Crônica do viver baiano seiscentista - cidade e seus pícaros - opúsculo de Pedro Alz. da Neyva
Índice OPÚSCULO DE PEDRO ALZ. DA NEYVA
SENTOU ESTE PRAÇA PARA SUBIR A CAPITÃO, NO TEMPO, EM QUE ERAM
TRIENAIS: E SENDO NOMEADO PARA HUMA EXPEDIÇÃO MARITIMA, PROMETTEO
DE ALVIÇARAS HUM CHAPEO, E OITO PATACAS, A QUEM O LIVRASSE.
LOUCURAS QUE FAZIA ÊSTE SUGEYTO COM HUM CAVALLO RUÇO, QUE LHE
COMPROU O THIO: E MORTE DO MESMO CAVALLO.
ANNA MARIA ERA UMA DONZELLA NOBRE, E RICA, QUE VEIO DA INDIA SENDO
SOLICITADA DOS MELHORES DA TERRA PARA DESPOSORIOS, EMPRENDEO FR.
THOMAZ CASALLA COM O DITO, E O CONSEGUIO.
AO MESMO ASSUNTO.
CASADO, E RICO SE EMBARCOU PARA PORTUGAL A COMPRAR NOBREZA; E O
POETA LHE FAZ AS DESPEDIDAS PROFETIZANDO, O QUE REALMENTE
SUCCEDEO.
AO MESMO QUE CHEGANDO À BAHIA COM HÁBITO, E FORO FALSO ENTRA
DESVANECIDAMENTE CONFIADO A TRATAR OS HOMENS NOBRES POR TERCEIRA
PESSOA.
DEDICA HUM ESTUDANTE HUMAS CONCLUZÕES AO DITO COM O BRAZÃO DOS
NEYVAS NA FAXADA: E IMPACIENTE O POETA DO DESAFORO ROMPE NESTAS
QUEIXAS.
AO MESMO RETIRANDO-SE HOMIZIADO PARA O CARMO, POR TER NOTICIA DE
HUM DECRETO, QUE VEYO DE SUA MAJESTADE AO DEZ.OR. ANTONIO
RODRIGUES BANHA, PARA PRENDER, OS QUE HAVIÃO NA CIDADE COM HABITOS, E FOROS FALSOS.
AO MERGULHÃO CUNHADO DESTE SUGEYTO, QUE ENGANOU AO POETA COM
HUMA PROPINA DE COBRE INDO TOMAR O GRAO DE LECENCIADO.
A HUMA DAMA QUE MANDOU PEDIR AO POETA O TESTAMENTO, QUE ELLE TINHA
FEYTO AO CAVALLO DE PEDRALVES.
14 – OPÚSCULO DE PEDRO ALZ. DA NEYVA
Casado e rico se embarcou para Portugal a comprar nobreza.
Manuel Pereira Rabelo, licenciado E se o fumo da Bahia a Pedro fidalgo fez, fidalgo é da cheminez dos Padres da companhia SENTOU ESTE PRAÇA PARA SUBIR A CAPITÃO, NO TEMPO, EM QUE ERAM
TRIENAIS: E SENDO NOMEADO PARA HUMA EXPEDIÇÃO MARITIMA, PROMETTEO
DE ALVIÇARAS HUM CHAPEO, E OITO PATACAS, A QUEM O LIVRASSE.
1 Deixais, Pedro, o ser chatim, por quererdes ser soldado, e quando sois nomeado dizeis, que não, e que sim:
não fora melhor, rocim, conservar-vos charelete?
quem a soldado vos mete?
ide, não sejais magano, a despir d'El-Rei o pano, e metei-vos gurumete.
2 De alvíssaras um chapéu com oito patacas dais não vedes, que se ficais, heis de ser da mofa o réu?
não conheceis isto, incréu?
mas que pode conhecer um presumido sem ter mais honras, que a cabeleira, onde se estriba a poeira de seu vaníssimo ser.
LOUCURAS QUE FAZIA ÊSTE SUGEYTO COM HUM CAVALLO RUÇO, QUE LHE
COMPROU O THIO: E MORTE DO MESMO CAVALLO.
