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Textos para uso geral de domínio público.

Crônica do viver baiano seiscentista - a cidade e seus pícaros - Pança farta e pé dormente

Índice PANÇA FARTA E PÉ DORMENTE
DESCREVE A CONFUSÃO DO FESTEJO DO ENTRUDO.
DESCREVE A JOCOZIDADE, COM QUE AS MULATAS DO BRASIL BAYLÃO O PATURI.
DESCREVE O POETA HUMA JORNADA, QUE FEZ AO RIO VERMELHO COM HUNS
AMIGOS, E TODOS OS ACONTECIMENTOS.
SEGUNDA FUNÇÃO QUE TEVE COM ALGUNS SUGEYTOS NA ROÇA DE HUM AMIGO
JUNTO AO DIQUE, ONDE TAM BEM SE ACHOU O CELEBRADO ALFERES THEMUDO, E SEU IRMÃO O DOUTOR PEDRO DE MAITOS, QUE ENTÃO ANDAVA MOLESTO DE
SARNAS.
DESCREVE A CAÇADA QUE FIZERAM COM ELLE SEUS AMIGOS NA VILLA DE S.
FRANCISCO À HUMA PORCA REBELDE.
DESCREVE O PERIGO EM QUE O POZ NA ILHA DE Me. DE DEOS HUMA VACCA
FURIOSA CHAMADA CAMISA, INDO DIVERTIR-SE AO CAMPO COM HUM IRMÃO DO
VIGARIO.
DESCREVE O DIVERTIMENTO QUE TEVE COM ALGUNS AMIGOS INDO AOS
CAYJÚS.
DESCREVE A VIAGEM, QUE INTITULOU DOS ARGONAUTAS DA CAJAIBA PARA A
ILHA DE GONÇALLO DIAS, ONDE COM SEUS AMIGOS HIA DIVERTIR-SE.
DESCREVE ESTANDO NA CAJAIBA HUMA CAVALHADA BURLESCA, QUE ALI
FIZERAM PELO NATAL, HUNS FOLGAZÕES.
DESCREVE HUMAS COMEDIAS, QUE NA CAJAIBA FORAM REPRESENTADAS
PELOS MESMOS, OU PARTE DELLES COM OUTROS DA MESMA CONDIÇÃO.
DESCREVE OUTRA COMEDIA QUE FIZERAM NA CIDADE OS PARDOS NA
CELEBRIDADE COM QUE FESTEJARAM A NOSSA SENHORA DO AMPARO, COMO
COSTUMAVÃO ANNUALMENTE.
DESCREVE COM ADMIRÁVEL PROPRIEDADE OS EFFEYTOS, QUE CAUSOU O
VINHO NO BANQUETE, QUE SE DEO NA MESMA E;ESTA ENTRE AS JUIZAS, E
MORDOMAS ONDE SE EMBEBEDARAM.
DESCREVE OUTRA FUNÇÃO IGUAL, QUE NO SEGUINTE ANNO ESTAS, E OUTRAS
MULATAS DA MESMA CONDIÇÃO FIZERAM A. N. SENHORA DE GUADALUPE.
DESCREVE O POETA AS FESTAS DE CAVALLO QUE SE FIZERAM NO TERREYRO
EM LOUVOR DAS ONZE MIL VIRGENS, SENDO ESCRIVÃO EUZEBIO DA COSTA
REYMÃO FILHO DE MARIA REYMOA; EM QUE ASSISTIRAM ESTES DOUS
PRINCIPES PAY, E FILHO COM O MAYOR DA NOBREZA NO COLLEGIO DE JESUS.
AS FESTAS DE CAVALLO QUE FEZ NO TERREYRO ESTRONDOSAMENTE
GONÇALLO RAVASCO CAVALCANTE SINGULAR JUIZ DAS ONZE MIL VIRGENS COM
ASSISTENCIA DESTE PRINCIPE, A QUEM
O POETA OBSEQUÊA, REMOQUEANDO A SEU ANTECESSOR: COMO TAMBEM
OBSEQUÊA A ANDRE CAVALLO, E OUTRAS PESSOAS NOMEADAS.
3 – PANÇA FARTA E PÉ DORMENTE
Descreve o Poeta as festas ...
Manuel Pereira Rabelo, licenciado Que bem bailam as Mulatas, que bem bailam o Paturi DESCREVE A CONFUSÃO DO FESTEJO DO ENTRUDO.
Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas, Galinhas, porco, vaca, e mais carneiro, Os perus em poder do Pasteleiro, Esguichar, deitar pulhas, laranjadas.
Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas, Gastar para comer muito dinheiro, Não ter mãos a medir o Taverneiro, Com réstias de cebolas dar pancadas.
Das janelas com tanhos dar nas gentes, A buzina tanger, quebrar panelas, Querer em um só dia comer tudo.
Não perdoar arroz, nem cuscuz quente, Despejar pratos, e alimpar tigelas, Estas as festas são do Santo Entrudo.
DESCREVE A JOCOZIDADE, COM QUE AS MULATAS DO BRASIL BAYLÃO O
PATURI.
Ao som de uma guitarrilha, que tocava um colomim vi bailar na Água Brusca as Mulatas do Brasil:
Que bem bailam as Mulatas, que bem bailam o Paturi!
Não usam de castanhetas, porque cos dedos gentis fazem tal estropeada, que de ouvi-las me estrugi:
Que bem bailam as Mulatas, que bem bailam o Paturi.
Atadas pelas virilhas cuma cinta carmesim, de ver tão grandes barrigas lhe tremiam os quadris.
Que bem bailam as Mulatas, que bem bailam o Paturi.
Assim as saias levantam para os pés lhes descobrir, porque sirvam de ponteiros à discípula aprendiz, Que bem bailam as Mulatas, que bem bailam o Paturi.
DESCREVE O POETA HUMA JORNADA, QUE FEZ AO RIO VERMELHO COM HUNS
AMIGOS, E TODOS OS ACONTECIMENTOS.
1 Amanheceu finalmente o Domingo da jornada co'a mais feia madrugada, que viu nunca o Oriente:
bufava o Sul de valente, de soberbo o mar roncava, ninguém a briga apartava, e eu perplexo, mudo, e quedo entre valor, e entre medo en salgo, y no salgo estava.
2 Resolvi-me, e levantei-me, posto que o quente da cama com Gonçalo, e com sua ama dizendo estava, comei-me:
vesti-me, e aderecei-me:
batem os pais de ganhar, mandei-lhes abrir, e entrar, estava a rede à parede, e em pondo o vulto na rede, comecei de caminhar.
3 Cheguei a São Pedro, e em vão busquei os mais companheiros, que devendo ir os primeiros, não tinham ido até então:
entrei na imaginação de se acaso me enganassem, e acaso as bestas faltassem, que havia eu de fazer, e foi fácil resolver, que por bestas lá ficassem.
4 Assim o cri, e era assim, pois o pouco espaço andado veio o Jardim esbofado mais rosado, que um jardim:
não vem mais outro rocim?
lhe perguntei com desdém:
ele respondeu, não vem;
estive aguando os canteiros, e não acho os companheiros, pois não me cheira isto bem.
5 Isto dito, assoma o Freitas, e eu disse entre duvidoso, o Gil é-me belicoso mas tem cara de maleitas:
chegou, e as minhas suspeitas veio tanto a confirmar, que disse, que o seu tardar fora causado, e nascido de o rocim lhe haver fugido, indo ao Tororó parar.
6 Quem deu tão ruim conselho (disse eu) a esse catrapó, pois quer ir ao Tororó, antes que ao Rio Vermelho?
mas um cavalo tão velho, que já por cerrado perde, que muito, que se deserde do vermelho, e seus primores, se deixa todas as cores um cavalo pelo verde.
7 Que é do Gil? não aparece.
E o Guedes? fica sem besta.
