porque furto, o que coma, me enforquem, pode passar, mas que me mande enforcar a bengala de um Sodoma!
quem sofrerá, que Mafoma me queime por mau cristão, vendo, que Mafoma é cão, velhaco, e de suja alparca, e o mais torpe heresiarca, que houve entre os filhos de Adão.
Quem na terra sofreria, que o fedor de um ataúde com bioco de virtude disfarçasse a Sodomia?
e de feito em cada dia desse ao povo um enforcado, e que de puro malvado desse esse dia um banquete, e alegrasse o seu bofete com bom vinho, e bom bocado?
O bem, que os mais bens encerra, e as glórias todas contém, é reinar, quem reina bem, pois figura a Deus na terra:
eu cuido, que o mundo erra nesta alta reputação, que se o Rei erra uma ação, paga a seu alto atributo um tristíssimo tributo, e misérrima pensão.
O Príncipe soberano bom cristão temente a Deus, se o não socorrem aos céus, pensões paga ao ser humano:
está sujeito ao tirano, que adulando ambicioso é áspide venenoso, que achacando-lhe os sentidos, turbado o deixa de ouvidos, de olhos o deixa ludoso.
Se fosse El-Rei informado, de quem o Tucano era, nunca à Bahia viera governar um povo honrado:
mas foi El-Rei enganado, e eu com o povo o paguei, que é já costume, e já lei dos reinos sem intervalo, que pague o triste vassalo os desacertos de um Rei.
Pagamos, que um figurilha corcova de canastrão com nariz de rebecão em cara de bandurrilha, descompusesse a quadrilha dos homens mais bem nascidos, e que dos mal procedidos tal estimação fizesse, que honras, e postos lhes desse por lhe encherem os ouvidos.
Pagamos ver esta Hiena, que com a voz nos engana, pois fala como putana, e como fera condena:
que uma terra tão amena, tão fértil, e fão fecunda a tornasse tão imunda falta de saúde, e pão;
mas foi força, que tal mão peste, e fome nos infunda.
Pagamos que um homem bronco racional como um calhau, mamaluco em quarto grau, e maligno desde o tronco:
apenas se dá um ronco, em briga apenas se fala, quando os sargentos a escala prendem com descortesia aos honrados na enxovia, todo o patifão na sala.
Pagamos, que um Sodomita, porque o seu vício dissesse, todo o homem aborrecesse, que com mulheres coabita:
e porque ninguém lhe quita ser um vigário-geral com pretexto paternal, aos filhos, e aos criados tenha sempre aferrolhados para o pecado mortal.
Pagamos, que o tal jumento isento de mãos guadunhas não furtasse pelas unhas, senão por consentimento:
e que os quatro vezes cento, que se vieram trazer ao seu capitão mulher, porque o pão suba mais dez, não foi furto, que ele fez, mas deu jeito a se fazer.
Pagamos ver o Prelado, que se peca, é de prudente, dos serventes de um agente descortesmente ultrajado:
o sobrinho amortalhado com tão fidalgos brasões pela Puta dos calções, que fiado em ser valido fez do sangue esclarecido tão lastimosos borrões.
Pagamos com dor interna, que nos passos da Paixão tão devoto é da prisão, que quer levar a lenterna:
se entende, que a glória eterna prendendo há de merecer, fora melhor entender, que o céu lhe dá mais ganhado, não dormir-se co criado, que desvelar-se em prender.
Pagamos vê-lo esperar, e estar com expectativas de ser Conde das Maldivas por serviços de enforcar:
e como mandou tirar um rol dos quatro maraus, que enforcou por vaganaus, cuidei (assim Deus me valha)
que entre os Condes da baralha fosse ele o Conde de paus.
Porém Sua Majestade, Qual Príncipe Soberano, que não se indigna de humano sem dano da dignidade:
conhecida esta verdade, que é verdade conhecida, fará justiça cumprida, para que se lhe agradeça, que o mau na própria cabeça traga a justiça aprendida.