1 Pedralves não há alcançá-lo, porque se não cabe dele, se um cavalo tem a ele, ou se ele tem um cavalo:
mandou o tio comprá-lo, por ver o seu Benjamim na charola do Rolim;
mas tendo o rocim comprado, então ficou cavalgado o tio mais o rocim.
2 E porque era o tal sendeiro um pouco acavaleirado, se lhe pôs casa de estado, dous pajens, e um escudeiro:
item papel, e tinteiro, confessor, e capelão, donde veio ocasião, de todo o povo malvado dizer, que o ruço rodado morrera mui bom cristão.
3 Pedralves tão grande asnia jura, e firma, que não disse, porém se era parvoíce, diria, mais que diria:
que outros lhe ouviu a Bahia tão gordas, tão bem dispostas, que já à guitarra andam postas, donde chegam a julgá-lo mais besta, que o seu cavalo, por trazê-lo sempre às costas.
4 Por não tomar algum vício ia ele, mais o rocim ao campo roer capim, fingindo, que ao exercício:
por vê-lo em tão alto ofício ia com grande alvoroço a marotagem num troço, dizendo a puro intervalo, será homem de cavalo, quem foi de cavalo moço.
5 Uma tarde, em que corria, ei-lo pelas ancas vai;
que muito, se também cai qualquer Santo no seu dia:
foi tão grande a correria do rocim pelo escampado, que de um monte alcantilado rodou, por jogar de lombo, com que o ruço que era pombo, de então foi ruço rodado.
6 Acudiu Pedro à burrada, e chegando ao arruído, vendo o cavalo caído, ficou solta desmaiada:
mas a gente ali chegada lhe disse: ó Senhor Baulio, trunfe com valor, e brio, que se este perdido está, outro cavalo achará na baralha do seu tio.
7 Ele então descendo a vala, e dando avante dous passos tomou o cavalo em braços, e fez-lhe esta branda fala:
meu ruço, minha cavala, meu carinho, e meu amor pois fico em tão grande dor órfão tão desamparado, e morreis de mal curado, ordenai-me um curador.
8 Testai consigo perene, que um testamento cerrado por vós, e por mim ditado por força há de ser solene:
não queirais, que vos condene algum Platônico astuto, de que ao pagar do tributo (podendo com todo alinho falecer como um anjinho)
acabastes como um bruto.
9 O rocim, que era entendido pouco menos, que seu amo, em ouvindo este reclamo surgiu, dando um ai sentido:
deu um, deu outro gemido, e depois de escoucinhar disse, inda estou de vagar, por mais que a morte não queira, que é acabar a carreira, não de carreira acabar.
10 Isto disse o rocinante, e logo para o curar tratam de o desencovar um, e outro circunstante:
com cordas, e cabrestante, e enxadas para cavá-lo;
não podendo dar-lhe abalo, todo o trabalho se perde, porque era cavalo verde, sendo ruço o tal cavalo.
11 Mas um Coadjutor bisonho disse, tal dono, tal gado, que o cavalo é tão pesado, como o dono é enfadonho:
Pedralves como um medronho ficou, e já de afrontado desconfiou como honrado do Coadjutor malhadeiro, vendo estar o seu sendeiro de cura desconfiado.
12 Eis que com força, e arte a empuxões de cabrestante foi sacado o rocinante da barroca a outra parte:
Pedralves num baluarte se pôs, e a gente deteve, dizendo em prática breve, vem-me alguém puxar a mim?
pois é, que este meu rocim nem Deus quero, que mo leve.
13 Aqui o ruço há de jazer conforme o seu natural, que é filósofo moral, e no campo há de morrer:
quem teve, que escarnecer!;
e quem teve, que zombar!
todos enfim a puxar deram todo aquele dia co ruço na estribaria, e trataram de curar.
14 Houve junta de alveitares, ou Médicos de jumentos carregados de instrumentos balestilhas, e azeares:
item seringas a pares, ungüentos, mechas, e talos, e simples para formá-los tudo remédios inanes, porque só pós de Joanes é remédio de cavalos.