Eia pois, vamo-nos desta, que o sol trepa, e a calma cresce;
quem não aparece, esquece;
vamo-nos sem conclusão;
com que eu na rede um cação, e os dous nas duas cavalas fazíarnos duas alas, e as alas meio esquadrão.
8 Assim fomos caminhando sobre os dous cavalos áscuas alegres como uas páscoas, ora rindo, ora zombando:
eu que estava perguntando pela viola, ou rabil, quando ouvimos bradar Gil, que recostado à guitarra garganteava a bandarra letrilhas de mil em mil.
9 Olá, ô! chegou o Tudesco:
e já ele entre nós vinha posto sobre uma tainha, feito Arião ao burlesco:
riu-se bem, falou-se fresco, e eu da viola empossado cantava como um quebrado.
tangia como um crioulo, conversava como um tolo, e ria como um danado.
10 Apertamos logo o trote, e em breve fomos chegados, onde éramos esperados pelo ilustre Dom Mingote:
ali o nosso sacerdote, vendo a nova arquitetura da casa da Virgem pura, se apeou por venerá-la, os mais puseram-se em ala, passei eu, e houve mesura.
11 Tornamos a cavalgar, e vendo tão pouco siso, tomou o dia tal riso, que se pôs a escangalhar:
parou tudo em chuviscar, e os malditos cavaleiros picaram tanto os sendeiros que eu mesmo não entendia, que sendo cavalaria, fugissem como piqueiros.
12 Eu fiquei com minha mágoa solitário, e abrasado, dando-me pouco cuidado, que a rede nadasse em água:
por seu ofício se enxágua toda a rede nágua clara, e se esta se não molhara, com abalo, ou sem abalo nem eu vira o São Gonçalo, nem também jantar pescara.
13 Orvalhado um tanto, ou quanto o santo me agasalhou, e logo a chuva passou, que foi milagre do santo:
tratava-se no entretanto da missa, e estando esperando, ali vieram chegando duas belezas ranhosas, sempre à vista bexigosas, e feias de quando em quando.
14 Para a missa do Santinho mui pouco vinho se achou, e ele fez, que inda sobrou, porque é milagroso em vinho:
tomamos dali o caminho para o porto das jangadas ver as casas afamadas do nosso Domingos Borges, que sem levarmos alforjes nos pôs as panças inchadas.
15 O Gil, que é tão folgazão se foi ao pasto folgar, e se outra cousa há de achar, achou um camaleão:
lançou-lhe intrépido a mão, e com pulsos tão violentos cortou ao bruto os alentos, que depondo o bruto a ira disse, que depois o vira, pelo Gil bebia os ventos.
16 Deu-nos gosto, e prazer arto um caçador tão gentil, porque vimos, que era o Gil mais lagarto, que o lagarto:
e assim como estava farto de vento o camaleão, Gil assim de presunção tão inchado estava, e duro, que foi força dar-lhe um furo para ter evacuação.
17 Sopas de leite almoçamos, e logo o Guedes chegou, que nem pão, nem leite achou, e achou, que o apregoamos:
mas todos depois jantamos uma olha imperial, e houve repolho fatal ensopado, e não de azeite com pratos de arroz de leite, e vontade garrafal.
18 Já levantados da mesa se quis cantar, senão quando a pança me estava impando a goela entupida, e presa:
eu tenho esta natureza, que depois de manducar não me é possível piar:
será, porque certarnente pança farta, e pé dormente, como é adágio vulgar.
19 Sesteamos no areal onde o mar por mazumbaia refrescando estava a praia com borrifos de cristal:
a onda piramidal, que nos ares se desata, descaindo em grãos de nata pedia por bom conselho, que em vez de Rio Vermelho lhe chamem Rio da Prata.
20 O Sol vinha já descendo por graus, ou degraus do Céu, e a todos nos pareceu o irmo-nos acolhendo:
forarn-se os rocins prendendo, e selados, e enfreados, allons dissemos a brados já postos nos cavalinhos, e alvoroçando os caminhos chegando, fomos chegados.
SEGUNDA FUNÇÃO QUE TEVE COM ALGUNS SUGEYTOS NA ROÇA DE HUM
AMIGO JUNTO AO DIQUE, ONDE TAM BEM SE ACHOU O CELEBRADO ALFERES
THEMUDO, E SEU IRMÃO O DOUTOR PEDRO DE MAITOS, QUE ENTÃO ANDAVA
MOLESTO DE SARNAS.
1 Fez-se a segunda jornada da comédia, ou comedia, que inda nos deu melhor dia, do que a jornada passada:
vimos a mesma selada, e de vinho a mesma cópia, de ovos maior cornucópia que a de Almatéia florida, e sendo a mesma comida, contudo não era a própria.
2 Já Pedro esperava adrede da culatra tão sarnento, que embalançando-se ao vento era um cação em rede:
versos a matéria pede, me disse a sua lazéria, e se os faço com miséria, não se espante, quem os lê, de que tanta sarna dê (se é podre) tanta matéria.
3 Cantou-se galhardamente tais solos, que eu disse, ô que canta o pássaro só, e os mais gritam na semente:
tocou-se um som excelente, que Arromba lhe vi chamar, saiu Temudo a bailar, e Pedro, que é folgazão bailou com pé, e com mão, e o cu sempre num lugar.
4 Pasmei eu da habilidade tão nova, e tão elegante, porque o cu sempre é dançante nos bailes desta cidade:
mas em tal calamidade tinha Pedro o cu sarnudo, que dando de olho, ao Temudo disse pelo socarrão, assim tivera o cu são, como tenho o cu sisudo.
5 Pôs-se a mesa, e escabelos, foram seguindo-se os pratos, que eram tanto à vista gratos, como ao gasnate eram belos:
Pedro se pôs a lambê-los, e dando-se a Berzabu de não beber com Jelu o licor, que o entorpeça, porque o que dá na cabeça, temeu, lhe desse no cu.
6 Não quis o cu inflamar, por isso bebeu só água, do que nós com grande mágoa nos pusemos a chorar:
este fim teve um folgar de tanto gosto, e alinho, de que eu colho, e esquadrinho a exemplo da vida breve, que quem rindo o vinho bebe, chorando desbebe o vinho.
DESCREVE A CAÇADA QUE FIZERAM COM ELLE SEUS AMIGOS NA VILIA DE S.
FRANCISCO À HUMA PORCA REBELDE.
1 Amanheceu quarta-feira com face serena, airosa o famoso André Barbosa honra da nossa fileira;
por uma, e outra ladeira desde a marinha até a praça nos bateu com tanta graça, que com razões admirandas nos tirou dentre as holandas para levar-nos à caça.
2 O lindo Afonso Barbosa, que dos nobres Francas é, por Filho do dito André rama ilustre, e generosa:
já da campanha frondosa os matos mais escondidos alvoroçava a latidos, quando nós de mal armados à vista dele assentados nos vimos todos corridos.
3 Rasgou um porco da serra, e foi tal a confusão, que em sua comparação menino de mama é a guerra:
depois de correr a terra, e de ter os cães cansados com passos desalentados à nossa estância vieram, onde casos sucederam jamais vistos, nem contados.
4 Estava eu de uma grimpa vendo a caça por extenso, não a fez limpa Lourenço, e só a porca a fez limpa:
porque como tudo alimpa de cães, e toda a mais gente, Lourenço intrepidamente se pôs, e ao primeiro emborco mão por mão aos pés do porco veio a cair sujamente.
5 Tanto que a fera investiu, tentado de valentão armou-se-lhe a tentação, e na tentação caiu:
a espada também se viu cair na estrada, ou na rua, e foi sentença comua, que nesta tragédia rara a espada se envergonhara de ver-se entre os homens nua.
