Crônica do viver baiano seiscentista - cidade e seus pícaros - Teresa
Índice OS SEUS DOCES EMPREGOS
RETRATA O POETA COM GRACIOSO MIMO AS MIMOSAS GRAÇAS DESTA DAMA.
OUTRA PINTURA EM SOMBRAS DESTA DAMA.
PINTA O POETA ENTRE AMOROSOS ACCIDENTES O GARBO DE THEREZA EM
OCCASIÃO, QUE LHE PASSOU PELA RUA.
REALÇA O POETA AS PERFEYÇÕES DE THEREZA NA MORTE COR DE HUMA
ENFERMIDADE, QUE PADECEO, DA QUAL AGORA CONVALECIA.
DESTAS ZOMBARIAS COM QUE O POETA COMEÇOU A GALANTEAR A ESTA DAMA
EM DESPIQUE DE SUA IRMÃA, SE PRESUMEM AGORA AMOROSAS VERAS NESTA
OBRA.
PHILOSOPHIA, E RHETORICA DIZ AQUI O POETA, QUE LEO, E COMO
RHETORICAMENTE PHILOSOPHO SEMPRE TEM QUE RESPONDER AOS CASOS
MENOS PENSADOS, COMO VEREMOS.
DESCULPA-SE ESTA DAMA EM CERTA OCCASIÃO QUE TEVE DE CONVERSAR COM
O POETA, DEPOIS DE VARIAS PETIÇÕES, COM A OBJEÇÃO FRIVOLA DE QUE NÃO
SATISFAZIA SEU DEZEJO POR SER CASADO: AO QUE ELLE RESPONDE
GRACIOSAMENTE.
PEDE O POETA ZELOS A THEREZA, E ELLA LHE RESPONDEO, QUE SERIA MUY
PONTUAL EM LHOS DAR; E ADMIRAVELMENTE O POETA DEFINE ESTE TERMO DAS
ESCOLLAS DO AMOR.
ALCANÇOU O POETA OCCASIÃO DE LOGRAR OS FAVORES DE THEREZA, E A HUM
DESMAYO, COM QUE O RECEBEO, FEZ ESTE SONETO.
PELO MESMO CASO E PELOS MESMOS CONSOANTES.
FINAL ENCARECIMENTO DE THEREZA, E SUAS DELICADAS PRENDAS.
OS SEUS DOCES EMPREGOS
10 – TERESA
Moça tam graciosa, como sem hyperbole de Musas se encarece por tam delicados versos, Foy recatada com a fidalguia, que basta a reproduzir empenhos, sem vioentar affectos. Bem o mostram as clausulas suavíssimas deste galanteyo: onde a namorada Cythara regalla os animos sem lastimar as potencias.
Manuel Pereira Rabelo, licenciado Formosa sem invenção e bela sem cerimônia RETRATA O POETA COM GRACIOSO MIMO AS MIMOSAS GRAÇAS DESTA DAMA.
Olá digo: ó vós Teresa, que vós sois bizarra em forma, formosa sem invenção, e bela sem cerimonia.
Sois linda, como há de ser, e Brites, que é tão formosa, será vossa irmã em sangue, na beleza, são histórias.
O mimo da vossa cara é tal, que crê, quem a olha, que as mais ao buril são feitas, e a vossa vazada em fôrma.
O papinho, que se enxerga por baixo da barba airosa, me está dizendo ? comei-me, só vós me dizeis, não coma.
Logo me encolho de medo talvez, talvez de vergonha, que um grito na mesa alheia põe o apetite em cóspias.
Não sei, que diga Teresa, acerca da vossa boca;
mas que mais posso dizer depois de dizer, que é vossa?
Sei dizer, que dentro nela tal riqueza se entesoura, que não sei, se são diamantes, se perolas; se outra coisa.
Bem apoda uns brancos dentes, que a aljôfar os apoda, e eu fizera o mesmo aos vossos, mas quando o sonhou aljôfar?
Não sei, que tem vossa cara de polida, e de mimosa, que as outras são como as mais, e a vossa não como as outras.
Quando a vossa cara vejo, logo me vem à memória, o melindre do jesmim, e a natazinha da rosa.
Cuido, que se vem a unha o carão, que a cara enforma, e a medo lhe emprego a vista, porque cuido, que a transtorna.
Não sou basilisco olhando, mas essa fineza vossa, como a qualquer unha cai, a qualquer vista se volta.
Por isso tomara ver-vos sempre de vidraças posta, porque vos não ofendera, quem vos fala, e quem vos olha.
A minha alma então prostrada diante da imagem vossa, não só, quem vos ama, víreis, mas também quem vos adora.