E porque nós de antemão a seus favores mostremos, quanto lhos agradecemos, lhe agradecemos D. João:
era justo, era razão, conforme o direito e lei, quando o Rei dá Juiz a Grei, outro em seu lugar dispor, que seja o Governador tão fidalgo como El-Rei.
CONTINUA O POETA SATYRIZANDO-O COM O SEO CRIADO LUIZ FERREYRA DE
NORONHA.
Estas as novas são de Antônio Luí=
No que passa sobre um gato de algá=, Que algália tira com colher de Itá= .
que coze e corcoja em fonte Rabi= .
Se lhe escalda ou não a serventi=
Isto tem já provado o mesmo ga=
Porque passando os rios de cuá=
O caso tocou logo a Inquisi=
Há cousa mais tremenda e mais atró=, Que em terra, onde há tanta fartu=, E haja que por um cu enjeite um có= ?
E que por mau gosto seja um pu= ?
Eu me benzo, e arrenego do demô=
E do pecado, que é contra a natu= .
AOS MESMOS AMO, E CRIADO.
Que aguarde Luís Ferreira de Norô=
Tão grande pespegar pelo besbê=!
Para o Puto, que aguarda tal pespê=, E faz servir seu cu de cocó= .
Subverteu-se a cidade de Sodô=
Pelo muito, que andou de caranguê=:
A Palácio também cteio, sucé=
O mesmo, que à cidade de Gomô=.
Que desse em pescador Antônio Luí= ?
Nefando gosto tem o seu cará=, Em não querer topar ponta de cri= .
Pois tanto se narnora do pescá=, A cuama se vá pescar lombri=, E em castigo de Deus morra queimá=.
PROSSEGUE O MESMO ASSUMPTO.
No beco do cagalhão, no de espera-me rapaz, no de cata que farás e em quebra-cus o acharam, que tirando ao come-em-vão que era esperador de cus, lhe arrebentou o arcabuz no beco de lava-rabos, onde lhe cantam diabos três ofícios de catruz.
Tomem pois exemplo aqui o Tucano e o Ferreira, pois lhos diz esta caveira, aprende, flores, de mi:
mais aqui, ou mais ali sempre os demônios são artos sempre bichos, e lagartos, e dar-lhe-ão sobre beijus, a comer sempre cuscuz, a ver se se dão por fartos.
REPETE A MESMA SATYRA.
Quem aguarda a luxúria do Tucano Também pode esperar a do Lagarto, Se acaso conceber, verá no parto A substância que leva do tutano.
Estes, que se debreiam mano a mano, Disciplinar-se-ão de quarto em quarto, E o que de mais sustância estiver farto, A via busque, que o negócio é cano.
Conheça a Inquisição estas verdades, E como é certo, o que o soneto diz, Paguem-se em vivo fogo estas maldades, Ardendo morram já como Solis, E como arderam já duas cidades, Ardam Luís Ferreira, e Antônio Luís.
AO MESMO ASSUMPTO.
MOTE
Quem sai a mijar de Beja por fora de Vidigueira Dá c'o piçalho em Ferreira.
Senhora velha roupeira pois todo Alentejo andou não me dirá, quanto achou, que vai de Beja a Ferreira:
porque outra velha embusteira, com profia, e com inveja, não quer que uma légua seja, e por palmos de cará diz, que só um palmo achará quem sai a mijar de Beja.
Isto a velha quer, que seja, e do seu querer colijo, que vai a beber do mijo, quem sai a mijar de Beja:
porém quem saber deseja a conclusão verdadeira, deste caminho, ou carreira, pelos passos do pismão quer saber, que passos vão por fora da Vidigueira.
Porque parvoíce fora não ver entre boca, e centro, que uma cousa é mijar dentro outra cousa andar por fora:
e assim vós, minha Senhora velha, que nesta carreira já sois useira, e vezeira desmenti da velha a inveja, pois diz, que quem sai de Beja, dá co piçalho em Ferreira.