6 Lourenço ficou mamado, e inda não tem decidido se está pior por ferido da porca, se por beijado:
má porca te beije ? é fado muito mau de se passar, e quem tal lhe foi rogar, foi com traça tão sutil, que a porca entre Adônis mil só Lourenço quis beijar.
7 Lourenço, na terra jaz, e conhecendo o perigo deu à porca mão de amigo, com o que se punha em paz:
a porca, que é contumaz, e estava enfadada dele, nenhuma paz quis com ele, mas botando-lhe uma ronca por milagre o não destronca, e inda assim chegou-lhe à pele.
8 Ia Inácio na quatrilha, e tão de Atônis blasona, que diz, que a porca fanchona o investiu pela barguilha:
virou-lhe de sorte a quilha, que cuidei, que o naufragava:
porém tantos gritos dava, que infeliz piloto em charco a vara botava o barco, quando o porco a lanceava.
9 Inácio nestes baldões teve tanto medo, e tal, que aos narizes deu sinal de mau cheiro dos calções:
trouxe na meia uns pontões tão grandes, e em tal maneira, que à guerra hão de ir por bandeira, onde por armas lhe dão em escudo lamarão uma porca costureira.
10 Miguel de Oliveira ia com dianteira alentada, de porcos era a caçada, e o que fez, foi porcaria:
quando o bruto o investia, ele com pé diligente se afastava incontinenti, com que o julgas desta vez por mui ligeiro de pés, e de mãos por mui prudente.
11 Pissarro sobre um penedo vendo a batalha bizarra era Pissarro em piçarra, que val medo sobre medo:
nunca vi homem tão quedo em batalha tão campal;
porém como é figadal amigo, hei de desculpá-lo, com que nunca fez abalo to seu posto um General.
12 Frei Manuel me espantou, que o demo o ia tentando, mas vi, que a espada tomando logo se desatentou:
incontinenti a largou, porque soube ponderar, que ficava irregular matando o animal na tola, de que só o Mestre-Escola o podia dispensar.
13 O Vigário se houve aqui cuma tramóia aparente, pois fingiu ter dor de dente, temendo os do Javali:
porém folga, zomba, e ri ouvindo o sucesso raro, e dando-lhe um quarto em claro os amigos confidentes, à fé, que teve ele dentes para comer do Javaro.
14 Cosme de Moura esta vez botou as chinelas fora, como se ver a Deus fora sobre a sarça de Moisés:
tudo viu, e nada fez, tudo conta, e escarnece, com que mais o prazer cresce, quando o remedo interpreta Lourenço, a quem fez Poeta um amor, que o endoudece.
15 Silvestre neste dia ficou metido num nicho, porque como a porca é bicho, cuidou, que sapo seria:
mas agora quando ouvia o desar dos derrubados, mostrava os bofes lavados de puras risadas morto, porque sempre vi, que um torto gosta de ver corcovados.
16 Bento, que tudo derriba, qual valentão sem receio, pondo agora o mar em meio, fugiu para a Cajaíba:
não quis arriscar a giba nos afilados colmilhos de Javardos tão novilhos, e se o deixa de fazer, por ter filhos, e mulher, que mau é dar caça aos filhos?
17 Eu, e o Morais as corridas por outra via tomamos, e quando ao porco chegamos, foi ao atar das feridas:
co as mentiras referidas de uma, e outra arma donzela se nos deu a taramela;
nós calando, só dissemos, se em taverna não bebemos, ao menos folgamos nela.
DESCREVE O PERIGO EM QUE O POZ NA ILHA DE Me. DE DEOS HUMA VACCA
FURIOSA CHAMADA CAMISA, INDO DIVERTIR-SE AO CAMPO COM HUM IRMÃO DO
VIGARIO.
1 Tem Lourenço boa a taca, fomos tourear ao pasto, e depois de tanto gasto o tourinho era uma vaca Lourenço na sombra opaca de um pé de limões grosseiro, eis a vaca pelo cheiro deu com ele, e ele então por não morrer na prisão arrombou o Limoeiro.
2 Tomou da praia o retorno, porque o morrer melhor é na reponta da maré do que na ponta de um corno:
eu com notável sojorno numa capoeira estava, vendo, em que o caso parava, e a vaca com seu focinho me tratou como a ratinho;
pois qual gato me miava.
3 Temi logo a malquerença da vaca tão marralheira, e o medo me deu em reira, que é melhor do que em corrença:
rompi pela mata densa, e dei com meu envoltório de um vale no território, tomando por meu sossego, não las de Villa Diego, mas as de Vila Gregório.
4 Subi num monte comprido, que do vale é Polifemo, que quando uma vaca temo, subo mais do que um valido:
vim à casa espavorido, achei Lourenço pasmado, mudo, e desassisado, e eu disse: se escapo, vaya, que quem fugiu pela praia, força é que esteja areado.
5 Deu-se-nos grande matraca, e com ser dia de peixe, sem que a consciência se queixe, todos gostamos da vaca:
o Padre aguçou a faca, e afeiçoou um bordão, e tais ralhos disse então, que me convidou enfim para diante de mim dar na vaca um bofetão.
6 Mas eu não tornei ao mato, e ao Padre, que me chamava, respondi, que não gostava de vaca, senão no prato:
e terei por insensato, a quem com pau, ou com faca, brigar com rês tão velhaca a quem razão não convence, nem terá prêmio, quem vence um touro, se o touro é vaca.
7 Custódio, que é prudente, pacífico, e sossegado, topou na costa co gado, e entre ele a vaca nocente:
e em se pondo frente a frente a vaquinha, que o aguarda, e em dar carreiras não tarda, disparou como uma seta, com que lhe deu a vaqueta mais susto, que uma espingarda.
8 Tomou o monte de um pulo, e deu consigo no vale, sem dar jeito, a que o iguale a ligeireza de um mulo:
mas o meu Mestiço fulo o emparelhou no correr donde veio a suceder, que Custódio um pé retroce, sendo pé, que se não troce, quando o dono o há mister.
9 A vaca é terror da aldeia, pois faz armada de sanha praça de armas a montanha, e a praça veiga de areia:
todo o mundo se receia de inimiga tão comua, porque armada a meia-lua parece pelo cruel talvez Fatimá de Argel, talvez de Salé Gazua.
10 Não vi vaca tão ousada de mais brio, e fantesia, pois traz toda a freguesia corrida, e envergonhada:
murmura a gente pasmada, que uma vaca parideira nos pusesse em tal fraqueira, e eu tal medo lhe concebo, que, quando o leite lhe bebo, me dá logo em caganeira.
11 Senhor Estêvão, que é dono da rês, que o branco divisa, já que lhe deu a camisa, faça-a mansa como um sono:
e se não em alto tono, quando a vaca se remangue, tirei morto ao pé de um mangue, que se trata de a manter para o leite lhe beber, isso é beber-nos o sangue.
12 O Senhor Domingos Borges, que é sujeito de feição, se resistir seu Irmão, responda-lhe logo: alforjes:
e tu, vaca, não me forjes outra traição mais precisa, a passada passe em risa, mas se vens noutra ocasião a furar-me o casacão, hei de rasgar-te a camisa.
DESCREVE O DIVERTIMENTO QUE TEVE COM ALGUNS AMIGOS INDO AOS
CAYJÚS.
Valha o diabo os cajus, que a todos tem degradado, uns vão caminho das ilhas, outros caminho dos campos.
Assim me coube por sorte ir um dia degradado para a de Jorge de Sá, que é ilha dos mEus pecados.
Saímos com vento em popa, mas no mais triste pangaio, que nasceu de embarcações, de que foi Eva a Nau Argos.
Desembarcamos em terra, e querendo registar-nos com nossas cartas de guia, que nos deu o saibam quantos:
Achamos deserta a ilha sem câmara, nem senado, que os cajus são restringentes, não houve câmara este ano.