Tal novena vos fizera, que durara a vida toda, um penhor da vossa glória, por ver se vos merecia.
OUTRA PINTURA EM SOMBRAS DESTA DAMA.
1 Seres formosa, Teresa, sendo trigueira, me espanta, pois tendo beleza tanta, é sobre isso milagrosa:
como não será espantosa, se o adágio me assegura, que, quem quiser formosura, a há de ir na alvura ver, e vós sois linda mulher contra o adágio da alvura.
2 Mas o nosso adágio mente, e eu lhe acho a repugnância, de que a beleza é substância, e a alvura é acidente:
se na esfera tão luzente dessa cara prazenteira o sol como por vidreira se duplica retratado, sendo vós sol duplicado, que importa seres trigueira.
3 Eu melhor coisa não vi de olhos, do que vossos olhos, no ferir almas abrolhos, no caçar almas nebli:
cos vossos olhos aqui me sinto tão arriscado, que me dá menos cuidado, e fora a melhor partido dos vossos olhos mordido, que da vossa vista olhado.
4 Se todo o mundo pisara, não vira no mundo inteiro nem riso mais feiticeiro, nem mais agradável cara:
tinha-vos por coisa rara, notável, e prodigiosa;
mas acho, que artificiosa em vós natureza obrou pois sobre sombras pintou uma cara tão formosa.
PINTA O POETA ENTRE AMOROSOS ACCIDENTES O GARBO DE THEREZA EM
OCCASIÃO, QUE LHE PASSOU PELA RUA.
Por esta rua Teresa, e co lencinho na trunsa, apostarei, que são mortos os meus vizinhos da rua.
Apostarei, que passando de Teresa a formosura, não viu pessoa, que então não ficasse moribunda.
Apostarei, que pediam confissão por essas ruas, once ela empregava os olhos por portas, e por adufas.
Deus a Teresa perdoe, e a demais gente defunta, a Teresa os seus delitos, aos demais as suas culpas.
Porque se ela não passava airosa, galharda, e pulcra, como garbo de mais da marca, que é pior, que espada nua:
Não morreram meus vizinhos de tão suave olhadura, que era uma peste agradável de lisonjeiras angústias.
E porque se meus vizinhos quando ela dos olhos puxa, cada qual fugira então do perigo, a que se expunha:
Se fugiram das janelas, se fecharam as adufas, não foram mortos agora de ver Teresa na rua.
De nenhum eu me lastimo, antes tenho inveja suma, de que de tal morte morram tão incapazes criaturas.
Eu só quisera morrer por Teresa, e é injúria, que todos morram, e eu só por seu amor me consuma.
Que eu morra, porque me mata desdenhosa, ingrata, e dura, passe, que é morte discreta, passe, que a causa o desculpa.
Mas que morra a vizinhança não mais de porque ela punha os olhos, quando passava pela gentinha da rua!
É mui grande atrevimento, é desaforo, é injúria, que se faz a uma beleza tão soberana, e tão culta.
Eu não lhe posso sofrer, nem hei de sofrê-lo nunca, porque não é para todos morrer de uma formosura.
REALÇA O POETA AS PERFEYÇÕES DE THEREZA NA MORTE COR DE HUMA
ENFERMIDADE, QUE PADECEO, DA QUAL AGORA CONVALECIA.
Na roça os dias passados vi a Senhora Tetê tão linda, como achacosa, tão fraca, como cruel.
Não sei, que força escondida sobre os meus sentidos tem, que estando fraca a beleza, não resisto a seu poder.
Se a doença é tão formosa, como em Teresa se vê, quem não trocara a saúde pelos seus males? e quem, seja púrpura no campo, seja rubi no vergel, não trocará o encarnado por tão linda palidez?
As flores da laranjeira vendo assentar-se-lhe ao pé, todas ao chão se arrojaram desesperadas de a ver.
Uma colheu ela as mãos;
outras pisou com seu pés, e qual era a mão, a flor, não soube enxergar ninguém.
Fez-se de flores um monte a par da linda Tetê, que por deixá-las luzir, a tratavam de esconder.
De todo o monte de flores, um ramilhete se fez elas ao pé eram flores e em cima era flor Tetê.
Os pássaros lhe cantaram o seu lá sol fá mi ré, crendo, que segunda aurora lhes tornava a amanhecer.
A fonte parou seu curso, porque a fonte, nem ninguém pode ser corrente à vista de uma Dama tão cortês:
Eu quis descobrir-lhe o amor que a seus olhos consagrei, como em aras de beleza, onde se holocausta a fé.
Fui curto, não me atrevi, temi, emudeci, calei;
sempre amor difere mal, a quem não se explica bem.