15 Curou-se enfim o Frisão pelos mais exprimentados homens bem intencionados pela primeira intenção:
mas sobrevindo um febrão de implicadas qualidades, em tantas calamidades quis Deus, que não lhe aproveite nem das Brotas o azeite, nem o vinagre dos Frades.
16 Pedralves num acidente fiado em seu privilégio mandou pedir ao Colégio um osso do Sol do Oriente:
mas sendo ao Reitor presente a casta do agonizante, dizei (disse) a esse bargante, que o Santo a curar não presta o mal, que ele tem de besta, nem o do seu rocinante.
17 Com que o ruço a piorar, as Relíquias a não vir, Pedralves a se afligir, e seu tio a se enfadar:
o dinheiro a se gastar, e a casa a se aborrecer, tanto veio a suceder, que com pesar não pequeno em chegando ao quatrozeno o ruço veio a morrer.
18 Assistir-lhe na agonia vieram, sem que uma manque, todas as bestas do tanque dos Padres da Companhia:
e uma, que cantar sabia, uma lição lhe cantou, e quando ao verso chegou, onde diz: "andante me"
estirou o ruço um pé, e dando um zurro acabou.
19 Ao tratar do enterramento houve alguma dilação, porque Pedralves então chorava como um jumento:
mas aberto o testamento perante um, e outro ouvinte, se achou, que morrera aos vinte, e testara aos vinte e três de tal ano, e de tal mês, e que dizia o seguinte.
20 Meu corpo vá amortalhado no hábito de cacoetes, que tem meu amo entre asnetes de falar agongorado:
não o coma adro sagrado, que um monturo bastará, sendo que tão magro está de Hipócrates, e Avicenas, que vou receando apenas para um bocado haverá.
21 Item ao Senhor Marquês, a quem o céu há juntado as ferezas de soldado os carinhos de cortês:
pela mercê, que me fez, de com tão justa razão suspender de Capitão meu Amo, que fica em calma, lhe peço, pela sua alma, que o suspenda de asneirão.
22 Meu Amo instituo enfim por meu herdeiro forçado, e lhe deixo de contado a manjedoura, e capim:
item lhe deixo o selim, que me pôs de sarna gafo, e pois já morro, e abafo, o mou bocado lhe deixo, porque veja queixo a queixo, o que vai de bafo a bafo.
ANNA MARIA ERA UMA DONZELLA NOBRE, E RICA, QUE VEIO DA INDIA SENDO
SOLICITADA DOS MELHORES DA TERRA PARA DESPOSORIOS, EMPRENDEO FR.
THOMAZ CASALLA COM O DITO, E O CONSEGUIO.
Sete anos a Nobreza da Bahia Serviu a uma Pastora Indiana, e bela, Porém serviu a Índia, e não a ela, Que à India só por prêmio pertendia.
Mil dias na esperança de um só dia Passava contentando-se com vê-la:
Mas Fr. Tomás usando de cautela, Deu-lhe o vilão, quitou-lhe a fidalguia.
Vendo o Brasil, que por tão sujos modos Se lhe usurpara a sue Dona Elvira, Quase a golpes de um maço, e de uma goiva:
Logo se arrependeram de amar todos, E qualquer mais amara, se não fora Para tão limpo amor tão suja Noiva.
AO MESMO ASSUNTO.
MOTE
Lá vem Maria, mais Ana, e Pedro no meio delas;
ó Pedro, quem te roubara a rica Noiva, que levas!
1 Apareceu na Bahia Pedro, que tudo enfeitiça, Moço da cavalariça enxertado em fidalguia:
teve fortuna, e valia tão alta, e tão soberana, que o tio Milão se alhana, e por serem tão manaças lhe cantarão pelas praças Lá vem Maria, mais Ana 2 Cantou-se-lhe em profecia, porque correndo alguns anos veio casar por enganos com Madama Ana Maria:
por força de cantoria se meteu Perico entre elas, ou foi força das estrelas, pois hoje ao mesmo compás garganteia Fr. Tomás "E Pedro no meio delas".