Tornamo-nos a embarcar no mesmo triste pangaio em demanda de outra ilha, em que o degredo compramos.
Não pudemos tomar terra porque era o vento contrário, assoprava pelo olho, e era o tal olho o do rabo.
Porque vento tão maldito, e tão despropositado só por tal olho saíra, para nos ir espeidando.
Tomamos porto na pátria depois de tantos trabalhos, fomes, que em terra curtimos, sustos, que no mar tragamos.
Fomos mui bem recebidos, porque o passado passado, e sobre os cargos da culpa nos deram logo outros cargos.
Todos saímos com vara, como meirinhos do campo sobre os pobres dos cajus prendendo, e executando.
Indo a eles uma tarde, prendemos quase um balaio, outros deixamos pendentes, que é o mesmo, que enforcados.
Os maduros se prenderam, que era a ordem, que levamos, mas os verdes se enforcaram, por serem cajus velhacos.
O Meirinho-mor do Reino, que é Custódio Nunes Daltro, não larga a vara, e os cajus andam como homiziados.
Tem uns alcaides pequenos, que andam correndo esse campo, e vão ligeiros de pé por vir pesados de papo.
Este castigo merece Cururupeba afamado, porque os engenhos não moem, e o rio é, quem paga o pato.
Em se acabando os cajus, as varas vão co diabo, salvo formos meirinhar aos airus por esses campos.
DESCREVE A VIAGEM, QUE INTITULOU DOS ARGONAUTAS DA CAJAIBA PARA A
ILHA DE GONÇALLO DIAS, ONDE COM SEUS AMIGOS HIA DIVERTIR-SE.
Era a Dominga primeita desta quaresma presente, já eu estava na praia, seriam seis para as sete.
Estava o dia formoso por ser hora, em que se veste a esfera de azul, e ouro com seus renglaves de neve.
A aurora teve bom parto, pois botou em tempo breve um menino como um sol para alegria das gentes.
Gritei eu: ah Sor Gregório, ele desperto gritou, aqui estou, e Sor Silvestre.
Só falta o Pissarro moço:
já foi chamá-lo o moleque, e em se juntando conosco estamos prestes, e lestes.
Toda a noite não dorrni com pensamento no beque, que há de levar-nos à ilha, onde façamos um frete.
Não tem, que me despertar, que eu escuso, me despertem, porque para esta viagem estive de acordo sempre.
Os três à praia chegaram, e eu no bergantim co'a gente mandei embarcar a todos um por um, ele por ele.
Botamos a Nau no mar um bergantim excelente nos nossos mares nascido obra do estrangeiro mestre.
O alforje lá me esquecia, disse eu, e a vocês lhes esquece:
mandei logo um negro à casa, que fosse num pé, e viesse:
Veio logo carregado o negro com uma serpe de bananas, e farinha, e al não disse o tal negrete.
Fomos, e dobrando o mangue encontrarnos um banquete, em que vem Miguel Ferreira cercado de muita gente.
Allons, allons, lhe dissemos, e ele nos disse: salvete, trespassamos o saveiro, que ia então vendendo azeite.
Fomos à costa correndo, e ajudados da corrente de Chico o porto tomamos, que estava manso, e alegre.
Tocou-se logo a trombeta, que um búzio era potente, um sinal de haver chegado a capitânia do Ostende.
Deu-nos uns poucos de apupos, e vendo, que Chico desce, embarcou-se, e socorreu-nos com China, e melado quente.
Fomos seguindo a viagem tão folgazões, tão alegres, que até as duas guitarras iam folgando de ver-se.
Assim chegamos à Ilha, e sobre areias de neve dezoito chancas saltavarn, com que a Ilha se estremece.
Perguntei por Esperança, e soube, que estava ausente.
Chico, que entonces servia de guia dos nossos fretes.
Quis-me eu então repelar, tendo pouco, que repele, disse mal da minha vida, de mim mesmo maldizente.
Corremos a Ilha toda, por sinal, que o bom Silvestre fez um letreiro na areia, cuja letra isto refere.
"O Senhor da Ilha é um Asno"
e foi disto tão contente, como se no tal letreiro uma asneira não fizesse.
Nós lhe estranhamos a asneira, e ele arreganhando os dentes, a celebrou como sua, por não ter, quem a celebre.
Achamos uma Mulata, que estava ali num casebre, que eu não fretei, por ser Nau já carregada por prenhe.
Tornamo-nos a embarcar algum tanto descontentes, porque em toda a Ilha achamos dois maracujás somente.
DESCREVE ESTANDO NA CAJAIBA HUMA CAVALHADA BURLESCA, QUE ALI
FIZERAM PELO NATAL, HUNS FOLGAZÕES.
1 Veio a Páscoa do Natal, primeira, e segunda oitava, quando Araújo assentava, uma festa garrafal:
mas a Cajaíba é tal, este monte tão mesquinho, que para um festim de alinho veio Araújo famoso, Paulinho com João Cardoso, Carvalho, e Falcão Marinho.
2 Só cinco em cinco rocins foi visto, que em meu sentido para o pasto andar corrido poucos bastam, se são ruins:
mas não faltaram malsins, entre os quais foi mui notado este número apoucado:
e eu tive os homens por loucos, pois bons são cavalos poucos para o pasto andar folgado.
3 O Araújo coitado, para que nada lhe sobre, andou sem freio, que ao pobre sempre lhe falta o bocado:
mas por isso aventejado andou à outra parelha, mais que aos mais arnês brilhante, que Araújo é rocinante, que val muito pela ovelha.
4 João Cardoso à mourisca pela encolhida perneta, tanto mais lustra a gineta, quanto mais nela se arrisca:
e bem que de todos trisca, porque com juízo, e brio nunca paga de vazio os altos, na refestela pagou de vazio a sela três vezes, ou quatro a fio.
5 Paulinho não há alcançá-lo:
era da festa o enigma, e alguém a dizer se anima, que indo em mula, ia a cavalo:
deu-lhe tão pequeno abalo o festim burlesco, e rude, que nunca obrigá-lo pude a fazer largas entradas, porque em verdes laranjadas era o Juiz da saúde.
6 O meu cavaleiro foi (por me dar maior regalo)
Carvalho, que ia a cavalo, e dava passos de boi:
mui prenhado "yo no voy, estos me lleban" dizia;
tão pouco, e tão mal corria, que nem ele se correu, nem o pasto floresceu, mas sem florescer se ria.
7 O Marinho andou galhardo, tal, que teve desta vez o pasto por Aranguês, que quer sempre o dia pardo:
como é Marinho bastardo, desprezou seu coração, gineta, e bastarda então:
mas em osso o coitadinho nadava como um Marinho.
voava como um Falcão.
8 Nas laranjadas folgou-se muito bem no meu sentir, ia Araújo a cair, e por não cair, deitou-se:
caiu, porém levantou-se bizarro, e mui animoso, para que o povo invejoso veja em seu mesmo rencor, que se caiu pecador se levantou virtuoso.
9 João Cardoso não quis crer, que fora a queda leve, e dando uma volta breve, a foi medir co nariz:
achou, que, o que se lhe diz, era mentira esbrugada, porque de uma laranjada quem vai desde a sela ao chão, achou pela medição, que era a queda mui pesada.
10 Bem do Marinho se riu, quando fez co'a terra escambos, porém sendo a terra d'ambos, o Marinho não caiu:
o rocinante, que viu com as costelas quebradas Araújo às laranjadas, rindo não se pôde ter, e assim em vez de correr se espojou em carcajadas.
11 Inácio não me lembrou, que branco do sobressalto antes que entrasse no assalto coitadamente arribou:
no princípio começou num cavalo inteiriçado, e vendo-se mal parado, não quis mais parar ali, e dando um homem por si, partindo o deixou soldado.