DIZ MAIS COM O MESMO DESENFADO:
Sal, cal, e alho caiam no teu maldito caralho. Amém.
O fogo de Sodoma e de Gomorra em cinza te reduzam essa porra. Amém Tudo em fogo arda, Tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda.
DEDICATORIA ESTRAVAGANTE QUE O POETA PAZ DESTAS OBRAS AO MESMO
GOVERNADOR SATYRIZADO.
Desta vez acabo a obra, porque é este o quarto tomo das ações de um Sodomita, dos progressos de um fanchono.
Esta é a dedicatória, e bem que preverto o modo, a ordem preposterando dos prólogos, os prológios.
Não vai esta na dianteira, antes no traseiro a ponho, por ser traseiro o Senhor, a quem dedico os meus tomos.
A vós, meu Antônio Luís, a vós, meu Nausau ausônio, assinalado do naso pela natura do rosto:
A vós, merda dos fidalgos, a vós, escória dos Godos, Filho do Espírito Santo, E bisneto de um caboclo:
A vós, fanchono beato, Sodomita com bioco, e finíssimo rabi sem nascerdes cristão-novo:
A vós, cabra dos colchões, que estoqueando-lhe os lombos, sois fisgador de lombrigas nas alagoas do olho:
A vós, vaca sempiterna cosida, assada, e de molho, Boi sempre, Galinha nunca in secula seculorum:
A vós, ó perfumador do vosso pagem cheiroso, para vós algália sempre, para vós sempre mondongo:
A vós, ó enforcador, e por testemunhas tomo os Irmãos da Santa Casa, que lhes carregam os ossos:
Pois no dia dos Finados, quando desenterram mortos também murmuram de vós pela grã carga dos ombros:
A vós, ilustre Tucano, mal direito, e bem giboso, pernas de rolo de pau, antes de o levar ao torno:
A vós: basta tanto vós, porque este insensato Povo vendo, que por vós vos trato, cuidará, que sois meu moço:
A vós dedico, e consagro os meus volumes, e tomos, defendei-os, se quiserdes, e se não, vai nisso pouco.
APOLOGIA CAVILLOSA EM DEFENÇA DO MESMO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ.
Agora saio eu a campo por vós, meu Antônio Luís, que já fede tanto verso, e enfada tanto pasquim!
Que vos quer esta canalha tropel de vilões ruins, tanto Poeta sendeiro, tanto trovador rocim?
Se fizestes mau governo, que é certo, que foi ruim, eles, que o façam pior, que eu lhe dou das quatro mil.
Entorcastes muita gente?
mente, quem tal coisa diz:
Gabriel os enforcava, que eu com estes olhos vi.
É verdade, que gostáveis vós muito de vê-los ir, sois amigo de enforcados, ter-lhes ódio, isso fora ruim.
Cada qual gosta, o que gosta, uns carneiro outros perdiz, vós um quarto de enforcado, e eu de um quarto do pernil.
Em gostos não há disputa dai ao demo o povo vil, que até nos gostos se mete a ser dos gostos juiz.
O querer não tem razão, que a vontade é mui sutil, e assim por onde quer entra, e talvez não quer sair.
Cada um quer, o que quer, não há nisto, que arguir, fez Deus as vontades livres, prendê-las é frenesi.
Sois amigo de enforcados, quem vo-lo pode impedir?
oxalá fôreis amigo levar o mesmo fim.
Ora vamos a farinha, foi pouca, cara, e ruim:
mas vós não sois sol, nem chuva, para haver de a produzir.
Eu confesso, que houve fome, governando vós aqui, sois mofino, e por contágio ficou mofino o Brasil.
Ser mofino não é culpa, a fortuna o quer assim:
quem é mofino consigo, cos mais há de ser feliz?