3 Um casamento ao revés Fr. Tomás somente o faz, e eu raivo de Fr. Tomás, que tal casamento fez:
quando considero os três Noivo besta, e Noiva rara, e o Frade, que os maniatara, metido entre os foliões, canto invejando os dobrões, Ó Pedro, quem te roubara!
4 Porém depondo arrogância da paixão, e do interesse, só Pedro a Noiva merece, que a más Moros mas ganância:
não tenhas, Pedro, jactância, nem tal dote à sorte devas, pois tanto no bafo entrevas, que se dá em to prefumar, em pobre há de vir a dar A rica Noiva, que levas.
CASADO, E RICO SE EMBARCOU PARA PORTUGAL A COMPRAR NOBREZA; E O
POETA LHE FAZ AS DESPEDIDAS PROFETIZANDO, O QUE REALMENTE
SUCCEDEO.
Adeus, Amigo Pedralves, que vos partistes daqui para geral desconsolo deste Estado do Brasil.
Partistes-vos, e oxalá, que então vos vira partir, que sempre um quarto tomara a libra por dous ceitis, Pusera o quarto em salmoura, e no fumeiro o pernil, o pé não: porque me dizem, que vos fede o escarpim.
Guardara o quarto de sorte, que se vos pudera unir na surreição dos ausentes, quando tornásseis aqui.
Mas vós não fostes partido, mente, quem tal cousa diz, antes fostes muito inteiro, e sem se vos dar de mim!
Saüdades não levastes, deixaste-las isso sim, porque de todo este povo éreis o folgar, e o rir.
Desenfado dos rapazes das Moças o perrexil, o burro da vossa casa, e da cidade o rocim.
Lá ides por esses mares, que são vidraças de anil, semeando de asnidades toda a margem de Zafir.
O Piloto, e à companha, apostarei, que já diz, que vai muito arrependido de irdes no seu camarim.
O homem se vê, e deseja, e desesperado enfim, aceita, que a Nau se perca por vos ver fora de si.
Deseja ver-vos lutando sobre o elemento sutil, onde um tubarão vos parta, vos morda um Darimdarim.
Deseja, que os peixes todos tomem acordo entre si de vos fazer nos seus buchos sepultura portatil.
Sente, que em amanhecendo a fina força há de ouvir os bons dias de uma boca, cujo bafo é tão ruim.
Sente, que não empregando nem um só maravedi em queijos frescos, e a eles vos tresanda o chambaril.
Mas vos heis de ir a Lisboa apesar do vilão ruim.
El-Rei vos há de fazer com mil mercês honras mil.
Os cavalheiros da Corte trazendo-vos junto a si, vos hão de dar como uns doudos piparotes no nariz.
E como vós sois doente de fidalgos frenesis, por ficar enfidalgado toda a mofa heis de rustir.
O que trareis de vestidos!
uns assim, outros assim:
sereis o molde das modas, e o modelo dos Turins.
À conta disto me lembra, quando em Marapé vos vi vestido de pimentão com fundos de flor de Lis.
Em verdade vos afirmo, que então vos supus, e cri surrada tapeçaria, tisnado guadamecim.
O que direis de mentiras, quando tornares aqui!
amizades de um Visconde, favores de um Conde vis, Valido de um tal Ministro, Cabido de um tal Juiz, e até do mesmo Cabido leiguíssimo Mandarim.
El-Rei me fez mil favores:
mil favores? mais de mil;
bem fez, com que lá ficasse, mas não o pude servir.
Quem casou, como eu casei com Mulher tão senhoril, é cativo de um Terreiro, não me posso dividir.
D'EI-Rei é minha cabeça, porém o corpo gentil todo é de minha Mulher, não tem remédio, hei de me ir.
Achou-me razão El-Rei e na hora de partir, pondo-me a mão na cabeça me disse, Perico, há de ir.
Ide-vos, Perico, embora, ide-vos para o Brasil, que, quem vos tirou da Corte, não vos tirará daqui.