12 Depois houve laranjadas com todos os circunstantes, e o que eram laranjas antes, vi em risco de punhadas:
com várias calamocadas saiu mais de algum mirão, e foi tal a confusão, que sendo o Falcão previsto, e corredor mui bem visto, hoje está cego o Falcão!
DESCREVE HUMAS COMEDIAS, QUE NA CAJAIBA FORAM REPRESENTADAS
PELOS MESMOS, OU PARTE DELLES COM OUTROS DA MESMA CONDIÇÃO.
1 As comédias se acabaram a meu pesar, e desgosto, pois para ter, e dar gosto tomara eu, que começaram:
bem os mirões se admiraram, e por caminhos umbrosos iam dizendo saudosos, e cheios de admiração, bem haja esta geração de Pissarros, e Cardosos.
2 Não me esquecera em meus dias a boa arte, e disciplina, com que a Madre Celestina fazia as feitiçarias:
nas suas astrologias usava de tais cautelas, que diziam as Donzelas, o Gregório em todo o caso por evitar um fracasso domina sobre as estrelas.
3 Dizem, formosas, e feias mulheres de todo o estado, que o Carvalho no tablado chove-lhe a graça às mãos cheias:
ele é velhaco de meias, ora santo, ora velhaco, e eu, que o vi vestido em saco, disse logo espavorido.
basta, que foi Deus servido fazer um santo de um caco?
4 Não me esqueça o Azevedo, porque posto no tablado rebertolou de atinado, porque ora é manso, ora azedo:
a nenhum outro concedo ser homem tão peregrino, tão geral, e tão divino, pois a dizer me provoca, que traz por língua na boca as folhas do calepino.
5 Ninguém o pode entender, e eu muito menos o entendo, e só ele compreendo, que o não posso comprender:
o que tem, que agradecer, é o prazer, e o bom ar, com que se vem ofertar, porque em todas as jornadas quer, que lhe dêem as pancadas, porém não as quer levar.
6 Ele é um lindo rapaz, e o primeiro filho de Eva, que dá gosto, quando leva muito mais que quando traz:
mas o Carvalho sagaz, que lhe sabe das manqueiras, lhe sacode as costaneiras, porque quando desentoa, dá-lhe uma má, e outra boa com talos de bananeiras.
7 Inácio é grande estudante, e nos mostrou tão bom fio, que do seu jeito confio, que há de ser grande farsante:
para moço principiante nos deu bastante regalo, e nas comédias, que falo, como nas mais, que hão de haver, a muitos há de exceder sim por vida de Gonçalo.
8 Veio a festa a se acabar, e eu, que lhe vim assistir, estou cansado de rir, mais do que de trabalhar:
agora entendo passar à Catala, que é buçaco, porque em lugar tão opaco a todos dê, que entender, depois das comédias ver, ir vê-las por um buraco.
DESCREVE OUTRA COMEDIA QUE FIZERAM NA CIDADE OS PARDOS NA
CELEBRIDADE COM QUE FESTEJARAM A NOSSA SENHORA DO AMPARO, COMO
COSTUMAVÃO ANNUALMENTE.
1 Grande comédia fizeram os devotos do Amparo, em cujo lustre reparo, que as mais festas excederam:
tão eficazes moveram ao povo, que os escutou, que eu sei, quem ali firmou.
que se ainda agora vivera Viriato, não pudera imitar, quem o imitou.
2 O Sousa a puro valor, e a puro esforço arrojado não pode ser imitado, de quem foi imitador:
e bem que a arte maior não cnega, por ser ficção, a natural perfeição, tanto a arte aqui o fazia, que o natural não podia igualar a imitação.
3 As Damas com galhardia altivas, e soberanas muito excedem as Romanas na pompa, e na bizarria:
cada qual me parecia tão Dama, e tão gentil Dama, que quando Lucinda em chama de amor fingida se viu, eu sei, que se não fingiu, quem por ela então se inflama.
4 Mais airosa do que linda Laura no toucado, e pêlo não foi pouco parecê-lo, sendo à vista de Lucinda:
tanto me namora ainda a idéia do seu ornato, que em fé de tanto aparato meu requebro lhe dissera, e ciúmes lhe tivera de afeição de Viriato.
5 O Inácio a puro sal tanta graça em si acrisola, que podem pedir-lhe esmola marinhas de Portugal:
nele a graça é natural, naturalíssima a cara, e eu de riso arrebentara, se me não fora mister toda a tarde ali viver porque dele me lograra.
6 O nosso Juiz passado, que Salema aqui se diz, como foi mui bom Juiz, também foi mui bem julgado:
em passos, gasto, e cuidado se houve com tanto fervor, que merece em bom primor não ser só Juiz do Amparo, mas por único, e por raro ser do Amparo Julgador.
DESCREVE COM ADMIRÁVEL PROPRIEDADE OS EFFEYTOS, QUE CAUSOU O
VINHO NO BANQUETE, QUE SE DEO NA MESMA E;ESTA ENTRE AS JUIZAS, E
MORDOMAS ONDE SE EMBEBEDARAM.
1 No grande dia do Amparo, estando as mulatas todas entre festas, e entre bodas, um caso sucedeu raro:
e foi, que não sendo avaro o jantar de canjirões, antes fervendo em cachões, os brindes de mão em mão depois de tanta razão tiveram certas razões.
2 Macotinha a foliona bailou robolando o cu duas horas com Jelu mulata também bailona:
senão quando outra putona tomou posse do terreiro, e porque ao seu pandeiro não quis Macota sair, outra saiu a renhir, cujo nome é Domingueiro.
3 Por Macotinha tão rasa de putinha, e mais putinha, que a pobre Macotinha se tornou de puta em brasa:
alborotando-se a casa as mais se foram erguendo, mas Jelu, ao que eu entendo, é valente pertinaz, lhe atirou logo um gilvaz de unhas abaixo tremendo.
4 A mim com punhos violentos (gritou a Puta matrona)
agora o vereis, Putona, zás, e pôs-lhe os mandamentos:
e com tais atrevimentos a Jelu se enfureceu, que indo sobre ela lhe deu punhadas tão repetidas, que ficando ambas vencidas, cada qual delas venceu.
5 Acudiu um Mulatete bastardo da tal Domingas, e respingas, não respingas deu a Mulata um bofete:
ela, fervendo o muquete, deu c'o Mulato de patas, eis aqui vêm as Sapatas, porque uma é sua madrinha, e todas por certa linha da mesma casa mulatas.
6 Chegou-se a tais menoscabos que segundo agora ouvi, havia de haver ali uma de todos os diabos:
mas chegando quatro cabos de putaria anciana, a Puta mais veterana disse então, que não cuidava, que tais efeitos causava vinhaça tão soberana.
7 Sossegada a gritaria houve mulata repolho, que, o que bebeu por um olho, pelo outro o desbebia:
mas se chorava, ou se ria, jamais ninguém comprendera, se não se vira, e soubera pelo vinho despendido, que se tinha desbebido, quanto vinho se bebera.
8 Tal cópia de jeribita houve naquele folguedo, que em nada se tem segredo, antes tudo se vomita:
entre tantas Mariquita a Juíza era de ver, porque vendo ali verter o vinho, que ela comprara, de sorte se magoara, que esteve para o beber.
9 Bertola devia estar faminta, e desconjuntada, pois vendo a pendência armada, tratou de se caldear:
bebeu naquele jantar sete pratos não pequenos de caldo, e sete não menos de carne, e é de reparar que a pudera um só matar, e escapar de dois setenos.
10 Maribonda, minha ingrata tão pesada ali se viu, que desmaiada caiu sobre Luzia Sapata:
viu-se uma, e outra Mulata em forma de Sodomia, e como na casa havia tal grita, e tal contusão não se advertiu por então o ferrão, que lhe metia.