Não vos mandou governar El-Rei farinhas aqui, as carnes, nem os pescados, porém a forca isso sim.
Valha o diabo a vossa alma cabelos de colomim, mandou-vos El-Rei acaso desgovernar os quadris?
Mandou-vos acaso El-Rei com as fêmeas não dormir, senão com vosso criado, que é bomba dos vossos rins?
No mais vos levanta falsos todo este povo civil, mas isto do vosso corpo vo-lo levanta o Luís.
Mandou-vos El-Rei acaso a Sodoma, ou ao Brasil?
Se não viveis em Judá, quem vos meteu a Rabi?
Mandou-vos El-Rei que fosse vosso pajem meretriz, madrasta de vossos filhos, como dizem por aí?
Ora ide-vos co diabo, que ja não quero acudir por um Tucano, um Fanchono, um Sodoma, um vilão ruim.
DESCANTA O POETA AGORA A DESPEDIDA DESTE GOVERNADOR EM
METAPHORA DE CHULARIAS, QUE SE UZAVAM NAQUELLE TEMPO. POR DIZERSE VINHA RENDÊLLO D. JOÃO DE ALENCASTRE SEU CUNHADO.
Bangüê, que será de ti em vindo o Governador, que manda El-Rei meu Senhor para te botar daqui?
que será de ti, maldito, que assaz a ti te toca por neto de curiboca e porque este teu pepino no que é vaso feminino jamais toca, nem emboca.
Que será de ti, Bangüê, quando o sucessor vier, que hás de perder a mulher, que é fêmea de cutilque?
e se teu criado é, que o podes também levar, não te há de sofrer o mar, nem suas ondas sagradas, antes por essas porradas a porra te há de salgar.
RETRATO QUE FAZ ESTRAVAGANTEMENTE O POETA, AO MESMO GOVERNADOR
ANTONIO LUIZ DA CAMARA NA SUA DESPEDIDA.
Vá de retrato por consoantes, que e eu sou Timantes de um nariz de tucano pés de Pato.
Pelo cabelo começo a obra, que o tempo sobra para pintar a giba do camelo.
Causa-me engulho o pêlo untado, que de molhado parece, que sai sempre de mergulho.
Não pinto as faltas dos olhos baios, que versos raios nunca foram, senão a cousas altas.
Mas a fachada da sobrancelha se me assemelha a uma negra vassoura esparramada.
Nariz de embono com tal sacada, que entra na escada duas horas primeiro que seu dono.
Nariz, que fala longe do rosto, pois na Sé posto na Praça manda pôr a guarda em ala.
Membro de olfatos, mas tão quadrado, que um Rei coroado o pode ter por copa de cem pratos.
Tão temerário é o tal nariz, que por um triz não ficou cantareira de um armário.
Você perdoe, nariz nefando, que eu vou cortando, e inda fica nariz, em que se assoe.
Ao pé da altura no naso oiteiro, tem o sendeiro, o que boca nasceu, e é rasgadura.
Na gargantona membro do gosto está composto o órgão mais sutil da voz fanchona.
Vamos à giba:
mas eu que intento, se não sou vento para poder trepar lá tanto arriba?
Sempre eu insisto, que no horizonte deste alto monte foi tentar o diabo A Jesu Cristo.
Chamam-lhe autores, por falar fresco dorso burlesco, no qual fabricaverunt peccatores.
E havendo apostas, se é homem, ou fera, se assentou, que era um caracol, que traz a casa às costas.
De grande a riba, tanto se entona, que já blasona, que enjeitou ser canastra por ser giba.
Ó pico alçado, quem lá subira, para que vira, se és Etna abrasador se Alpe nevado!
Cousa pintada sempre uma cousa, pois onde pousa, sempre o vêem de bastão sempre de espada.
Dos santos passos na bruta cinta uma cruz pinta a espada o pau da cruz, e eles os braços.