E pondo em seu peito a mão, eu, que a firmeza entendi, chorei por agradecê-la lágrimas de mil em mil.
Botei pelo Paço fora meti-me no bergantim, cheguei a bordo, embarquei-me, levamos ferro, e parti.
Os cavalheiros da Corte choraram tanto por mim, como por uma comenda Santiago ou de Avis.
Ontem avistamos terra, e quando na barra vi coqueiros, e bananeiras, disse comigo: Brasil.
AO MESMO QUE CHEGANDO À BAHIA COM HÁBITO, E FORO FALSO ENTRA
DESVANECIDAMENTE CONFIADO A TRATAR OS HOMENS NOBRES POR
TERCEIRA PESSOA.
1 Sejais, Pedralves, bem-vindo, e crede-me, meu amigo, que tudo, o que aqui vos digo, ora é zombando, ora rindo:
aqui me andam perseguindo, que faça à vossa chegada alguma sátira honrada, que este Povo é tão sisudo, que quer, que eu vos diga tudo, mas eu não vos digo nada.
2 Se El-Rei vos enfidalgou (como me deram por novas)
acabaram-se-me as trovas, e tudo enfim se acabou:
mas não falta, quem notou, que indo-vos fidalgo honrado, vir com foro era escusado;
porém logo se deu fé, que éreis fidalgo de pé, e agora estais assentado.
3 Qualquer Bispo da Turquia sem igreja é Bispo fiel, vós sois fidalgo de anel, fidalgo sem fidalguia:
os fidalgos da Bahia são fidalgos de parolas, vós a puras carambolas por vós, por vossa Mulher, porque o quis El-Rei fazer, sois fidalgo de três solas.
4 Ser fidalgo na Bahia é suma felicidade, porque há de arder a cidade numa, e noutra cortesia:
heis de mamar Senhoria, quer vos dê, quer não pesar:
porque se um triste alveitar a mama, sendo ancião, vós tão novo, e simplalhão como a não heis de mamar?
5 Está toda a meninice desta terra a esperar, que saiais a passear, e digais muita parvoíce:
já a mim um homem me disse, que vos ouvira umas poucas, mas vós a palavras loucas (se quereis lograr sossegos)
heis de trazer olhos cegos, tanto como orelhas moucas.
6 Chegais de Lisboa enfim, e não quero de vós mais, senão só que me digais, como vindes de escarpim:
que este povo é tão ruim, tão jocoso, e tão burlesco, que por vos pôr ao tudesco, tendo vós cara de nata, levantam, que a vossa pata tem dedo de queijo fresco.
7 Triste da vossa parceira, que se vos muda talvez a cabeça para os pés, e os pés para a cabeceira, sempre o presunto lhe cheira, sempre o bafo cheira mal, e contra artifício tal, como lhe não dais proveito fedendo a torto, e a direito, vos admite ao natural.
8 Ela levada do amor diz (porque enfim vos quer bem)
bom sangue o Fidalgo tem, mas tem mui velhaco humor:
vós obrigado ao primor, de quem tão firme vos ama, que em tal caçoula se inflama, ficais por sentença dada vós apertando a privada, ela apartada da cama.
9 Tratais a este e a aquele por ele de puro honrado, que o Senhor bem inclinado em lugar de um vós dá um ele:
mas que o chantre se desvele em visitar-vos cada hora, e lhe digais, venha embora Chantre, folga de o ver bom, isso é ser sem tom, nem som asneirão de foz em fora.
10 Que dissestes me constou, a um Capitão de alto som, folgo muito de o ver bom, e ele os olhos vos fincou:
de boa então escapou, Pedro, o vosso cabeção, porque se vos lança a mão, creio eu, é para crer, vos havia de dizer, folgo de o ver asneirão.
11 Diz ele, que em caso tal outra tal vos respondera, e mãos, e pés vos pusera a não vir o General:
vós, Pedro, não fazeis mal, porque sois enfim fidalgo, mas sejais algo, o no algo, têm todos por certo agouro, que se vos foram ao couro, heis de correr como um galgo.