11 Teresa a da cutilada de sorte ali se portou, que da bulha se apartou, porque era puta sagrada:
da pendência retirada esteve num canto posta, mas com cara de Lagosta trocava com muita graça o vinho taça por taça, a carne posta por posta.
12 Enfim, que as Pardas corridas saíram com seus amantes, sendo, que no dia d'antes andavam elas saídas:
e sentindo-se afligidas do já passado tinelo, votaram com todo anelo emenda à Virgem do Amparo, que no seu dia preclaro nunca mais bodas al cielo.
DESCREVE OUTRA FUNÇÃO IGUAL, QUE NO SEGUINTE ANNO ESTAS, E OUTRAS
MULATAS DA MESMA CONDIÇÃO FIZERAM A. N. SENHORA DE GUADALUPE.
1 Tornaram-se a emborrachar as Mulatas da contenda, elas não tomam emenda, pois eu não me hei de emendar:
o uso de celebrar àquela Santa, e a esta, com uma, e com outra festa não é devoção inteira, é papança, é borracheira dar de cu, cair de testa.
2 Bebeu Pelica, um almude, e não faltou, quem notasse, que mil saúdes tragasse;
e ficasse sem saúde:
caiu como em ataúde, sendo mortalha as anáguas, e eu entrei num mar de mágoas vendo a casaca, que era finíssima primavera, ficar chamalote d'águas.
3 Vomitou toda a casaca, e as Mulatas desconvinham que umas por vômito o tinham outras o tinham por caca:
levou sobre isto matraca entre riso, e murmurinho, e a carinha com focinho lhe armou de grande altivez, mas resvelando-lhe os pés nadou em mares de vinho.
4 Angelinha aquela posta manjuba de palafréns, jogando fortes vaivéns ao vomito estava posta:
com máscara de lagosta ora arrotava, ora impava;
tomando puxos estava até que a hora chegou, não pariu, mas vomitou, porque tudo então trocava.
5 A Filha da Mangalaça de cuxambre tão maldito indo a parir; o Hermanito viu que o parto era vinhaça:
chorou tão grande desgraça a triste da Macotinha, vendo, que a sua Madrinha ao botar o tal monstrinho parira como com vinho, porém não como convinha.
6 Anastácia a dos corais, que fornicando a gandaia para botar uma saia mete sete oficiais:
bebeu tanto mais que as mais borrachas desta folia que cada qual lhe dizia que os oficiais chamava quando uma saia botava, chamasse, quando bebia.
7 Brazia, que a meu entender por bonita, e por galharda excedia a toda a Parda em cara, como em beber:
depois de muito comer bebia com tanto afinco, que dando às demais um trinco, constou, que de seis frasqueiras mui cheias, e muito inteiras só ela bebera as cinco.
8 Helena, o cu de borralho, asmática, porém gorda, se ensopou como uma torda na sorda de vinho, e alho:
tiveram grande trabalho as mais em a levantar, sem poder-se averiguar, se era odre, ou se penedo, e estando neste segredo ela o veio a vomitar.
9 A Agueda do Michelo, que tampouco se recata, nem merece ser Sapata, que entre todas é chinelo:
assentada no tinelo dava aos sorvos tal carreira, que disse uma companheira, que a tirassem com presteza, por não haver em tal mesa azeitona sapateira.
10 Tomou a Garça no ar a Sapata incontinenti, e indo arreganhar-lhe o dente, não teve, que arreganhar:
porém por se desquitar foi-se bailar o cãozinho, e como sobre o moinho levou tantas embigadas, deu em sair às tornadas a puro vômito o vinho.
11 Ninguém com Marta Soares quer trocar odre por odre, porque de podre, e mais podre não há distinção de azares:
os copos de vinho a pares e aos nones a água bebia, que Deus para ela não cria água de rios, nem fontes, e havendo de andar por pontes, pelas de vinho andaria.
12 Vem Luzia sacrifício Juíza de refestela Agrela, que já não grela, por ser puta d'abinitio deu um jantar, que era vício rodava o Santos licor, e a negra serva do amor gritava com saia verde, aqui-d'El-Rei, que se perde a roupa de meu Senhor.
13 Assim pois se embebedaram a Mestiça, e a Mulata, todos tomaram a gata, só as Gatas não tomaram:
bem fizeram, bem andararn em não irem à função:
porque se me caem na mão, (como as outras que beberam)
então viram, e souberam que sou para um gato, um cão.
14 A Gaguinha celebrada se afastou desta folia, dizendo que não queria com Marinículas nada:
entendida, e engraçada respondeu, por vida minha, por saber que não convinha, que a vinhaça moscatel graduasse em Bacharel quem fora sempre Gaguinha.
15 Inácia, chamada Ilhoa para cada beiçarrão não bastava um canjirão com sopas de pão, e broa:
bebeu vinho de Lisboa, bebeu do Porto, e Canárias, e vendo, que em copas várias outras o bebem do Beja, disse picada de inveja, ó Virgem das Candelárias!
16 A Surda, que gaga é, escutando estas plegárias da Virgem das Candelárias, chamou a de Nazaré:
que licor é este, que converte esta mulatinha?
bendita seja esta vinha, que deu tão santo licor, que para dar-lhe o louvor se esgotou a ladainha.
17 Acabado o tal banquete sem mais, nem mais dilação foi-se um, e outro putão, atrás do seu pontalete:
deixararn saia, e traquete, dentro na casa fechada;
e lá pela madrugada, veio a negra da Juíza e não achando a camisa gritou que estava roubada.
18 Voto solene fizeram ouvindo da negra os brados dizendo foram pecados, que na festa cometeram:
porque a virgem a quem disseram, que aquela festa faziam, lhe ouviram, quando bebiam dizer a senhora então;
que não se servia, não, do modo com que serviam.
19 Elas já em seu juízo (se de seu juízo têm)
dizem, que o ano que vem haverá festa de siso:
que hão de olhar seu perjuízo, sua honra, e opinião;
de putaria, isso não, mas, eu por certas seqüelas não me ficarei mais nelas nem na sua devoção.
DESCREVE O POETA AS FESTAS DE CAVALLO QUE SE FIZERAM NO TERREYRO
EM LOUVOR DAS ONZE MIL VIRGENS, SENDO ESCRIVÃO EUZEBIO DA COSTA
REYMÃO FILHO DE MARIA REYMOA; EM QUE ASSISTIRAM ESTES DOUS
PRINCIPES PAY, E FILHO COM O MAYOR DA NOBREZA NO COLLEGIO DE JESUS.
1 Clóris, nas festas passadas que às virgens são prometidas houve quadrilhas corridas parentas de envergonhadas:
porém estas realçadas vi neste ano derradeiro:
pois na esfera do Terreiro aparecia um Brandão, que correndo exalação, acabava cavaleiro.
2 Com estas aparições de cometas tão luzidos, nos mirões espavoridos eram tudo admirações:
em máximas conjunções de ouro, de prata, e de cores, notei que os Festejadores faziam com graças sumas no ar um jardim de plumas, e na terra um mar de flores.
3 Sua Excelência assistia, o Conde, e toda a Nobreza, e os padres por natureza lhes faziam companhia:
estava sereno o dia, a esfera toda anilada, a água do mar estanhada, brando o vento e lisonjeiro, e contudo no Terreiro houve muita carneirada.
4 Enfim a festa passada tão cheia de cavaleiros, se a fizeram dois Barbeiros, não seria mais sangrada:
ali vi dar cutilada, que todo o vento dissipa, do bruto, que a participa, e eu disse, pasmado e absorto, que a catana era do Porto, por rilhar sempre na tripa.
5 Logo e da primeira entrada houve jogo de manilha, que para isso a quadrilha pêlo lindo era pintada:
quem lhe dava uma encontrada, tudo então nos agradava, pois conforme ouvi julgar ali entre dar, e levar pouca vantagem se dava.