Vamos voltando para a dianteira, que na traseira o cu vejo açoutado por nefando.
Se bem se infere outro fracasso, porque em tal caso só se açouta, quem canta o miserere.
Pois que seria, que eu vi vergões?;
serão chupões, que o bruxo do Ferreira lhe daria.
Seguem-se as pernas, sigam-se embora, porque eu por ora não me quero embarcar em tais cavernas.
Se bem, que assento nos meus miolos que são dous rolos de tabaco já podre, e fedorento.
Os pés são figas a mor grandeza, por cuja empresa tomaram tantos pés tantas cantigas.
Velha coitada suja figura, na arquitetura da popa de Nau nova está entalhada.
Boa viagem senhor Tucano, que para o ano vos espera a Bahia entre a bagagem.
A D. JOÃO D'ALENCASTRE TOMANDO POSSE DO SEO GOVERNO OBSEQUEA O
POETA COM AS QUEYXAS DO SEU ANTECESSOR, E CUNHADO.
Quando Deus redimiu da tirania da mão do Faraó endurecido o Povo Hebreu amado, e esclarecido.
Páscoa ficou de redenção o dia.
Páscoa de flores, dia de alegria Àquele Povo foi tão afligido O dia, em que por Deus foi redimido;
Ergo sois vós, Senhor, Deus da Bahia.
Pois mandado pela alta Majestade Nos remiu de tão triste cativeiro, Nos livrou de tão vil calamidade.
Quem pode ser senão um verdadeiro Deus, que veio estirpar desta cidade O Faraó do Povo Brasileiro.
AO MESMO GOVERNADOR CHEGANDOLHE A NOVA DA MORTE DE SUA SOGRA, A
QUEM DEYXOU CONVALECIDA DA MESMA ENFERMIDADE, DE QUE MORREO
DEPOIS.
Alto Príncipe, a quem a Parca bruta Aos estragos negando-se de horrível, Quando acredita assombro no inflexível, Em rendimento a vossos pés tributa.
Tímida a vossa vista se reputa, E o mostra nesta ação quase visível, Onde em vós o pesar, sendo possível, Reverente o rigor não executa.
Pouco faz a Bahia, se venera Humilde, e grata a vossa presidência, Se inda a morte convosco não é fera Porque admirando em vós tanta excelência Para dar-vos um golpe, astuta espera (Por temer-vos, Senhor) a vossa ausência.
LOUVA O SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA RAVASCO A HUM
SUGEYTO, QUE FOY À COSTA DA MINA E LÁ FEZ HUMA ILLUSTRE ACÇÃO.
Vindes da Mina, e só trazeis a fama, De que vosso valor fez alta empresa, Que não consiste a glória na riqueza No seu desprezo sim, que honra se chama.
O vosso zelo, que ambição se inflama, Do serviço fiel de Sua Alteza Lhe deu prudente aquela Fortaleza, Que é padrão imortal, que vos aclama.
Quanto co'a espada, e co juízo obrastes, Quanto na África, e Europa merecestes, São ações, que convosco competistes.
Não vos queixeis do pouco, que alcançastes, Pois na glória, em que a todos excedestes, Dificultais o prêmio, ao que servistes.
RESPONDE O POETA A BERNARDO VIEYRA RAVASCO PELOS MESMOS
CONSOANTES POR AQUELLA PESSOA A QUEM SE FEZ O OBSEQUIO.
Hoje é melhor ter mina, que ter fama, Que no tesouro se acha a nobre empresa, Porque onde se idolatra só riqueza, A glória dos progressos nada clama.
Ambicioso e avarento mais se inflama Pertendendo subir a nova alteza, E fragando nos bens a fortaleza, Quer estragar a honra, que se aclama.
Mas vós, que a acreditar-me tanto obrastes, Fiado, no que, é certo, merecestes, Em mérito, a que sempre competistes:
A mim me dais a glória, que alcançastes, Que como vós em tudo me excedestes, Té para me abonar hoje servistes.