12 Temo, vos há de matar este mal de fidalguia, por falta de uma sangria, que ninguém vos manda dar:
importa logo sangrar, e carregar sobre tudo, porque o sangue linhajudo fora da imaginação fará que fiqueis vilão, mas heis de ficar sisudo.
DEDICA HUM ESTUDANTE HUMAS CONCLUZÕES AO DITO COM O BRAZÃO DOS
NEYVAS NA FAXADA: E IMPACIENTE O POETA DO DESAFORO ROMPE NESTAS
QUEIXAS.
1 Digam, os que argumentaram, qual mais desaforo indica, quem as conclusões dedica, ou a quem se dedicaram:
se as torres, que lhe gravaram com tanta magnificência não são da sua ascendência, posto que dos Neivas são, concedo-lhe a conclusão, mas nego-lhe a conseqüência.
2 Concedo, que aquele escudo com gravados torreões seja dos Neivas brasões, mas não de um Neiva orelhudo:
que homem pode haver sisudo, que vendo aquele jumento não conclua o argumento, de que os seus timbres, e duelos não são torres, são castelos, porém castelos de vento.
3 A um cavalheiro vilão estas armas lhe hão de dar, sobre escudo verde-mar uma aguilhada, e um podão:
item porque lá em Milão morando na casa alheia foi Lacaio de libréia, passa-aqui de rocinante, lhe dão em campo brilhante uma almofaça, e uma peia.
4 Pelo torreão guerreiro dão-lhe em jurídica forma, na praia uma plaraforma, onde seja aguardenteiro:
e porque vai a escudeiro por casar co'a Indiana com dote de porcelana, e enxoval de canequim, lhe dão por armas enfim um chuço, uma partasana.
5 Desaforo tão insano sofrerão outras nações, que dedique as conclusões um magano a outro magano?
que sendo costume lhano oferecer, e dedicar ao Prelado, ao Titular, ao Príncipe, ao Monarca, se veja uma suja alparca em tão subido espaldar?
6 Mas enfim, que lhe importou ver-se assim entronizado, se tão vil é o dedicado, como quem lhe dedicou?
tudo o diabo levou, a honra, a dedicatória a honra tornou-se escória, a dedicatória em mijo:
o Brasil se ri de riso, aqui paz, e depois glória.
AO MESMO RETIRANDO-SE HOMIZIADO PARA O CARMO, POR TER NOTICIA DE
HUM DECRETO, QUE VEYO DE SUA MAJESTADE AO DEZ.OR. ANTONIO
RODRIGUES BANHA, PARA PRENDER, OS QUE HAVIÃO NA CIDADE COM
HABITOS, E FOROS FALSOS.
1 Treme a Pedro a passarinha, e tanto teme a prisão, que o cu lhe cheira a murrão, e a boca fede a caquinha:
soube, que o decreto vinha, e antes que o fossem prender, fugiu logo a bom correr, pois quando o iam buscar, tocando o Banha a marchar, tocou ele a recolher.
2 Pedralves com falso foro se vê na realidade, o foro com falsidade, com verdade o desaforo:
que agora reze no coro, é justo, e bem permitido, e porque tem merecido por serviços ao selim não ser do campo rocim, agora está recolhido.
3 Que se despache um caixeiro criado na mercancia com foro de fidalguia sem nobreza de Escudeiro!
e que a poder de dinheiro, e papéis falsificados se vejam entronizados tanto mecânico vil, que na ordem mercantil são criados dos criados!
4 O Fidalgo esclarecido traz de longe a descendência:
mas Fidalgo de influência sem ter solar conhecido, é Fidalgo introduzido enfronhado em fidalguia e se o fumo da Bahia a Pedro Fidalgo fez, fidalgo é da cheminez dos Padres da companhia.
5 Ser perfilhado em Milão, e fidalgo em Portugal, ter Mulher Oriental, e cunhado Mergulhão, haver sido Capitão, trazer uma cruz ao lado, haver comido um morgado, e a fidalgo haver subido, se contudo está caído, é já fidalgo estirado.