6 Cada qual sem mais tardança, à dama a quem mais se aplica, levou na ponta da pica, o que ganhou pela lança:
até o Padre Hortolança, digo, o Cônego Gonçalo, se logrou deste regalo:
eu só na baralha ingrata, não vi manilha de prata, que na de ouros já não falo.
7 Ao Marinho generoso o dia franco, e escasso concedeu-lhe o Galanaço recatando-lhe o ditoso:
e visto que por airoso é o Adônis da quadrilha Zundu se lhe rende, e humilha, dando-lhe (porque o conforte)
no cravo a primeira sorte, a segunda na manilha.
8 Barreto alheio do susto, que não implica amostrado nem ao forte o asseado, nem ao galante o robusto:
luzimento a pouco custo, bom ar sem afetação, foi julgado, em conclusão, que a destreza o não desvela, pois sem cuidado na sela, caía no capressão.
9 Muito Eusébio se desvela em correr mais que ninguém, e por correr sempre bem nunca se assentou na sela:
como há de sentar-se nela, se correr só pertendia tão propriamente o fazia, que se assentar, e correr não podem juntos caber, não se assentava, corria.
10 O valeroso Muniz em gala, cavalo, e arreio, quanto ganhou pelo asseio, o perdeu pelo infeliz:
o que eu vi, e a terra diz, é que de muito adestrado, andou tão aventejado, que a voz do povo levou, com que desde então deixou o Povo mudo, e pasmado.
11 Outro Muniz valentão o fez tão perfeitamente, que sendo em sangue parente era na destreza Irmão:
pelo forte em conclusão deixou de si tal memória, que por sua, e nossa glória, (deixando aos demais em calma)
fez pouco em levar a palma, sendo filho da Vitór 12 Do Bolantim a cavalo dizia o Povo gostoso, que era da festa o gracioso, e eu digo que era o badalo:
quem chegou a ponderá-lo correndo sobre a Rucina, revirar a culatrina, perni-aberto para o ar, a que o pode comparar mais que a um sino que se empina?
13 Ao Araújo famoso no princípio da carreira, resvelou-lhe a dianteira o cavalo furioso:
cego, arrojado e fogoso, entre uns baetas meteu-se:
quem sentado estava, ergueu-se:
porém o baixel violento como ia arrasado em vento, deu nuns bancos, e perdeu-se.
14 Caído o moço infeliz, houve grita e alarido, sendo que cai o entendido em tudo, que se lhe diz:
ergueu-se em menos de um triz, e pondo-se na vareda correu com cara tão leda, que causou admiração em todos; porque já então tinha ele com todos queda.
15 Um sobrinho do Frisão ao cheiro acudiu dos patos, porque é em públicos atos mui ousado um patifão:
presa a rédea a um arpão, nos estrivos dois arpéus pus eu os olhos nos céus, e disse que bem podiam louvar a Deus, os que viam a cavalo um Louva-Deus.
16 Uma aguilhada por lança trabalhava a meio trote, qual o Moço de Dom Quixote, a que chamam Sancho Pança:
na cara infame confiança, na sela infame perneta, e com tramóia discreta, ia sobre o seu jumento pelo arreio, e nascimento à bastarda e à gineta.
17 Ele andou tão desestrado, que para dar-lhe sentido o cavalo era o corrido, e ele o desavergonhado:
estava o Frisão pasmado de gosto babando o freio, por ser de razão alheio ver-se com tão pouco abalo não no centeio a cavalo, mas no cavalo o centeio.
18 A este filho universal, com três Pais e três Padrastos todo vestido de emprastos, se emprastado o mesmo val:
se seguia um cirragal, de quem tomavarn modelos para a corcova os camelos, cuja perna dobradiça sempre a memória me atiça da rua dos cotovelos.
19 No Menino Ascânio falo, que o Pai Enéias a murro devendo de o pôr num burro o deixou pôr a cavalo:
este menino ia ao galo e encontrou-se co'a galhofa, onde servira de mofa, os dias, que ali gastara, se um braço lhe não quebrara, e o mandaram numa alcofa.
20 Lá vem o Chico às carreiras dando esporadas cruéis, numa sela de arambéis vestido de bananeiras:
nas Laranjadas primeiras teve tão adversa estrela, que caiu na esparrela, não como Rola, em verdade, porque a queda foi de frade, pois logo agarrou da sela.
21 Às festas não deu desmaio nenhum destes entremezes, que não há ouro sem fezes, nem comédia sem lacaio:
qualquer correu como um raio e fez sua obrigação, exceto o boi do sertão, sendo, que alguém lhe cobiça o resistir à justiça, e dar co'a forca no chão.
22 O lindo Eusébio da Costa escrivão das onze mil, por assombrar o Brasil fez tudo de sobre-aposta:
cos passados deu à costa, e excedeu a toda a lei:
e assim eu sempre direi hoje e em toda a ocasião, que o ser por Costa Reimão he vem por ter mão de Rei.
AS FESTAS DE CAVALLO QUE FEZ NO TERREYRO ESTRONDOSAMENTE
GONÇALLO RAVASCO CAVALCANTE SINGULAR JUIZ DAS ONZE MIL VIRGENS
COM ASSISTENCIA DESTE PRINCIPE, A QUEM O POETA OBSEQUÊA, REMOQUEANDO A SEU ANTECESSOR: COMO TAMBEM OBSEQUÊA A ANDRE
CAVALLO, E OUTRAS PESSOAS NOMEADAS.
1 Foi das Onze mil Donzelas Juiz o Juiz mais nobre de quantos no Brasil cobre o manto azul das estrelas:
nesta festa sem cautelas gastou com liberal mão, e para mais devoção usar de Escrivão não quis, sendo o primeiro Juiz, que serviu sem escrivão.
2 Bem mostra, que de Bernardo tem herdado o natural, além de ser principal o seu ânimo galhardo:
aplausos grandes aguardo, e de Camena melhor, que publiquem seu primor, que a minha Talia nova hoje admirações aprova por mais heróico louvor.
3 Seis dias de cavaleiros houve com bastante graça, foram bons, e maus à praça em ginetes, e sendeiros:
também houve aventureiros, prêmios, e mantenedor, touros, que foi o melhor, porém sem ferocidade, que os touros nesta cidade não são de muito furor.
4 E pois coronista sou desta grã festividade, tenho de falar verdade, e dizer, o que passou:
agaste-se, quem andou mal, que a mim se me não dá:
sem saber, não foram lá, e se lhe der isto espanto, quando eu fizer outro tanto, também de mim falará.
5 Bem sei, que é culpa fatal, e contra a razão soçobra dizer mal, de quem bem obra, e bem, de quem obra mal:
mas nesta festa cabal com meu fraco entendimento aos cavaleiros intento julgar sem ódio nenhum, aplaudindo a cada um conforme o merecimento.
6 Nestes dias festivais com suma gala, e grandeza assistiu toda a nobreza dos homens mais principais:
Ministros, e Oficiais de guerra e Damas mui belas, que em palanques, e janelas mostravam com arrebol, que estando ali posto o sol, bem podiam ser estrelas.
7 Posto o sol ali se via porém com notável gosto, quando vi, que era o sol posto, mais o Terreiro luzia:
dois sóis postos na Bahia vi com diferença atroz, um Saturno, que se pôs outro posto na janela, Sol de luz mais clara, e bela, que hoje nasce para nós.
8 Desterrando sombras mil de um sol, que causou desmaios, nasce com benignos raios este Sol para o Brasil:
oh quem tivera a sutil de Apolo Lira discreta, da Fama aguda Trombeta, para que pudesse ousado sem temor, nem perturbado descrever este Planeta.