De mim me queixo somente, e do adágio português, que diz, que o calar não dana;
e eu perdi, porque calei.
Se os Malmequeres do campo por rainha aquela vez a aclamaram, e elegeram pela cor, e o mal me quer:
Eu dessa eleição apelo, e fiado em minha fé, dará volta o mal me queres, e parará em querer bem.
DESTAS ZOMBARIAS COM QUE O POETA COMEÇOU A GALANTEAR A ESTA DAMA
EM DESPIQUE DE SUA IRMÃA, SE PRESUMEM AGORA AMOROSAS VERAS NESTA
OBRA.
1 Tetê sempre desabrida mostra um dia entranhas gratas, pois sabem todos, que matas, saibam que podes dar vida:
sendo tu minha homicida, com morte tão desumana dás a entender, que és humana;
porém se a vida me dás, então, Tetê, mostrarás, que és divina, e soberana.
2 O dar morte é de mulheres propensas a crueldades, dar vida é de divindades, com soberanos poderes:
dando-me tu desprazeres, a morte, a dor, e o pesar hás de ficar com desar, de que em ti tais males caibam, e te está melhor, que saibam, que tens mil vidas, que dar.
3 Deixai-me viver não mais, que por vossa, e minha glória, vós tereis nossa vanglória, e eu folgarei, que a tenhais:
e se a vida me não dais, porque enfada, quem adora, não temais, minha Senhora, que eu sei da vossa profia, que dando-me cada dia, ma tirareis cada hora!
4 Vida, que tão pouco dura, liberalmente se dá, vosso enfado a tirará, se a de vossa formosura:
e porque fique segura morte tão apetecida, dai-ma vós tão escondida, que eu a não sinta chegar, porque o gosto de acabar não me torne a dar a vida.
PHILOSOPHIA, E RHETORICA DIZ AQUI O POETA, QUE LEO, E COMO
RHETORICAMENTE PHILOSOPHO SEMPRE TEM QUE RESPONDER AOS CASOS
MENOS PENSADOS, COMO VEREMOS.
Que todo o bem se faria dissestes, falsa Tetê, o todo eu o perdoara, basta-me parte do bem.
Quem não merece o bem todo, com parte se satisfaz, todo o bem, ou parte dele, pouco, ou muito é mesmo bem.
Na boa filosofia, e na retórica sei, e li, que entre pouco, e muito jamais distinção se fez Pouco mal, e muito mal o mesmo mal vem a ser, com que o mesmo bem será pouco bem, e muito bem.
Distingue-se em quantidade, não na espécie, nem no ser, na substância é sempre o mesmo, se em quantidade não é.
Basta ser da vossa mão, para ser mui grande bem, se é pouco, estima-se muito, e em muito, se muito é.
Com pouco um pobre se alegra, e quem tão pobre se vê, Tetê, dos vossos favores, se alegrará com qualquer.
Mas vós sois uma traidora, falsa, fingida, infiel, aleivosa, e fementida, sobretudo sois mulher.
Prometeis mui largamente, no dar vos arrependeis, como se fora pecado o dar sobre o prometer.
O arrepender é virtude, mas se acaso o arrepender é de dar o prometido, vício, e vilania é.
Mas isso é para os ditosos;
isso é para aqueles, que vos enganam com embustes, coisa, que eu não sei fazer.
Praza a Amor, Tetê ingrata, que tanto embuste encontreis, que vos lembrem as verdades, que enjeitais em minha fé.
Praza a Amor, que os desenganos vos cheguem a estado, que me vingue em vossos pesares de vossos termos cruéis.
A Deus, Tetê, que eu me vou para Sergipe d'El-Rei, a viver de me ausentar, e a morrer de vos não ver.
DESCULPA-SE ESTA DAMA EM CERTA OCCASIÃO QUE TEVE DE CONVERSAR
COM O POETA, DEPOIS DE VARIAS PETIÇÕES, COM A OBJEÇÃO FRIVOLA DE QUE
NÃO SATISFAZIA SEU DEZEJO POR SER CASADO: AO QUE ELLE RESPONDE
RACIOSAMENTE.
1 Graças a Deus, que logrei, Teresa, uma ocasião da vossa conversação, por que tanto suspirei:
e posto que me ausentei de vós tão desenganado, pois me enjeitas por casado, confio em vosso primor, que há de alcançar-vos Amor ou casado, ou descasado.
2 Coração tão inimigo mostrais ao casado ser, que às claras venho a entender que quereis casar comigo:
não se perca um bom amigo por tão leve impedimento:
casemos, se vos contento, e segunda vez casado se me virdes açoutado, isso mesmo é casamento.