CONTINUA BERNARDO VIEYRA RAVASCO NO SEU PROPOSITO PELOS MESMOS
CONSOANTES.
Nos assuntos, que dais à vossa fama, Têm as invejas mais ardente empresa, Pois se a glória do nome é mor grandeza, No vosso acende mais ativa a chama A emulação, que sempre assim se inflama, O seu incêndio exala à suma alteza, Mas esse incêndio em rara fortaleza Salamandra vos faz, Fênix aclama.
Quanto nas armas valeroso obrastes, Nas invejas prudente merecestes, Triunfando sempre nunca competistes.
Mas outra maior glória inda alcançastes;
Não há Musa, que conte, o que excedestes, Nem grandeza, que pague, o que servistes.
AO MESMO SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA PEDINDO HUMAS
OITAVAS AO POETA, EM TEMPO, EM QUE FAZIA ANNOS CONVALESCENDO
DE HUMA GRAVE DOENÇA.
Oitavas canto agora por preceito, Sem que na oitava possa diligente Louvar as excelências de um sujeito, Que pode ser em tudo o melhor Lente:
Mas como em mim não pode ser perfeito O canto, ficará menos cadente A música de Apolo, e de Talia, Que não há cantar bem sem melodia.
Se do tempo perfeito o meu compasso A compasso cantara neste canto, Não faltara à garganta agora o passo, E em passos de garganta fora espanto:
Porém se em canto nunca da mão passo Como posso afinar no canto tanto, Que me atreva a cantar vossa ciência, Sem que falte ao compasso na cadência.
Canora a voz tomara, e tão suave, Que em passos largos, e ecos repetidos Sonora requintasse aquela clave, Em que fossem meus ecos esparcidos:
Porém se o vosso nome o canto grave Eleva suspendendo os mais sentidos, Com a voz, que formar o meu alento Chegar posso tarnbém ao Firmamento.
Discutindo esse globo de ciências No mapa desta esfera Americana, Acho um todo formado de excelências Maravilha fatal em forma humana:
De modo se une, e formam as essências Que o natural as graças vos germana:
Mas que muito se vós no largo mundo Sois da graça, e ciências tão fecundo.
Se emulações tiraram Luzimentos, Que soube a natureza vincular-vos, Apolo não perdera os pensamentos, Temendo-se na empresa de louvar-vos:
Suspende a admiração os vãos intentos Ao discurso, que emprende realçar-vos, Que a Musa enfraquecida, a pena leve Nunca diz, o que sente, no que escreve.
Deixem-se os Gregos já do seu Eliano, Condenam a silêncio um Xenofonte, Não louve Alexandria Herodiano, Que na Bahia tem Timocreonte:
O qual pode ensinar Quintiliano, Camões, Terêncio, Ênio, Anacreonte, Platões, Anaximandros, e Musés, Acusilaus, Priscianos, e a Timéus.
Nos anos climatéricos glorioso Vosso nome será tão dilatado, Que suba, onde o decrépito invejoso O veja nas estrelas colocado:
Sereis novo Planeta luminoso, E Sol em nova esfera sublimado, Que, a quem o mundo singular aclama, Só descansa no céu com ele a fama.
Separar vossas partes, e Louvores Absurdo fora certo, e averiguado, Que à grandeza dos orbes superiores Ninguém pode pôr termo limitado:
Receba o infinito por maiores, Quem foi por singular ao mundo dado, Com que as partes publica deste modo, Quem de todo admirado admira o todo.
Cesse pois em louvar-vos minha pena, Que impossível será, que sem engano Presuma, que fazendo esta novena Vos possa ponderar em todo um ano:
Este novo, e felice, que hoje ordena O Céu, lograi, Senhor, sem tanto dano, Porque sejam em vós os mais gloriosos Aqueles, que vos faltam de invejosos.


Domínio Público Gov.BR


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