6 Quem quer ser bem despachado a seu Rei serviços faz, a vida entre as bolas traz como valente soldado:
mas por serviço comprado, com as premissas a pares, e mentiras como os mares faz ser caso lastimoso, que, o que deu honra a um Barroso, o merecesse um Cazares.
7 Quando hábito se traz co dinheiro poderoso, torne outra vez Barroso, e venha o Doutor Gilvaz:
também nesta conta jaz Fuão Maciel Teixeira, Manuel Dias Filgueira, o Marruás do sertão, e o Lobato patifão marido da confeiteira.
8 Também vai a Escudeiro Marinículas da praia, porque para isso se ensaia a fiúza do dinheiro:
por direito um canastreiro é homenzarrão de chapa, mas a cruz, que anda em tal capa, o faz com maior desonra sambenitado da honra porque não é cruz, é aspa.
9 Que maganos desta laia patifes de toda a sorte subam ser homens de porte, tanto que o pé põem na praia:
ver eu isto me desmaia, e me faz cair por terra, que quatro vilões da serra tenham tão propícia estrela, que sendo vis em Cabrela são fidalgos nesta terra.
10 Esta mãe universal, esta célebre Bahia, que a seus peitos toma, e cria, os que enjeita Portugal:
que ao que nasceu natural seu Filhote em tenra idade o mate à necessidade, porque lhe tem ódio interno!
Oh praza a Deus, que no inferno se subverta esta cidade.
AO MERGULHÃO CUNHADO DESTE SUGEYTO, QUE ENGANOU AO POETA COM
HUMA PROPINA DE COBRE INDO TOMAR O GRAO DE LECENCIADO.
1 Entre os demais Doutorandos, que vieram à função, veio o grande Mergulhão da casa dos Mergulhandos:
fidalgos tão miserandos de tronco, e solar tão pobre, que, porque a pena lhes dobre, digo, por mais que os acatem, que são fidalgos, que batem moeda, porém de cobre.
2 Achava-me eu na função, e a puro calar, e ver, não livrei de ali fazer terreiro de patacão:
porque vindo o Mergulhão com a propina, que deu, m'arremessou no chapéu, e eu do peso me queimei, fui logo vê-la, e achei, que o dinheiro era guinéu.
3 Enlutado um patacão de uma resina maldita mais negra, que a minha dita, e mais vil, que o Mergulhão:
que causa, ou que ocasião teria para enlutar-se, não pode conjeturar-se, se não é, porque morreu o pejo, de quem a deu, a quem deve venerar-se.
4 Quem se gradua em Sofia, e dá propina de pobre, merece um anel de cobre com pedra de cantaria:
por capelo merecia um vexame, ou reprensão, que o cure de patifão, e em cabeça tão patifa uns cadilhos de alcatifa por borla do chapeirão.
5 Há caso de mais abalo, que um patife, um mariola desse em público uma esmola, a quem podia comprá-lo?
e vendo, que sofro, e calo, lhe dê tão pouco desvelo, que não venha agradecê-lo, a quem comprá-lo podia não só, mas inda em Sofia podia também vendê-lo?
6 Vós, meu Doutor judiciário, a quem dedico este pleito, não façais caso do feito, tanto que o façais sumário:
ele pecou de falsário, mas sendo falsário, e mau, e por casta vaganau, se hão de dar-lhe em relação, carocha de papelão, eu cá lha darei de pau.
A HUMA DAMA QUE MANDOU PEDIR AO POETA O TESTAMENTO, QUE ELLE TINHA
FEYTO AO CAVALLO DE PEDRALVES.
Minha Reina estou absorto, de que com tão grande abalo busqueis um morto cavalo, fugindo de um perro morto:
e assim daqui vos exorto, que da idéia se vos borre ler versos, em que discorre um Poeta inveterado, pois um cavalo enterrado é cousa, que já não corre.
Texto-fonte: Obra Poética, de Gregório de Matos,
3ª edição, Editora Record,Rio de Janeiro, 1992.