9 Mas é fraco o meu engenho, para de um Sol sem desmaios querer ventilar os raios, quando olhos d'águia não tenho;
e se a tão sublime empenho, (onde o mais sábio delira)
meu pensamento subira, logo dessa esfera clara como Faetonte rodara, ou como Ícaro caíra.
10 Quando o Planeta maior à vista humana se expõe, é, que a seus raios se opõe, atrevido algum vapor:
e se neste sol melhor nenhuns eclipses se vêem, não se atreverá ninguém (sem ter de néscio desmaios)
querer contemplar os raios esclarecidos, que tem.
11 Quando da estéril Mulher nasceu o maior do mundo, admirações, e profundo pasmo veio a gente ter:
e se com João nascer houve tanta admiração:
à Bahia outro João sol de claro nascimento nasce com merecimento pare a mesma suspensão.
12 E como não pasmarei eu, e este Povo também de ter por General, quem cetro merece de Rei?
pois a ventura, e a lei divina dispôs, Senhor, o seres Governador, contudo sabemos nós, que um foi dos vossos Avós de Pedro progenitor.
13 Daquele em tudo primeiro João, em nada segundo sois, e bem conhece o mundo, descendente verdadeiro:
também da casa de Aveiro muita nobreza alcançais:
Alencastre vos chamais de Duarte Inglês potente claríssimo descendente, Silva sois, e nada mais.
14 Com branca, e encarnada pluma galã vestido de verde, que inda a esperança não perde do neto da clara espuma:
Capitão de graça suma André Cavalo saiu:
logo o Povo se sentiu, porque de incidente novo os olhos levou do Povo, quando no Terreiro o viu.
15 Num branco bruto corria mais ligeiro do que o vento, tanto que co pensamento correr parelhas podia:
veloz desaparecia das pernas ao leve abalo, e não podia julgá-lo o Povo, que ali se achava, se era vento, que levava pelos ares o Cavalo.
16 Pôs André com bizarria todas as lanças mui bem, e inda assim não faltou, quem murmurasse todavia:
soube ele da zombaria, que se fez, e persentiu, quem fora, o que ali se riu, e no outro dia com brio um cartel de desafio pôs, mas ninguém lhe saiu.
17 No cartel, que pôs, mostrava, que a qualquer que julgassem três lanças, que se tirassem, mil cruzados ofertava:
o delinqüente aceitava o desafio esta vez, porém que sem interês com gosto perder queria nesta contenda, e porfia não só mil cruzados, três.
18 Pede licença, ao Senhor, que no nome a graça traz:
mas ele como sagaz o aconselha com primor:
diz-lhe, que fora melhor esta contenda escusar;
porém o Mancebo alvar fiado em ser cavaleiro, e fiado em ter dinheiro não quis o pacto aceitar.
19 Porque se não vence não (dizia o Moço Magnata)
nem por ouro, nem por prata o seu sangue de Aragão:
e vendo o Senhor D. João, que se a licença negava, a André Cavalo ultrajava, pois podiam presumir, se ao campo o não vissem ir, que o dinheiro lhe faltava:
20 Lhe disse, que não só três (se corressem) mil cruzados, senão que depositados tinha André Cavalo dez:
mas o moço Aragonês vendo esta resolução, por temer a perdição, a que punha o seu dinheiro, toma conselho primeiro co reverendo Frisão.
21 O Padre, que sem estudo as Leis entende civis, e com manhosos ardis obra mal, e sabe tudo:
lhe diria mui sisudo com aspecto venerando, rindo-se de quando em quando, que assim seus enganos lavra, não se lhe dê da palavra, diga, que estava zombando.
22 Assim foi, que o desafio veio a parar em burrada, que a palavra não val nada, se na ocasião falta o brio:
e para que com desvio não fossem mais inimigos, evitando alguns perigos em boa paz os chamou o General, e tratou, de que fossem muito amigos.
23 Depois das pazes enfim lhes pediu, que cavalgassem, e um par de lanças tirassem cada qual em seu rocim:
ele lhe disse, que sim, e de improviso avisou ao Irmão, que não tardou em trazer-lhe bons arreios, cavalos, selas, e freios, e com eles se embarcou.
24 Num dia dos derradeiros ao Terreiro os dous chegaram, e ambos se separaram, logo dos mais cavaleiros:
cuidam, que são os primeiros Fidalgos, que a terra tem, e néscios não antevêem, que diz o Povo, e não erra, se são Fidalgos da terra, na terra há outros também.
25 Empinou-se-lhes a ruça, e de quatro companheiros sem mais outros cavaleiros fizeram a escaramuça:
o General se debruça para metê-los bem nela na janela com cautela, porém usou de revoltas, porque metendo-os nas voltas, mandou cerrar a janela.
26 A escaramuça acabada fizeram a cortesia, e todo o Povo se ria vendo a janela fechada:
nas voltas não viram nada, que com notável trabalho no ay hombre cuerdo a cavalo, porém depois que acabaram, e o General não acharam, ficaram de vinha-d'alhos.
27 Cos rostos descoloridos, desesperados agora iam por dentro, e por fora da própria cor dos vestidos:
os que são desvanecidos, e de néscia presunção presumem mais, do que são, emendem seus pensamentos, que para seus desalentos e vivo o Senhor D. João.
28 Não presumam, porque têm, que são mais que os pobres nobres, pois há muitos homens pobres, mui bem nascidos também:
ao pequeno não convém por pequeno desprezar, que se este quiser falar, achar pode algum defeito que nenhum há tão perfeito, em quem se não pode achar.
29 Seguia-se um cavaleiro ao famoso André Cavalo, que levou sem intervalo de cada golpe um carneiro:
também foi aventureiro de um prêmio: mas com defeito dava ao corpo um grande jeito, e ficou passado, e absorto, de que fosse ao prêmio torto, e o prêmio a outro direito.
30 Ao famoso Brás Rabelo razão é de mestre o apode, que dar dias santos pode nesta arte, ao que for mais belo:
e se com louco desvelo, do que digo, algum se abrasa, escute a razão, que é rasa, e verá, se faz espantos, que dar possa os dias santos, quem tem Domingos de casa.
31 Nas lanças, que pôs mui bem, teve de prêmios ganança, e certo, que pela Lança não o há de vencer ninguém:
dos cavaleiros, que tem modernos hoje a Bahia, leva Brás a primazia, porque não há nesta praça, quem se ponha com mais graça, fortaleza, e bizarria.
32 Também aquela fatal emulação de Mavorte, para os inimigos forte para os amigos Leal, aplauso merece igual, pois nesta cavalaria, se aos mestres não excedia, por mais antigos na arte, aos Modernos desta parte ele leva a primazia.
33 Também no Machado falo, que e razão por ele acuda, pois sempre ao cavalo ajuda, mas não o ajuda o cavalo:
inda assim posso louvá-lo, dando-lhe vários apodos, porque conheço em seus modos, e mui bem posso afirmar, que nisto de cavalgar leva vantagens a todos.
34 Em mau cavalo corria, mas um prêmio mereceu;
veja-se, quem o perdeu, que cavaleiro seria:
aposto, que alguém diria, vendo, que as carreiras passa sem fortaleza, nem graça, que o Moço com seu sendeiro é nos fumos cavaleiro, porém não cá para a praça.
35 Outro cavaleiro airoso andou na festividade, e vi na velocidade, com que corre, ser Veloso:
por cavaleiro famoso o Povo o aclamou de novo, eu só admirando o louvo, e acho discrição calar, que é escusado falar, quando por mim fala o Povo.
36 O Ripado valeroso andou bem, porém sem sorte, porque tem pouco de forte, se bem tem muito de airoso:
perdeu pouco venturoso, mas sem nenhum sentimento, um prêmio, que Brás atento ganhou, porque não se atreva a aquilo, que também leva com as palavras o vento.


Texto-fonte: Obra Poética, de Gregório de Matos, 3ª edição,
Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.


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