3 Se a Justiça me açoutar por casar segunda vez, açoutado, em que me pes, vos hei de alegre gozar:
quero as ruas passear arrastando mil baraços entre os alcaides madraços, e o algoz após de mim antes, que de um serafim perder os doces abraços.
4 E se por disciplinante for tido de toda a gente, que mau é ser penitente, para ser santo bribante:
e se o algoz falseante me puser por mais rigor alguma marca ao traidor por duas vezes casado, dirão, que é vosso estreado homem de marca maior.
5 Enfim que de qualquer sorte, que vós me queirais a mim, vos hei de dar sempre o sim, e um sim que dure até a morte:
no maior mal, e mais forte, ao mais infame desdouro hei de desprezar o agouro, porque sendo vós tão grata sobre ser moça de prata sois Teresa um pino de ouro.
PEDE O POETA ZELOS A THEREZA, E ELLA LHE RESPONDEO, QUE SERIA MUY
PONTUAL EM LHOS DAR; E ADMIRAVELMENTE O POETA DEFINE ESTE TERMO
DAS ESCOLLAS DO AMOR.
Os zelos, minha Teresa, não sabe entender ninguém, quem os não tem, esse os dá, e pede-os, quem os não quer.
Eu chego a pedir-vos zelos, e não quero, que mos deis, mas vós mos dais, e os não tendes, quem zelos há de entender?
Pela razão natural ninguém dá, o que não tem, e pela mesma razão ninguém pede, o que não quer.
E assim enleia o juízo, que os não tenhais, e mos deis, que eu, que os peço, os não quisera, que é pedir, e não querer.
E suposta esta advertência, vos peço, Teresa, que, quando zelos vos pedir, mais que os peça, mos não deis.
Porque eu peço, o que não quero, e este pedir, é querer, não que vós mos concedais, senão sim que mos negueis.
Como amor é entendimento, e como amar é entender, vós como amante entendida, vós, que como amais, sabeis.
Deveis das minhas palavras tomar discreta, e cortês não aquilo, que elas dizem, mas o que querem dizer.
Não entendais, que vos peço ciúmes, pelos querer, antes sim pelos deixar vos peço uma, e outra vez.
Pedir zelos é queixar-me, e se eu amante, e fiel, com finezas vos enfado, com queixas que vos farei?
Teresa eu não peço zelos, que quem tão mofino é, que fino vos desagrada, triste que há de parecer?
A beleza, que se adora, tão privilegiada é, que se há de mister licença para sentir seus desdéns.
ALCANÇOU O POETA OCCASIÃO DE LOGRAR OS FAVORES DE THEREZA, E A
HUM DESMAYO, COM QUE O RECEBEO, FEZ ESTE SONETO.
Desmaiastes, meu bem, quando uma vida Recuperais no logro da ventura, Mostrando, que é delito à formosura Deixar de amor a posse tão valida.
Parece-vos, amores, que corrida Vos mostrasse a fineza, se a doçura Não deixara o carinho da brandura Na confusão do gosto suspendida.
Ora não, minha vida, não consiste O melindre da Dama nos desmaios, Com que agora a vergonha vos assiste.
Que Amor só vive, quando em seus ensaios Ao incêndio do gosto se resiste, E aos fulgores do sol fomenta os raios.
PELO MESMO CASO E PELOS MESMOS CONSOANTES.
Se a gostos tiras, Clóris, uma vida, Que de amor teve o logro por ventura, Por que trocas em sombra a formosura, Que foi no mundo rodo tão valida?
GIória, que passa tanto de corrida, Onde apenas se vê breve doçura, Acredita o melindre da brandura Nos extremos, que a deixam suspendida.
Não desmaies, meus olhos, pois consiste O gosto em suspender feros desmaios, Que dão tormento, a quem amante assiste.
São da morte cruel tristes ensaios, E o coração, que adore, não resiste, Sendo d'alma em rigor funestos raios.
FINAL ENCARECIMENTO DE THEREZA, E SUAS DELICADAS PRENDAS.
1 Teresa, muito me prezo de vos amar, e querer, porque sei, que sois mulher de conta, medida, e peso:
as demais por vós desprezo, quer belas, quer entendidas, e entre as mais presumidas, juro-vos, e passa assi, que nunca beleza vi, que mais me enchesse as medidas.
2 Se da bela Felizarda a formosura contemplo, não lhe posso achar exemplo senão no garbo da Anarda:
em louvar-vos se acobarda o discurso mais valente, e inda no mesmo acidente de iluminados desmaios ao manancial dos raios vos considero eminente.
Texto-fonte: Obra Poética, de Gregório de Matos,
3ª edição, Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.